TEMPOS DE CAPANEMA

SIMON SCHWARTZMAN, HELENA MARIA BOUSQUET BOMENY, VANDA MARIA RIBEIRO COSTA

1ª edição: Editora da Universidade de São Paulo e Editora Paz e Terra, 1984 - 2ª edição, Fundação Getúio Vargas e Editora Paz e Terra, 2000.

Capítulo 1

De Minas para o Rio


1. Os intelectuais da rua da Bahia

2. No poder, em Minas

3. Capanema, Francisco Campos e a Legião de Outubro

4. O pacto com a Igreja

5. De Minas para o Rio

Notas


1. Os intelectuais da rua da Bahia

Elites tendem a gerar seus intelectuais, e Minas Gerais não seria exceção. São as elites que têm recursos para mandar seus filhos às melhores escolas, dar-lhes familiaridade com diversas linguas, abrir-lhes o mundo dos livros e das idéias. Ao mesmo tempo, os homens de elite tendem a viver muito, a manter suas posições de poder até a velhice, desta forma, custam a passar para os mais jovens as suas posições. Nem todos os intelectuais, evidentemente, têm esta origem, mas esse parece ter sido o caso de um grupo de jovens que, na década de 1920, agitava as ruas de Belo Horizonte com suas estripulias, acompanhavam como podiam os modismos intelectuais do Rio e São Paulo e se preparavam, uns para a vida política, outros, principalmente, para a vida contemplativa. Basta lermos as memórias de Pedro Nava para reconhecer a intensidade dessas experiências e as marcas profundas que elas deixaram na vida de seus protagonistas. Basta listarmos alguns dos nomes das rodas intelectuais de então - Abgar Renault, Pedro Aleixo, Gustavo Capanema, Emílio Moura, Carlos Drummond de Andrade, Mílton Campos, João Pinheiro Filho, João Alfonsus, Mário Casassanta, Afonso Arinos de Melo Franco, o próprio Nava - para perceber que também eles deixaram suas marcas na vida de seu estado e seu pais.

Dentre esses, dois teriam papéis profundamente distintos, mas igualmente importantes. Carlos Drummond de Andrade desenvolveria uma obra poética e literária da melhor qualidade, até chegar à posição de destaque que hoje ocupa como uma das figuras centrais de nossas letras. Gustavo Capanema entraria ativamente na vida política aos 30 anos, como secretário do Interior do governo Olegário Maciel, e dela não mais sairia. O que nem todos recordam é que, durante muitos desses anos, Drummond foi o seu chefe-de-gabinete, o intermediário eficiente, discreto e silencioso entre o político Capanema e tantos que dele dependiam ou a ele se dirigiam.

Refazer o lado pessoal e mais profundo do relacionamento entre estes dois homens igualmente reservados, inteligentes e igualmente vitoriosos em suas respectivas carreiras exigiria muito mais do que poderíamos pretender. Basta dizer que os dois, de alguma forma, se complementavam. Capanema, homem de cultura humanística e pretensões intelectuais, dedica-se inteiramente à politica, sem uma obra intelectual própria que ultrapassasse os limites do que os seus diversos cargos exigiam; Drummond, mais do que simples funcionário público, teria podido, quem sabe, seguir uma carreira politica própria, que prefere, aparentemente, não realizar, em beneficio de sua obra literária. É como se Capanema fizesse a politica de Drummond, e este realizasse as ambições intelectuais do chefe e amigo.

Drummond e Capanema parecem haver assim, na prática, resolvido a questão do relacionamento sempre difícil entre o intelectual e o poder, através de uma associação na qual cada um assumia de forma exclusiva um dos papéis. Se Drummond renunciava de bom grado ao poder, Capanema no entanto, jamais renunciou explicitamente à sua pretensão intelectual, que mantinha pela preocupação com questões relativas à educação e cultura, pela amizade pessoal que cultivava com escritores, pintores e artistas em geral, e pelo hábito de estudo e leitura. Ele procura ser, sempre, um intelectual no poder. A grande questão, é entender como ele consegue, ou não, combinar as duas coisas dentro de si mesmo.

Existe uma tentativa de resposta a esta pergunta, feita não por Capanema, mas pelo próprio Drummond. Em 1941 a Confederação Brasileira de Desportos inicia a preparação de uma biografia de Capanema, a ser publicada como exemplo e modelo para a juventude brasileira. Várias partes são solicitadas a vários autores, e a Carlos Drummond de Andrade cabe escrever sobre a "Experiência de um intelectual no poder,"(1) que é exatamente o tema que nos preocupa.

Drummond inicia pela descrição do ambiente intelectual de Belo Horizonte na década de 1920, daquele pequeno grupo de jovens que se reuniam na Livraria Alves, na rua da Bahia, a caminho do palácio da Liberdade. Era, sem dúvida, um grupo de intelectuais:
Os debates versavam sobre literatura, arte, ciência, desportos, regimes políticos e alimentares, bailes, finanças, o temporal e o espiritual. Fazia-se livremente a crítica de homens e costumes. Nenhum valor era aceito por simples tradição ou presunção; tinha de ser analisado miúda e implacavelmente. Os ataques seriam às vezes injustos; os louvores, mais raros, não o eram nunca. Despreocupados de qualquer conveniência de partido ou de indivíduo, os circunstantes tinham aquela ferocidade intelectual, espontânea e gratuita, sem a qual não medra o livre exame (...) Como a atitude do grupo fosse meramente especulativa, o governo, sempre vigilante quanto aos fermentos da dissolução, deixava-o existir. Eram os 'intelectuais', e nesta classificação havia um pouco de desdém da força maciça em frente aos belos mas inofensivos torneios da inteligência. Na realidade, porém, estes intelectuais interceptavam na rua da Bahia o trânsito ascendente para o palácio da Liberdade e, ao tropismo exclusivo para o poder constituído que ameaçava constituir-se em traço novo da índole montanhesa, opunham o espírito da sátira, de equilíbrio e de revisão. Tínhamos assim a rua da Bahia levando ao governo e ao mesmo tempo se afastando dele.
Se Capanema participava desse grupo, era bem pouco típico. "De todos," lembra Drummond, "era talvez o mais terrível consumidor de livros. Era também o mais ascético, e não participava do gosto que um ou outro freqüentador do recinto sagrado nutria pelas peregrinações noturnas aos bares, com declamação de poemas do modernismo nascente e largo consumo de cerveja gelada." Em relação à política, Drummond o descreve como "dos espectadores mais frios, cuidando menos de julgar o governo do que de ignorá-lo, para melhor se consagrar à análise pura do fenômeno politico, numa espécie de inconsciente preparação ideológica para a atividade de governo que em breve lhe seria dado exercer." Era o "homem de livro e de lâmpada", o "clérigo puro", que se viu, um dia, chamado às contingências da vida politica.

É só em 1930, segundo Drummond, ao se abrirem as portas para a renovação política, que Capanema inicia sua insuspeitada carreira. "Tudo que havia lido, pensado e sentido até então e que parecia torná-lo particularmente inapto para o governo foi se revelando, pouco a pouco, a preparação justa e essencial de que precisamente carecia para governar, em novos tempos, com uma instabilidade que governo nenhum conhecera antes."(2)

O intelectual Capanema começa sua carreira como secretário do Interior, ou seja, chefe de policia. Entretanto, segundo Drummond, ele não fez uso da força(3) e, acima de tudo, não traiu sua condição de intelectual. E este teria sido, talvez, o aspecto mais notável dessa carreira, porque, para Drummond, "o intelectual é, por natureza, inclinado à traição. Sua atitude no mundo é puramente extática e, assim, pode ser perfeita; no momento, porém, em que se desloca do plano da contemplação para o da ação, essa atitude corre todos os riscos de corromper-se (. . .). A inteligência apresenta-se quotidianamente em estado de demissão diante da vida, e é no intelectual que esta tendência niilista opera com maior agudeza. Não admira, assim, que a família dos intelectuais tenha trazido uma contribuição tão fraca ao progresso das instituições políticas, quando chamada a trabalhar diretamente sobre elas. Essa contribuição é, entretanto, imensa no domínio do abstrato, como se o intelectual fosse incapaz não só de concretizar as idéias como de pensar a realidade."(4)

Que significa não trair? Para Drummond, escrevendo em 1941, "Capanema soube ser, na sua província natal, como esta sendo em cenário mais amplo, um intelectual no poder, sem as abdicações, os desvios e as inibições que o poder, via de regra, impõe aos intelectuais." Seu trabalho no governo de Minas foi, ainda segundo Drummond, "uma obra-prima de inteligência aplicada ao governo", e talvez tivesse sido traição renunciar ao uso da inteligência. "A experiência do clérigo do poder foi vivida largamente por Gustavo Capanema. Dez anos já escoados, e, lícito reconhecer que ele a viveu com perfeita dignidade espiritual", afirma Drummond. Não trair significaria, então, não perder a dignidade?

