Desenvolvimento e Abertura Política

Simon Schwartzman

Publicado em Dados - Revista de Ciências Sociais, 6,  1969, 24-56. Agradeço os comentários, críticas e sugestões de Bolivar Lamounier e Antônio Octávio Cintra, que foram incorporados tanto quanto possível no corpo do artigo e suas notas (os comentários e sugestões de A O. Cintra se refletem, principalmente, nas notas 4, 7, 9 e 22). Desnecessário dizer que a responsabilidade do autor pelo artigo não diminuiu com a ajuda recebida. Agradeço também os comentários e observações de Peter McDonough, que limitações de tempo me impediram de incorporar de forma adequada.

Abstract

1. A Esfera Política

2. Desenvolvimento Político: Institucionalização

3. Nível de Conflitos

4. Abertura Politica e Institucionalização

5. Desenvolvimento Econômico e Desenvolvimento Político

7. Determinantes Políticos

8. As Demandas de participação

9. Abertura e Fechamento. custos e benefícios

10. Conclusões

Notas



Abstract

A political system is more open if it absorbs and legitimates more demands for political participation in a given society. The discussion of the concept of political "openness" implies the distinction between "non-political" participation, which does not go beyond the level of the specific interest of groups, and political participation as such, which is more general. Functional and specific participation seems to be a characteristic of "closed" or "participationist" types of political systems, and it causes a series of consequences that are discussed, among which the creation of structural propensities towards technocractic rule and administrative corruption.

Political "openness" as a global dimension characterizing the political system of participation is approached through two sets of variables First, standard variables such as economic development, urbanization and increase of social participation The second set contains the more strictly political variables. Briefly, these relate the level of institutionalization of the political system At a closer sight they have to do with the nature of the political system as it derives from solutions historically found by the power system for the problems of socioeconomic growth. The first of these processes leads to a specific type of demands for political participation The author suggests a typology of such demands in terms of participation in inputs, outputs and cathectic components The second of the processes is more difficult to conceptualize The integration of explanations of a historical type (R. Bendix, B. Moore, A. Gerschenkron) seems to provide a more satisfactory perspective. It goes beyond the mere reasoning in terms of levels of institutionalization. 

After having conceptualized the political "openness" and the two main sets of independent variables, the author turns to a more detailed characterization of the dimensions of the political "openness" and its implications.. He discusses the two alternatives existing between "information" and "intelligence" and the implications of their use to the rigidity of the system. The differences between decisions and policies, as well as those between the prevalence of issues of interests and issues of scope, are some of other aspects dealt with. Finally, the author describes. the differences between technical and political approaches to issues of development and social policy. The social costs of a "closed" political system seem to be high enough to justify an effort in arriving at political solutions that might keep the system "open" and expanding.

1. A Esfera Política

Preocupados com a dificuldade e premência do desenvolvimento econômico, os que se preocupam pelos problemas do mundo subdesenvolvido freqüentemente deixam de lado, como irrelevante ou inexistente, o problema do desenvolvimento político. A negligência dos problemas de desenvolvimento político, em uma época de crise política generalizada, não é senão uma conseqüência da negligência mais geral em considerar a política como dotada de realidade própria, que não pode ser conhecida nem entendida somente a partir de seu contexto econômico ou sociológico. É curioso como, para esta negligência, contribuem influências as mais diversas e contraditórias, que dificilmente se veriam cômodas em um mesmo quadro de idéias.

A primeira destas influências é a marxista, que em seus diversos matizes impregna o pensamento social de um grande espectro da intelectualidade nestes países. É próprio do pensamento marxista o considerar a atividade política como mero epifenômeno, um simples reflexo ou aparência de uma realidade mais profunda, a realidade econômica das relações de produção.(2) A política interessa ao marxismo, assim, cm primeiro lugar como instrumento para a luta de classes e consolidação do poder operário, em segundo lugar como ideologia de uma classe dominante. A política é vista então, ou como sem vida e determinação própria, que não merece ser vista e estudada corno algo em si mesmo, ou então como algo totalmente maleável e dócil às táticas dos grupos sociais em pugna. Instrumento da ação social com segundas intenções, não cabe nesta concepção a noção de um sistema político mais ou menos "desenvolvido", a não ser talvez na acepção anarquista segundo a qual o máximo de desenvolvimento político seria obtido quando o Estado e a política em geral, deixassem de existir.

A segunda destas influências é a da sociologia política contemporânea, que combina uma certa herança intelectual do marxismo, na sociologia européia, com a experiência política dos Estados Unidos, na ciência política nesse país. A herança européia tende a levar os sociólogos a buscarem a explicação dos fenômenos políticos a partir, sempre, das divisões e conflitos de classes e grupos, sem que a existência do Estado e demais estruturas político-partidárias possam receber a dignidade conceitual de um tratamento autônomo. Do lado norte-americano, sugere o Prof. Samuel P. Huntington que a ausência da necessidade de criar e consolidar uma ordem política, graças à tradição de estabilidade desse país, levou também à noção de que um sistema político estável e bem sucedido seria o correlato natural do desenvolvimento econômico e do aumento do bem estar social.(3) Um abismo conceitual se estabelece assim entre economistas e sociólogos que vêem o processo político como uma resultante simples dos acontecimentos da vida social e econômica, e os especialistas em governo e administração, que vêem estas atividades como puramente técnicas e independentes do que passa no resto da sociedade. Enquanto isto, o próprio governo dos Estados Unidos aumenta duzentos e cinqüenta vezes o tamanho de seu orçamento em setenta anos e, como observa E. Schattschneider em seu The Semi Sovereign People(4), é certo que o governo norte-americano é o mesmo hoje que em 1789, mas somente no sentido em que a Ford Motor Company é a mesma empresa que a oficina de conserto de bicicletas com que o velho Ford começou sua carreira. É ilusório crer que se pode entender política hoje em dia sem considerar o governo e a estrutura do Estado como um fator de influência variável, mas central, ao lado dos outros interesses e instituições em interação e conflito. A abertura política não é função, somente, das características do governo e da estrutura dó Estado, más não pode ser entendida a não ser a partir daí.

Este artigo pode ser visto como um esforço em delinear três áreas de atenção que parecem ser fundamentais para o estudo de um processo político corno o nosso. A primeira destas áreas é a mais tipicamente "sociológica", que busca a raiz dos fenômenos políticos nas estruturas e transformações dos sistemas sociais de produção, poder e prestígio. A segunda é mais tipicamente "política", e se coloca mais bem no nível das características organizacionais dos sistemas de poder, suas bases de sustentação social, amplitude etc. A terceira, finalmente, se refere à arena política propriamente dita, como o local em que os desejos e aspirações de participação se confrontam com uma estrutura de poder e autoridade determinada. A compreensão de qualquer situação ou processo político específico não pode prescindir da elaboração mais ou menos explícita de um modelo que tome em consideração as relações entre estas três áreas através do tempo. Este artigo pode ser visto como um momento prévio a este modelo, na medida em que o enfoque central aqui é a determinação das principais variáveis e seus efeitos mais gerais, e não seu interrelacionamento to sistemático.(5)

2. Desenvolvimento Político: Institucionalização

O conceito de desenvolvimento político implica, primeiramente, a idéia de institucionalização, Vale a pena seguir, neste particular, a conceituação de S. Huntington, que define institucionalização como "o processo pelo qual organizações e procedimentos adquirem valor e estabilidade", O grau de institucionalização de um sistema político, prossegue, "é definido pela adaptabilidade; complexidade, autonomia e coerência de suas organizações e forma de proceder"(6). Adaptação se refere à capacidade do sistema de enfrentar novas situações sem se destruir, e é o contrário de rigidez. A adaptabilidade de uma instituição determinada é fruto, principalmente, de sua experiência em enfrentar desafios a seu funcionamento através do tempo. O fator tempo é fundamental, mas não é, tão somente, uma questão de cronologia - o amadurecimento de uma instituição se mede, também, pelo número de gerações que ela foi capaz de ver passar pelas suas estruturas e pelo número de funções distintas que ela foi chamada a desempenhar através do tempo. Em outras palavras, é a experiência em adaptar-se a situações, líderes e funções novas através do tempo que dá a medida da adaptabilidade de uma instituição ou sistema político. Esta adaptabilidade não se refere somente ao passado, o que seria trivial, mas também ao futuro, na medida em que implica a predição de que estas instituições antigas e experimentadas serão capazes de enfrentar novos desafios de instituições mais jovens e inexperientes, A noção de complexidade, oposta à de simplicidade institucional, é a segunda dos dimensões de institucionalização. Uma instituição complexa com múltiplas funções e diversificação organizacional é mais capaz de manter a lealdade de seus membros, de enfrentar uma ampla gama de problemas e desafios, e por isto menos vulnerável e mais estável. Autonomia se refere à independência da instituição em relação a outras instituições e grupos sociais que formam seu contexto. Uma instituição política autônoma deixa de ser "um mero instrumento" de dominação de certas classes e interesses, para desenvolver critérios e normas próprios de ação. A noção de autonomia não implica, evidentemente, a. de neutralidade em relação aos diversos interesses contrastantes, mas simplesmente que uma coisa não se reduz a outra. Coerência, finalmente, implica a existência de um consenso entre os membros da instituição a respeito de seus princípios, seus objetivos, suas áreas de ação legítima e indébita, e um certo "esprit de corps". Adaptabilidade, complexidade, autonomia e coerência são empiricamente interdependentes, e definem, quando presentes, um alto grau de desenvolvimento político. Segundo o conceito aqui exposto, um sistema político desenvolvido é aquele capaz de se adaptar a situações novas, de atender a novas funções e incorporar novos grupos, de desempenhar uma pluralidade de funções e manter, ao mesmo tempo, um certo consenso entre as pessoas que o integram. É um sistema estável mas não estático, tem uma legitimidade cuja base transcende a conveniência dos cidadãos em um momento dado, e busca suas raízes em um passado histórico de estabilidade, flexibilidade e legitimação.

3. Nível de Conflitos

Uma das causas da instabilidade política dos países subdesenvolvidos é, assim, a própria instabilidade: a sucessão de interrupções na continuidade da vida das instituições políticas impede que se cristalizem aquelas qualidades de flexibilidade, adaptação, complexidade, autonomia e coerência que só o tempo pode trazer. Esta concepção leva, sem dúvida, a uma perspectiva conservadora no sentido mais preciso do termo, ou seja, à perspectiva de que existem valores a conservar em estruturas antigas, e um custo relativamente alto na substituição de uma estrutura por outra.

Mas o tempo não é, como sabemos, a única variável independente a incluir, já que a decadência institucional é também uma possibilidade. Um contexto de mudanças rápidas, que se refletem na forma de contestações contínuas ao regime político, pode produzir um enriquecimento e simplificação das estruturas políticas, que muitas vezes interrompem um processo anterior de amadurecimento e institucionalização. A ausência total de conflitos parece levar também a uma estagnação institucional que resulta. finalmente em esclerosamento, rigidez e decadência. Só um nível "razoável" de conflitos, suficientemente forte para estimular mudanças e adaptações por parte das instituições políticas, mas suficientemente fraco para não levar a situações de polarização, rigidez e perda de autonomia, poderia permitir um desenvolvimento institucional no sentido indicado acima.(7) Este "nível ótimo" de conflitos parece estar longe de ser a regra nos países subdesenvolvidos, e o resultado conhecido é a mais ou menos rápido deterioro das instituições politicas que, bem ou mal, funcionaram até o princípio dos anos 60. Isto é verdade tanto, na América Latina, a respeito dos governos constitucionais que substituíram por um breve período os regimes populistas, quanto para a África, a respeito dos regimes estabelecidos após a independência, quase todos recentemente substituídos por governos militares. A situação geral é, pois, de involução política, no sentido sugerido por Huntington, ainda que esta involução possa ser necessária para recolocar as relações de poder em uma base tal que permita ou não um desenvolvimento político posterior.(8)

Existe uma dificuldade conceitual bastante óbvia com a noção, de "nível ótimo de conflitos", que é a da impossibilidade de definir esta optimalidade de forma independente. Esta não é uma impossibilidade lógica, mas prática, no sentido, de que as ciências sociais, apesar de algumas tentativas já feitas neste sentido, não têm conseguido fazê-lo, É bem claro, entretanto, que os efeitos de um nível dado de conflitos dependem de uma série de fatores contextuais prévios, a começar pelo próprio nível de desenvolvimento político do Estado, um sistema político, mais institucionalizado, como, o dos Estados Unidos ou União Soviética, é muito mais capaz de absorver conflitos e tensões internas que os sistemas menos institucionalizados como os da América Latina ou África.

