ATUALIDADE
DO LIBERALISMO POLÍTICO E DO CORPORATIVISMO (1987) Simon
Schwartzman
1) Crise e atualidade do liberalismo
Nada mais parecido com um momento de crise do que um outro. Eis como a política
brasileira ao final da década de 20 foi descrita, em uma crítica à política
liberal que seria retomada com ímpeto em 1937, na implantação do Estado
Novo:
"Regionalismos desenfreados comprometiam a todo o momento
a integridade nacional; a máquina político-administrativa estava nas mãos
de chefetes eleitorais e a serviço de inconfessáveis manobras partidárias
de que se excluía o interesse geral; sob os efeitos de um liberalismo
de aparência, explorado por numerosa clientela de agitadores oportunistas
e de oligarcas experimentados na manipulação das fraudes, a democracia
se tornara um mito e a opinião nacional, já cansada dos desmandos do poder
e também desiludida dos que antes a conduziam para inoperantes campanhas
demagógicas, traduzia seu desgosto pela forma neutra, porém desesperada,
de uma indiferença desdenhosa. Os maiores problemas econômicos e sociais
serviam apenas de ornamentos decorativos para a composição de plataformas.
As fontes de riqueza viviam abandonadas. O trabalho, sem proteção ou estímulo
de qualquer natureza, apelava para o recurso explosivo e desorganizador
das greves como único processo de exigir satisfação aos seus anseios oprimidos.
A situação financeira era comprometida na aventura dos empréstimos. Em
sua grande maioria, os homens de inteligência ficavam à margem da vida
pública e a incompetência submissa à férula dos mandões de província se
tornara critério dominante para o preenchimento dos cargos administrativos
e a conquista dos postos de representação. A politicalha parlamentar e
a rotina burocrática deixavam o progresso do país entregue às iniciativas
particulares, cujo elogio insistente era, aliás, o reflexo da suspeita
que em geral acompanhava os mais vistosos empreendimentos oficiais. E
na sua ironia tão ilustrativa, o homem da rua já se habituara a dizer
que 'o Brasil só caminhava de noite, aproveitando as horas em que os políticos
dormiam'"(1)
O Estado Novo buscou sua justificação na tese do fracasso e da inviabilidadade
da política liberal. Para os modernizadores da década de 30, liberalismo
era sinônimo de política oligárquica, da divisão e esquartejamento do poder
nacional entre os grupos de poder que controlavam as políticas estaduais,
da corrupção e da ineficiência.
Nos anos 30, a resposta para a falência do liberalismo político era o carisma
do líder a racionalidade e a cientificidade do administrador. A Constituinte
de 1934 teria falhado precisamente por não ter percebido esta nova realidade,
e ter recaído na política tradicional:
"Porque
as antiquadas teorizações políticas dominaram sobre a interpretação objetiva
dos problemas do Brasil e do mundo moderno, porque o conservadorismo impregnado
de noções obsoletas abafou o espírito da revolução, e também porque os
interesses regionalistas e partidários reclamam primazia sobre os interesses
gerais da nação, o novo regime apareceu como um desastrado remendo do
velho"(2).
A solução seria mais Estado, mais governo, mais eficiência, mais intervencionismo:
"Num período em que até os modelos clássicos da
democracia liberal procuravam ajustar-se às condiçoes e exigências da
atualidade, intervindo decisivamente na vida econômica e social, aplicava-se
no Brasil um estatuto essencialmente político, de que resultava um Estado
abstencionista, mero espectador da existência nacional, seu direito de
influir na composição de suas forças, entregues assim ao jogo das competições
privadas. (...). Numa época de extremos perigos, em que por toda parte
o poder público se fortalecia para enfrentá-los, desarmava-se ainda mais
o poder. Quando os nacionalismos se acirravam por todo o mundo e quando
a unidade brasileira mal saíra de ameaçadora crise, avigoravam-se as autonomias
regionais. Quando o país necessitava principalmente de administração,
entravava-se a máquina administrativa com toda a sorte de convenções e
formalismos..."(3).