Mais do que o uso da inteligência e a preservação da dignidade - que não são, afinal, características exclusivas dos intelectuais - o que talvez tenha estado mais presente no espírito de Drummond, ao afirmar que Capanema "não traiu", fosse sua fidelidade constante aos temas culturais e aos círculos intelectuais que O politico cultivava. Em 1978, Drummond recorda em uma crônica que o ministro Capanema "foi no MEC uma usina de idéias que se tornaram realidades. Varreu a rotina e implantou novas formas de educar e civilizar o homem brasileiro. Foi o ministro que deu maior atenção às inovações artísticas, mas foi também o ministro que cuidou da erradicação da lepra e da malária, da organização do ensino industrial e da educação física (...) E foi também o homem humilde por excelência, que não se cansava de ouvir a opinião dos entendidos, as críticas bem-intencionadas, até, suportando com paciência cristã, as mal-intencionadas."(5)

Inteligência, dignidade, preocupação com temas culturais, humildade. A política, infelizmente, não depende somente das qualidades pessoais dos líderes, mas da maneira pela qual os conflitos que se manifestam na vida pública são por eles resolvidos e administrados. Capanema se notabiliza, como bom mineiro, pela tentativa constante de unir os contrários, de evitar definições categóricas, de não aceitar rompimentos. Na crônica de 1978, Drummond chega a afirmar que "Capanema seria precisamente o homem indicado para a tarefa de conciliar a mentalidade revolucionária com as reivindicações já agora inelutáveis da opinião pública", e lamenta que, apesar disso, ele tenha sido preterido em sua reeleição para o Senado. Seria o dom de conciliar uma outra prova da não traição?

Na realidade, o tema da "traição" só se torna importante porque foi Drummond quem o trouxe, o que-faz presumir que ele também deveria ser significativo, de alguma forma, para o próprio Capanema. Quando Drummond fala do intelectual contemplativo, extático e sem apetite para a vida prática, ele está se referindo sem dúvida a um tipo especial de intelectual, que substitui o envolvimento mais profundo com o mundo real por uma atitude estetizante freqüentemente estéril e auto-destrutiva, quando não acompanhada de talento verdadeiro que lhe devolve, de alguma maneira, o vínculo com o mundo. O predomínio deste tipo de atitude entre os intelectuais mineiros, que sem dúvida ocorria, talvez possa ser entendido pela própria descrição de Drummond das perspectivas de futuro de sua geração, nos anos da República Velha: "Completada a formação intelectual, tinham que optar pela burocratização em torno do governo ou pela aceitação pura e simples de uma profissão sem brilho. O governo oferecia emprego a todos, mas não permitia que participassem da direção dos negócios públicos. Cada bacharel em sua promotoria, cada médico em seu hospital; a direção do Estado ficava entregue a meia dúzia de iniciados, detentores de fórmulas mágicas e confidenciais, que realizavam o bem do povo sem que ninguém, nem mesmo o povo, o percebesse. Veio a revolução e trouxe à gente nova uma perturbadora ocasião para intervir e revelar a sua força e capacidade."(6)

Os intelectuais da rua da Bahia não eram, basicamente, homens de letras perdidos na provinciana Belo Horizonte, mas uma geração bem-nascida, bem-educada, e represada em suas aspirações de influência e poder. Ela se constitui, assim, em intelligentsia que olhava inevitavelmente com rancor e desesperança para as oportunidades que os velhos oligarcas do palácio da Liberdade lhes negavam. Abertas as comportas do sistema politico com a Revolução de 30, estes jovens, em sua maioria, lançaram-se com todas as forças à vida politica, sem trair, mas na realidade cumprindo, sua vocação de intelectuais. Poucos, como os poetas Emílio Moura e Drummond, teriam o talento e as condições pessoais adequadas para fazerem da literatura não somente um estilo, um adorno ou um traço a mais de sua cultura, mas sua forma mais alta de realização pessoal. Para os demais, a politica foi o caminho.
* * *


Segundo uma biografia oficial, constante dos arquivos, eram pais de Gustavo Capanema o "Sr. Gustavo Capanema e a Sra. Marciana Júlia Freitas Capanema, pertencentes ambos a tradicionais famílias mineiras, às quais se acham vinculados nomes de destaque nas atividades intelectuais e políticas do Estado." Nascido em Pitangui, no ano de 1900, é enviado para cursar o ginásio em um colégio dirigido por padres alemães, o Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte. De essa época data sua amizade com Gabriel Passos, que reconstituiu, anos depois, a infância do amigo: "Não me parece que Capanema tenha sido menino muito dedicado ao papagaio, armar arapuca, nadar no córrego, pegar passarinho, atirar bodoque, 'ferrar luta' etc. Desde cedo, o que o preocupou foram os livros e as distrações menos movimentadas."(7) Criança e jovem arredio, estudioso, formal, Capanema termina os estudos secundários no Ginásio Mineiro, já que o Colégio Arnaldo seria temporariamente fechado nos anos da Primeira Guerra Mundial.

Há uma carta do jovem Capanema ao pai, dessa época, que relata o fechamento do colégio, e as dificuldades que dai advieram: "Os acadêmicos se dirigiram para lá e obrigaram aos padres o fechamento imediato do colégio. Foi ontem à uma e meia da tarde. Os alunos internos foram entregues aos respectivos correspondentes. Alguns não os têm, entre os quais também eu. Fomos, pois, entregues ao Sr. secretário do Interior, que nos colocou em uma pensão familiar por conta do Estado até que os pais deliberem o que se deve fazer." A nova situação cria problemas financeiros inesperados, que devem ser resolvidos para que Capanema possa preparar-se para os exames do Ginásio Mineiro: pensão, roupas novas, professores particulares... "Como vê você, foi um ato bem violento este fechamento tão imediato e imprevisto do colégio. Deu grandes despesas aos pais dos alunos. Quanto ao destino dos padres eu nada sei. No colégio eles não estão. O estabelecimento está fechado e guardado pela policia."(8)

Terminado o curso secundário, o caminho natural é a Faculdade de Direito, onde se forma em 1924. Já nessa época participava ativamente do grupo intelectual da rua da Bahia, e sua correspondência mostra relações de grande amizade com Mário Casassanta, Abgar Renault, Gabriel Passos, Emílio Moura. Terminado o curso de Direito, volta para a cidade natal de Pitangui, onde trabalha como advogado, professor na Escola Normal e vereador na Câmara Municipal, até que funções mais altas o trazem de volta a Belo Horizonte. A Faculdade de Direito é, acima de tudo, treinamento para a vida politica. Em 1923 Capanema escreve ao pai sobre algumas de suas atividades: "As ocupações relativas à escola, ao centro acadêmico e à Procuradoria têm-me impedido de mandar-lhe, com assiduidade, minhas noticias." A carta inclui também referência a uma questão politica de importância local, que era a transferência do distrito de Onça do município de Pequi para o de Pitangui, onde já fica claro o envolvimento precoce de Capanema neste tipo de problema.(9)