As dificuldades conceituais não param aqui, e é necessário considerar pelo menos duas mais. Em primeiro lugar, ainda que seja fácil perceber que os Estados Unidos têm um sistema político mais desenvolvido que o do Brasil, as coisas não são tão simples quando se busca comparar casos menos extremos, como Argentina e Chile, ou Espanha e França. No primeiro caso, não resta dúvida de que a situação chilena se aproxima muito mais à de um sistema político altamente institucionalizado, no sentido de Huntington, que a da Argentina; mas, diante dos signos cada vez mais insistentes de uma involução na democracia exemplar chilena, com a generalização da violência social, rumores de intervenção militar, oscilações extremas nas linhas de clivagens partidárias, etc., caberia perguntar se a aparente maturidade política chilena não era senão a indicação de que este país ainda não havia chegado à fase política da qual a Argentina parece estar começando, penosamente, a sair. A conclusão, neste caso, é que o grau de desenvolvimento político de um país não pode ser medido pelo simples nível de institucionalização, de suas instituições políticas, mas tem que levar em conta, também, a adequação destas instituições às pressões sociais que incidem sobre elas.

O mesmo tipo de conclusão deriva da comparação entre Espanha e França, já que, ainda que se possa argumentar que o regime espanhol é mais institucionalizado que o francês (pelo menos mais estável sem dúvida tem sido) , é evidente que o regime francês está muito acima do da Espanha no que se refere à abertura política, racionalização da burocracia estatal e atendimento das demandas de uma sociedade que participa em massa da vida política de seu país. A diferença das diferenças entre Chile e Argentina, por um lado, e Espanha e França, por outro, é que, enquanto no primeiro caso a diferença parece explicar-se por níveis distintos no processo de participação e mobilização política, no segundo é bastante claro que o próprio sistema político é responsável pelo que acontece em cada caso. O regime espanhol, como o português, foi capaz de frear com bastante sucesso, e por bastante tempo, as demandas de participação social e política de suas populações (e também o desenvolvimento econômico de seus países) enquanto que França e Itália são exemplos de regimes que bem ou mal se adaptaram a uma sociedade em mudança. Se a comparação entre Chile e Argentina chama a atenção para a necessidade de examinar o desenvolvimento político em relação com as demandas de participação social e política, a comparação entre Espanha e França mostra que o conceito de desenvolvimento político é somente uma das dimensões para a compreensão do problema, e outros conceitos, que caracterizam o sistema político de forma mais detalhada, devem ser também introduzidos. Voltaremos a estes dois pontos mais adiante, mas antes há que ver, com certo detalhe, o que podemos entender por "abertura política".

4. Abertura Politica e Institucionalização

Dissemos anteriormente que um sistema político mais institucionalizado é mais capaz, em princípio, de absorver como legítimas novas demandas de participação, o que não se daria com sistemas políticos mais rígidos e imaturos. Esta absorção e legitimação de demandas é o que se entende por "abertura" e a afirmação anterior pode ser reformulada em termos de que os sistemas políticos mais ínstitucionalizados são mais capazes de uma abertura que os menos institucionalizados. A evidencia histórica para esta proposição abunda e inclui desde a progressiva absorção dos movimentos negros ao sistema político americano até a legalização de partidos comunistas e da extrema direita nos países da Europa Ocidental e as tentativas de desestalinização da URSS e Europa Oriental. Não há que confundir, entretanto, "abertura" com democratização.

Democracia como "governo do povo" é, na observação aguda de Schattschneider(9), um conceito pré-democrático, no sentido de que sua elaboração é anterior à existência e funcionamento dos atuais regimes políticos democráticos. A definição que o próprio Schattschneider sugere de democracia inclui os elementos de competição entre lideres e organizações, por um lado, e a apresentação de alternativas políticas para o público em geral, que participa assim do processo decisório, de outro. Um sistema político, capaz de absorver e processar demandas de tipo, privado, sem permitir que elas se transformem em questões políticas, pode chegar a níveis bastante altos de institucionalização, sem que por isto se possa falar em democracia. O regime democrático no sentido proposto por Schattschneider começa a aparecer quando a abertura passa a ser política, e as demandas de participação política são aceitas e legitimadas enquanto tais, A participação é politica quando ela ultrapassa o nível de interesse específico de grupos por certos objetivos, e opera duas ampliações. As questões de interesse dos grupos se transformam em questões gerais, e os grupos se sentem no, direito de influenciar e decidir sobre questões previamente consideradas privativas de outros. Um sistema político "participacionista", tal como foi tentado por Guillermo Borda para a Argentina, é anti-democrático não porque propõe a substituição da representação territorial pela representação funcional, mas porque não permite que os grupos funcionais representados se ocupem de questões de interesses geral, A representação territorial tende, em suas origens, a ser também privada, dada a sua vinculação aos sistemas de estratificação baseados na propriedade da terra, mas com o tempo se transforma na expressão mais alta de representatividade política, graças à crescente multi-funcionalidade dos grupos territoriais.

Duas perguntas se colocam naturalmente a partir do anterior. A primeira se refere à desejabilidade dos dois tipos de institucionalização possível: a de tipo democrático e a de tipo "participacionista" ou corporativo-fascista. É bastante plausível que algo como o participacionismo seja o que Marx projetava para a sociedade futura em que a "política" deixasse de existir. A inexistência de política significa a inexistência de problemas gerais, e uma abordagem puramente "técnica" aos problemas específicos dos diversos grupos e setores da sociedade. Antes que o desaparecimento das questões gerais seja real, no entanto, a supressão forçada da manifestação de questões políticas leva a soluções do tipo tecnocrático, em que uma aparência de tecnicidade de encobre o fato de que não se permite ampliar a área de barganha e negociações além do âmbito das relações entre o setor interessado e o setor governamental encarregado de solucioná-lo. Existem várias técnicas para lograr este objetivo, desde o estabelecimento de sistemas puramente coercitivos ao estabelecimento de sistemas de mobilização ideológica, ou de uma combinação de ambos.

A limitação de questões que tenderiam a ser públicas ao âmbito privado e técnico traz em si uma série de dificuldades: a possibilidade do surgimento de práticas de corrupção, pela pouca visibilidade das decisões(10), a pseudo-tecnificação de áreas de ação tipicamente políticas (tal como considerar atividades políticas "ilegítimas" como criminais, passando seu controle à esfera da polícia, e sua explicação aos especialistas em criminologia e controle social ("a questão social é uma questão de polícia", dizia o presidente Washington Luiz) e a "politização" de áreas essencialmente técnicas, na medida em que o controle da qualidade e adequação técnica passa a depender menos do consenso interno democrático de uma comunidade científica institucionalizada que da sanção política externa do sistema de poder.(11) As vantagens deste tipo de institucionalização, quando lograda, são grandes em algumas áreas: na instauração de uma política econômica de altas inversões e gratificações diferidas (como na URSS), na instauração de uma política a longo prazo de repressão social (como na África do Sul) e, possivelmente na combinação de ambos, se os custos acima forem mantidos dentro de limites mais ou menos toleráveis. A opção entre estas duas formas depende, por um lado, da tradição política do país, e, por outro, do nível e natureza das demandas de participação, derivado de todo um processo de desenvolvimento e modernização sociais que podem levar um sistema político a passar de uma orientação mais desenvolvimentista a uma orientação mais repressiva, acompanhada de um processo de involução na linha de desenvolvimento político. Quando as demandas de participação tendem a ser altas e de tipo político como no caso da Argentina, os sistemas corporativos não são viáveis e a alternativa fica entre a instituição bem sucedida de um sistema de participação democrática e a manutenção de um sistema político repressivo com alto grau de rigidez Uma terceira alternativa felizmente menos freqüente, é a supressão física dos setores sociais que buscam a participação social, e a instauração posterior de um sistema corporativo.

Esta é pois a segunda pergunta. que se coloca: a da viabilidade dos diferentes tipos de institucionalização politica. Parte da resposta já foi sugerida, ou seja, as alternativas dependem do tipo e nível das demandas sociais existentes, ou, mais precisamente, das demandas de participação geradas pelas relações entre o desenvolvimento econômico, de um lado, e o processo de mobilização. social do outro. A outra parte da resposta é que a reação de um sistema político a um nível e tipo determinado de demandas é função de suas características como. sistema, uma das quais é o seu nível de institucionalização, além de outras que discutiremos com mais vagar mais adiante.

5. Desenvolvimento Econômico e Desenvolvimento Político

O que a discussão. até aqui indica é que a relação entre o que se passa. no nível econômico. e o que se passa no nível político não é nada defanida, a começar pela existência de pelo menos duas mediações importantes entre estes dois níveis, o nível das mudanças n sistema social e no sistema de participação. política. Em termos de desenvolvimento, podemos dizer que existem quatro tipos de processos a serem considerados de forma separada, o de desenvolvimento econômico, o de desenvolvimento social, o das demandas de participação política e o do desenvolvimento político. A independência entre estes três processos não significa, evidentemente, que eles não estejam empiricamente relacionados, mas simplesmente que nenhum deles pode ser compreendido totalmente através dos demais(12).

Desenvolvimento. econômico se refere, aqui, ao aumento quantitativo do produto "per capita" e o que isto implica em termos de modificações na tecnologia e na divisão setorial da força de trabalho.(13) O conceito de desenvolvimento social aparece na literatura sob o título de "modernização", e se refere ao aumento do. bem-estar de uma população de acordo com as pautas das sociedades modernas de consumo. de massa - consumo de bens industrializados, educação, aumento da. expectativa de vida, urbanização, consumo. de jornais, uso de telefones e correios, etc. Mais do. que uma simples mudança em pautas de consumo e comportamento, o desenvolvimento social traz em si uma série de elementos que são fundamentais para a compreensão dos fenômenos sociais que dele decorrem: um aumento de comunicações, uma extensão. gradativa da escala social de participação, do. nível local ao nacional e internacional, um processo de mobilização social, no dizer de Karl Deutsch, que se reflete mais ou menos diretamente na área política, como aumento de participação.

Mas assim como a modernização não é uma resultante simples do desenvolvimento econômico, também a participação política não deriva, de forma simples, da modernização social. O processo de modernização antecede, freqüentemente, o de crescimento econômico, quer pela influência dos meios de comunicação de massas e o correspondente "efeito. demonstração", quer pela ação do poder político, criando centros administrativos que funcionam como polos de urbanização e modernização, combinados muitas vezes com a desagregação de economias rurais. Estes centros modernos geram, a seguir, um certo nível de atividade econômica que lhe dá base, mas que não tem, entretanto, condições de crescimento autônomo a mais longo prazo.(14)

Quando, em que medida e em que condições o processo de mobilização social se traduz em uma demanda de participação. na vida pública? É bastante óbvio que não existe uma resposta simples a esta pergunta, que depende, essencialmente, de dois tipos de variáveis. O primeiro tipo se refere à natureza do processo de modernização e mobilização social. A partir das concepções mais simples de Lerner, que via o aumento de participação política, na forma de comparecimento eleitoral, como. um desenvolvimento linear(15) dos processos de urbanização e alfabetização, a análise mais contemporânea busca nos diversos tipos de assincronias e desequilíbrios de desenvolvimento. social e econômico a raiz das variações de participação. Sem entrar muito nesta questão, já desenvolvida em outros contextos, é bastante evidente que uma situação em que o desenvolvimento econômico antecede e lidera o processo de modernização levará a um tipo. de vivência politica muito distinto. daquele onde o processo de modernização é anterior e não é seguido, a não ser longinquamente, pelo crescimento econômico.(16) No primeiro caso a participação política tenderia a ser, aparentemente, mais ligada a demandas específicas, propugnando por uma ampliação progressiva das áreas de autonomia e participação, enquanto que no segundo estariam dadas as condições para uma ação política mais preocupada com a satisfação de fins que a obtenção. de meios, e o terreno seria muito mais fértil à traslação da vida politica a um nível simbólico e principista do que na situação. anterior. O segundo tipo de variável se refere às características mais próprias do sistema político. Um sistema político mais institucionalizado é mais capaz, em princípio, de absorver como legítimas novas demandas de participação, enquanto que regimes mais rígidos tenderiam a sentir-se mais ameaçados, e por isto mesmo a restringir as áreas de participação. O grau de desenvolvimento de um regime político só em parte depende do processo de mudança econômica e social e do nível de demandas de participação política que encontra no transcurso. de sua história. O fato fortuito da transferência da Coroa Portuguesa para o Brasil deu ao país um grau de institucionalização bastante único no contexto latino-americano, que explica muito. da relativa estabilidade do sistema político brasileiro desde sua independência, As diferenças de experiência colonial, da mesma maneira, marcam radicalmente o sistema político dos países da África ao sul do Saara, que se põe em um contínuo que vai desde os últimos vestígios do colonialismo. (Angola e Moçambique) até os experimentos de institucionalização mais acabados (Ghana e Nigéria), passando pelos frutos da colonização belga e os da colonização francesa, das quais os dois Congos servem de exemplo. Estes casos bastam para indicar a relevância de introduzir o histórico e o político como tal na análise mais sociológica das demandas de participação a partir de suas raízes nos processos de modernização social.

