BASES DO AUTORITARISMO BRASILEIRO, Simon Schwartzman. Rio de Janeiro, Campus, 163 pp. 850.00


Autoritarismo

Ruyter Demaria Boiteux, carta publicada no Jornal do Brasil, 8 de fevereiro de 1982

O substancial estudo da obra de S. Schwartzman em Bases do Autoritarismo Brasileiro, publicado no JB, na edição de 24/1/82 e intitulado "Retrato de um Fantasma" está a merecer alguns leves reparos para melhor realçar essa apreciação da realidade político- social brasileira.

Em nenhum setor sociológico encarado pode fugir-se do método da "filiação histórica", cujas bases são devidas a A. Comte. Afastando ou desconhecendo-o, as interpretações não têm a necessária nitidez. Urge sempre correlacionar-se a fenomenologia local com as inter-relações universais, fruto quase sempre tardio ou precoce da conjuntura internacional.

Se a Sociologia estuda o homem coletivo, a Biologia o faz individualmente com a utilização do método comparativo. Assim a apreciação de qualquer ciência implica no conhecimento, pelo menos, metodologicamente, das que lhes precedem, lançando-se mão de todos os recursos que lhe possam dar maior positividade e mais justa previsão em suas leis ou interpretações. Logo, comparando-se e filiando-se acontecimentos e fatos são alcançadas conclusões seguras e verídicas.

Na conjugação do método da filiação histórica com o comparativo advêm induções ou deduções capazes de aprimorar e explicar, mais criteriosamente, certos problemas sociológicos ocorridos nessa ou naquela ação.

Conseqüente ao esgotamento do regime católico-feudal, em função de fundamentos histórico-sociais, houve nítida modificação no modo de dirigir os povos. O absolutismo direcional adquiriu duas formas principais - o parlamentarismo conseqüente do predomínio dos barões feudais, ocorrência bem evidente no mundo britânico, donde partem todas as diretrizes para essa instituição, onde o numero predomina sobre a unidade executiva. A outra faceta do regime se manifesta pela concentração do poder em uma só mão - o presidencialismo, sem prescindir, contudo, do apoio da opinião publica, produto de profunda pregação dos órgãos de expressão cultural ou espiritual.

Todavia não são as imposições humanas que dirigem os povos, como não o são em relação aos fenómenos matemáticos, astronômicos, físicos, químicos e sim leis, isto é, o que é constante no meio da variedade, suficientemente previsíveis e exatas, que governam os nossos destinos, contudo. modificáveis em sua intensidade em função de nossas vontades. De igual modo se sucedem os fenômenos sociológicos, levemente contidos, mas jamais anulados por vontade arbitrária de certos homens ou governos, defasados no tempo e no espaço.

A ocorrência do autoritarismo é uma contingência universal, uma necessidade social dentro de determinados princípios, que não devem ultrapassar certos limites. Degenera, então, em opressão ou tirania, com anulação da personalidade. Se monarquismo, com simbolização divina do mando e da hereditariedade funcional, baseada em hipotético sangue azul, se dilul como opressivo e contrário aos nossos destinos. Também o autoritarismo, sem o respeito às liberdades públicas e individuais, devera ser afastado por inaplicável às evidências sociológicas e aos padrões éticos do homem.

Costuma-se, assim, em lamentável confusão, atribuir-se ao Positivismo por preconizar, como regime político, a "ditadura republicana", um sistema na direção dos povos imbuído de processos coercitivos com o objetivo de anular os indivíduos sob o domínio férreo do Estado. Coisa completamente oposta. pois, bate-se por todos os meios pela preservação psicossocial do Homem, por ser a razão suprema de sua existência sobre a terra.

A expressão "ditadura" aí exposta tem um sentido bem definido, isto é, uma concentração executiva, só preservada graças ao respeito integral de todas as liberdades, conquistadas por uma opinião pública capaz de controlar os desvios e os erros governamentais, sem paixões, ódios ou injustiças.

O mito do sufrágio universal, o poder numérico do voto se desfaz ou se apaga diante das imposições partidárias, apresentando aos eleitores tão somente os seus indicados, sem qualquer outra opção. Em última análise impera a ditadura parlamentar, impondo, obrigatoriamente, aos votantes candidatos escolhidos por ínfimas maiorias.

Conclui-se, e não nos parece histórica, nem socialmente exata, a implantação pelo positivismo da política autoritária em nosso país, pois, já é fato há muito socialmente consagrado.

A existência simultânea de Getúlio Vargas, com algumas luzes positivistas, mas profundamente ambicioso e individualista, com Hitler, Mussolini, Franco, Salazar e tantos outros tiranetes. de cujas fontes comtianas careciam integralmente, afasta por completo essa tão decantada e inexata interferência; encarando exclusivamente, como uma fase revolucionária, muito perturbada por sofismas e agressões sociais, acarretadoras das maiores desgraças no mundo.