Os plenos poderes assumidos pelo Estado em 1937, que deveriam permitir que
a Administração do Estado se sobrepusesse à politicagem das oligarquias,
requeria a figura de um homem centralizador, de um verdadeiro Chefe:
"O desempenho de tão alta missão requeria, por certo,
qualidades bem maiores do que as já entrevistas e admiradas no chefe da
Aliança Liberal. Para ser também o reorganizador do Brasil, devia possuir
virtudes excepcionais e sobretudo tão diversas, tão complexas, que dificilmente
se encontrariam conciliadas num governante. Só um vulto presidencial,
marcado pelo destino, poderia apresentá-las em tal número e em tão singular
harmonia"(4).
Os 50 anos decorridos, no Brasil e no resto do mundo, desde esta tentativa
paradoxal de combinar o irracionalismo do destino e do carisma com a racionalização
e cientificização do governo levaram, como sabemos, a seu esgotamento, primeiro
com a derrota dos fascismos, e mais tarde com a desmitificação do "culto
à personalidade" nos países socialistas. A crítica ao irracionalismo
e à corrupção da política, no entanto, persistiria, assim como a noção de
que o Estado deveria, tanto quanto possível, se ver livre dos políticos,
e adotar com liberdade os instrumentos da técnica e da eficiência para realizar,
com plenitude, os grandes objetivos nacionais.
O regime militar brasileiro no período 64-84 pode ser visto, em certo sentido,
como uma tentativa de levar à frente um dos componentes dos ideais do Estado
Novo, ou seja, o governo sem política, sem, no entanto, seu complemento,
que seria a figura carismática do Chefe. De fato, a rotatividade do poder
distinguiu o regime militar brasileiro de outros autoritarismos do passado
e do presente. O fracasso desta experiência coincide com a crise mundial
do "welfare state" e leva a uma crítica generalizada à capacidade
gerencial e administrativa dos governos.
O resultado desta experiência é uma perplexidade que pode ser resumida nos
seguintes elementos:
- os procedimentos político-eleitorais, criticados com tanta veemência nos
anos 30, não recuperaram sua credibilidade;
- a esperança do carisma político parece ter sido definitivamente enterrada;
- a crença no poder da racionalidade e da tecnologia da administração e
do planejamento também parece ter se esvanecido.
Restaria o país que "caminhava de noite, aproveitando as horas em que
os políticos dormiam". O liberalismo conservador moderno procura se
apoiar exatamente nisto. Quem constrói a nação, quem produz a riqueza, seriam
os empresários, a livre iniciativa. A busca do lucro individual, o egoísmo
dos empresários, é a melhor das virtudes, e a intervenção do Estado, o egoísmo
dos políticos e dos burocratas, o maior dos males.
Estes argumentos, no entanto, funcionam muito mais como palavras de ordem
eleitorais do que propriamente como descrição da realidade. O fato é que
o mundo moderno, cada vez mais integrado e sem grandes fronteiras de expansão,
requer a presença cada vez maior de sistemas de coordenação de interesses
e administração de recursos, que só podem ser feitos por entidades que representem
com legitimidade o interesse coletivo e façam uso dos recursos da técnica
e da racionalidade, não só a nível nacional, mas também internacionalmente.
O fracasso de um grande número de governos nacionais em cumprir este papel,
e a crise generalizada dos mecanismos multilaterais de cooperação internacional,
não significam que estas preocupações devam ser abandonadas, mas sim que
elas devem ser retomadas a partir, se possível, da experiência dos erros
acumulados até aqui.
A atualidade do liberalismo reside na persistência histórica da crise da
política tradicional, à qual se soma a crise do estado intervencionista.
A crise no liberalismo, no entanto, persiste, já que ele, por si só, não
traz as respostas aos problemas que aponta. O corporativismo foi apresentado,
ainda nos anos 30, como uma resposta possível ao liberalismo político, e
é sintomático que comece a ressurgir.