Existe uma solução de continuidade quando passamos do. primeiro ao segundo tipo de variável, que corresponde quase que à passagem de uma escola de análise política à outra. No primeiro caso, a cadeia explicativa parte da sociedade civil e do sistema de produção. para o político, que é visto tão somente como uma resultante ("o sistema político é instrumento dos interesses da classe tal"), ou um obstáculo ("as elites tradicionais não satisfazem às demandas crescentes da população...") ao que surge no nível da sociedade e economia. O sistema político é conceitualizado, nesta perspectiva, com a ajuda de uma ou duas variáveis (esquerda - direita, liberal - autoritário., etc.). No segundo caso, o modelo causal é invertido, e o sistema de poder passa. a ser visto como algo muito mais complexo e determinante, e explicações e soluções são buscadas nos sistemas de autoridade, ordenações jurídicas, estruturas de comunicação e decisão, sistemas partidários, etc. A necessidade de unir estas duas perspectivas é óbvia, ainda que as dificuldades não sejam poucas. A primeira abordagem surge ligada à tradição mais sistemática e analítica da sociologia empírica (o artigo de Karl W. Deutsch referido anteriormente é exemplar), enquanto que a segunda está muito mais ligada a uma tradição mais casuística, em que o jurídico e o histórico se conjugam de forma pouco clara com esforços de análise mais empírica. Este estado de coisas não deixará de se refletir nas partes seguintes deste artigo(17).

6. Sistemas Políticos "Totalizantes" e "Absenteístas"

Chegamos, inevitavelmente, ao problema de formular uma tipologia adequada de sistemas políticos, que possa ser vista em relação aos processos de desenvolvimento econômico, social e de participação Política. Uma forma embrionária desta tipologia constitui o próprio conceito de desenvolvimento político, definido como institucionalização, um continuo ao longo do qual os diversos sistemas se ordenariam. Por mais frutífero que este conceito seja, já vimos que ele deixa de fora diferenças tão profundas como as que existem entre Chile e Argentina ou Espanha e França. Não seria demasiado útil, tampouco, introduzir aqui as tipologias usuais baseadas em distinções jurídico-formais, cuja relação com as estruturas políticas reais nem sempre são claras.

Os termos "totalizante" e "absenteísta" podem ser utilizados, se despidos de suas conotações correntes, para caracterizar uma dimensão que aparece com insistência na literatura sob diversos nomes, e que parece ser central na análise de sistemas e processos políticos. Por um sistema político "totalizante" entendemos aquele em que o Estado busca governar a vida de seus cidadãos em todos os detalhes, enquanto que por sistemas "absenteístas" entendemos aqueles em que a esfera de intervenção estatal na vida dos cidadãos é mínima.(18) Trata-se assim de um continuo que se cruza com as distinções entre democracia e ditadura, e que independe, em certa medida, do sistema social de produção. Da mesma maneira que são possíveis regimes ditatoriais absenteístas, como o de Onganía na Argentina, também são possíveis regimes democráticos totalizantes, como o que se esboçava na Tcheco-Eslováquia antes da ocupação soviética.

Esta distinção está presente, entre outros lugares, no estudo clássico de Reinhard Bendix, sobre as relações de trabalho e ideologias empresariais na Inglaterra da Revolução Industrial nos Estados Unidos das primeiras décadas do século XX, na Rússia Czarista e na Alemanha Oriental dos anos 50. O que distingue Inglaterra e Estados Unidos da Rússia e Alemanha Oriental é, exatamente, segundo Bendix, a intervenção do Estado nas relações de trabalho nos dois últimos países, tendo como conseqüência uma série de dificuldades para o ajuste das relações de autoridade no sistema econômico, e a criação de situações mais ou menos contínuas de mobilização política como meio de controlá-las(19). David Apter, em um contexto completamente distinto, refere-se à mesma idéia ao sugerir a distinção entre sistemas "hierárquicos", em que a autoridade se impõe verticalmente sobre a sociedade, e "piramidais", em que o sistema político é resultante de sucessivas agregações de interesses locais e particulares em sistemas de participação e ação política progressivamente mais complexos e abrangentes(20). Enquanto que o sistema "piramidal" corresponde ao modelo de política que tem no Estado um objeto de demandas e pressões políticas, o sistema "hierárquico" corresponde muito mais à idéia de um Estado tutor, intervindo na vida social e econômica e desestimulando o surgimento de formas de representação politica autônomas, quer pela coação, quer pela cooptação preventiva de lideranças nascentes, quer por uma combinação destas duas técnicas. Uma estrutura hierárquica de autoridade tende a restringir a participação política de tipo público e substitui-la por uma combinação de demandas de participação privada e formas de mobilização social de tipo expressivo, e por isto tende a ser muito mais totalizante do que as estruturas de autoridade piramidais, que são uma resultante de uma aglomeração de interesses e clivagens sociais. Uma aplicação do esquema de Apter para o Brasil se encontra em um artigo de Antônio Octávio Cintra e Fábio Wanderley Reis,(21) onde o regime brasileiro até 1964 é definido como "consociacional", ou seja, piramidal em uma cultura política desideologizada, instrumental. O poder político brasileiro naquele período é visto como "exercido, em geral, por uma elite tradicional, que deriva sua dominação da propriedade da terra". A atuação relativamente pequena de grupos de pressão "desenvolvimentistas" no Congresso brasileiro, é atribuida aos mecanismos eleitorais que limitavam o acesso de novos grupos de interesse e de pressão ao Legislativo. O fato, constatado também por Phillppe Schmitter(22),de que os grupos de pressão brasileiros tendem a atuar preferentemente na área da administração executiva, não parece ser tanto um efeito do sistema eleitoral, quanto uma conseqüência da atuação do govêrno central como agente de intervenção econômica e social. Ainda que não haja dúvidas de que a República de 1945, juntamente com a República Velha, sejam os períodos mais "consociacionais" da história política brasileira, não é menos certo que estruturas hierárquicas de poder têm sido a nota dominante, no Império, no período Vargas e após 1964. A concentração do poder no executivo brasileiro tem significado, através da história, não somente um funcionamento falho do modelo político anglo-saxão importado, de tipo eminentemente consociacional, como também um alto grau de intervenção do Estado na vida social e econômica do país, com resultados variados. A importância da obra de Raymundo Faoro, neste contexto, não pode ser suficientemente enfatizada(23) .

7. Determinantes Políticos

Que fatores levam a que certos regimes políticos tendam a intervir ou abster-se de intervir na vida de seus cidadãos, ou assumir formas mais ou menos autoritárias de organização? A resposta não pode estar, simplesmente, no extremo da seqüência causal desenvolvimento (ou estrutura) econômico sistema social participação política sistema político. Já foi indicado anteriormente como diferentes experiências coloniais conduziram a diferentes resultados políticos nos países afro-asiáticos, diferenças que podem ser explicadas quase que totalmente pelos tipos de relação colônia-metrópole.(24) Uma das óbvias diferenças entre os países latino-americanos e a América do Norte é a herança, ao sul do Rio Grande, da presença de uni Estado burocratizado e totalizante, que não existiu no norte. De um modo geral, é possível dizer que a maneira pela qual os Estados contemporâneos resolveram ou estão resolvendo os problemas políticos de sua integração no mundo moderno determina a estrutura de poder e autoridade que têm ou virão a ter. O problema político da modernização consiste em dois tipos de questões, uma referida às crescentes demandas de benefícios e poder decorrentes da cadeia causal acima, e outra ligada à própria história institucional do país e sua relação com o contexto externo. Vale a pena para melhor esclarecimento deste item, referir-se com algum vagar a dois tipos de teoria em relação a ele.

O primeiro se refere à obra já clássica de Alexander Gerschenkron, Economic Backwardncss in Hístorícal Perspective(25) A tese principal é que o processo de desenvolvimento econômico de países atrasados difere do processo dos países adiantados em relação à velocidade de crescimento e às estruturas organizacionais da indústria que surge destes processos. Enquanto que o desenvolvimento inglês se baseou na acumulação gradual de capital nas mãos dos próprios capitalistas, o desenvolvimento francês teve por base a criação e desenvolvimento de uma rede bancária de grandes proporções que permitiu, então,. que a França entrasse na rota do desenvolvimento capitalista a partir de um nível inicial mais adiantado que o inglês. Este tipo de atividade bancária de investimento (e não somente de financiamento a curto prazo), é mais preponderante ainda na Alemanha, e parece uma forma típica de entrada no mundo capitalista para os países da segunda leva (Áustria, Itália, Bélgica, Suíça). Para a terceira leva, o sistema bancário já não é um agente suficientemente hábil, e a ação do Estado se torna indispensável: a Rússia tzarista é o grande exemplo de Gerschenkron, e o Japão é outro exemplo que ele não estuda.

A razão pela qual a Rússia não se desenvolveu junto com os outros países europeus é explicada por Gerschenkron pela preservação do sistema servil naquele pais. Em um contexto teórico distinto, a recente obra de Barrington Moore localiza, também na sociedade rural, as alternativas de desenvolvimento econômico e político(26). Para Moore existem três tipos de desenvolvimento possível, em função do que acontece com a modernização do sistema rural. Sociedades que conseguem destruir os sistemas de dominação rural tradicionais, incorporando-os à economia capitalista urbana, tendem a um regime político democrático - Inglaterra, Estados Unidos (graças à Guerra da Secessão), França. Sociedades que não conseguem esta modernização, terminam por um rompimento revolucionário no campo que, se não é suficiente para levar a um regime camponês, leva a regimes de tipo socialista de base urbano-industrial (China e União Soviética). Na medida, entretanto, em que o campo é modernizado e racionalizado, mas sem uma alteração concomitante da estrutura de poder rural, a alternativa é a de desenvolvimento fascista; a limitação das liberdades políticas, a criação de um Estado contínuo de mobilização social e a criação de ideologias estruturadas ao redor de símbolos míticos nacionais parecem ser mecanismos necessários para manter coeso um sistema social que se moderniza e, ao mesmo tempo, aumenta a dependência social e econômica de grande parte de sua população (sistema que B. Moore denomina "labor repressive"). São os casos da Alemanha hitleriana e do Japão. A segunda guerra mundial teve para estes países, aparentemente, o mesmo papel que a Guerra da Secessão e a Revolução Francesa: o de romper de forma violenta o poder de uma nobreza que se modernizava e urbanizava sem permitir, entretanto, que suas bases de sustentação oligárquicas fossem atingidas.

É difícil, e não caberia aqui, tentar generalizar a partir das formulações de Moore e Gerschenkron. É evidente que a situação de hoje na América Latina difere bastante, pela época e origens, das estudadas por estes dois autores. Mas eles apontam para o tipo de determinantes das diversos formas que os sistemas políticos assumem, e a partir das quais confrontam posteriormente as demandas de participação geradas por ou independentemente deles. As teorias acima só aparentemente são "economicistas" - o fato de que o processo de desenvolvimento e modernização tenha começado em um certo tempo (ou não tenha começado), e o fato de que as estruturas de dominação tradicional tenham sido mantidas, destruídas ou absorvidas, depende das configurações políticas e sociais anteriores que dão o plano de fundo sobre o qual o processo de desenvolvimento econômico se instala. Existe uma correlação quase perfeita entre um sistema político descentralizado no passado, com forte presença feudal, e um nível alto de desenvolvimento econômico no presente, e vice-versa. Impérios outrora florescentes e centralizados não souberam se adaptar à sociedade industrial, enquanto que países de um passado feudal (o único que na Ásia se aproxima disto, é o Japão) foram capazes de assumir rapidamente uma pauta eficiente e moderna, ainda que às vezes à custa de um sistema político aberto e de alta participação. Ao contrário do que muitas vezes se diz, o feudalismo não parece ser um determinante do subdesenvolvimento, mas, pelo contrário, é a sua ausência, e a presença preponderante de um Estado burocratizado e super-desenvolvido, que parece ter sido um de seus principais determinantes. Chegando atrasados ao mundo desenvolvido, estes países só contam, agora, com a própria estrutura estatal sobre-desenvolvida para transportá-las rapidamente à época contemporânea.