O clima político na Faculdade de Direito pode ser apreendido pela carta que lhe envia Gabriel Passos a propósito da formatura. As negociações e manobras são intensas para decidir quem será o orador da turma. "A luta que aqui se trava é grande," diz o missivista. Há um longo relato de conversa havida com "N" em uma negociação complicada cuja importância se perde no tempo. "N" teria dito "coisas boas de se ouvir de um correligionário, mas que ditas por um adversário político me comove tanto quanto às pedras. A minha resposta foi que eu de tal modo estava empenhado com os amigos que não lhe podia dar resposta formal e menos em nome dos amigos." Em vão se buscará nesta correspondência o que une ou divide as pessoas, além da força das amizades e lealdades pessoais. "Se Abgar, Mário, tu e eu e mais os nossos nos firmarmos e dissermos - vamos até o fim, sairemos do quadro - acreditas que eles não se chegarão?"(10) O que está em jogo é o prestígio pessoal de uns e outros, é "sair do quadro", deixar de colocar nomes e fotografias no tradicional quadro de formatura que anualmente era exposto à sociedade mineira pelos bacharéis que se formavam, era a suprema afronta e ameaça que condicionava toda a disputa que termina com a eleição de Capanema para orador. Era uma politica essencialmente sem conteúdo; mas o estilo e a intensidade estavam bem presentes.

Bacharelandos de Direito, Belo Horizonte, 1924.

Formandos à esquerda: Carlos da Cunha Peixoto, Leopoldo de Souza Neto, Aguinaldo da Costa Pereira, Antonio Olinto Pereira, Afonso Dutra Nicácio, Camilo Mendes Pimentel, Rafael Rebelo Horta e João Utsch de Carvalho. À direita: Gastão de Oliveira Coimbra, Alencar Alexandrino de Faria, Francisco Negrão de Lima, Gustavo Capanema Filho, Gabriel Rezende Passos, Mário Casassanta, Abgar Renault

(Foto de Dopper e Martins), 1924.

A volta a Pitangui, como professor da Escola Normal, lhe dá a chance de entrar em contato com a reforma educacional iniciada por Francisco Campos em sua gestão como secretario do Interior do governo Antônio Carlos. Trabalha como advogado, viaja para Belo Horizonte e Rio de Janeiro quando pode, e prepara sua carreira política a partir da base, como vereador em sua cidade natal. Não é um começo entusiasmado: "Vou ao Rio amanhã," escreve para a mãe, de Belo Horizonte. "E depois voltarei de novo para Pitangui, onde me espera, além do mais, a maçada de ser vereador. É uma pilhéria dolorosa."(11)

Pilhéria ou não, dedica-se às suas funções com seriedade, tomando parte em comissões, dando pareceres jurídicos quando necessário, sem abandonar suas outras atividades. Participa também da politica estadual, e um discurso em homenagem a seu conterrâneo Francisco Campos, em 1929, já vaticina maiores vôos:
"Tive conhecimento da alta eloqüência e do rasgado pensamento que assinalaram os teus discursos de saudação ao Campos Gostei e fiquei satisfeito por verificar que andas cada vez mais distanciado de Locadieu; és real, e, portanto, mais forte. O destino de Locadieu é regulado por Maurois que arranjou um esquema engraçado para a desgraça; o teu destino é puramente o destino. Depois, a tua força não está apenas na tua inteligência nem na tua cultura; sempre esteve na tua persistência. Não veja em mim atitudes irônicas: sou de natural pouco agudo e prezo aos meus amigos. Mas, a tua persistência em Pitangui tem qualquer coisa de heróica, como aquelas assentadas valentes diante aos livros. E o que te libertará de Pitangui; tanto afrontarás a cidade que te tornarás superior a ela. Um dia ela deixará de existir em ti."(12)
Com a posse de Olegário Maciel no governo do Estado, em setembro de 1930, ele é convidado para chefe-de-gabinete do Presidente do Estado, levado provavelmente pelas mãos de Campos. Participa da Revolução de 1930 nesta posição, e é logo depois nomeado para o posto-chave de secretário do Interior de Minas Gerais.

2.No poder, em Minas

"Minha querida mãe," escreve em 28 de outubro de 1930, "um abraço. Me informaram que a senhora não sabia que nós fizemos uma revolução, uma formidável revolução, para consertar este Brasil. Foram três semanas de barulho grosso, de tiroteio pesado, de vitórias magníficas, de inquietações horríveis e de esperanças maravilhosas. Afinal, vencemos. Venceu o povo mineiro. Venceu o povo brasileiro. Estou aqui em perfeita e doce tranqüilidade. Talvez vá ao Rio. Adeus. Com um abraço de seu filho, Gustavo."(13)

Vôos altos necessitam bases seguras, e Capanema as prepara com cuidado. Em 12 de janeiro de 1931, a vida da família já está organizada:
Peço-lhe que me mande dizer com urgência onde está meu pai, pois o lugar dele já está arranjado. Ele deve ir morar em Pitangui, onde a senhora e ele deverão ter casa. O João e a Alice deverão instalar-se logo em Pitangui. O João já está contratado para professor da Escola Normal, devendo a nomeação dele para diretor sair nestes poucos dias. Meu pai irá para o cargo de escrivão da Coletoria Federal, tendo eu já arranjado um lugar para o Vital aqui em Belo Horizonte. O Corinto deverá submeter-se a rigoroso tratamento, para o que seria bom que consultasse um especialista daqui (...). Quero ver se arranjo para o José um lugar no Banco do Brasil, aqui na agência de Belo Horizonte (...). Seja como for, a nossa família ficar instalada em Pitangui. Lá é que deve estar o nosso centro. Eu quero muito a Pitangui e não desejo separar-me daquele povo. Além disto, tenho lá interesses políticos. É principalmente por isto que preciso ter em Pitangui um ponto de descanso, ou um centro de informação e de trabalho. Espero que tudo isso se fará logo. Até que se normalize a situação, peço-lhe que me comunique todas as suas necessidades, para eu arranjar jeito para afastá-las.(14)
Que fazia, na década de 1930, um secretário do Interior em Minas Gerais? Terminado seu ciclo de política mineira em 1933, e antes de assumir o Ministério da Educação no Rio de Janeiro, Capanema escreve um resumo de suas atividades nos intensos anos que panaram, com vistas, possivelmente, a uma obra maior que nunca se completou. "Os decretos de minha pasta eram coisas comuns," lembrava então; "pequenas aberturas de crédito, perdão, autorização de despesas, nomeações, aposentadorias, coisas assim."(15) O quadro que traça Carlos Drummond, na pequena biografia mencionada anteriormente, não é distinto:
A secretaria de estado que lhe confiou o velho presidente Olegário Maciel não oferecia grandes perspectivas de ação cultural. Não cuidava dos negócios do ensino. Seu conteúdo consistia em juízes, soldados e municípios. Nestes últimos, o campo de ação seria realmente enorme e sugestivo, mas o regime federativo com base na autonomia municipal, não obstante a revolução vitoriosa, sufocava ainda qualquer veleidade de influência profunda no organismo das comunas. O governo era um espectador graduado da vida municipal, comparecendo para aplaudir ou aprovar, mas sem os meios de ação eficazes para intervir. Os demais assuntos da secretaria - magistratura e policia - não convidavam à elaboração intelectual. Gustavo Capanema teve assim o privilégio de movimentar um aparelho governamental a que não correspondia nenhuma tarefa substancial e de conseguir movimentá-lo realizando uma obra-prima de inteligência aplicada ao governo.(16)
Esta tarefa sem substância era, sobretudo, politica. Ela consistia, essencialmente, em um jogo delicado de poder, que se realizava em duas frentes. Em nível nacional, o básico era manter os canais abertos e a lealdade ao novo governo federal, e utilizá-lo como ponto de apoio para consolidar a posição de poder dentro do estado. No nível estadual, tratava-se de fazer a operação inversa, ou seja, manter e consolidar o máximo de apoio das lideranças politicas regionais e locais, e utilizá-lo como capital politico para manter as boas graças do governo federal. A estratégia de sobrevivência da velha oligarquia mineira ante o ímpeto da revolução vitoriosa havia consistido em apoiar o lado vencedor e, assim, pela lealdade ao novo regime, tratar de preservar o estado dos ventos renovadores que o tenentismo triunfante ameaçava. Era necessário manter a lealdade ao novo regime antes que outros o fizessem, amaciar, tanto quanto possível, o impacto dos novos poderes que se acumulavam no Rio de Janeiro, sem alterar em maior profundidade as formas tradicionais de vida e poder politico do estado.

