POR UMA NOVA POLÍTICA PARA O ENSINO SUPERIOR NO BRASIL, relatório final da "Comissão Nacional de Avaliação do Ensino Superior", Brasília, Ministério da Educação, 1985.

José Carlos Azevedo, "O Novo e o Velho", publicado em O Estado de São Paulo, 1985

Não é este um artigo de crítica ao extenso documento de 119 páginas, divulgado há poucos dias, "Uma Nova Política Para a Educação Superior Brasileira", mas de comentários superficiais e breves, pela exigüidade de espaço desta página e ao muito que cabe ser analisado.

Ao longo dos últimos da anos, os principais jornais e revistas deste país acolheram meus artigos de críticas à educação brasileira, onde ressaltei que todo o esforço de educadores no final dos anos 60 e início dos anos 70 se perdeu porque a reforma proposta nunca foi implantada. Quando muitos dos que agora criticam se mantiveram mudos, creio ter sido eu um dos poucos que, logo no inicio, em artigos assinados, criticaram a falência do Mobral a partir de 1975; o descalabro do ensino de base; os milhões de crianças fora das escolas e a taxa de evasão e repetência que, na zona rural, beira a 100%; a falência da pesquisa no Brasil, onde, em base per capita, se produz tanto quanto em nações africanas; e abusiva destinação de recursos a universidades públicas, onde viceja o empreguismo, também exemplificado por uma das mais altas taxas existentes de professores e servidores em relação ao número de alunos.

O documento em análise contém observações supérfluas e inócuas (Bacon talvez as considerasse res puerilis) dentre as quais as seguintes: "A comissão reconheceu a importância do ensino de graduação, quer em seu caráter terminal... quer em termos acadêmicos como etapa prévia ao nível de pós-graduação estrita ou plena". "Como se sabe, a qualidade do ensino privado é extremamente variável, assim como é muito variável a qualidade do ensino público federal, estadual e municipal"; "...cabe ao Estado garantir a liberdade de ensino em todos os níveis..." ...os restaurantes prestam importantes serviços a comunidade universitária"; os professores, estudantes e funcionários devem se dedicar plenamente às suas tarefas e os custos financeiros devem ser compatíveis com os resultados obtidos"; "é importante que organismos da sociedade civil participem também do processo de controle social". O documento contém vários outros lugares comuns: "...os programas devem ser adaptados às necessidades e carências regionais..."; "...as universidades deverão também assumir um papel importante na supervisão e acompanhamento acadêmico dos estabelecimentos de ensino isolados". Assim, por exemplo, desde o início dos anos 60 já se estudava no CFE a questão da agregação de escolas a universidades, sob condições, caso da Faculdade de Medicina de Ponte Nova (MG), que se vinculou, sob este aspecto, à UFMG.

Contraditório, o documento, que ora diz que há falta e ora que "há ociosidade no uso de recursos", eleva a "democratização", que confunde com autonomia, à condição de norma de funcionamento das universidades, mas defende a supervisão do ensino particular pelas universidades públicas; julgando "estar abalada sua credibilidade, sugere reformular o CFE e ampliar o número de conselheiros para 30, dos quais 22 indicados diretamente ou escolhidos em listas tríplices elaboradas por órgãos e instituições diversas, até de natureza classista ou parassindical, e apenas oito "personalidades de reconhecido valor acadêmico", mesmo assim escolhidas de listas tríplices elaboradas por sociedades científicas "de âmbito nacional".

A leitura do texto é cansativa pela carência de concatenação lógica, pelo habito de colocar vírgulas e ponto e vírgulas antes da conjunção e (como se a redação fosse na língua inglesa) e até pelo uso de anglicismos: as palavras "preditor"; "acreditação"; "creditação e "formato", por exemplo. ou não existem na língua portuguesa ou, se existem, têm significados diversos. Aliás, ao contrario do que afirma: o "Scholastic Aptitude Test" não é "padronizado nacionalmente" nos EUA pois ali as escolas possuem razoável liberdade para eleger seu próprio sistema de admissão e há outros testes usados: o School and College Aptitude Test, o teste da American Pshychological Association e outros.

