Pesquisa acadêmica, pesquisa básica e pesquisa aplicada em duas comunidades científicas
Simon Schwartzman
I. O problema geral. O relacionamento entre pesquisa acadêmica, pesquisa básica. e pesquisa aplicada é uma das questões fundamentais da pesquisa científica e tecnológica. Em todas as áreas de conhecimento. Essencialmente, esta questão tem a ver com as motivações do pesquisador e com o destino ou a apropriação social dos resultados de seu trabalho. Para efeito desta pesquisa. entenderemos por “pesquisa acadêmica" aquela que tem por motivação a descoberta de fenômenos empíricos importantes que possam avançar o conhecimento em determinado campo de acordo com o consenso da comunidade de especialistas. Por "pesquisa aplicada" entenderemos aquela que tem um resultado prático visível em ermos econômicos ou de outra utilidade que não seja o próprio conhecimento; e por1fpesquisa básica" aquela que acumula conhecimentos e informações que podem eventualmente levar a resultados acadêmicos ou aplicados importantes, mas sem fazê-lo diretamente. A questão do relacionamento entre as diversas formas de pesquisa científica tende a ser colocada usualmente de forma abstrata, como oposição entre dois modelos alternativos de entender e justificar o trabalho científico. O primeiro modelo privilegia a pesquisa acadêmica, como aquela mais capaz de levar ao desenvolvimento intelectual e ã criatividade dos cientistas, o que levaria ao desenvolvimento da pesquisa aplicada como sub-produto; o segundo privilegia a pesquisa aplicada, vendo nela a forma de vincular o trabalho cientifico com as necessidades econômicas e sociais, e entendendo a pesquisa mais acadêmica como simples investimento necessário ao melhor encaminhamento dos trabalhos aplicado. A confrontação abstrata entre estes dois modelos tende a ignorar a realidade com a qual trabalham os cientistas, que ê sempre o resultado de uma combinação entre demandas, expectativas e aspirações nem sempre coincidentes ou convergentes. Cientistas são chamados a fazer pesquisas acadêmicas, a dar aulas em cursos de graduação e pós-graduação, se preocupam em contribuir para atividades socialmente relevantes, zelam por suas carreiras profissionais. e buscam trabalhos que lhes dêem rendimentos satisfatórios. Nem todas estas atividades são necessariamente convergentes: dar aulas tira tempo de pesquisa, a pesquisa acadêmica pode favorecer o reconhecimento profissional do cientista (e, por conseguinte. sua carreira a longo prazo) mas afastá-lo de trabalhos socialmente mais relevantes e melhor remunerados, e assim por diante. O reconhecimento desta complexidade, diversidade e diferenciação da atividade científica não deve levar ao abandono dos esforços por entender e explicar o que ocorre a partir de um contexto conceitual mais sistemático e ordenado. A estratégia que utilizaremos para isto será a de considerar os dois modelos indicados acima como dois "tipos ideais" que possam servir de parâmetros para a análise; a eles acrescentaremos um terceiro, menos freqüente na literatura de sociologia da ciência, mas bastante importante, que é o modelo da ciência como atividade tecno-burocrática. Teoria: três modelos de ação Os modos alternativos de pensar a questão acima estão relacionados com dois'”modelos ideais" , ou tipos ideais, a respeito da natureza do trabalho científico. Tipos ou modelos ideais, como sabemos, são “constructos" teóricos ou conceituais que tratam de reconstruir a lógica da ação humana em determinado campo de atividade a partir de seus valores e objetivos explícitos, que são depois levados a suas ultimas conseqüências lógicas. Os tipos ideais não descrevem a realidade empírica, mas permitem que sejam estabelecidos padrões de comparação e avaliação entre situações concretas e estes modelos. Mais ainda. ao partir de valores e objetivos explícitos. eles permitem entender o sentido da ação a partir da qual situações, historicamente concretas podem ser avaliadas. I - O modelo ideal mais comumente difundido na sociologia da ciência é o da ”Republica da Ciência", ou da "cidade" científica. Neste modelo, a atividade cientifica é essencialmente uma atividade voltada para a busca do conhecimento. com um sistema de prêmios, recompensas e punições