
Saberes científicos e saberes populares
(Apresentado na Runião Anual da Associação Brasileira de Antropologia, Vitória, abril de1998)
Simon Schwartzman
A principal contribuição da moderna antropologia e sociologia do conhecimento, marcada pelos trabalhos pioneiros de Karin Knorr e Bruno Latour, entre outros, foi o rompimento da demarcação rígida que se supunha existir entre o conhecimento "verdadeiro", científico, e o conhecimento popular, não científico e, por isto mesmo, tratado frequentemente como ingênuo ou errôneo. O que hoje sabemos é que nem o conhecimento chamado "científico" é tão seguro e verdadeiro assim, nem o conhecimento popular é necessariamente errôneo.
Pensando bem, não há nada de novo nisto. Qualquer pessoa que conhece de perto uma área de pesquisa científica, seja nas ciências naturais, seja nas ciências sociais, sabe como o conhecimento científico avança por tentativas e erros, e sabe também que as pessoas e civilizações sobreviveram e ainda sobrevivem a custa de conhecimentos práticos e tradições acumuladas ao longo do tempo, sem uma base dita "científica" constituída de forma explícita.
Eu diria que a novidade consiste, primeiro na redescoberta da existência de um corpo de idéias, no nível da lógica, da filosofia, da história da ciência e das ciencias sociais que questionam a possibilidade de uma linha de demarcação absoluta entre os diferentes tipos de conhecimento. Eu nao teria como reconstituir esta história aqui, mas ela inclui, como marcos importantes, os trabalhos do chamado "segundo Wittgenstein", que substitui a busca de uma fundamentação lógica do conhecimento por um conjunto de aforismas sobre a constituição da linguagem; o famoso "teorema de Goedel", que aparentemente demonstra que todos os sistemas lógicos são inerentemente incompletos e abertos; e os trabalhos de Thomas Khun e outros, mostrando como o conhecimento científico tem um forte componente de construção social de consenso.
Esta redescoberta tem sido posta a serviço de diferentes usos, alguns mais interessantes e significativos, outros mais problemáticos. Eu diria que os mais interessantes têm sido os esforços em entender e explicitar os mecanismos sociais que levam à constitução de "verdades" socialmente aceitas e consolidadas, não só na forma de proposições, mas também de "objetos técnicos" bem constituídos. Ao examinar, até o limite, os processos sociais de constituição destas "verdades", os sociólogos e antropólogos da ciência realizam o que alguns denominaram de "chicken game" com a epistemologia, ou seja, o jogo de levar ao limite a noção de que os conhecimentos são constituidos por mecanismos estritamente sociais de disputa de espaço, poder e formação de consenso. Neste jogo, são explicitados os vínculos que existem entre a formação do conhecimento científico e os interesses, entre o conhecimento teórico e o conhecimento aplicado, entre as motivações dos indivíduos e os condicionantes da natureza.
Muito mais problemática é a ilação, a meu ver completamente equivocada, de que o qüestionamento da linha clara de demarcação entre a ciência e a não ciência equivale a dizer que todos os conhecimentos, tudo o que se diz sobre o mundo empírico, é equivalente, que não há difereça entre o certo e o errado, e que tudo é questão de poder e ideologia. É como se, no mundo do comportamento ético e moral, eu dissesse que a inexistência de uma demarcação absoluta entre o bem e o mal (pretendida, geralmente, pelas religiões), significasse que todos os comportamentos e ações são igual e indiferentemente válidos. Eu acredito, ao contrário, que o comportamento ético não depende de uma demarcação rígida entre o bem e o mal, e da mesma maneira o conhecimento técnico e científico não depende, para existir, de uma linha de demarcação rígida entre a Verdade e a Inverdade.
Simétrico ao questionamento da validade dos conhecimentos científicos é a noção de que são os conhecimentos populares, tradicionais, que englobam a verdadeira sabedoria, a Verdade verdadeira. Nesta visão, o que vale é a homeopatia, não a medicina alopática; as práticas das parteiras, e não dos médicos obstetras; a capacidade dos índios de fazer chover, e nao as previsões da meteorologia. O positivo desta perspectiva é que ela permite recuperar e valorizar tradições e formas de conhecimento que são muitas vezes abandonadas e destruídas pelo poder avassalador de outras formas de conhecimento oriundas da tradição científica e técnica ocidental; mas sua dimensao romântica, e muitas vezes ingênua, nao pode ser desconsiderada.
Eu diria que, em toda esta discussão, falta um entendimento mais aprofundado da própria natureza do trabalho científico, que os antropólogos e sociólogos da ciência estão aos poucos revelando, mas que a discussão ideológica que eles geraram muitas vezes oculta. Uma das dificuldades em ver como o conhecimento científico se dá efetivamente é causada pela tendência, tanto de cientistas como de epistemólogos, de dar preferência à apresentação da ciência pronta em detrimento da ciência em processo, e apresentá-la, na medida do possível, como um corpo dogmático e fechado de verdades e demonstrações. Se ultrapassamos esta barreira inicial, o que vemos do outro lado não é o caos, mas um processo muito estruturado de organização, sistematização e testes de conhecimentos, que varia de disciplina para disciplina, que aceita graus diferentes de erros e tolerâncias, mas que é muito distinto dos processos de constituição dos conhecimentos populares, muito mais abertos e menos sensíveis a indefinições e contradições.
Wittgenstein, em uma passagem famosa citada por Clifford Geertz em um texto também famoso sobre "local knowledge", compara a linguagem com uma cidade, com suas grandes e modernas avenidas, mas também suas ruelas e becos em subúrbios antigos e recônditos. A história da revolta da vacina, no Brasil, é um exemplo claro da junção destas duas dimensões - o conhecimento científico que busca ordernar as cidades, e neste processo ameaça destruir formas tradicionais de vida e organizção social, e os conhecimentos tradicionais dos becos e subúrbios. Já não temos hoje a arrogância dos reformadores da ciência e dos urbanistas do início do século, mas tampouco podemos, simplesmente, nos opôr à vacina e preferir a cultura da comunidade e da varíola. Há de existir um espaço intermediário, que temos que construir e ampliar.
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