2. Atualidade e crise do corporativismo "O reconhecimento
legal das menores reivindicações proletárias tem sido conquistado, em
outros países, à custa de lutas sangrentas. No Brasil, muitas vezes, os
princípios do atual direito operário encontraram sua expressão positiva
na lei antes de que os fatos sociais a que eles correspondem tivessem
se manifestado perante a percepção das massas. Um raro descortino levou
o Governo, quando estabelecia soluções para os problemas imediatos e urgentes,
a tomar, simultaneamente, precauções destinadas a evitar dissidências
prováveis no futuro. Assim, a legislação trabalhista brasileira se caracteriza
pela sua feição eminentemente preventiva, o que lhe dá a vantagem de ser
flexível e ajustar-se ao maior ou menor vigor com que se revelam os fenômenos
sociais""(5).
O corporativismo surgiu no Brasil como uma tentativa de resposta à crise
da política tradicional, assim como ao potencial de conflitos das lutas
de classe. Baseado de forma mais ou menos difusa na imagem das antigas corporações
ou guildas medievais, o sistema corporativista que se tratou de introduzir
no Brasil tinha, entre outros, os seguintes componentes:
- a substituição do conceito de representação política territorial,
típico das democracias liberais, assim como o da representação política
classista, proposta pelos partidos políticos de esquerda, pelo da representação
corporativa de interesses funcionais.
- a idéia de que a sociedade é como um organismo cujos órgãos são as corporações
profissionais, que desempenham cada qual seu papel. Estes interesses precisam
ser harmonizados, uma função que só pode caber ao Estado. Daí a vinculação
das entidades corporativas -- sindicatos, conselhos profissionais, instituições
educacionais e de formação de mão de obra -- ao Estado.
-a noção de que, nas corporações, a harmonia e a colaboração de grupos funcionais
(basicamente patrões e empregados, dirigentes e trabalhadores, mestres e
aprendizes) prevaleceria sobre seus eventuais conflitos de interesse.
A constituinte de 1934 incluía a representação parlamentar de sindicatos
e empregadores, além dos representantes políticos mais tradicionais, e havia
a idéia de que a representação funcional pudesse substituir, com vantagens,
a representação política de base territorial. Rapidamente, no entanto, o
corporativismo passou a ser identificado como uma forma de vinculação direta
dos grupos sociais com o Estado, tornando o sistema de representação político-partidário
dispensável.
O aspecto crucial de qualquer doutrina corporativista é a força, autonomia
e auto-regulação das corporações; e, em um segundo momento, suas inter-relações.
A limitação congênita do corporativismo brasileiro, assim como de todos
os corporativismos de tipo fascista, foi que tratou-se de implantá-los e
manipulá-los de cima para baixo, o que significou, na prática, matá-lo no
berço. Se, na Europa, o corporativismo talvez pudesse se basear na pré-existência
de corporações profissionais cujas origens se perdem na Idade Média, no
Brasil o próprio caráter "preventivo" do sistema que se buscava
implantar levou à sua frustração imediata. No Brasil houve muito de paternalismo,
cooptação de lideranças sindicais, formalismo e burocratização do ensino
e organização das profissões, mas pouco, efetivamente, de corporativismo.
O fim dos fascismos colocou, durante muito tempo, uma pedra de silêncio
sobre as doutrinas corporativistas. No entanto, o estudo da experiência
recente das democracias políticas da Europa ocidental deu ao conceito nova
vigência, e novas conotações. Nesta visão moderna e atualizada, o termo
"corporativismo" tem sido utilizado para descrever sociedades
em que:
- existe um alto grau de organização de grupos sociais profissionais --
principalmente sindicatos, mas também grupos profissionais como médicos,
juristas, professores, funcionários públicos;
- estes grupos não somente se organizam internamente, mas também entre sí,
na forma de coalisões e federações;
-graças a esta forte estruturação, as corporações são capazes de mobilizar
a população para ganhar eleições, por uma parte; e, por outra, são capazes
de negociar entre sí as políticas governamentais de interesse coletivo,
dando assim aos governos uma legitimidade, efetividade e capacidade de ação
bastante alta.
A existência de uma estrutura deste tipo parece ser fundamental, por exemplo,
em uma situação de pacto social, onde a existência de interlocutores capazes
de negociar com autoridade é um componente essencial.
A redescoberta do corporativismo da Europa Ocidental permite reabrir, também
em nosso meio, esta questão.