8. As Demandas de participação

Podemos retomar agora, com mais propriedade, a questão das demandas de participação Política. A participação social efetivamente existente em um dado sistema político resulta da combinação entre o nível de demandas existentes (que é função do processo linear de ampliação da escala de referencia a que se refere Eisenstadt) e o grau de permissividade do Estado, que é função do que discutimos mais acima. Em geral, um Estado mais intervencionista e totalizante tende a ampliar as áreas de participação privada, e restringir as áreas de participação Política, e vice-versa. Deixando de lado por um momento o Estado enquanto tal, é necessário formular uma conceituação adequada dos diversos tipos de demandas de participação, e depois examinar alguns de seus efeitos. Existem multas maneiras possíveis de fazê-lo e a que se segue parece se adaptar melhor à discussão aqui(27)

Alessandro Pizzorno(28) sugere uma tipologia de participação política que distingue entre a participação profissional e a não-profissional, e entre participação congruente ou não com as regras prevalentes do jogo politico. A participação profissional congruente é aquela dos políticos profissionais, enquanto que a participação profissional incongruente, ou não-integrada, é aquela dos profissionais de movimentos sociais não institucionalizados politicamente. A participação não-profissional integrada é aquela do cidadão votante, enquanto que a participação não profissional e não integrada é aquela típica das sub-culturas políticas que se mantém à margem do sistema dominante. A primeira distinção permite separar conceitualmente a elite política do grande público, enquanto que a segunda aponta para a capacidade dos sistemas políticos de incorporar e legitimar ou não certas demandas de participação por parte de certos setores da sociedade.

A esta tipologia convém aduzir a distinção já feita anteriormente entre participação "privada" e "pública," ou, mais precisamente, entre a participação que visa a objetivos privados e aquela que é socializada e visa a interesses comuns de toda a sociedade. No primeiro caso está a participação em grupos de interesse e de pressão, enquanto que no segundo está a participação em partidos políticos e entidades cívicas. Como observa muito bem Schattschneider, é um equívoco supor que a política partidária não é senão uma agregação de interesses privados, como sugere a identificação funcionalista entre "partidos políticos" e a "agregação de interesses"(29). Na medida em que um interesse privado se socializa, e se transforma em público, seus termos já não são os mesmos, e as decisões políticas a que porventura se chegue terão no máximo uma relação indireta com a questão inicial que lhe serviu de ponto de partida.(30) Como regra geral, pode-se afirmar que os grupos em situações vantajosas tenderão a privatizar sua participação, enquanto que grupos em situação desvantajosa tenderão a ampliá-la. Estas propensões, no entanto, dependerão da estrutura política existente para que se realizem ou não.

A participação política não-profissional pode dar-se de diversas formas, e esta é a última classificação que julgamos importante introduzir aqui. É possível pensar que as pessoas participam da vida pública através de um sentimento de identificação expressivo com a Nação ou com o regime político, ou, ao contrário, que elas se interessem tão-somente pelas suas relações com o Estado como influente ou recebedor de benefícios ou sanções. Oito tipos possíveis de participação política derivam destas alternativas, que são os seguintes:

Quadro 1 - Tipologia de participação Política
  Participação expressiva interesse em:
inputs outputs
1. Não participação não não não
2. Participação simbólica sim não não
3. Súditos não não sim
4. "Sistema patrimonial" não sim não
5. Populista sim não sim
6. Mobilização sim sim não
7. "Competência" não sim sim
8 - "alta participação" sim sim sim

Esta tipologia deriva, como se pode ver, da sugerida por Almond e Verba em The Civic Culture, com a diferença que as duas alternativas de participação simbólica estão fundidas em uma e todas as possibilidades lógicas são consideradas aqui. Vale a pena examinar cada um deists casos.

1. O primeiro caso corresponde ao que Almond e Verba denominam "cultura política paroquial", e ao que Banfield, em seu estudo da Sicília(31), denomina "familismo amoral", e ao que a literatura descreve como sendo a situação no interior do Brasil até pelo menos os anos 30. O Estado simplesmente não tem existência tangível para setores importantes da população, que, assim, organiza sua vida ao redor da família, ou da comunidade mais ou menos restrita. Não se trata, obviamente, de que o Estado paire como que no ar, acima e independentemente das populações; trata-se antes, de uma situação em que a base de sustentação do Estado é externa e independente das populações sobre as quais seu domínio se extende. Isto se dá tanto em situações em que o poder político é estrangeiro, colonial, como quando é apoiado em outras regiões (no caso da Itália), ou em um setor da sociedade para o qual o paroquialismo não se dá. As relações entre uma sociedade politicamente paroquial e o Estado, tendem a ser esporádicas e anômicas, sem pautas definidas e por isto às vezes, conflitivas e violentas.

2. A participação política exclusivamente simbólica dá-se em situações em que o sistema político se fecha a demandas políticas especificas, que são substituídas por uma ênfase em participação expressiva e pela canalização das demandas à esfera privada. O caso do México, estudado por Almond e Verba, é típico, na medida em que existe um mito social de participação e identificação com o Estado que não tem realidade para a população mais ampla, enquanto que os grupos de interesse agem diretamente no interior do PRI e da máquina governamental. A perseverança desta pauta em um contexto de alto desenvolvimento parece levar, de acordo com a discussão de Barrington Moore mais acima, aos regimes fascistas, de participação simbólica extremada.(32)

3. Este tipo 3 corresponde a uma participação em benefícios, cm um Estado de tipo paternalista ou clientelista em que as demandas de participação são relativamente baixas. É difícil conceber um regime político em que tôda a participação política é passiva, mas esta pode ser muito bem a forma predominante de participação em determinados grupos sociais que seriam assim aplacados, muitas vezes preventivamente, e incorporados ao sistema politico.

4. É difícil conceber um interesse exclusivo em "inputs", mas não uma participação limitada a esta área. Situações de dependência colonial, regimes políticos burocráticos patrimonialistas. todos integram e utilizam os cidadãos como instrumentos para a organização e funcionamento da máquina governamental, sem proporcionar- lhes benefícios correspondentes. E, em uma de suas formas contemporâneas, o sistema labor repressive de que fala Moore.

5. Os regimes populistas, predominantes na América Latina na década de 50, promovem uma participação expressiva combinada com uma certa participação em benefícios, e esta promoção é uma resposta a uma demanda nascente de participação em um contexto em que o Estado tem condições de proporcionar um paternalismo relativamente barato e politicamente rendoso. Estes regimes surgem, geralmente, com uma renovação parcial da elite política.

6. Os sistemas de mobilização são aqueles que conseguem desenvolver uma participação ativa sem benefícios imediatos pela adoção de um sistema de valores "consumatório", no dizer de Apter - ou seja, por um sistema de valores que encontra na participação no Estado um fim em si mesmo, ou de valor não-mediatizado. A linha de divisão entre os sistemas de mobilização e os de tipo fascista é que, neste último caso, a mobilização é predominantemente simbólica, sem participação em "inputs".

7 O termo "competência" é empregado por Almond e Verba para caracterizar as formas de participação encontradas na Alemanha Ocidental em que as relações entre os cidadãos e o Estado são marcadas por um alto sentido de eficiência e grande desapego emocional. Destruídos os fatores que levaram à participação simbólica do período anterior, e dada a prosperidade da economia alemã no pós guerra, a política tende a ser algo estritamente instrumental.

8 Participação plena é um ideal inexistente e segundo muitos autores inconveniente. A "cultura cívica" dos Estados Unidos é um híbrido de participação expressiva moderada, crença ilusória na capacidade de produzir inputs, preocupação não muito intensa com os outputs - todas qualidades moderadas, suficientes para fazer o sistema funcional bem até agora, mas que se estão tornando aparentemente inadequadas nos últimos anos(33)

9. Abertura e Fechamento. custos e benefícios.

A discussão até aqui dá os parâmetros gerais, ainda que não os especifique, para a determinação do nível de abertura política de um sistema determinado. Existem várias dimensões pelas quais o grau de abertura de um sistema pode ser medido, e é impossível chegar a um critério único(34). Mas é possível avaliar estas dimensões de forma separada para um dado grupo ou para o sistema social como um todo. O quadro abaixo sugere algumas destas dimensões, todas referidas à idéia de permissividade de ação e expressão política(35).

Quadro 2 - Quanta participação é permitida?
  para grupos específicos para a sociedade como um todo
Que questões estão abertas à barganha política? (que grupos podem barganhar) (que questões são definidas como "privadas" ou "técnicas"?) 
qual a amplitude da gama de alternativas?  (que grupos podem decidir sobre que aspectos?) (qual a gama total de alternativas?)
controle (qual a probabilidade para um dado grupo de ser sancionado por comportamento desviante?) (qual a extensão do aparelho de coerção?)
severidade de controle (que grupos são mais suscetíveis de repressão?) (qual o nível geral de violência no sistema?)
relevância (qual a relevância das questões abertas a barganha para um dado grupo?) (em que medida a vida política e percebida como relevante na sociedade?)

Este quadro pode dar base a uma caracterização detalhada do grau de abertura de um sistema político de uma certa perspectiva; ele permite analisar como um determinado grupo ou setor se insere na comunidade política e aponta também para uma caracterização geral do nível de abertura do sistema como um todo. A partir desta caracterização, e em função dos seus correlatos no nível da estrutura política e das demandas de participação, é possível buscar-se uma avaliação dos custos e benefícios de certos níveis de abertura e fechamento da comunidade de participação política.

Esta discussão já foi esboçada na parte 4, quando da discussão da desejabilidade das formas mais políticas ou mais privadas de participação. Podemos retomar esta discussão nos termos da relação negativa, sugerida por D. Apter, entre coerção e informação(36) . A idéia geral por detrás desta proposição é que um sistema legitimo e não coercitivo está capacitado para receber um fluxo livre e contínuo de informações que deixam de fluir quando a coerção é exercida e a integração ao sistema deixa de ser voluntária. Podemos dizer que um sistema da comunicação é de "informação" quando existe um nível alto de participação política, no qual as decisões políticas (de alocação de valores) são tomadas após um processo de barganha e negociações mais ou menos complexo. Sistemas coercitivos, no entanto, ocorrem quando a comunidade política é restrita e as demandas de participação são altas, e decisões são impostas verticalmente, de cima para baixo. As seguintes alternativas correspondem aos dois extremos:

a Informação e "inteligência". Não é por acaso que os regimes políticos altamente coercitivos sentem a necessidade de desenvolver sistemas de informações complexos e custosos (que podem ser denominados, mais corretamente, sistemas de inteligência), para suprir a falta de informações que fluem livremente nos sistemas políticos abertos. Dados recolhidos por técnicas de inteligência são, obviamente, muito diferentes dos outros. Os objetos de observação de inteligência são definidos de início pela sua utilidade ou periculosidade para o regime político e seus objetivos, e isto leva necessariamente a situações em que qualquer barganha ou conflito entre observador e observado cai numa situação de tipo "soma zero" (ou seja, em que os interesses são vistos como diametralmente opostos). Dados recolhidos por técnicas de inteligência implicam, assim, uma rigidez na definição da situação que é exatamente o oposto da informação obtida entre membros que compartem a mesma comunidade política, em que certa comunidade de interesses é assumida. Acrescente-se a isto que, na medida em que a observação de campo é feita, nas instituições de inteligência, por elementos subalternos, e depois processada para o reconhecimento dos escalões superiores, há uma tendência a produzir, em nível alto, a expectativa que daí emana. Em contraste, a Informação política básica é obtida diretamente pelos escalões mais altos de decisão.

b. Decisões e implementações políticas. Informação, em contraposição à inteligência, pode ser essencial no processo de formação de decisões políticas, mas pode ser perturbadora no processo de sua implementação. Dado que a coleta de Inteligência supõe uma definição prévia da situação em termos de quem são "os outros", é possível imaginar que, quanto mais um centro político se baseie em dados de inteligência para suas ações, menos capaz será ele de alterar esta definição prévia. Se se considera que o processo de decision-making político consiste exatamente em chegar a decisões que alteram de alguma maneira certas pautas estabelecidas de distribuição de valores, podemos assumir que, maior o uso de Inteligência, menor capacidade de decision-making neste sentido. Em compensação, dados de inteligência são compatíveis e muito importantes para a implementação de certos objetivos definidos anteriormente, se todos os fatores relevantes estão ao alcance do centro de decisão.