O documento enuncia sete "princípios (?) da nova política de ensino superior"; sob nenhum aspecto se trata de novo ou de princípios, pois nada têm de inovador ou essencial; são problemas velhos, conhecidos e mais relacionados à administração que à própria educação: "Responsabilidade do Poder Público, Adequação à realidade do País, Diversidade e pluralidade, Autonomia e Democracia Interna, Democratização do Acesso, Valorização de Desempenho Acadêmico e Eliminação dos Aspectos corporativos e Cartoriais".

A responsabilidade do poder público está expressa no Art. 176 da Constituição. Adequar o ensino à realidade do país é, pelo menos, antipedagógico e melhor seria não se esquecer em adaptar o País a uma nova realidade do ensino, pois educação é um processo de reciprocidades; isso, de certa forma, - é reconhecido no documento, o que o torna mais contraditório. Afirmar que "... a pesquisa universitária dificilmente tem efeitos sobre a economia e a população..." e garantir que " o que inexiste são principalmente mecanismos efetivos de transmissão de conhecimentos para fora das universidades..." é, pelo menos, insólito. Em seu recente livro, "The Unity of Nature, C. F. Von Weizsacker assinala: "... mas a motivação primordial dos cientistas, do passado e de hoje, tem sido sempre a busca da verdade ou, para dizê-lo mais modestamente, um esforço mental de curiosidade e especulação"; de resto, se tais conhecimentos não vão para fora das universidades", há de ser por um único motivo: porque não têm valor.

Mas, ao analisar a questão da autonomia, o texto nova, a fazendo-a equivaler à "democracia interna": "A autonomia universitária significa liberdade para que as universidades decidam internamente sobre as pesquisas que realizam, os currículos de seus cursos, seus sistemas administrativos e organizacionais e a questão de seus recursos". Ao longo da História, em particular depois do século XVIII, com Schletermacher, Fichte, Humbodlt e mesmo Hegel, autonomia, ou liberdade acadêmica, tem mantido praticamente o mesmo significado que lhe deu Jaspers no "Die Idee der Universitat": Liberdade acadêmica é o priviégio que implica a obrigação de ensinar a verdade, em desafio qualquer um que deseje impedí-lo, dentro e fora da Universidade"... "Liberdade acadêmica significa a liberdade do estudante e do professor de realizar pesquisas à sua própria maneira e ensinarem o que entendam adequado". Autonomia nada tema ver com administração, finanças ou política de pessoal e o Estado tem a obrigação de zelar pela correta aplicação dos recursos sob sua guarda. Posta em prática, essa "nova autonomia" levará a politização à universidade: "A política tem lugar na universidade não como disputa real, mas objeto de pesquisa. Se disputa invade a universidade é a própria idéia da universidade que sofre",. lembra o mesmo Jaspers.

A enunciação dos demais princípios, "Democratização do Acesso, Valorização a Desempenho e Eliminação dos aspectos Corporativos e Cartoriais"mantém-se aquém do nível de sofisticação filosófica e pedagógica aguardado em documento desse nível. É igualmente temerário dizer, sem apoio estatístico, que "os exames vestibulares aprovam preferencialmente estudantes de escolas de segundo grau privadas e caras"; o que talvez se possa afirmar, sem amparo estatístico, é que o percentual de candidatos oriundos dessas escolas que são apurados é maior do que os das demais categorias econômicas.

Na questão da valorização do desempenho, o documente se perde em truísmos: "O ensino deve ser de qualidade; os profissionais que forma, competentes"... Dizer que a "Pesquisa deve ser social e intelectualmente relevante... " é um contra-senso, pois, se não for "intelectualmente relevante" não é pesquisa. Quem pode garantir a priori se uma pesquisa é ou não "socialmente relevante"? Quem poderia prever que os três trabalhos de Einstein publicados na volume 17 do Annalen der Physik de 1905 revolucionariam a fisica, a química, a biologia, a tecnologia, a própria teoria do conhecimento e toda a vida social? Pretender que o poder público "subsidie pesquisas socialmente relevantes " é posicionar-se contra a autonomia que o documento apregoa e reivindica. "A liberdade acadêmica, lembra Jaspers, só pode sobreviver se os mestres que a invocam permanecerem cônscios a respeito de seu significado."