Contudo, tal fato revela a tendência e o imperativo natural para ditadura, não como na sua atual acepção coercitiva, mas como uma concentração executiva na direção dos povos. Como um sistema capaz de selecionar homens, já que a qualidade sempre foi o maior fator seletivo no julgamento das individualidades e muito raramente a expressão numérica, de fundo parlamentarista, esteve à frente dos momentos decisivos da humanidade.

Os santos, os gênios e os heróis, expressão eloquente de nossa tríplice natureza psíquica: - sentimentos, pensamentos e atos, são essências especiais da mentalidade humana, sempre condicionadas às exigências ambientais que determinam sua direção em prol dos homens.

Se analisada sem prevenções e firmemente calcada na obra de Comte, divulgada profusamente no Brasil, em destaque, por Miguel Lemos e Teixeira Mendes, concluiremos de imediato que o regime político previsto pelo positivismo - a ditadura republicana - nada tem com o autoritarismo totalitário desses numerosos tiranos que desonraram e feriram profundamente a humanidade, como sanguinários liberticidas que o foram.

Como então atribuir-se a Júlio de Castilhos uma "versão virulenta" por não aceitar o voto individual como fator decisivo na escolha dos dirigentes dos povos, embora pregasse a solução praticamente plebiscitária na promulgação das leis? Claro e evidente, porém, que o bem público deve ser colocado acima de todas as ambições pessoais.

De modo algum se propôs a fazer do Estado um super-homem, mas quis dotá-los de meios capazes de bem servir e orientar a iniciativa privada, condicionando-a sempre ao serviço da coletividade, visto considerar como de origem social o capital, portanto, sua aplicação não teria outro fim.

A doutrina positivista nada tem de comum com essas forças retrógradas ou anárquicas que se associam a militares prepotentes para implantarem a tirania dos potentados, que envergonham qualquer nação livre.

As teses apresentadas por Schwartzman, por vício de citações indiretas, sem pesquisas às fontes originais, levaram a interpretar a atitude e a ação política de Júlio de Castilhos, como de um autoritarismo totalitário, quando a Constituição de 14-7-1891, do Rio Grande do Sul, praticamente de sua lavra, consagra como preceito indeclinável o respeito integral a todas liberdades públicas e individuais, só mais tarde inseridas na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que, evidentemente, restringia ou moderava "o peso avassalador do poder central", sempre sob o controle atento da opinião pública.

A visão positivista do trabalhismo se fundamenta na tese comteana de que o principal problema humano na modernidade seria a incorporação do proletariado à sociedade, sem qualquer conotação marxista, onde ainda vive acampado por não desfrutar as benesses proporcionadas pelas atuais condições mundiais.

O fato é tão verdadeiro que na carta constitucional gaucha supracitada é prevista pela primeira vez no Brasil, quiçá no mundo, uma legislação de amparo condigno ao trabalhador.

Também, em 1881, num pioneirismo ímpar, Teixeira Mendes clamava por um salário mínimo, uma assistência social suficientemente válida com respeito à familia operária, restrições ao trabalho feminino e de menores e aposentadoria no término da atividade profissional.

Tais sugestões foram realmente aproveitadas por Lindolfo Collor nas soluções trabalhistas, algo demagógicas, de Getúlio Vargas, mais voltado para seu poder pessoal do que para o atendimento das necessidades básicas do operariado.

O fim da 1 Guerra Mundial e a Revolução Russa de 1917 determinaram o alertamento das classes proletárias contra um capitalismo selvagem e impuseram, de modo definitivo, um estimulo ao recurso à greve, preconizada pelo positivismo, isto é, a resistência do número contra a riqueza reputada individualista, levando todas as nações a uma assistência mais humana à classe operária, muito independente do suposto "paternalismo positivista".

Frise-se, mais uma vez, que a liberdade espiritual com todos os seus apêndices públicos ou individuais é uma conquista republicana alcançada pelo trabalho incansável dos positivistas na Constituição Federal de 1891.

O positivismo não tem prevenções contra os militares, apesar de defender, doutrinariamente, o regime pacífico-industrial, o primado da indústria pacífica sobre os defasados arreganhos bélicos de nossos dias. O imperativo social de nossa evolução transformará as forças armadas em órgãos policiais sempre aptos na repressão das anomalias da sociedade. É previsão positivista para uma realidade futura com o predomínio da fraternidade universal.

O fugaz consócio entre o positivismo e o militarismo, ora alegado, resumido na conquista do poder pela força, não teve graves repercussões pois, logo nos primórdios republicanos, o governo foi entregue aos civis. A existência de muito militares positivistas é fator circunstancial, dada a influência de Benjamim Constant na criação de nossa república.

Reforce-se mais uma faceta: o autoritarismo totalitário teve sua maior ressonância no civil Getúlio Vargas com o seu Estado Novo, uma aberração sociológica na conjuntura política brasileira.

Afaste-se uma vez por todas que, embora o positivismo postule a ditadura republicana - concentração executiva com o desfrute pleno de todas liberdades, sempre apoiada em consciente opinião pública - abomina e combate com garra todas as violações e crimes impostos por qualquer autoritarismo totalitário, sob a direção de excrescências políticas ou sanguinários salvadores da causa pública. <