O outro lado da moeda é quando não existe inteligência., e o regime político é inteiramente aberto à informação. Isto pode ser uma indicação da ausência de autonomia por parte do sistema político, para o qual a existência de um processo contínuo e desgastante de barganhas e negociações políticas é uma condição essencial de sobrevivência. A característica básica desta situação é uma combinação de decisões politicas muitas vezes espetaculares com pouca ou nenhuma implementação das decisões. A conclusão parece ser que os regimes políticos necessitam de suficiente autonomia para processar tôda a informação que possam obter sem perder, entretanto, a capacidade de obter por sua conta as informações de inteligência necessárias para a implementação de suas decisões. Em outras palavras, é essencial que o sistema não se apóie exclusivamente em um ou outro tipo de dados.(37)

c. Interesses e escopo. Existem dois tipos de conflitos e barganhas que se desenvolvem em um sistema político, um primeiro relacionado a interesses (quem obtém quanto e o quê) e o outro relacionado ao escopo da esfera politica: quem pode votar, quem pode ser eleito, quem deve ser ouvido para que tipo de decisões, etc. Questões sobre o escopo do sistema tendem a se desenvolver na periferia da comunidade política, uma vez que elas se referem exatamente ao direito de entrada nesta comunidade. Enquanto que as questões de interesse seguem certas pautas institucionalizadas de conflito (uma vez que elas ocorrem dentro de uma comunidade de participação em que cada parte aceita a presença das demais), as questões de escopo tendem a revestir-se de aspectos de crises políticas, tendo como objeto a alternação das regras do jogo político e a variação do espectro de participação.

Schattschneider considera que a estratégia mais importante na política se refere ao escopo do conflito(38). Existe sempre, em qualquer conflito, o desejo de ampliar o seu escopo, trazendo à liça grupos externos que possam fazer pesar a balança para um dos lados. Apesar de que isto seja certo para conflitos políticos tomados individualmente, é também certo que nos Estados Unidos, por muito tempo, o escopo geral da comunidade política tem se mantido estacionário, ao nível de 60% dos eleitores potenciais, e só agora, com a politização da população negra e dos setores universitários, a questão da alteração nos limites externos da comunidade política, está posta, com toda as características de crise que implica. A preponderância de um ou outro tipo de questões políticas em um momento dado é função do âmbito de participação permitido e dos níveis de demandas de participação neste momento. É possível pensar que a preponderância de questões de escopo tende a perturbar o desenvolvimento de outros tipos de questões e negociações que são inerentes ao processo de decision-making em uma situação de informação. Quanto maior seja a distância entre a participação política permitida e a participação política concedida, mais prevalecerão as questões políticas de escopo, levando a um predomínio de questões de segurança política sobre as de decisões e implementações político-administrativas, ao predomínio de dados de inteligência sobre dados de informação, levando por sua vez, a dificuldades no processo de decision-making político, etc.

d. A técnica e a política. A antinomia "informação x inteligência", pode ser repensada nos termos da antinomia "técnica x política ", já referida na parte 4. Com efeito, ao dizer que "a questão social é uma questão de policia", o presidente da República Velha negava a certos setores sociais o direito à presença na continuidade política, e, a partir daí, toda a política governamental a respeito desses grupos passa a ser manejada pelos órgãos técnicos respectivos, isto é, a polícia, que utiliza dados de inteligência como sua fonte normal de informação. Não fora esta uma questão referida ao escopo do sistema político, já que os criadores da "questão social" pressionavam para participar politicamente, ela seria tratada por órgãos técnicos de outro tipo. É o que se busca fazer, com efeito, durante o Estado Novo, em que a questão social deixa de ser eminentemente de policia e passa a ser objeto de tratamento de um sistema assistencial: dar garantias de trabalho, desenvolver um serviço de assistência médica, institucionalizar os sistemas de negociação e decisão salariais, são todos problemas "técnicos", na medida em que duas condições são satisfeitas. A primeira é que exista um consenso sobre a idoneidade e imparcialidade dos técnicos responsáveis por esta ação. Na medida em que a Justiça do Trabalho é reconhecida por ambas as partes como neutra e imparcial, e em que seus critérios de bem e mal sejam compartidos por todos que se valem dela, sua ação não será contestada e o aspecto técnico de suas decisões será aceito. A segunda condição é que as partes que buscam esta Justiça do Trabalho, não tratem de ampliar o escopo de seus conflitos de interesse da área privada para a política, tratando de alterar assim a amplitude do conflito. Na medida em que estas duas condições não se dão, a única maneira de manter as questões dentro de um âmbito puramente técnico é através de certa dose de coerção - e é ai que cabe, com tôda a propriedade, o termo "tecnocracia": um tratamento "técnico" de questões que tenderiam normalmente a ser políticas, por parte de certos centros de decisão cuja idoneidade técnica não deriva de um consenso social, mas de um sistema coercitivo.

Em que condições a despolitização e tecnificação real, e não tecnocrática, de questões sociais se dão? Há que notar, em primeiro lugar, que existe sempre um processo contínuo de politização e tecnificação de questões de todo tipo - a administração local nos Estados Unidos tende a ser hoje em dia eminentemente técnica, com a exclusão de política partidária, enquanto que questões até há pouco puramente técnicas, como as relações internacionais(39), passam a ser políticas. A condição essencial para a tecnificação é a institucionalização dos setores técnico-científicos e esta institucionalização, como vimos anteriormente, é função do tempo e de um nível moderado de conflitos, que permita às instituições amadurecerem sem se esclerosar, e adquirirem idoneidade e prestígio. A profissão médica é talvez o melhor exemplo de uma atividade cuja idoneidade técnica é garantida e protegida por um processo elevado de institucionalização e a economia está também rapidamente atingindo este nível. As implicações deste processo de transferência de decisões entre as esferas técnica, politica e tecnocrática são imensas, referindo-se diretamente, por exemplo, ao papel do Legislativo, órgãos de planejamento central, govêrno local e regional, etc.

O outro fator a influenciar este processo é de mais difícil conceitualização. S. Huntington utiliza a expressão "pretorianismo" para caracterizar as sociedades em que todos os grupos tratam de jogar um papel político direto, não somente na defesa de seus interesses específicos, mas também em relação à distribuição do poder e "status" no sistema político em geral. O pretorianismo é, em poucas palavras, o oposto da institucionalização e desenvolvimento político: o que politiza os estudantes, os militares e a Igreja, nas sociedades pretorianas, "é a ausência de instituições políticas efetivas capazes de mediar, refinar e moderar a ação política grupal"(40). Apesar da tendência dos diversos grupos de interesse em ampliar o escopo de seus conflitos políticos, isto não significa que exista sempre uma tendência à politização e publicização de todo e qualquer conflito. Schattschneider demonstra, com dados que deixam pouco lugar a dúvidas, que o sistema sindical americano, com seus 16 milhões de filiados nos anos 40, contribuía com menos de um milhão de votos para o Partido Democrata, o que era possivelmente anulado pelos que votavam no Partido Republicano por hostilidade ao sistema sindical(41). O Partido Democrata não pode ser visto assim como um produto da soma de diversos grupos de interesse como a AFL-CIO, mas é uma instituição que precede a estes grupos e os enquadra. É novamente Huntington que dá o que é, possivelmente, a chave para o problema: Em uma sociedade pretoriana, "a autoridade sobre o sistema como um todo é transitória, e a debilidade das instituições políticas significa que os cargos e a autoridade política são ganhos e perdidos com facilidade. Em conseqüência, não existem incentivos para um grupo ou líder fazer concessões significantes na busca de autoridade. As mudanças que os indivíduos fazem na sua politica consistem, assim, em transferências de lealdade de um grupo a outro e não na ampliação da lealdade de um grupo social limitado a uma instituição política que abranja urna multiplicidade de interesses Daí o fenômeno das traições políticas, tão comuns na política pretoriana" (...)(42)

É evidentemente um círculo vicioso de difícil saída. De qualquer forma, parece claro que numa certa abertura política, a ênfase na circulação livre de informações e o desenvolvimento e institucionalização gradativas de uma pluralidade de instituições são, não somente imperativos de tipo ético, mas necessidades funcionais sem as quais nenhum sistema político pode se desenvolver eficazmente e cumprir seu papel de integração e condução de uma sociedade em sua busca de bem-estar econômico e social e participação plena no mundo contemporâneo. Existe sempre, evidentemente, a possibilidade de uma tecnocratização coercitiva do sistema político, tendo em vista a implementação de certas politicas de desenvolvimento econômico, combinado talvez com um projeto mais ou menos longínquo de abertura política. A principal atração desta alternativa é sua simplicidade, mas seu custo humano e as dificuldades concretas que traz, são de molde a justificar que um esforço substancial seja dedicado para que se evite cair na tentação das soluções simplistas.

10. Conclusões

Pode ser conveniente, à guisa de conclusão, refazer rapidamente o caminho percorrido. Começamos por enfatizar a necessidade de tratar os fenômenos de desenvolvimento político como algo dotado de realidade própria, que não se reduzisse nem a seus correlatos sócio-econômicos nem às suas formas jurídicas e administrativas.

Fizemos uma exposição mais ou menos detalhada do conceito de "institucionalização" de Huntington, como o de uma primeira variável referida ao desenvolvimento político enquanto tal. Ao discutir a questão do melhor nível de conflitos para a boa institucionalização de um sistema político fomos levados à constatação de que seria necessário introduzir outras variáveis que, relacionadas à de institucionalização colocasse esta no contexto contemporâneo de um processo contínuo de expansão da participação política e da mobilização social. Concluímos, provisoriamente, que o processo de institucionalização deve ser visto em relação tanto ao processo mais geral de mobilização social quanto às características mais estruturais do sistema de poder. Passamos, então. a estabelecer uma distinção fundamental entre institucionalização, por um lado, entendida como "O processo pelo qual instituições adquirem valor e estabilidade", e abertura política, conceito relacionado com a idéia democrática de participação. Dissemos que a abertura política implica a existência de questões políticas públicas e o fechamento, sua privatização e seu tratamento por vias tecnocráticas. Ficamos de posse, assim, de uma tipologia implícita cujos determinantes mais gerais foram discutidos a seguir:

 
Sistemas políticos abertos
sistemas políticos fechados
Institucionalizados I (democráticos) II (autocráticos)
não-institucionalizados III (consociacionais) IV (pretorianos)

Os nomes entre parêntesis indicam denominações provisórias, e salta à vista que a combinação IV é a mais volátil das quatro, já que não é de se esperar que a abertura política se mantenha em situação de baixa institucionalização O próximo passo foi a referência que fizemos aos quatro processos mais gerais que ocorrem no transcurso do desenvolvimento: o econômico, o social (ou de modernização, ou mobilização social), o de participação política e o de desenvolvimento político. Existem duas idéias que devem ser ressaltadas aqui. A primeira é que estes processos são analiticamente independentes e suas relações empíricas são algo a ser determinado e explicado, em suas causas e conseqüências. A segunda é que existe a idéia geral de uma causalidade que vai do nível econômico e social ao nível da participação política, mas não chega, de forma direta, ao nível do sistema político propriamente dito. A estrutura política, como sistema empírico, tem determinantes internos que têm a ver com sua história passada, e dela parte uma outra linha causal que vem completar a determinação das características da estrutura de participação política.

Isto posto passamos a segunda parte do artigo referida à caracterização do sistema político en quanto tal. Falamos de uma distinção entre regimes políticos que se retraem ou que, ao contrário, tratam de estender sua ação a tantas áreas quanto possível. Sugerimos uma ligação entre esta alternativa e a história econômica destes países, tomando como base as teorias de Gerschenkron sobre o atraso econômico. Fizemos referencia, a seguir, às proposições de Barrington Moore sobre as relações entre alternativas políticas e soluções ao problema da integração do setor agrário à economia moderna e com isto encerramos, de forma obviamente sumária, a parte referida às transformações e desenvolvimento das instituições políticas.