baseado no maior ou menor sucesso nesta busca. As razões pelas quais as pessoas buscam o conhecimento são irrelevantes para o modelo: o que importa ê que o conhecimento seja algo cuja posse seja considerada importante em si mesmo, e não para outros fins. A aferição da qualidade. e propriedade deste conhecimento exige a existência de um grupo de pessoas que tenha condição de avaliar a correção e a relevância dos conhecimentos adquiridos. Estas pessoas formam uma comunidade científica que funciona como uma corporação em suas relações com o resto da sociedade; elas definem as regras de acesso e exclusão a comunidade. e desenvolvem sua hierarquia interna de valores, prestígio e autoridade. Elas controlam suas próprias instituições - centros de pesquisa, revistas especializadas. institutos - e distribuem internamente seus recursos. Internamente, estas comunidades são uma república meritocrática: todo o sistema de estratificação interna e distribuição de recursos ê baseado em critérios de mérito intelectual, e para que isto possa ser feito existe um amplo mercado de circulação de informações. É pela disseminação dos resultados de seu trabalho que o cientista se apropria do prestígio e das demais recompensas a ele associadas que seu trabalho possa merecer. Para que este mercado possa funcionar, e necessário que exista um certo consenso dentro da comunidade a respeito do que ê um trabalho científico importante ou não, e de quais são os critérios de aferição de qualidade e veracidade. Este consenso é muitas vezes referido na literatura como "paradigma", conceito que tem sido utilizado na literatura especializada para caracterizar o conjunto de conhecimentos, metodologia, padrões de trabalho. critérios de qualidade e supostos básicos que caracterizam uma área de conhecimento científico determinada. Dentro desta visão, um paradigma não é simplesmente uma teoria científica (como a física eisteniana. por exemplo), mas implica também um conjunto de pessoas reais trabalhando a partir de seus supostos mais gerais. A questão dos diferentes tipos e modalidades de paradigmas não nos interessa neste contexto. O que é importante ê a idéia de que pessoas que se dedicam à atividade cientifica. se vinculam a comunidades relativamente reduzidas de colegas, dentro das quais são conhecidas, aonde estabelecem seu reconhecimento como profissionais, aonde aprendem o que sabem e formam novos especialistas. São estas comunidades que dão consistência e continuidade às tradições cientificas. sem quais a atividade de pesquisa não pode se desenvolver. Sociólogos da ciência tem se referido a estas comunidade s como “colégios invisíveis” que, ainda que não estabelecidos. Formalmente, são a base para a organização e continuidade do trabalho científico. O teorema fundamental que decorre deste modelo ideal é que a atividade cientifica é necessariamente uma atividade livre e auto-regulada, e que qualquer interferência em sua liberdade e mecanismos de auto-regulação significa necessariamente um prejuízo para ao qualidade do trabalho científico. As conseqüências deste tipo de teorema para a área de política científica são fáceis de imaginar. II - O segundo modelo ideal pode ser denominado de "modelo do progresso técnico”. O principal axioma deste modelo é que a atividade científica, como qualquer outra forma de conhecimento humano, tem por objetivo resolver problemas práticos e utilitários vividos pelas sociedades em suas diversas etapas ou formas de desenvolvimento. A dissociação que historicamente possa ocorrer entre a pesquisa científica e a tecnologia devem ser entendidas, nesta perspectiva, como processos de alienação que podem no máximo mascarar, mas não eliminar o relacionamento necessário entre conhecimento e sua utilização social. Assim, o "modelo da "República da Ciência" não seria senão uma manifestação ideológica da dissociação entre o trabalho intelectual e o trabalho manual. que seria uma das características das sociedades classistas. A sociologia do conhecimento deveria, de acordo com este modelo, ter condições de estabelecer as vinculações causais entre o conhecimento gerado por uma sociedade e suas características de organização social e econômica.. Na medida em que o aspecto “mascarado”e encoberto