Debate no O Globo sobre Reforma do Ensino Superior, 10 de março de 2005



Regulação do ensino privado, o divisor de águas (O Globo, 12 de março de 2005)

Demétrio Weber

O debate sobre a reforma universitária promovido pelo GLOBO anteontem expôs com clareza a questão de princípio que divide opositores e defensores do anteprojeto apresentado pelo Ministério da Educação (MEC): até que ponto o ensino superior privado deve sofrer regulação do poder público. De um lado, o ministro Tarso Genro enfatizou que a educação não é uma mercadoria qualquer, pois tem função social. Ou seja, para ele é preciso aumentar o controle sobre as instituições particulares.

De outro, o presidente do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets), Simon Schwartzman, ex-presidente do IBGE, defendeu o poder de regulação do próprio mercado. Mais do que isso, acusou o MEC de engessar o ensino superior no país, por transferir para a iniciativa privada mecanismos de controle válidos apenas para as instituições públicas.

Tarso e Schwartzman protagonizaram os momentos de maior polêmica ao longo de duas horas e dez minutos de debate, na série Encontros O GLOBO, sob mediação do editor de Opinião do GLOBO, Aluizio Maranhão. Participaram também o reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Aloisio Teixeira; o reitor da Universidade Castelo Branco (UCB), Paulo Alcantara Gomes; e o presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Gustavo Petta.

Da platéia de cerca de 350 pessoas, boa parte estudantes da UFRJ, Schwartzman ouviu mais vaias que aplausos. Principalmente quando comparou faculdades a restaurantes para defender o direito à livre iniciativa.

- Assim como o governo tem a obrigação de impedir que eu venda comida estragada, o governo tem obrigação de impedir que eu venda o ensino de má qualidade. Fora isso, não é competência do governo, é um direito do cidadão. Se há cinco restaurantes numa rua, e eu quero abrir um restaurante do lado, o ministro não tem nada a ver com isso - disse Schwartzman, enfatizando que o ensino superior não é concessão do Estado e que os empresários têm direito de abrir faculdades mesmo em áreas saturadas onde poderão ter prejuízo.

Para Tarso Genro, porém, o ensino superior privado passou por uma expansão desenfreada nos últimos anos e precisa de um marco regulatório capaz de separar o joio do trigo. O ministro ressalvou que instituições particulares de alta qualidade convivem - e competem - com outras de baixíssimo nível.

-É o mercado que regula o Estado ou é o Estado que regula o mercado? Se eu entender que é o mercado, vou chegar à conclusão de que quanto mais desregulamentado for o setor, mais a qualidade e a concorrência vão ser os impulsos fundamentais para a sua qualificação. Não é esse o nosso entendimento - disse Tarso.

- O objetivo (da reforma) é que não se repitam cenas como ocorreu aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, em que determinadas faculdades coloquem vans na frente de outras escolas dizendo o seguinte: -Você aqui no curso tal está pagando R$ 300, vá para a minha faculdade que lá é R$ 100-. Ou seja, uma concorrência exclusivamente em função do preço, como se a educação fosse mera mercadoria - criticou o ministro.

Presidente do IBGE no governo Fernando Henrique, Schwartzman criticou o anteprojeto do MEC e seu pressuposto básico de que a função social da educação permite ao governo avançar na regulação do setor.

- Essa interpretação extrema que o ministro está fazendo de que a educação é uma função delegada eu acho uma concepção totalitária. A educação que vou dar ao meu filho não é poder delegado, é um poder que a sociedade tem de se educar como quiser - disse Schwartzman. -É uma arrogância o governo, seja ele qual for, achar que vai saber tudo e vai comandar tudo.

O último Censo da Educação Superior mostrou que em 2003 o Brasil tinha 3,8 milhões de estudantes matriculados no ensino superior, dos quais 2,7 milhões (71%) em instituições privadas e 1,1 milhão (29%) nas públicas. O anteprojeto do MEC fixa como meta para 2011 elevar para 40% a proporção de estudantes das instituições públicas federais, estaduais e municipais. Resta saber se haverá dinheiro para isso.

O anteprojeto concede autonomia administrativa, financeira e de gestão para as universidades federais. Hoje essas instituições recebem verbas carimbadas e não podem decidir como gastarão o dinheiro, além de estarem sujeitas a cortes orçamentários. A proposta determina que o financiamento cresça ano a ano e que os reitores sejam eleitos diretamente pela comunidade acadêmica, sem a atual prerrogativa do presidente da República de escolher a partir de uma lista tríplice também eleita.