A partir daí foi possível voltar atrás e discutir a questão da participação política, resultante das duas linhas de causalidade propostas. Na falta de proposições especificas de causalidade, que exigiriam uma elaboração mais precisa das variáveis e mais suporte empírico, preferimos apresentar um quadro sistemático de formas alternativas de participação e sugerir suas relações com o anterior. Concluído isto, passamos à discussão dos efeitos mais gerais do fechamento e abertura política, que é, como já deve ter ficado claro a esta altura, o resultado da combinação entre um certo nível de demandas de participação política e certas características do sistema de poder. Indicamos como se pode dimensionar uma comunidade politica, e o sentido das alternativas entre informação política e inteligência, decisões políticas e implementações, questões de interesse e escopo, e relações entre decisões técnicas, tecnocráticas e políticas. Concluímos que a abertura política é não somente um ideal ético que permite ao homem conviver de forma digna em sociedade, como também uma necessidade funcional para o bom andamento da sociedade. Abertura política não significa necessariamente esta ou aquela forma institucional específica, mas um arranjo político tal que não exclua grupos significativos da participação nas decisões, que lhes afetem e que se relacionem ao futuro de tôda a coletividade a que pertencem. Abertura política si significa ainda manter aberta a possibilidade de que definições antigas sejam revistas, soluções novas sejam pensadas e criadas e que o futuro não seja completamente de terminado pelo presente e pelo passado.

O fim da década de 60 representa uma época de esgotamento das fórmulas e ideários políticos que atraiam, até há pouco, a imaginação de tantos em todo o mundo. Este esgotamento talvez se deva em parte a que a expansão da comunidade política esteja se aproximando do seu limite superior nos países mais desenvolvidos e a busca de novos ideários para a sociedade pós-industrial não chega a compensar o niilismo que se generaliza, muitas vezes na forma de uni anarquismo político e social intencionalmente ingênuo. Este niilismo ideológico se filtra ao hemisfério sul e combina bem, ainda que por razões equivocadas, com o maniqueísmo político que o impasse no processo de desenvolvimento vem produzindo nas áreas subdesenvolvidas.

A saída não é clara, e não há nada que nos garanta que exista uma. Mas existe ainda um longo caminho a percorrer, no sentido do aumento da participação e do aproveitamento do que a experiência dos países pós-industriais vem nos proporcionando. Podemos talvez concluir duas coisas, em relação a isto, do corpo deste artigo. A primeira conclusão é que o sistema político de participação tem determinantes múltiplas, não é algo que decorra automaticamente de certo nível de desenvolvimento econômico e participação social, nem de certo regime de poder e propriedade. Estas relações devem ser estabelecidas com precisão, tendo em vista, principalmente, seus graus de liberdade, as diferentes alternativas possíveis a cada momento e a maneira de obtê-las. A segunda conclusão é que, pelas razões que discutimos, como por outras a discutir, é essencial, a cada momento, buscar o caminho que mantenha o sistema político aberto, e capitalize, em termos de institucionalização, a experiência social acumulada de mudança de gerações, mudança de objetivos, ampliação de perspectivas e o simples efeito de amadurecimento da passagem do tempo bem vivido. Ainda que desnecessário, pode ser, conveniente repetir que este caminho deve ter, como característica fundamental, a possibilidade de se alterar e se redefinir a si mesmo, através dos mecanismos de mudança inerentes às formas políticas abertas. Mesmo se isto não fosse possível, seria importante não perder a perspectiva sobre sua necessidade(43).



Notas:

1. Publicado em Dados - Revista de Ciências Sociais, 6,1969, 24-56. Agradeço os comentários, críticas e sugestões de Bolivar Lamounier e Antônio Octávio Cintra, que foram incorporados tanto quanto possível no corpo do artigo e suas notas (os comentários e sugestões de A O. Cintra se refletem, principalmente, nas notas 4, 7, 9 e 22). Desnecessário dizer que a responsabilidade do autor pelo artigo não diminuiu com a ajuda recebida. Agradeço também os comentários e observações de Peter McDonough, que limitações de tempo me impediram de incorporar de forma adequada.

2. Isto é um fato independentemente da discussão sobre se esta era ou não a concepção de Marx a respeito. Mas parece que sim, dada a natureza essencialmente crítica de toda análise politica marxista. Veja, por exemplo, a Critica à Filosofia do Estado de Hegel.

3. Political Order in Changing Societies (New Haven: Yale University Press, 1968), pag. 7.

4. Holt, Rinehart and Winston, 1960.

zer que "a questão social é uma questão de policia", o presidente da República Velha negava a certos setores sociais o direito à presença na continuidade política, e, a partir daí, toda a política governamental a respeito desses grupos passa a ser manejada pelos órgãos técnicos respectivos, isto é, a polícia, que utiliza dados de inteligência como sua fonte normal de informação. Não fora esta uma questão referida ao escopo do sistema político, já que os criadores da "questão social" pressionavam para participar politicamente, ela seria tratada por órgãos técnicos de outro tipo. É o que se busca fazer, com efeito, durante o Estado Novo, em que a questão social deixa de ser eminentemente de policia e passa a ser objeto de tratamento de um sistema assistencial: dar garantias de trabalho, desenvolver um serviço de assistência médica, institucionalizar os sistemas de negociação e decisão salariais, são todos problemas "técnicos", na medida em que duas condições são satisfeitas. A primeira é que exista um consenso sobre a idoneidade e imparcialidade dos técnicos responsáveis por esta ação. Na medida em que a Justiça do Trabalho é reconhecida por ambas as partes como neutra e imparcial, e em que seus critérios de bem e mal sejam compartidos por todos que se valem dela, sua ação não será contestada e o aspecto técnico de suas decisões será aceito. A segunda condição é que as partes que buscam esta Justiça do Trabalho, não tratem de ampliar o escopo de seus conflitos de interesse da área privada para a política, tratando de alterar assim a amplitude do conflito. Na medida em que estas duas condições não se dão, a única maneira de manter as questões dentro de um âmbito puramente técnico é através de certa dose de coerção - e é ai que cabe, com tôda a propriedade, o termo "tecnocracia": um tratamento "técnico" de questões que tenderiam normalmente a ser políticas, por parte de certos centros de decisão cuja idoneidade técnica não deriva de um consenso social, mas de um sistema coercitivo.

Em que condições a despolitização e tecnificação real, e não tecnocrática, de questões sociais se dão? Há que notar, em primeiro lugar, que existe sempre um processo contínuo de politização e tecnificação de questões de todo tipo - a administração local nos Estados Unidos tende a ser hoje em dia eminentemente técnica, com a exclusão de política partidária, enquanto que questões até há pouco puramente técnicas, como as relações internacionais(39), passam a ser políticas. A condição essencial para a tecnificação é a institucionalização dos setores técnico-científicos e esta institucionalização, como vimos anteriormente, é função do tempo e de um nível moderado de conflitos, que permita às instituições amadurecerem sem se esclerosar, e adquirirem idoneidade e prestígio. A profissão médica é talvez o melhor exemplo de uma atividade cuja idoneidade técnica é garantida e protegida por um processo elevado de institucionalização e a economia está também rapidamente atingindo este nível. As implicações deste processo de transferência de decisões entre as esferas técnica, politica e tecnocrática são imensas, referindo-se diretamente, por exemplo, ao papel do Legislativo, órgãos de planejamento central, govêrno local e regional, etc.

O outro fator a influenciar este processo é de mais difícil conceitualização. S. Huntington utiliza a expressão "pretorianismo" para caracterizar as sociedades em que todos os grupos tratam de jogar um papel político direto, não somente na defesa de seus interesses específicos, mas também em relação à distribuição do poder e "status" no sistema político em geral. O pretorianismo é, em poucas palavras, o oposto da institucionalização e desenvolvimento político: o que politiza os estudantes, os militares e a Igreja, nas sociedades pretorianas, "é a ausência de instituições políticas efetivas capazes de mediar, refinar e moderar a ação política grupal"(40). Apesar da tendência dos diversos grupos de interesse em ampliar o escopo de seus conflitos políticos, isto não significa que exista sempre uma tendência à politização e publicização de todo e qualquer conflito. Schattschneider demonstra, com dados que deixam pouco lugar a dúvidas, que o sistema sindical americano, com seus 16 milhões de filiados nos anos 40, contribuía com menos de um milhão de votos para o Partido Democrata, o que era possivelmente anulado pelos que votavam no Partido Republicano por hostilidade ao sistema sindical(41). O Partido Democrata não pode ser visto assim como um produto da soma de diversos grupos de interesse como a AFL-CIO, mas é uma instituição que precede a estes grupos e os enquadra. É novamente Huntington que dá o que é, possivelmente, a chave para o problema: Em uma sociedade pretoriana, "a autoridade sobre o sistema como um todo é transitória, e a debilidade das instituições políticas significa que os cargos e a autoridade política são ganhos e perdidos com facilidade. Em conseqüência, não existem incentivos para um grupo ou líder fazer concessões significantes na busca de autoridade. As mudanças que os indivíduos fazem na sua politica consistem, assim, em transferências de lealdade de um grupo a outro e não na ampliação da lealdade de um grupo social limitado a uma instituição política que abranja urna multiplicidade de interesses Daí o fenômeno das traições políticas, tão comuns na política pretoriana" (...)(42)

É evidentemente um círculo vicioso de difícil saída. De qualquer forma, parece claro que numa certa abertura política, a ênfase na circulação livre de informações e o desenvolvimento e institucionalização gradativas de uma pluralidade de instituições são, não somente imperativos de tipo ético, mas necessidades funcionais sem as quais nenhum sistema político pode se desenvolver eficazmente e cumprir seu papel de integração e condução de uma sociedade em sua busca de bem-estar econômico e social e participação plena no mundo contemporâneo. Existe sempre, evidentemente, a possibilidade de uma tecnocratização coercitiva do sistema político, tendo em vista a implementação de certas politicas de desenvolvimento econômico, combinado talvez com um projeto mais ou menos longínquo de abertura política. A principal atração desta alternativa é sua simplicidade, mas seu custo humano e as dificuldades concretas que traz, são de molde a justificar que um esforço substancial seja dedicado para que se evite cair na tentação das soluções simplistas.

10. Conclusões

Pode ser conveniente, à guisa de conclusão, refazer rapidamente o caminho percorrido. Começamos por enfatizar a necessidade de tratar os fenômenos de desenvolvimento político como algo dotado de realidade própria, que não se reduzisse nem a seus correlatos sócio-econômicos nem às suas formas jurídicas e administrativas.

Fizemos uma exposição mais ou menos detalhada do conceito de "institucionalização" de Huntington, como o de uma primeira variável referida ao desenvolvimento político enquanto tal. Ao discutir a questão do melhor nível de conflitos para a boa institucionalização de um sistema político fomos levados à constatação de que seria necessário introduzir outras variáveis que, relacionadas à de institucionalização colocasse esta no contexto contemporâneo de um processo contínuo de expansão da participação política e da mobilização social. Concluímos, provisoriamente, que o processo de institucionalização deve ser visto em relação tanto ao processo mais geral de mobilização social quanto às características mais estruturais do sistema de poder. Passamos, então. a estabelecer uma distinção fundamental entre institucionalização, por um lado, entendida como "O processo pelo qual instituições adquirem valor e estabilidade", e abertura política, conceito relacionado com a idéia democrática de participação. Dissemos que a abertura política implica a existência de questões políticas públicas e o fechamento, sua privatização e seu tratamento por vias tecnocráticas. Ficamos de posse, assim, de uma tipologia implícita cujos determinantes mais gerais foram discutidos a seguir:

 
Sistemas políticos abertos
sistemas políticos fechados
Institucionalizados I (democráticos) II (autocráticos)
não-institucionalizados III (consociacionais) IV (pretorianos)

Os nomes entre parêntesis indicam denominações provisórias, e salta à vista que a combinação IV é a mais volátil das quatro, já que não é de se esperar que a abertura política se mantenha em situação de baixa institucionalização O próximo passo foi a referência que fizemos aos quatro processos mais gerais que ocorrem no transcurso do desenvolvimento: o econômico, o social (ou de modernização, ou mobilização social), o de participação política e o de desenvolvimento político. Existem duas idéias que devem ser ressaltadas aqui. A primeira é que estes processos são analiticamente independentes e suas relações empíricas são algo a ser determinado e explicado, em suas causas e conseqüências. A segunda é que existe a idéia geral de uma causalidade que vai do nível econômico e social ao nível da participação política, mas não chega, de forma direta, ao nível do sistema político propriamente dito. A estrutura política, como sistema empírico, tem determinantes internos que têm a ver com sua história passada, e dela parte uma outra linha causal que vem completar a determinação das características da estrutura de participação política.

Isto posto passamos a segunda parte do artigo referida à caracterização do sistema político en quanto tal. Falamos de uma distinção entre regimes políticos que se retraem ou que, ao contrário, tratam de estender sua ação a tantas áreas quanto possível. Sugerimos uma ligação entre esta alternativa e a história econômica destes países, tomando como base as teorias de Gerschenkron sobre o atraso econômico. Fizemos referencia, a seguir, às proposições de Barrington Moore sobre as relações entre alternativas políticas e soluções ao problema da integração do setor agrário à economia moderna e com isto encerramos, de forma obviamente sumária, a parte referida às transformações e desenvolvimento das instituições políticas.