da dissociação entre a ciência e a tecnologia, por um lado, e o desenvolvimento econômico e o progresso técnico. por outro, seja explicitado, esta dissociação perde sua razão de ser. O pesquisador escolherá sua área e seu tema de pesquisa em função de sua utilidade social. e esta utilidade determinará sua recompensa. Esta recompensa, ou remuneração. pode consistir tanto em prestígio e poder social quanto em remuneração financeira em função da utilidade do produto do conhecimento. O produto do conhecimento tem, por definição. valor de mercado que pode ser estimado e que transcende seu mero "valor de uso" como conhecimento em si. Ele pode, assim, ser trocado por outros valores - na forma de licença, royalties, ou exploração monopolística de seus produtos. A relação do cientista com seu produto depende, essencialmente, da organização mais geral do sistema produtivo. Em sociedades pouco industrializadas, o pesquisador pode explorar seu trabalho co:no empresário individual, beneficiando-se de suas invenções ou patentes individuais. Em sociedades capitalistas mais complexas, pesquisador é como um trabalhador assalariado, cujo produto ê apropriado por sua empresa. Em resumo, o tipo ideal do "progresso técnico" vê o trabalho científico como parte da atividade econômica e produtiva mais geral. As implicações da adoção deste modelo para a determinação de uma política cientifica, e para a organização do trabalho de pesquisa, são também fáceis de antever. III - O terceiro modelo, finalmente, vê a atividade cientifica essencialmente como parte das atividades complexas das grandes organizações contemporâneas. Sua referência histórica não é a ciência artesanal e individualizada nem a tecnologia do inventor isolado, mas as grandes organizações técnico-científicas contemporâneas. Segundo esta concepção, a atividade científica moderna se dá cada vez mais no contexto de uma complexidade técnica crescente, com uma divisão do trabalho que se aproximaria, em muitos casos à que ocorreu na indústria com a passagem da produção artesanal â produção em série. A vinculação necessária do cientista ou pesquisador a grandes sistemas organizacionais teria feito com que os dois modelos anteriores se tornassem obsoletos. No contexto contemporâneo da “big science”, o cientista deixaria de ser um agente isolado, e passaria a se comportar de forma semelhante à dos que participam das grandes organizações complexas contemporâneas. O axioma fundamental deste modelo é a concepção de Galbraith a respeito das tecno-estruturas das grandes organizações modernas. que tende a ser adotado por todos os que se dedicam à teoria das organizações: a idéia que as organizações tendem naturalmente a crescer e a se fortalecer, estabelecendo para isto o máximo controle possível das variáveis exógenas que possam afetá-las. Nestas organizações. a motivação do trabalho do pesquisador não seria condicionada nem pelas expectativas de seu grupo de iguais, a comunidade, nem pela lucratividade e potencialidade prática de seu trabalho, mas pela apreciação que a própria organização possa fazer deste trabalho. Ora isto depende, essencialmente, dos objetivos da organização. Instituições voltadas para a produção industrial, por exemplo, tenderiam a sancionar trabalhos mais aproximados ao modelo de progresso técnico, enquanto que instituições mais especificamente de pesquisa tenderiam a valorizar trabalhos mais próximos ao modelo acadêmico. Grandes instituições governamentais de orientação tecnológica, no entanto - as chamadas tecno-burocracias - são as que tipificam melhor este modelo. Institutos de energia atômica, centros de pesquisa espacial, institutos nacionais de pesquisa agro-pecuária, institutos de pesquisa médica, etc., são instituições que tendem a surgir em quase todos os países, financiadas pelos respectivos governos, mantidas à parte dos sistemas universitários e industriais, e nas quais a grande ciência se desenvolve com toda sua pujança. Estas instituições são o ambiente mais propicio ao desenvolvimento da chamada ciência básica'. ainda que ela não seja, evidentemente, a única forma de trabalho cientifico que permitem. O quadro seguinte sumariza as principais características dos três modelos típicos discutidos acima.