É possível que isto tenha sido feito de forma muito mais intuitiva - uma intuição quase que inata para a obtenção e preservação do poder - do que a partir de uma estratégia explicitamente concebida. Drummond, no texto que estamos utilizando, trata de explicar esta estratégia de maneira um tanto críptica, mas de toda forma clara:
De dezembro de 1930 a setembro de 1933, Gustavo Capanema conseguiu, quase sozinho, manter o contato entre Minas e o poder central. À primeira vista, parece pouco. É muito, se considerarmos as circunstâncias da época e o que esse contato veio a representar na evolução da vida nacional. Capanema arrostou as maiores incompreensões, inclusive por parte de amigos íntimos. (Como é trágico ter razão contra o amigo Intimo!). Minas Gerais era trabalhada por forças diversas, dentro e fora do seu território, e estas tendiam antes à desagregação do que à composição. Ao lado de agitadores malévolos, que queriam a desordem, havia homens de boa fé, repelindo o princípio de colaboração com o governo federal. Tudo conspirava por que Minas se desinteressasse da Revolução de Outubro e, desinteressando-se, entravasse o desenvolvimento natural dessa revolução.(17)
O arquivo Capanema mostra alguns aspectos deste trabalho. Três de novembro de 1930. Feita a revolução, ela ameaça devorar seus criadores. No palácio da Liberdade, em Belo Horizonte, Capanema anota os eventos daqueles dias: "Hoje aclaram-se os horizontes. A tempestade que ontem se armara contra Minas passou e nos resta apenas esse amargo inevitável de toda a decepção, mesmo a mais injustificada. A nossa decepção não foi porém injustificada. O gaúcho não andou bem com Minas, e sejam quais forem os acontecimentos futuros, que não se apague a lembrança dessa ferida e a lição dessa experiência."(18) As notas relatam negociações delicadas com Osvaldo Aranha a respeito da participação de Minas no novo governo, que terminam com a indicação de Francisco Campos para o novo ministério.

Logo em seguida, a questão a preocupar é a permanência de Olegário Maciel no governo do Estado na qualidade de presidente eleito (e como tal inamovível), e não como simples delegado de Vargas. Oito de novembro. Capanema escreve a Francisco Campos: "O Dr. Olegário entende que não deve ser considerado mero interventor do governo federal, sujeito a exoneração, como no projeto (de reorganização politica do país) se declara. É fora de dúvida que a reorganização dos Estados tem que ser feita é mesmo por Melo de interventores ou delegados do Governo Provisório, livremente demissíveis. Entende, porém, o Dr. Olegário, que tal providência não deve ser tomada em relação a Minas e ao Rio Grande, cujos governos, tendo promovido oficialmente a revolução, subsistem depois dela, com a mesma legítima autoridade de que foram investidos pelo povo, que os elegeu.(... ) Não se diga que a situação do país está inteiramente transformada e que a medida deve ser de caráter geral. Em Minas e Rio Grande a situação não se modificou, pois ali os chefes de governo foram os próprios chefes revolucionários, tendo procedido como representantes legítimos do povo, o que tudo lhes dá um caráter sem dúvida nenhuma excepcional. Por tudo isto, quer o Dr. Olegário que a sua situação não se modifique, permanecendo com as mesmas prerrogativas e direitos de presidente de Minas, seu chefe revolucionário.(19)

A fidelidade a Vargas, condição essencial para o sucesso de sua política, é exercida por Capanema de forma escrupulosa, desde os primeiros momentos no governo de Minas até o célebre discurso de 1954, quando Capanema, líder do governo no Congresso, sai em defesa de seu presidente à beira da deposição e do suicídio. No entanto, em um momento de frustração, Capanema lembra com amargura a figura do presidente, em seu primeiro contato pessoal: "A primeira vez que vi Getúlio: em companhia do Campos e do Lanari, no Catete, à noite. Não me lembro o dia. Mas foi em dezembro de 1930. Lanari falou de finanças. Eu não tinha assunto. Visita a Minas. Impressão penosa. Homem frio, inexpressivo; não achei nenhuma flama, nenhuma simpatia; sem ardor, sem luz; não inspirando confiança; homem impróprio para aquele momento criador; cheio de reticências, de silêncios, de ausência; olhando para cima, não olhando para a gente; um riso difícil, riso sem alegria, sem malicia, mas com maldade; um físico redondo, com pequena estatura, com um ventre dilatado, as pernas apertadas numas calças brancas curtas; sapatos de fantasia; sem gravidade, sem emoção; uma pronunciação estranha de gaúcho; enfim uma figura incapaz de seduzir, de incitar ao trabalho, de convocar ao sacrifício, de organizar uma nação apenas saída da fornalha revolucionária." A visita a Minas, em fevereiro de 1931, também é recordada por Capanema com hostilidade: "O Getúlio falou ao Olegário sobre a fundação da Legião, deve ter pedido que a fundasse. Não ouvi, mas soube depois. Diz-se que foi pedido de Campos. Teria ele querido a Legião? A divisão de Minas? Em seu discurso falou da união de Minas. Duplicidade? Hipocrisia?" Como hipocrisia terá sido, certamente, a aproximação de Vargas com a Igreja: "No dia 23, às 11 horas, Te Deum na São José. Fiquei perto do Getúlio. Getúlio, Olegário, Afrânio, Capanema. D. Cabral oficiou, João Rodrigues falou: apostet illum regnare. 1, Cr., XV, 25. Getúlio não ajoelhou. Protestante? Dizem que tem um filho chamado Lutero. Positivista, talvez. Talvez nada."(20)

É claro que esta já era a perspectiva de 1934, Capanema destituído da interventoria de Minas Gerais, que exercia interinamente desde a morte súbita de Olegário Maciel, substituído pelo inesperado Benedito Valadares e sem nenhuma idéia clara do lugar que lhe caberia no futuro governo. A nomeação para o Ministério da Educação e Saúde reataria a continuidade de sua carreira politica e lealdade a toda prova ao chefe de governo.

3. Capanema, Francisco Campos e a Legião de Outubro

Francisco Campos foi o mentor politico e intelectual de Capanema neste período. Campos havia sido secretário do Interior em Minas no governo Antônio Carlos, e nesta posição teve uma atuação importante nas articulações que colocaram Minas ao lado vencedor da Revolução de 30. Além disto, a pasta do Interior incluía a responsabilidade pela área de educação, e Campos foi responsável por uma série de iniciativas inovadoras nesta área, incluindo a realização da Segunda Conferência Nacional de Educação em Belo Horizonte, em 1928, assim como a vinda de alguns educadores europeus que trouxeram para o Estado uma filosofia pedagógica inovadora. Um dos primeiros postos de Capanema foi, exatamente, o de professor de psicologia infantil na Escola Normal de Pitangui, durante a gestão de Campos. É aí, sem dúvida, que se dá o primeiro contato de Capanema com as novas correntes de reforma educacional, da qual ele assumiria o papel principal anos mais tarde. (O governo Olegário Maciel cria uma secretaria da Educação independente, que fica assim fora da alçada de Capanema quando este assume a secretaria do Interior.)