3. Liberalismo e corporativismo na Nova República.
Não seria absurdo ver, na Nova República brasileira, uma tendência à acentuação
progressiva tanto do liberalismo quanto do corporativismo. O liberalismo
mostra sua força na crítica cada vez maior à ação do Estado, ao planejamento,
à centralização administrativa, e na organização de grupos de interesses
econômicos; o corporativismo se manifesta pela mobilização cada vez maior
de associações e corporações de todo o tipo -- operários, funcionários públicos,
profissionais liberais, estudantes, grupos ideológicos e religiosos organizados.
O fato de o liberalismo adquirir uma conotação predominantemente conservadora,
de direita, e o corporativismo vir associado a uma linguagem mais à esquerda
não exclui sua convergência: ambos trabalham para o enfraquecimento progressivo
da autonomia e da capacidade de decisão do Estado, e sua captura por grupos
de interesse setorializados e parciais.
Mas não seria este, afinal, um caminho necessário para a modernização do
Estado brasileiro, pela eliminação progressiva de sua hipertrofia e a transformação
da política em uma negociação cada vez mais direta entre grupos de interesse
organizados? Existe uma boa parcela de verdade nisto. No entanto, existem
sérias dificuldades neste caminho, das quais três, pelo menos, devem ser
assinaladas desde logo. A primeira dificuldade é que os interesses organizados
em um país como o Brasil, seja do lado do capital, seja do lado do trabalho
e das profissões, deixa de lado a maioria da população, e um amplo espaço
para uma política de tipo mais tradicional, baseada na manipulação dos recursos
da administração pública, no clientelismo e no populismo. A segunda é que
uma política de coesão de interesses tenderia a produzir um governo basicamente
estático, incapaz de confrontar os interesses constituídos que lhe serve
de base, e por isto mesmo com muitas dificuldades para tomar medidas difíceis,
e de longo prazo, de política econômica e social.
A terceira é que na maioria dos casos, por razões que derivam de nossa história,
nem nossos liberais querem realmente uma economia de mercado sem o Estado,
nem nossos sindicatos e corporações profissionais querem realmente autonomia,
auto-regulação. Quase todos buscam, isto sim, um Estado solícito e submetido
a seus interesses setoriais, o que leva a uma situação cada vez mais insustentável
no conjunto.
4. Conclusões
A conclusão mais geral é que nem o liberalismo, nem o corporativismo, nem
sua combinação, poderão por si sós dar ao país a saída política que se busca.
O liberalismo traz uma contribuição importante, em sua crítica à irracionalidade
e à ineficiência das burocracias; e o corporativismo contribui para dar
organicidade e organização aos grupos sociais. O que falta, no entanto,
é quem represente o interesse geral, que dificilmente resultará da
agregação dos interesses individualizados e setoriais em conflito.
É aqui que a política mais tradicional, ou clássica, recupera seu lugar.
O país necessita de um governo que não faça a simples representação de grupos
particulares, ou da intermediação dentre eles; que tenha competência para
utilizar-se dos recursos da ciência e da competência administrativa; que
possa pensar em objetivos de longo prazo; mas que, ao mesmo tempo, não paire
nas nuvens de uma vocação extraordinária ou excepcional cuja época, esperemos,
parece ter passado. A democracia representativa de tipo clássico, a depuração
de lideranças através de processos eleitorais abertos, ainda parece ser
o melhor mecanismo para que estes resultados sejam buscados, ainda que não
exista, é claro, nenhuma certeza de que eles serão, com a urgência que necessitamos,
atingidos.
Notas:
1. Arquivo Gustavo Capanema, "Getúlio
Vargas e Sua Política", em Simon Schwartzman, org., Estado Novo
- Um Auto-Retrato (Editora da Universidade de Brasília, 1982, p. 21).
2. ibid, p. 38.
3. ibid, p. 38.
4. ibid, p. 25.
5. Arquivo Gustavo Capanema,
"Política do Trabalho", em Simon Schwartzman, org., Estado
Novo - Um Auto-Retrato (Editora da Universidade de Brasília, 1982, p.
329.
<