A partir daí foi possível voltar atrás e discutir a questão da participação política, resultante das duas linhas de causalidade propostas. Na falta de proposições especificas de causalidade, que exigiriam uma elaboração mais precisa das variáveis e mais suporte empírico, preferimos apresentar um quadro sistemático de formas alternativas de participação e sugerir suas relações com o anterior. Concluído isto, passamos à discussão dos efeitos mais gerais do fechamento e abertura política, que é, como já deve ter ficado claro a esta altura, o resultado da combinação entre um certo nível de demandas de participação política e certas características do sistema de poder. Indicamos como se pode dimensionar uma comunidade politica, e o sentido das alternativas entre informação política e inteligência, decisões políticas e implementações, questões de interesse e escopo, e relações entre decisões técnicas, tecnocráticas e políticas. Concluímos que a abertura política é não somente um ideal ético que permite ao homem conviver de forma digna em sociedade, como também uma necessidade funcional para o bom andamento da sociedade. Abertura política não significa necessariamente esta ou aquela forma institucional específica, mas um arranjo político tal que não exclua grupos significativos da participação nas decisões, que lhes afetem e que se relacionem ao futuro de tôda a coletividade a que pertencem. Abertura política si significa ainda manter aberta a possibilidade de que definições antigas sejam revistas, soluções novas sejam pensadas e criadas e que o futuro não seja completamente de terminado pelo presente e pelo passado.

O fim da década de 60 representa uma época de esgotamento das fórmulas e ideários políticos que atraiam, até há pouco, a imaginação de tantos em todo o mundo. Este esgotamento talvez se deva em parte a que a expansão da comunidade política esteja se aproximando do seu limite superior nos países mais desenvolvidos e a busca de novos ideários para a sociedade pós-industrial não chega a compensar o niilismo que se generaliza, muitas vezes na forma de uni anarquismo político e social intencionalmente ingênuo. Este niilismo ideológico se filtra ao hemisfério sul e combina bem, ainda que por razões equivocadas, com o maniqueísmo político que o impasse no processo de desenvolvimento vem produzindo nas áreas subdesenvolvidas.

A saída não é clara, e não há nada que nos garanta que exista uma. Mas existe ainda um longo caminho a percorrer, no sentido do aumento da participação e do aproveitamento do que a experiência dos países pós-industriais vem nos proporcionando. Podemos talvez concluir duas coisas, em relação a isto, do corpo deste artigo. A primeira conclusão é que o sistema político de participação tem determinantes múltiplas, não é algo que decorra automaticamente de certo nível de desenvolvimento econômico e participação social, nem de certo regime de poder e propriedade. Estas relações devem ser estabelecidas com precisão, tendo em vista, principalmente, seus graus de liberdade, as diferentes alternativas possíveis a cada momento e a maneira de obtê-las. A segunda conclusão é que, pelas razões que discutimos, como por outras a discutir, é essencial, a cada momento, buscar o caminho que mantenha o sistema político aberto, e capitalize, em termos de institucionalização, a experiência social acumulada de mudança de gerações, mudança de objetivos, ampliação de perspectivas e o simples efeito de amadurecimento da passagem do tempo bem vivido. Ainda que desnecessário, pode ser, conveniente repetir que este caminho deve ter, como característica fundamental, a possibilidade de se alterar e se redefinir a si mesmo, através dos mecanismos de mudança inerentes às formas políticas abertas. Mesmo se isto não fosse possível, seria importante não perder a perspectiva sobre sua necessidade(43).



Notas:

1. Publicado em Dados - Revista de Ciências Sociais, 6,1969, 24-56. Agradeço os comentários, críticas e sugestões de Bolivar Lamounier e Antônio Octávio Cintra, que foram incorporados tanto quanto possível no corpo do artigo e suas notas (os comentários e sugestões de A O. Cintra se refletem, principalmente, nas notas 4, 7, 9 e 22). Desnecessário dizer que a responsabilidade do autor pelo artigo não diminuiu com a ajuda recebida. Agradeço também os comentários e observações de Peter McDonough, que limitações de tempo me impediram de incorporar de forma adequada.

2. Isto é um fato independentemente da discussão sobre se esta era ou não a concepção de Marx a respeito. Mas parece que sim, dada a natureza essencialmente crítica de toda análise politica marxista. Veja, por exemplo, a Critica à Filosofia do Estado de Hegel.

3. Political Order in Changing Societies (New Haven: Yale University Press, 1968), pag. 7.

4. Holt, Rinehart and Winston, 1960.

5. Já em 1961 Antônio Octávio Cintra chamava a atenção para a necessidade de destacar conceitualmente o que ele denominava a "função política"' na sociedade brasileira, em um artigo que transcende em importância o período histórico a que se refere. Veja A O. Cintra, "A Função Política no Brasil Colonial", Revista Brasileira de Estudos Políticos 18, 1965.

6. Huntington, pag. 12.

7. A funcionalidade dos conflitos como função de seu nível é algo que ficou, aparentemente, fora da análise clássica que Coser faz das teorias de Simmel a respeito. Cf. Lewis Coser, The Functions of Social Conflict (Glencoe The Pree Press, 1956).

8. Esta necessidade - ou não - é algo que escapa à noção de desenvolvimento político como uma variável contínua. Deveríamos concluir que o melhor, para o desenvolvimento político, seria tratar de impedir o desenvolvimento social e suas conseqüências políticas desastrosas, se isto fosse possível? O problema parece estar, mais que em um possível "bias" conservador, nas limitações conceituais, que surgem quando se busca caracterizar sistemas concretos em termos de variáveis analíticas isoladas. Veja a nota 16 a respeito.

9. Schattschneider, pag. 130.

10. Existe uma tradição na sociologia politica em ressaltar os aspectos positivos das práticas de corrupção para o funcionamento dos sistemas políticos, na medida. em que elas permitem a institucionalização de formas de participação "por debaixo da mesa", por assim dizer. Como observa Cintra "no debate entre soluções técnicas e políticas em geral, a culpa da corrupção é atribuida às politicas" Esta discussão mostra que a culpa pode ser também da técnica, para a qual a corrupção é quase que por definição sempre disfuncional. A funcionalidade politica de praticas de corrupção é discutida, entre outros lugares, em Robert K. Merton, "Latent and Manifest Functions", Social Theory and Social Structure (Glencoe The Free Press, 1957).

11. Voltaremos a estas questões de racionalidade e política, aqui implícitas, na última parte do artigo.

12. A incapacidade em considerar estes quatro níveis de análise separadarnente é responsável por muitos equívocos na literatura sobre problemas de desenvolvimento. Celso Furtado, por exemplo, em Subdesenvolvimento e Estagnação na América Latina, diagnostica bem a crise no nível econômico e as dificuldades no nível político, mas não tem nada mais elaborado a dizer no nível da mobilização. social (se refere a isto com a expressão vaga de "massas heterogêneas") e da participação política (dá por suposta a necessidade e viabilidade de uma ideologia de desenvolvimento). Veja a discussão sobre o livro de Furtado na Revista Latino Americana de Sociologia n 2, de 1967.

13. O conceito de "desenvolvimento econômico" medido nestes termos, ou em termos de consumo de energia "per capita", é intencionalmente quantitativo. Existem vantagens analíticas em considerar o desenvolvimento, ou crescimento econômico, independentemente de outras variáveis tais como distribuição da renda, estrutura da produção, sistema de propriedade, relações econômicas externas, etc., cujas relações empíricas com o crescimento podem então ser estabelecidas. As comparações entre níveis de modernização e crescimento econômico são uma primeira aproximação a isto. Vide referência da nota 15.

14. Esta afirmação é o oposto do que Paul Singer diz a respeito do crescimento urbano brasileiro Referindo-se aos dois casos extremos de urbanização, Belo Horizonte e São Paulo, afirma que "Belo Horizonte cresceu a uma taxa apenas pouco inferior (a São Paulo) - 6 8% - que revela o considerável impulso tomado pela sua industrialização" (os grifos são meus) Mais em baixo, tratando de explicar como São Paulo continuou crescendo ao passo que a taxa de industrialização diminuiu, diz que "o crescimento da industria acarreta forte expansão no setor terciário da economia". O modelo teórico implícito parece impedir que o autor aceite o fato de que, principalmente no caso de Belo Horizonte (e é o que a diferencia de São Paulo), o fator dinâmico de crescimento é o social e administrativo, o que se reflete, economicamente como crescimento do terciário, e a indústria é uma atividade secundaria e subsidiária. Isto explica, também, a crise de hipertrofia urbana que sofre Belo Horizonte, muito maior do que seus recursos lhe estão permitindo. Paul Singer, Desenvolvimento Econômico e Evolução Urbana (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968). As discrepâncias entre os processos de industrialização e urbanização são, em contraste, centrais na explicação que Neuma Aguiar Walker busca para as variações nos níveis de mobilização política dos trabalhadores brasileiros. Neuma Aguiar Walker, The Mobilization and Bureaucratic Cooptation of the Working-Class in Brazil (Washington University, 1969, Tese de doutoramento não publicada).

15. A linearidade aparece também nos correlatos políticos que S. N. Eisenstadt atribui ao processo de modernização, ou seja, a diferenciação institucional continua e "uma quebra na auto-suficiência e fechamento dos diferentes grupos e camadas sociais, que são trazidos para um centro institucional e societal comum mais unificado, e começam a influenciar a esfera institucional e simbólica da sociedade". Há aqui a idéia de um processo de ampliação da esfera de participação similar ao sugerido por Germani (participação restrita, ampliada, total). Este aumento na escala de participação politica parece ser inegável, mas não descreve todas as alternativas possíveis de participação. Veja a discussão a este respeito mais adiante. S. N. Eisenstadt, Modernization: Protest and Change, (Prentice-Hall, 1966); G. Germani, Politica y Sociedad en una Época de Transición,, Ed. Paidos 1962).

16. Análises dos "avanços" e "atrasos" no processo de desenvolvimento, sugerida entre outras partes no artigo pioneiro de Karl W. Deutsch sobre mobilização social, têm sido desenvolvidas independentemente por uma série de autores, com resultados geralmente recompensadores. Um trabalho neste sentido é o de Rosalind e Ivo K. Feierabend, que desenvolve um índice de frustração pela comparação entre indicadores de "criação de desejos" e de "satisfação" de desejos" (educação, comunicações de massas, urbanização, por um lado, e crescimento econômico por outro). Outra linha de pesquisas, de orientação mais estrutural, é a das equipes da Fundación Bariloche e do Instituto de Sociologia da Universidade de Zurich, sob a direção de Peter Heintz e Manuel Mora y Araujo. Veja Karl W. Deutsch, "Social Mobilization and Political Development", em Finkle e Gable (eds), Political Development and Social Change (N. York: Wiley, 1966); Rosalind e Ivo K. Feierabend, "Aggressive Behavior Within Polities, 1949-1962: a Cross-National Study", Journal of Conflict Resolution 10,3, 1966; Peter Heintz, Un Paradigma Sociológico del Desarrollo, (Buenos Aires: Eudeba, 1969); Simon Schwartzman e Manuel Mora y Araujo, "Proyecto sobre Tensiones Sociales y Desarrollo", Boletin del Departamento de Sociologia de la Fundación Bariloche, 3, 1967; Manuel Mora y Araujo, "Conflicto y Desarrollo: Un Análisis Comparativo", Desarrollo Económico 7, 28, 1968; Simon Schwartzman, "International System and Intranational Tensions: A Research Report", Bulletin, Instituo de Sociologia da Universidade de Zurich e Departamento de Sociologia da Fundação Bariloche, 8, 1968; Ruben Kaztman, "Dependency and Absortion of Social Tensions in Underveloped Countries", Bulletin 4, 1967; Alaôr Passos, "Developmental Tensions and Political Stability", Journal of Peace Research 1, Oslo, 1968; e artigos de Peter Heintz, H. J. Hoffmann-Nowotny, E. Archetti, O. Aguello e outros em diversos números do Bulletin.