Com a revolução, Campos vai para a esfera federal, como fiador da aliança entre Vargas e Olegário, deixando Capanema em seu lugar. É por isto natural que as viagens de Capanema ao Rio sejam geralmente para encontrar Campos, e com ele traçar as grandes estratégias. Nessa época, apesar da intensa atuação de Campos na área da educação, são os temas políticos que predominam, pelo menos do ponto de vista de Capanema.

A posição de representante do governo Olegário Maciel junto ao Governo Provisório não é, evidentemente, cômoda para Francisco Campos, que procura se identificar com os setores mais radicais do novo regime, e a partir daí construir sua própria base de sustentação em Minas Gerais, que independesse da velha e ainda intocada estrutura de apoio do Partido Republicano Mineiro. Isto era formulado em termos de uma ideologia que afirmava a necessidade de criar um governo forte, dotado de uma ideologia social bem definida, e que pudesse se livrar do peso morto da política oligárquica tradicional sem, no entanto, cair no que ele considerava serem as ilusões ultrapassadas da democracia liberal. Esta estratégia, ao ser traduzida para a realidade da política brasileira e suas bases de sustentação em Minas Gerais, tinha duas conseqüências. Uma era a necessidade de enfraquecer a política tradicional do estado, e substitui-la por uma estrutura politica própria, cujo principal instrumento seria a legião de Outubro. A outra era a de envolver a Igreja Católica como fonte de inspiração ideológica e legitimação politica para a nova ordem que se buscava estabelecer. A similaridade entre este projeto e os regimes fascistas e totalitários que começavam a se instalar na Europa nessa época não é, por certo, casual. Diversamente dos exemplos alemão e italiano, no entanto, o projeto de Francisco Campos buscava uma vinculação com a Igreja Católica que só seria tentada mais tarde em Portugal e, principalmente, na Espanha. Além disto, e apesar da legião de Outubro, os esforços de substituir as bases tradicionais de poder oligárquico não conseguiram chegar nunca às formas de mobilização radical que eram a marca registrada do nazi-fascismo nascente.

Em suas notas retrospectivas, Capanema revela como estava envolvido no esquema politico de Campos:
Minha primeira viagem ao Rio foi a 5 de dezembro, sexta-feira. Na Estação Pedro II o Campos esperava-me. Fui no seu automóvel, com ele, até Copacabana e fiquei hospedado em sua casa. No caminho, o Campos já tratou do assunto comigo: liquidar o Bernardes. Fiquei espantado, julguei isso um absurdo. Eu estimava o Bernardes. O plano inicial de Campos não era a fundação da Legião ou de outro partido em Minas. Era a reorganização da Comissão Executiva do PRM com a liquidação de Bernardes. Achei difícil e arriscado. Além de tudo, ingrato e injusto. O Campos objetava com os tenentes, o Getúlio, a salvação de Minas, os ideais revolucionários. Depois de vários dias de conversa, regressei. Regressei a 11 de dezembro, chegando a Belo Horizonte a 12, sexta. Vim disposto a falar ao Olegário. No fundo, vim do Rio disposto a auxiliar o Campos na trucidação do Bernardes.(21)
Os detalhes do jogo politico que se seguiu já são conhecidos, e não precisam ser repetidos aqui. A hostilidade a Artur Bernardes cresce progressivamente, a Legião de Outubro é criada em Minas com o objetivo de alterar suas bases, com a participação de lideres tradicionais de Minas em oposição a Bernardes, principalmente Antônio Carlos, e em certo momento (agosto de 1931)0 próprio governo Olegário Maciel vacila ante uma tentativa de deposição tramada desde o Rio de Janeiro. O conflito é contornado no início de 1932 pelo chamado "acordo mineiro", que dá a Bernardes o direito de indicar alguns nomes para o secretariado do Estado. O movimento constitucionalista de São Paulo consolida a cisão, que se transformará no confronto entre o velho PRM e o novo Partido Progressista, que domina as eleições para a Constituinte de 1934.(22)

O envolvimento de Capanema com a Legião foi feito a contragosto, com relutância. Recordando o início de 1931, Capanema escreve em suas notas retrospectivas que, em fevereiro, "o Campos já havia entregue ao Olegário um plano para a Legião: coisa vasta, com uma parte civil e outra militar. Osvaldo e Góis. Coisa cheia de bobagens. Não me lembro quando tais bases (...), mas vieram bem antes. O Osvaldo estava então com um prestigio extraordinário. Herói nacional. Foi com tal força que depois se atirou contra nós."(23)

De qualquer forma a linha de ação de Campos estava traçada, e não havia como fugir dela. "No dia seguinte, 25 de fevereiro, ia ter nova ocupação, novos motivos de inquietação: o manifesto da Legião. Foi escrito pelo Carlos, revisto por mim, emendado, acrescido. O Lanari só no dia 26 tomou conhecimento. Olegário não queria que eu assinasse o manifesto. Bernardes andava queixoso de mim, o Olegário não queria mais motivos de aborrecimento com ele. Foi o Campos que, a custo, conseguiu que minha assinatura saísse."(24)

O "Manifesto aos Mineiros", assinado por Francisco Campos, Gustavo Capanema e Amaro Lanari (então secretário das Finanças de Minas Gerais) é um documento de sete páginas, retórico, que descreve os males do Brasil antes de 1930, a participação de Minas na revolução e a necessidade de consolidá-la. O arquivo Capanema conserva a versão original, datilografada, redigida presumivelmente por Carlos Drummond, com emendas e correções feitas pelo punho de Capanema, dando-lhe a forma final. É significativo observar o que é suprimido e o que é acrescentado ao texto inicial: "Fizemos uma revolução de duplo e marcado caráter", dizia o texto inicial, "pugnando ao mesmo tempo pelo restabelecimento das franquias legais e pela recuperação de nossa economia, gravemente comprometida pelos que não souberam ou não quiseram enfrentar de ânimo claro os problemas práticos e urgentes do trabalho agrícola e industrial, do crédito e da produção cafeeira, do aproveitamento e circulação de nossa riqueza."(25) Esta expressão tão tímida de compromisso com um programa de recuperação econômica do país é suprimida, e em seu lugar, ao final do manifesto, Capanema dá sua própria síntese do que foi a revolução brasileira e ao que a Legião se propõe, ou seja, defender a vitória da revolução e realizar seus ideais. E explica:
Defender a vitória da revolução brasileira é combater contra todos os seus inimigos, que são de três categorias: inimigos oriundo: do velho regime (os governantes depostos, os aderentes hipócritas e os viciados e corruptos de toda espécie); inimigos existentes no seio da própria revolução (os revolucionários sem convicção, os revolucionários preguiçosos ou céticos e os revolucionários violentos); e inimigos de origem externa (todos os propagandistas e pregoeiros e apóstolos de doutrinas políticas exóticas e inadaptáveis à solução dos problemas brasileiros).
Realizar os ideais da revolução brasileira era desenvolver em busca deles uma dupla ação, a "ação política e a ação educativa". A ação política incluía, além do apoio ao governo e ao programa da Aliança Liberal, "organizar e mobilizar a opinião pública para que ela seja capaz de conhecer os problemas nacionais e de propor para eles as soluções adequadas e oportunas; e ser intermediária entre o povo e o governo, para estabelecer entre eles o necessário equilíbrio e harmonia." A ação educativa consistia, essencialmente, em "manter e fortalecer o espírito de unidade nacional e pregar e desenvolver os altos sentimentos e as grandes virtudes humanas:"(26)

Organizações de mobilização social no estilo da Legião de Outubro têm algumas características bem definidas. Elas não são, simplesmente, organizações governamentais, já que a participação em seus quadros é aparentemente voluntária, e o grau de envolvimento das pessoas é muito maior do que o de simples burocratas ou cidadãos no cumprimento de suas atividades rotineiras. Elas não são, no entanto, organizações da sociedade civil, já que dependem, no mínimo, da anuência de pessoas dotadas de poder político e da proximidade com a estrutura militar da sociedade. Nos regimes fascistas europeus, os grupos de mobilização - camisas pretas, camisas pardas - funcionavam como instrumento de vigilância e controle sobre a própria máquina administrativa e militar do governo, e de combate a tentativas de organização independente e competitiva por parte de outros grupos da sociedade civil.