É falha a análise dos aspectos "corporativistas e cartoriais, até pela afirmação de que "o corporativismo não foi implantado entre nós"; talvez inexista sociedade onde os interesses classistas sejam tão protegidos por lei como o Brasil e Perón e Mussolini jamais almejariam tanto. Além de o documento não mencionar solução para tal problema, o corporativismo que condena... é também estimulado: "Cabe às universidades a abertura de carreira que sejam mais adequadas às necessidades do país".

Nas 73 páginas que se seguem à enunciação dos "sete princípios", há recomendações e sugestões relativas a medidas de emergência que não engrandecem o texto; são casuísmos que pouco têm a ver com uma nova política para e educação; há ainda várias observações que certamente foram registradas por equívoco, pois falar em "divisões clássicas entre as humanidades, ciências exatas e ciências biológicas" e em "a nova Constituição manter... o pluralismo de pensamento" é inteiramente inconcebível; afinal, diz o famoso escritor, "livre pensar é só pensar". É igualmente inconcebível a proposta de "o reconhecimento do status universitário"basear-se "essencialmente na capacidade de autogestão... " Esta proposta reflete a preocupação comum de mudar rótulos e manter conteúdos e o oposto é o que ocorre em países civilizados; ou o "Instituto Tecnológico de Massachussetts" (MIT), o "Instituto Tecnológico da California" (Caltech) não são universidades no sentido preciso que a palavra possui? Como pode o texto propor pregar acabar com a "equivalência equivocada entre universidade e universalidade? Equivocada por que?

Com o passar das séculos, não mudaram os princípios da educação; de Platão a Rousseau, Whitehead, Iaspers, Newman e outros, eles cuidam de ensinar a ser e não de ensinar a fazer. Por isto, carece de sentido um documento, escrito a esta altura do século XX, que não fale em humanidades, em ensino generalista. "A universidade deve sua existência à sociedade que deseja que, em algum lugar em seu seio, a pesquisa pura e desinteressada, possa j ser desenvolvida". Fazer pesquisas e a ensinar a pensar; abrir os olhos dos estudantes para o mundo, sem especializá-los em quinquilharias; dar-lhes formação moral, ética e religiosa são as funções da universidade; de: o resto é "res de lana caprina".Em educação, o novo não é necessariamente bom e não raro o que é bom não é novo; a idéia de "democratização" que permeia todo o documento citado levará à extinção a universidade no Brasil, para a qual contribuiu o decreto do governo findo que enquadrou uns dez mil professores nas universidade públicas. Além disso, mantido o status quo, quanto mais abundantes forem os recursos públicos destinados ao terceiro grau, mais contratações desnecessárias e mais estudantes despreparados serão graduados.

Talvez até por haver julgado desnecessária, o documento em análise não tem justificação doutrinária; entretanto, mesmo que tivesse pretendido ater-se a fatos conhecidos, há outros mais relevantes. Apesar de saber que não possuo dados estatísticos para fazer esta afirmação, parece válido dizer que é crescente número de alunos capazes que chega às universidades e que, em termos relativos, ele é decrescente; entretanto, em valores absolutos e relativos, aumentam o número de professores incapazes e seu pavor aos competentes. Outro grave embaraço é o enorme contingente de professores leigos na escola de 1 grau. Se estes dois problemas não forem resolvidos, o Brasil do século XXI será mais um país superpovoado do Terceiro Mundo, com uma diferença: aqui os pobres não aparentam que estão resignados a ficar cada vez mais pobres e os ricos, certamente, não se aperceberam de que não podem ficar sempre mais ricos. O conflito é iminente e só a educação pode impedí-lo, propiciando melhor igualdade de oportunidades. Sobre esses temas, por exemplo, o documento lançou profundo silêncio. <