Além disso, todas as instituições públicas e privadas deverão ter conselhos comunitários sociais com a presença de representantes de fora da universidade, abrindo espaço para membros do Movimento dos Sem Terra (MST).

Schwartzman disse que as instituições federais deveriam ganhar autonomia financeira e receberem verbas extras à medida que melhorem sua gestão. Ele disse temer que o aumento dos repasses, aliado à eleição dos reitores e à existência dos conselhos comunitários, torne as federais reféns dos sindicatos e interesses corporativos.

Para o ministro da Educação, no entanto, Schwartzman usa dois pesos e duas medidas ao tratar do setor público e do privado.

- Quando ele se reporta à educação como elemento a ser explorado, como permite a Constituição, pela iniciativa privada, sua visão é de autonomia do mercado. Quando se reporta à autonomia da universidade pública, ele diz: o Estado tem que meter a mão, o Estado tem que nomear o reitor, se for o caso. Ou seja, o Estado tem que intervir - disse Tarso Genro.

Favorável à autonomia universitária, o reitor da UFRJ, Aloisio Teixeira, elogiou o anteprojeto.

- A universidade brasileira, caso o projeto seja aprovado da forma como está, ficará melhor do que é hoje - disse Teixeira.

Na mesma linha, o presidente da UNE, Gustavo Petta, acha que a proposta traz avanços, ainda que tenha que ser melhorada principalmente no que diz respeito à assistência estudantil e à criação de cursos noturnos nas universidades federais.

- Acho que a reforma vem para separar as boas instituições privadas das caça-níqueis. Infelizmente, o Estado não vai dar conta num período curto de atender toda a demanda de acesso ao ensino superior - afirmou Petta.

O reitor Paulo Alcantara Gomes, ex-presidente do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (Crub), disse que o anteprojeto peca por focar em aspectos gerenciais, dando menos ênfase à questão da qualidade.

- Não nos interessa se a instituição é pública ou privada. O que nos interessa é que haja três compromissos da instituição acadêmica: o compromisso com a qualidade, com a avaliação e o compromisso de cumprir o seu Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) - disse Alcântara.

Tarso reafirmou a intenção do MEC de alterar o anteprojeto, incorporando críticas que o texto tem recebido. Entre elas, a de tratar de educação a distância e criar os chamados comitês de desenvolvimento, com membros da comunidade científica para orientar o repasse de recursos destinados à expansão das federais. O objetivo é privilegiar o mérito dos projetos. O ministro voltou a defender os conselhos comunitários sociais e, embora técnicos de sua equipe já admitam reduzir o poder dos conselhos, Tarso disse que ainda não se convenceu disso.

- Há fundamentos de que não nos afastamos: a educação como bem público, a expansão da universidade pública e a necessidade de marcos regulatórios que dêem tranqüilidade para os agentes (privados) trabalharem com qualidade, afastando a visão de que educação pode ser uma mercadoria qualquer - concluiu o ministro.
Política de cotas causa polêmica (O Globo, 12 de março de 2005)


A política de cotas prevista no anteprojeto de reforma universitária do Ministério da Educação também provocou polêmica no debate. Embora considere legítimo ampliar o acesso ao ensino superior, o presidente do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade, Simon Schwartzman, disse temer que o ingresso de estudantes com menos preparo intelectual afete a qualidade das universidades.

- Estou vendo uma grande política de abertura, mas não estou vendo política alguma de atendimento adequado a essa população que está entrando. É um problema sério - afirmou Schwartzman.

O anteprojeto reserva 50% das vagas das universidades federais para estudantes que tenham cursado o ensino médio na rede pública. Em cada estado haverá um percentual destinado a negros, pardos e índios proporcional ao que esses grupos representam na população, segundo o último censo do IBGE.

O ministro da Educação, Tarso Genro, afirmou que as cotas não afetarão a qualidade do ensino e já prometeu rever o modelo de assistência estudantil proposto na reforma.

- Não há favorecimento ilegal nem tratamento desigual. Quando a pessoa se auto-identifica como afrodescendente, ela vai concorrer em um número menor de vagas. Portanto, vai ser também uma concorrência acirrada, que vai exigir um mérito tão importante como o mérito do vestibular em geral - afirmou o ministro.

- Não consigo entender muito como o ministro tenta explicar que a qualidade é mantida, porque se a pessoa que fosse competir não tivesse menos qualificação ela não precisaria da cota - observou Schwartzman.
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