Ocupando a secretaria do Interior, que controlava a policia do Estado, Capanema estava em posição privilegiada para tentar montar uma estrutura deste tipo. A experiência estrangeira não foi, evidentemente, ignorada. "Excelentíssimo senhor doutor", escreve a Capanema o representante italiano no Rio de Janeiro, V. Cerruti, em 1931, "tenho a honra de enviar-lhe a nota de expedição de uma caixa contendo alguns volumes relativos à legislação fascista, de modo que lhe seja possível ter um quadro completo da obra ingente cumprida pelo governo fascista em seus nove anos de existência. Mantenho ainda a promessa feita durante minha estada em Belo Horizonte de enviar-lhe cópia da Memoria Ilustrativa sulla Milizia Voluntaria por la sicurezza nazionale (Memória ilustrativa da Milícia Voluntária para a segurança nacional). Disponha livremente de mim para qualquer coisa em que lhe possa ser útil."(27)

A convocação para as atividades da Legião é feita pelo uso explicito da autoridade governamental. Em fevereiro de 1931, telegramas circulares são enviados aos líderes políticos e chefes locais em todo o estado, de maneira a não deixar dúvida que suas lealdades são requeridas. "Temos a satisfação comunicar-lhe que nesta data organizamos Legião de Outubro no estado de Minas Gerais, devendo ser publicado amanhã no órgão oficial o apelo que dirigimos ao povo mineiro no sentido de apoiá-la material e moralmente", começava o texto enviado ao coronel José Venâncio Augusto de Godói, de Além-Paraíba, idêntico aos enviados aos demais detentores de cargos públicos. Depois de descrever rapidamente as atividades da Legião, o telegrama terminava:
"Designamos V.S. para delegado da Legião nesse município, com incumbência de aí organizar núcleo legionário que represente o pensamento e aspirações do município. Seguirão instruções minuciosas. Pedimos sua resposta por telegrama. Saudações cordiais. (aa) Francisco Campos, ministro do Governo Provisório; Gustavo Capanema, secretário do Interior; Amaro Lanari, secretário das Finanças."(28)
Para lideres políticos sem responsabilidades administrativas diretas, telegrama mais curto era enviado pedindo apoio e colaboração: "Apelamos prezado amigo sentido colocar toda sua influência e prestigio a serviço da grande causa legionária de cuja rápida e vitoriosa organização depende a segurança, a estabilidade e o êxito das iniciativas do novo regime republicano."(29)

O projeto era ambicioso e incluía não só a substituição do tradicional PRM e sua liderança pela Legião, como também a organização de uma estrutura militar que respondesse, não ao governo do estado, mas à liderança da Legião. Em maio de 1931 o jornal A Batalha publica uma carta supostamente enviada a Francisco Campos por um seu correligionário, segundo o qual "a marcha da Legião vai indo às mil maravilhas...). O PRM vai desmoronando como um castelo de cartas. No dia da parada, que será grandiosa, o PRM exalará o último suspiro e será impossível ressuscitá-lo." Nesta carta há também referências à idéia de substituir a Força Pública no interior do estado por uma 'guarda cívica' que obedeceria ao chefe da Legião. Esta intenção provoca, naturalmente, reações entre os oficiais da Força Pública. Um manifesto anônimo, circulado entre eles, dá o tom:
Os bravos soldados, que galhardamente se bateram nas várias frentes mineiras pelo ideal da liberdade, serão abandonados, ao desamparo, nada valendo, para os homens que querem dominar o Estado, o sangue que generosamente derramaram (...). A formação de milícias fascistas, espalhadas pelos vários município: do estado, visa substituir a Força Pública de Minas. Para isto, muito embora não se paguem aos funcionários, nem aos fornecedores das repartições públicas, há dinheiro bastante para a enorme encomenda de armamento que está a chegar e é destinada à milícia fascista. O plano vai ser executado pela mesma forma pela qual pretenderam afastar de Minas os bons mineiros que lutaram pelo nosso progresso, ao lado de nossa gente (...). O presidente Olegário já não delibera. Há um Rasputin a seu lado fazendo a desgraça de Minas. Oficiais: Por Minas e pelo Brasil - Reagir enquanto é tempo.
O aspecto visual e simbólico deste tipo de movimento é importantíssimo, e Francisco Campos se preocupa com todos os detalhes. Em 28 de março de 1931 envia um telegrama a Capanema, que já dão texto de um outro telegrama a ser enviado aos chefes municipais da Legião convocando para uma grande parada legionária em Belo Horizonte, para o dia 21 de abril. Cada município deveria "enviar pelo menos vinte milicianos com o uniforme da milícia legionária, isto é, camisa cáqui e gorro do mesmo pano", e o telegrama informava, também, que "as estradas de ferro Central e Leopoldina concederão grande abatimento nas passagens". Em outra correspondência, Campos trata com Capanema a questão do hino da Legião e da filmagem do grande acontecimento: "O portador lhe entregará também o hino da Legião, cuja música foi feita pelo Souto, autor do hino João Pessoa. A letra não vale nada; a música, porém, me parece muito melhor do que a do hino feito aí. Seria o caso de adotá-la oficialmente como hino da Legião, tanto mais que está sendo gravada pela Casa Edison em milhares de discos. É indispensável que seja filmada a parada. Não há em Belo Horizonte quem filme bem. A Botelho Films pede cinco contos para a filmagem. É capaz, porém, de reduzir o preço. Consulte ao Lanari se posso contratar pelo menor preço possível."(30)

Apesar dessas intenções, o projeto da Legião já nasce debilitado pelo seu próprio processo de criação. A força propulsora dos movimentos fascistas europeus sempre foi a mobilização de uma pequena burguesia decadente, de uma classe média acuada e sem perspectivas, que encontrava nesse movimento um lugar onde dar vazão a sua: frustrações e seus desejos de participação. Em Minas, este componente social é ignorado ou inexistente, e os líderes convocados para chefiar a Legião nos municípios são seus chefes tradicionais de sempre. Para eles, aderir à Legião era simplesmente aderir mais uma vez ao governo. As antigas lealdades ao velho PRM são quebradas na medida do possível, prefeitos são substituídos quando necessários, mas a política mineira não se altera substancialmente, e o acordo mineiro restauraria, por algum tempo, o poder da velha geração.