3. Duas comunidades cientificas O trabalho empírico principal da pesquisa consistirá no estudo de duas comunidades cientificas contemporâneas no Brasil, a de genética e a de física de estado sólido. O problema da delimitação da amostra a ser pesquisada está intimamente relacionado com os três modelos de organização da atividade científica discutidos acima. Essencialmente, o problema consiste em definir qual o sistema maior que integra os cientistas isolados em uma unidade social mais ampla. O modelo acadêmico postula que este sistema maior ê a comunidade científica, ou seja, a rede informal de conhecimentos , troca de informações e apreciações mutuas que une e estrutura os cientistas de determinada especialidade. O modelo do progresso técnico postula que a unidade mais significativa é a unidade produtiva, que se subdivide de acordo com as normas da divisão social do trabalho, dentro da qual se dá a atividade científica. O modelo técnico-burocrático postula que a unidade de análise mais importante é a organização. Na realidade, o que a pesquisa procura determinar é exatamente em que medida estes três modelos ideais existem e funcionam de fato ou não. Para isto, a estratégia de pesquisa consistirá em supor a existência de uma comunidade cientifica definida a partir de um procedimento operacional qualquer, que delimite com. clareza um conjunto de pessoas que trabalhem em diversos institutos, universidades, centros de pesquisa, mas que mantenham certos vínculos e contatos institucionais e intelectuais informais. Uma vez definidos os grupos, a pesquisa tratará de determinar em que medida elas realmente se adaptam ao modelo acadêmico de estruturação, ou se aproximam aos outros dois (em princípio, qualquer um dos três princípios organizativos poderia ser tomado como ponto de partida). Genética e Física do Estado Sólido parecem duas áreas de pesquisa científica especialmente adequadas para este tipo de estudo. Ambas são áreas cientificamente avançadas, e exigem dos pesquisadores uma formação cientifica sólida e um trabalho acadêmico de qualidade. Ao mesmo tempo, são áreas de aplicabilidade potencial muito grande. A genética, na produção de variedades, no controle de doenças transmissíveis. e mais recentemente. com o desvendamento do código genético, na própria criação de novas espécies economicamente relevantes. A Física do Estado Sólido ê uma área de grandes aplicações na área de eletrônica, computação e tantas outras. Finalmente, ambas são áreas que têm. no Brasil grupos científicos bem constituídos e dinâmicos. A diversidade entre estas duas áreas não impede que elas sejam estudadas com mesmo enfoque, de tal maneira que seja possível examinar como cada uma destas comunidades se constitui, e de que maneira elas lidam com a questão do relacionamento entre o trabalho aplicado, o trabalho acadêmico e a pesquisa básica, em seus diversos contextos institucionais. 4. Metodologia A metodologia para este estudo ainda não está completamente definida. Ela exigirá, de qualquer forma, os seguintes passos;
O foco principal das entrevistas deverá consistir na análise das decisões a respeito da escolha das diversas linhas de pesquisa pelos pesquisadores individuais. É de se esperar que o exame adequado deste processo de decisão permita ver de que forma os diversos modelos ideais realmente atuam ao determinar as prioridades e preferências. e ao distribuir os recursos ao alcance do pesquisador. 5. Relevância geral da pesquisa É possível resumir a relevância geral da pesquisa nos seguintes itens:
Ao conhecer de maneira mais real e concreta o funcionamento destas duas comunidades científicas, a pesquisa poderá contribuir para responder perguntas do seguinte tipo:
Respostas a estas perguntas permitirão, se espera, o desenvolvimento de políticas cientificas mais sofisticadas e mais sintonizadas com a realidade dos diversos setores da comunidade cientifica nacional, do que tem sido possível.até então. Na medida em que a pesquisa seja feita com a participação ativa dos próprios cientistas, ela permitirá também que eles aumentem a consciência de suas dificuldades, potencialidades e possíveis caminhos de melhora e crescimento. Referências bibliográficas – parte teórica (preliminar) Ben-David, Joseph. 1971. The scientist's role in society a comparative study. Englewood Cliffs, N.J.: Prentice Hall. |