17. Confrontamo-nos aqui com uma questão metodológica de longo alcance que não convém passar completamente por alto. Pareceria que a diferença entre as duas "escolas" de análise política poderia ser traduzida em termos mais modernos, como a diferença entre a abordagem indutiva de tipo Lazarsfeld, que utiliza o coeficiente de correlação como seu principal instrumento, e a análise de tipo sistêmico e funcional, representada, entre outros, por Karl W. Deutsch (e menos por aqueles para quem, como Easton, os conceitos sistêmicos são utilizados de forma analítica). Estas duas abordagens têm coexistido sem uma integração adequada, e não deixa de ser curioso que não tenha havido até agora um esforço maior em compatibilizá-las. Podemos indicar algumas das diferenças entre as duas:
a. os dois tipos de analise trabalham com relações entre variáveis, mas, enquanto a análise indutiva (ou correlacional) busca probabilidades de existência de uma relação hipotetizada, a análise sistêmica busca a probabilidade de manutenção (ou ruptura) de uma relação existente. A análise sistêmica aplica assim, para um caso particular, as generalizações obtidas pela análise indutiva.
b. a análise indutiva busca determinar a existência de variáveis logicamente interconectadas e que empiricamente tendam a se associar - é o que denomina "teoria" - enquanto que a análise sistêmica busca a especificação das variáveis de um conjunto empírico dado - é o que denomina "modelo". A teoria é buscada assim "de baixo para cima," partindo-se de variáveis isoladas, enquanto que o modelo é construído "de cima para baixo", a partir do sistema que se queira analisar.
O drama da teoria indutiva em ciências sociais é que ela dificilmente passa do nível do interrelacionamento de poucas variáveis à elaboração de teorias mais complexas. O drama da análise sistêmica é que ela dificilmente consegue chegar a um nível de abstração suficiente para transcender à descrição casuística de um sistema dado. A análise sistêmica busca explicar o funcionamento de um conjunto de variáveis determinado a partir de suas compatibilidades e tensões, mecanismos de auto-regulação e controle, pontos de ruptura, etc. Daí que a análise sistêmica tenda a ser histórica (pois os sistemas mudam através do tempo) e muitas vezes ligada ao jurídico, já que as formas legais dão sempre uma primeira aproximação à estrutura de relacionamento em um sistema complexo. A análise indutiva, ao contrário, busca tipicamente a existência de regularidades, e por isto tende à historicidade. As relações entre os dois tipos de abordagem podem ser pensadas em termos de que cada uma parte de um extremo do continuo entre o geral e o específico e tratam de encontrar-se no meio. Fenômenos como o de mobilização social, variações de opinião pública, etc., são suficientemente gerais e bem caracterizados para serem passíveis de análise indutiva clássica, enquanto que transformações de sistemas de poder se referem a conjuntos muito mais complexos de variáveis que só precariamente se reduzem à combinatória de variáveis simples (o que, apesar disso, somos levados a fazer o tempo todo). Esforços de traduzir características de governo e sistemas políticos a variáveis simples são, geralmente, um fracasso, quando tratam de passar do nível heurístico para o de análise correlacional propriamente dita. Veja, como exemplo recente, o Cross Polity Survey, de Banks e Textor. cf. Karl w. Deutsch, The Nerves of Government (Glecoe: The Free Press, 1963; Banks e Textor, The Cross Polity Survey (Cambridge: MIT Press, 1963) e Simon Schwartzman, "The Gift of Eternal Youth: an essay on the maturation of Social Sciences", publicação interna do Departamento de Ciência Política da UFMG, 1968 (a sair em América Latina, 1970) a respeito da teorização científica em ciências sociais a partir da perspectiva Lazarseld - Merton.

18. Será necessário, realmente, sugerir mais uma nomenclatura com tantas já disponíveis? Pelo menos para este contexto parece que sim, dadas as conotações tão amplas e freqüentemente indesejáveis dos termos correntes Exemplos extremos de sistemas totalizantes são os "despotismos orientais" estudados por Wittfogel, mas esta expressão já vem carregada das preferências do autor. O termo "liberal" se aproxima bastante do de "absenteísta", mas está demasiado ligado à esfera Econômico Alem do mais, gostaríamos de poder distinguir esta dimensão de participação do Estado na vida social da outra, ligada a ela, referida às formas da estrutura de autoridade. Veja a discussão da tipologia de Apter mais abaixo.

19. Relnhart Bendix, Work and Authority in Industry. (New York: Wlley, 1956).

20. David E. Apter, The Politics of Modernization, (The University of Chicago Press, 1965).

21. Antônio Octávio Cintra e Fáblo Wanderley Reis, "Política e Desenvolvimento: o Caso Brasileiro", América Latina, 9, 3, 1966.

22. Tese doutoral em impressão, Universidade da Califórnia, Berkeley, 1968.

23. Os Donos do Poder (Porto Alegre, Editora Globo 1956). Esta não é evidentemente uma tese aceita sem maiores discussõe.s Observa Antônio Octávio Cintra que, por exemplo, "D. Pedro e seus mais chegados colaboradores foram totalmente incapazes de resolver o problema da escravidão, por mais que o tivessem querido por decênios, porque o senhoriato do café no vale do Paraíba simplesmente não o deixava" E prossegue: "Nestor Duarte (A Ordem Privada) e Maria Isaura Pereira de Queiroz ('O Mandonismo Local na Vida Política Brasileira", Anhenbi 24-26) têm exatamente a hipótese de que tudo não passava de uma leve super-estrutura política sem muita autonomia, subjugada pelos chefes locais Estes eram representados na classe política pelos filhos bacharéis que tomavam ares de autonomia importando ideologias como o liberalismo, mas que não passavam de ideologias Daí, segundo eles, a discrepância entre ideologias leis etc e a estrutura real de poder, que era antes dispersa e local" (A. O. Cintra, comunicação pessoal). Veja também, em relação à conceituação de poder no executivo brasileiro, N. Leff, Economic Policy-Making in Brazil, (Wiley, 1969).

24. Isto é bem ilustrado em Peter Worsley, The Third World (Londres, 1964). "Vale a pena lembrar", observa Peter McDonough, a este respeito, que, em parte, o "estado totalizante" refletia uma organização religiosa (católica) da sociedade. Compare, por exemplo, o fracasso dos portugueses, franceses e espanhóis na Índia e Indonésia, com o êxito dos ingleses e holandeses. O modelo ibérico-lusitano parecia não poder funcionar ante uma sociedade mais complexa" (comunicação pessoal).

25. Harvard University Press, 1962. Existe tradução em português.

26. Social Origins of Democracy aind Dictatorship (Boston: Beacon Press, 1988).

27. A expressão "cultura política" aparece multas vezes na literatura para caracterizar os tipos e formas de participação política de uma dada sociedade. O inconveniente desta expressão são seus parentescos com as malfadadas teorias de "caráter nacional", que buscavam as raízes de certas regularidades comportamentais em certos traços atávicos ou "caracteriológicos" das nações. Este antropomorfismo social transparece ainda recentemente em The Civic Culture, em que as raízes de certas pautas são buscadas, não no nível do sistema sócio-político, mas no processo de socialização infantil. Ainda que esta obra não incorra totalmente neste erro, sua presença é suficiente para concluir pela conveniência de abandonar esta expressão. Cf. Sidney Verba e Gabriel Almond, The Civic Culture (Little Brown & Co, 1965).

28. Alessandro Pizzorno, "Introduzzíone alio studio delia partlclpazzione Política", Quaterni di Sociologia 15, 3-4, 1966.

29. Schattschneider, pag. 53.

30. Por exemplo, a transposição de uma questão como a reforma agrária do nível da política de interesses (de conflitos entre proprietários, camponeses, setores do govêrno interessados em diversificar a economia, etc.) ao nível da política partidária implica deixar de lado a questão inicial para plantear questões mais gerais como a do direito à propriedade, sindicalização rural e intervenção do Estado na economia. Com isto desfaz-se o paradoxo de o regime de 1964 ter surgido, aparentemente, para deter uma reforma agrária em marcha, para depois assumir a si uma tarefa de realizá-la. Esta realização está sendo pensada, agora, novamente, em termos privados ou técnicos, na medida em que a participação política não existe nesta área.

31. Edward C. Banfield, The Moral Basis of a Backward Society (Glencoe The Free Press, 1958).

32. O modelo explicativo de Barrington Moore, essencialmente politico-institucional, faz derivar os fenômenos fascistas de determinados fenômenos no nível do poder nacional. Isto difere bastante de outro tipo de abordagem, mais psico-social, que busca as raízes deste tipo de participação política no processo de socialização infantil (os estudos da "personalidade autoritária" de Adorno e o grupo de Califórnia) ou nos desequlíbrios e incongruências de status individuais gerados pelo processo de mobilidade social (os estudos de Peter Heintz vários anos atrás, entre os quais "Anomia Individual, Anomia Coletiva e Anomia Inter-institucional", Anales de FLACSO 1, 1, 1984). É claro que nenhuma situação concreta é completamente determinada sem a complementação dos dois tipos de abordagem. (Veja a nota 16 a respeito).

33. Veja a exposição e critica desta concepção em Barach e Baratz, The Theory of Democratic Elitism, (Boston: Little Brown & Co., 1968).

34. S. M. Lipset e Stein Rokkan sugerem uma lista de quatro umbrais (legitimação, incorporação, representação e poder majoritário) que existam a conquistar no caminho da participação plena. Cf. a introdução de Party Systems and Voter Alignments, Yale University Press, 1967

35. Este quadro baseia-se, ainda que de forma bastante livre, em idéias sugeridas por Michael A. I,eiserson, em seu curso de análise política na Uníversidade da Califórnia, Berkeley, 1988.

36. The Politics of Modernization, pag. 40 e outras.

37. A diferença essencial entre inteligência e outros tipos de informação é que a informação política permite ao sistema reajustar-se a novas realidades do meio, enquanto que os dados de inteligência são. principalmente, um "feed-back" do sistema em si mesmo. O auto-ajustamento de um sistema a novas informações - esta qualidade que Karl Deutsch denomina "autonomia" - depende também da capacidade do sistema em manter sua integridade, o que pode depender de recursos internos de um outro tipo. Abrir-se completamente à informação. ou apoiar-se exclusivamente em inteligência parecem ser meios alternativos de enfrentar o mesmo problema de autonomia reduzida. O modelo sugerido por Peter Heintz para o estudo da indecisão social implica a idéia de que, quanto mais débil é o sistema político, mais ele será receptivo a demandas externas, terminando no que ele denomina "política de paliativos". A hipótese contrária é que a debilidade levaria ao fechamento a informações externas - mas poderia aumentar muito, também para a determinação de sua política interna. tradicionalmente com alguns períodos de acacia notória. Cf. Karl Deutsch, The Nerves of Government e Peter Heintz, "El problema de la indecision social en eI desarrollo económico", Anales de Ia Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales, 1,1.1964. Veja também a aplicação do modelo de Heintz para os Estados brasileiros em Alaôr Passos, "Transição e Tensão nos Estados Brasileiros", Dados, 5, 1968.

38. Schattschneider, pag. 3.

39. A despolitização das questões de relações internacionais nos Estados Unidos em contraposição às questões de direitos civis é evidenciada pelo seguinte quadro obtido em 1958:

  correlação das atitudes dos eleitores com:
A percepção que os deputados têm das atitudes de seus eleitores A atitude dos deputados
Questões de bem-estar social 0.17 0.21
Questões de envolvimento internacional 0.19 0.06
Direitos civis 0.63 0.39

A preocupação dos deputados em representar os eleitores nas questões de direitos civis não existe nas outras duas e a falta de relação entre as atitudes de representantes e representados é total para questões internacionais. Compare-se isto com 1968, em que temas de relações internacionais ocuparam aparentemente uma posição central ao lado dos direitos civis na vida política do país. Cf. Warren E Miller e Donald E Stokes, "Constituency Influence in Congress," American Political Science Review 57 1 março de 1963.

40. Huntington, pag. 198.

41. Schattschneider, pag. 50

42. Huntington, pag. 197.

43. Podemos terminar com fábula de ficção cientifica. Homens heróicos decidem viajar durante milênios para a estrela Sírius, graças às técnicas recentemente desenvolvidas de sobrevivência em sono letárgico Os quatro tripulantes da nave acordam por turno cada vários séculos e vão anotando em um diário o lento processo de desintegração pessoal que sofrem pela consciência da morte de seus contemporâneos e dos descendentes de seus contemporâneos, assim como pela morte acidental e decomposição biológica de um companheiro em estado de letargia. Ao final da viagem os heróis encontram, não o vazio desconhecido, mas outros homens que haviam chegado a Sirius por técnicas desenvolvidas depois da partida dos pioneiros, milênios atrás. Heróis pré-históricos reconhecidos, nossos personagens são entretanto inadaptáveis a seu novo presente (têm um cheiro insuportável, entre outras coisas) e terminam sendo devolvidos, de forma inglória, ao passado remoto do qual haviam tratado de sair.