A Legião de Outubro seria a precursora do Partido Progressista, fundado em 1933 por Olegário Maciel, e que comandaria a política de Minas até a Constituinte de 1934. "Da Legião de Outubro guardou-se, na memória dos políticos mineiros e de historiadores, uma lembrança tênue: somente os figurantes permaneceram e algumas referências pitorescas de seu comportamento na nova agremiação. Acreditamos, porém, que representou mais do que uma figuração: a Legião foi responsável por todo um movimento politico iniciado em Minas Gerais que acabou definitivamente com o predomínio do PRM no estado. Além disso, influenciou no processo de reorganização partidária do estado, que resultou na formação de um partido com características distintas das suas e das do Partido Republicano Mineiro. O Partido Progressista, como 'partido do interventor', guardará com o governo central uma relação de compromisso que o PRM não conhecera."(31)

Deste novo partido estava excluído Francisco Campos, marginalizado do jogo político nacional e do processo de conciliação e recomposição política que se inicia após a Revolução Constitucionalista de 1932. Seu rompimento com Capanema é pessoal e amargo, e ocorre na disputa dos votos de Pitangui, base política de ambos, para a Constituinte de 1934: "Capanema," escreve Campos, "você não tem o privilégio do serviço de investigação e vigilância. Estou inteiramente a par das providências tomadas por você em relação a Pitangui. Não estranho que você peca votos para o PP e peça votos contra mim. Está no seu direito. Nem lhe peco nenhum tratamento de favor. O que, porém, me surpreende é que você pretenda capitular de crime qualquer ato de nobreza da população de Pitangui para comigo." E, mais adiante: "Você intima Pitangui a me negar pão e água, como a um aventureiro de estrada. Você exige que eu não tenha entrada na casa paterna; que, nela e entre os meus, eu seja tratado como inimigo e como réprobo." O grande inimigo agora é Antônio Carlos, que havia sido um dos fiadores da Legião de Outubro. "O que mais me comove, porém, Capanema, é que você, valendo-se de sua situação ocasional, queira impor a Pitangui um ato de tamanha indignidade, como o de, em troca dos vinténs que você lhe pode dar, entregar ao Antônio Carlos a sua alma e o seu coração, considerando indigno de reprovação e de castigo aquilo, exatamente, que distingue uma sociedade de homens de um aglomeramento de animais (...) Você intima Pitangui ã ser ingrato, insensível e brutal. Você não lhe reconhece o direito de ter alma. Privando-o de alma, você terá dado à vingança de Antônio Carlos a mais completa satisfação." A carta termina no mesmo tom amargo: "Que inveja teria de você, se não fosse a pena que sinto de Pitangui e, particularmente, de sua mocidade e inteligência. Que dia não anuncia esta madrugada? Do amigo e admirador, Francisco Campos."(32)

A resposta de Capanema, de 29 de abril de 1933, é formal e conciliadora: "Doutor Campos," diz ela, "a sua carta me acusa de uma vilania. Não a cometi. (...) Não trabalhei direta ou indiretamente para que as portas do lar pitanguiense lhe fossem fechadas ou para que os votos do reconhecimento, da amizade ou da admiração lhe fossem negados na sua, na nossa terra. Muito menos pronunciei uma palavra que significasse desapreço pela sua admirável figura, ou desrespeito pelos seus preclaros antepassados. O que fiz e estou fazendo, com firmeza e claridade, é dizer aos seus conterrâneos, correligionário: do Partido Progressista - de que sou um dos chefes - que a orientação que lhes dou é a de votarem integralmente na chapa desse mesmo partido. (...) Estou cumprindo o meu dever, o qual é ainda mais belo porque é mais duro de cumprir e porque contraria os impulsos do coração. O senhor está envenenado pela intriga e exacerbado pela paixão. E pena que um homem de seu gênio, talhado para conduzir uma geração inteira de moços de ação e de cultura, não seja capaz da apolínea serenidade de um verdadeiro homem de Estado."(33)

De fato, a aventura da Legião estava terminada, os tempos eram outros, e a Campos só resta, pelo menos no momento, a indignação e a ira. Não perde, porém, a lucidez. Sua candidatura à Constituinte é mantida até o último momento e defendida em um documento denominado "Uma análise enérgica do momento político, cuja publicação a censura impediu". Nele, Campos coloca o dedo no aspecto crucial do estilo político que passaria a dominar a política mineira a partir de então, a renúncia à independência e a um projeto político próprio em troca das benesses do poder:
Até hoje, onde e sobre que problema se ouviu a voz oficial de Minas? Qual o seu pensamento em tudo quanto se tem deliberado em todas as questões, sejam de ordem politica, sejam de ordem econômica e financeira? Qual a contribuição oficial de Minas nos debates oficiais relativos à reconstrução das nossas instituições políticas? As suas exigências, os seus interesses, as suas tendências, as suas opiniões, que expressão já encontraram nos conciliábulos e nas combinações de que, entre os responsáveis pelo governo e pela direção do Brasil, têm sido objeto os rumos a se imprimirem nos negócios nacionais? A todas essas cogitações têm estado ausentes o governo de Minas e o seu partido. Minas não se interessa por essas vagas abstrações; não será por questões de idéias, de princípios e de doutrinas que Minas há de mover-se dos seus cômodos. O que aquele governo reclama é o que costuma reclamar uma prefeitura - nomeações e demissões de coletores, agentes fiscais e inspetores de ensino. Eis o seu quinhão e os sinais de seu prestígio. A prefeitura de Minas não tem outras aspirações a satisfazer. Talvez a de Patos seja mais exigentes nas suas reivindicações...(34)
Uma amostra, sem dúvida, das grandes diferenças entre Capanema e seu mentor de início de carreira. Campos foi, sempre, um ideólogo, no sentido de que toda a sua atuação politica se fazia a partir de determinadas idéias e concepções que lhe pareciam mais apropriadas para a época e para o jogo político no qual se envolvia. Capanema, sem deixar de ser também um homem de idéias, parecia mover-se muito mais pelas contingências do dia-a-dia, em uma estratégia de conciliação, de conservação e acúmulo de poder que, no final, se mostraria bastante realista e efetiva, ainda que acarretasse uma perda de autonomia e independência.

4. O pacto com a Igreja

Se a estratégia de mobilização politica de Campos não teve resultados imediatos, sua outra estratégia, a de estabelecimento de um pacto com a Igreja, parece ter tido permanência e repercussões muito mais profundas. A Igreja Católica deveria oferecer ao novo regime uma ideologia que lhe desse substância e conteúdo moral, sem os quais, intuía Campos, ele não conseguiria se consolidar. Não importa, aqui, a convicção religiosa pessoal de Campos, mas o papel politico e instrumental que lhe percebia para a Igreja em seu projeto politico.

Este papel fica bastante explicito na carta enviada por Campos, já agora ministro da Educação, a Amaro Lanari em março de 1931.(35) Nela, era enfatizada a necessidade de "pedir à Igreja, não somente inspiração, mas, também, modelos e quadros de disciplina e ordem espiritual". Nesta carta, Campos faz um pequeno histórico de sua atuação pregressa a favor da Igreja, lembrando que "antes de proposto o projeto de reforma constitucional em larga entrevista a A Noite e a O Jornal, levantei a questão das relações entre a Igreja e o Estado no Brasil, defendendo o ponto de vista de que a Constituição deveria reconhecer a religião católica como a da maioria dos brasileiros e, portanto, tirar a ideologia política brasileira desse reconhecimento os corolários implícitos [sic]. ... . ) O meu ponto de vista transformou-se nas chamadas emendas religiosas, das quais fui o autor espiritual e que apoiei na Câmara dos Deputados. Mais tarde, sendo eu secretário do Interior do governo Antônio Carlos, foi facultado o ensino religioso nas escolas primárias do Estado." A seguir Campos lista três itens que, segundo ele, deveriam fazer parte do programa da Legião e que atendiam, evidentemente, a reivindicações da Igreja: "O reconhecimento de efetivos civis às sanções aplicadas pela Igreja aos sacerdotes do culto católico; (...) a sanção civil para o casamento religioso, não somente por motivos religiosos, como também por motivos de ordem civil e social, pois a maioria dos matrimônios no Brasil é celebrada na Igreja"; e, finalmente, "o ensino facultativo da religião nos estabelecimentos de ensino primário e secundário."

O pacto ganha forma na carta que Campos envia ao presidente Vargas em abril do mesmo ano, acompanhando a proposta de introdução do ensino religioso facultativo nas escolas públicas de todo o país, e tendo que vencer, para isto, a resistência tanto da tradição positivista quanto de grupos protestantes, principalmente do Sul do país:
Permito-me acentuar a grande importância que terá para o governo um ato da natureza do que proponho a V. Excia. Neste instante de tamanhas dificuldades, em que é absolutamente indispensável recorrer ao concurso de todas as forças materiais e morais, o decreto, Se aprovado por V. Excia, determinará a mobilização de toda a Igreja Católica ao lado do governo, empenhando as forças católicas, de modo manifesto e declarado, toda a sua valiosa e incomparável influência no sentido de apoiar o governo, pondo a serviço deste um movimento de opinião de caráter absolutamente nacional.
Assinando o decreto, prossegue Campos, "terá V. Excia. praticado talvez o ato de maior alcance politico do seu governo, sem contar com os benefícios que de sua aplicação decorrerão para a educação da juventude brasileira. (...) Pode estar certo", conclui, evidentemente com conhecimento de causa, "que a Igreja Católica saberá agradecer a V. Excia. esse ato, que não representa para ninguém limitação à liberdade, antes uma importante garantia à liberdade de consciências e de crenças religiosas."(36)

É dessa época, sem dúvida, que datam os contatos do grupo mineiro do qual Capanema fazia parte com Alceu Amoroso Lima, líder leigo do movimento católico que havia substituído a Jackson de Figueiredo na direção do Centro D. Vital e da revista A Ordem após o seu falecimento, em outubro de 1928.(37) Esta vinculação é clara na carta que Alceu envia a Mário Casassanta em 1932, a propósito de seu livro Razões de Minas, que começa, significativamente, com uma crítica indireta a Campos:
"Inquietou-me um pouco o 'panteísmo' goethiano do prefácio, esse primado da ação sobre o ato, que é um dos pecados mais graves do 'mobilismo' contemporâneo. Creio que uma orientação fascista, como teve o movimento legionário em boa hora iniciado pelo Capanema, pelo Campos, por você, pelos novos mineiros, só pode ser útil a Minas e ao Brasil, se mantiver o 'primado da inteligência' como Melo de defesa da supremacia da Fé. De outro modo, através do hegelianismo, do primado da ação, continuaremos apenas no evolucionismo, no relativismo que provocam o ceticismo e que uma nacionalidade como a nossa, sem estrutura certa, sem ideais definidos, sem unidade geográfica e sem critério político, poderá ser o nosso desastre definitivo." E mais tarde, referindo-se ao movimento constitucionalista de São Paulo em 1932: "Quanto aos ideais, estavam tão errados os de 30 como os de 32: o liberalismo democrático, a 'pureza' dos princípios constitucionais de 91, como queria a Aliança Liberal ou como hoje quer São Paulo. Portanto: afirmação de varonilidade vital e de ilusão ideológica em 30 e em 32. Hoje São Paulo será provavelmente vencido. Qual o resultado desse desfecho diverso em face de premissas idênticas? É o que eu procurei nos fatos e nos livros como o seu, de espíritos capazes de ver o fundo dos acontecimentos."(38)
A importância desta carta é que ela já define, desde o inicio, os termos nos quais a Igreja, na perspectiva de Alceu Amoroso Lima, via a colaboração com o novo regime e com o projeto político de Francisco Campos. Havia identidade de pontos de vista quanto à falência do regime liberal, e também concordância, evidentemente, quanto à importância dos valores religiosos como fundamento ideológico para a consolidação moral do país. Mas havia, também, uma divergência profunda. Apesar de considerar "útil" a orientação fascista do movimento iniciado por Campos, Alceu deixa clara sua divergência profunda com um dos princípios básicos do fascismo e do pensamento politico de Francisco Campos, que é a crença na supremacia da ação e da vontade sobre o uso da razão. Pensador católico, Alceu Amoroso Lima não se afasta da idéia clássica de que é possível estabelecer uma ordem social de base moral erigida de acordo com os princípios da filosofia racional, cujas conclusões coincidirão, necessariamente, com as verdades reveladas da religião cristã. É esta racionalidade que permitiria sair do relativismo, do ceticismo, da falta de critério. É ela que permitiria substituir a debilidade de princípios que Alceu via no liberalismo democrático por uma ordem social fundada em princípios cristãos bem definidos. Para Francisco Campos, no entanto, os princípios cristãos pareciam ser, principalmente, um instrumento de mobilização política, e não um valor em si. Isto talvez explique por que, apesar da aproximação inicial, o relacionamento da Igreja Católica com o tipo de política preconizado por Francisco Campos jamais se tenha consumado completamente.

5. De Minas para o Rio

Em 26 de julho de 1934 Gustavo Capanema é empossado no Ministério da Educação e Saúde, em substituição a Washington Pires, que havia sucedido a Francisco Campos em setembro de 1932.0 arquivo pessoal de Capanema é particularmente omisso em relação às negociações políticas que sem dúvida precederam a sua escolha. Não existem documentos que comprovem, por exemplo, a idéia de que sua nomeação foi pelo menos em parte uma compensação a Minas Gerais, e particularmente ao grupo mais próximo a Olegário Maciel, que apostara em Capanema para sucedê-lo na presidência do Estado, e fora surpreendido pela nomeação inesperada de Benedito Valadares, tirado, como então se dizia, "do bolso do colete" do presidente. É bastante razoável, contudo, acreditar que isto tenha tido alguma influência em sua nomeação.

Mais significativas, no entanto, são as evidências que sugerem que Capanema assumiu o Ministério da Educação e Saúde como parte do acordo geral que então se estabelecera entre a Igreja e o regime de Vargas, proposto anos antes por Francisco Campos. A parte visível deste acordo foi a aprovação, pela Assembléia Constituinte de 1934, das chamadas "emendas religiosas". A parte não dita, mas certamente de conseqüências mais profundas, foi a entrega do Ministério da Educação a Capanema, como homem de confiança da Igreja e encarregado de levar à frente seu projeto educacional e pedagógico, tal como era expresso através de seu representante leigo mais autorizado, Alceu Amoroso Lima.

Não há nada no passado do ministro que evidenciasse uma militância religiosa pessoal; ao contrário, sua história anterior o aproximava das correntes mais agnósticas da intelectualidade modernista mineira. Sua aproximação com a Igreja parece explicar-se principalmente por fatores de ordem politica ou, mais precisam ente, pelo fato de Capanema ter surgido na vida pública seguindo as pegadas de Francisco Campos. Mas se Campos tinha em mente um projeto politico ambicioso, do qual a Igreja seria uma peca, Capanema, ao contrário, se valeria do apoio da Igreja para chegar ao ministério, e a ele se limitaria, tratando de dar cumprimento ao mandato que havia recebido.

A veracidade desta interpretação do sentido da entrada de Gustavo Capanema no Ministério da Educação e Saúde tornar-se-á evidente na medida em que os diversos aspectos de sua atuação nos anos seguintes forem sendo examinados. Desde o início, no entanto, é inequívoca a influência de Alceu Amoroso Lima em sua designação. Em 1934, perdida a chance da interventoria em Minas, é a Alceu Amoroso Lima que Capanema se dirige, buscando um caminho de volta à vida política. A princípio, pelo menos, as perspectivas não são alentadoras. Desde o Rio de Janeiro, escreve-lhe Alceu:

Infelizmente, nada de novo posso comunicar-lhe sobre o assunto de que aqui falamos antes de sua partida. O Melo oferece grandes dificuldades por estarem ocupadas todas as posições. Creio que cm Belo Horizonte será mais fácil o prosseguimento de sua tarefa de advogado, à espera de dias melhores. Continuo, entretanto, atento, e à mínima oportunidade lhe comunicarei o que houver. Conversei, aliás, com o Negrão de Lima, que me comunicou já ter você recomeçado a advogar. (...) A situação politica continua delicada e envolta em uma atmosfera de grandes apreensões. Tudo é possível em um momento como este, uma qualquer alteração da ordem seria agora um desastre para todo o Brasil. Continuo em grande atividade para encaminhar as emendas religiosas que, espero em Deus, ver vitoriosas, para bem de todo o povo brasileiro.(39)

Em abril, a situação ainda é difícil, e o apoio moral de Alceu Amoroso Lima é certamente importante para um político no ostracismo: "Não é sem sacrifícios que se consegue a autoridade para conduzir os povos e é na adversidade que se forjam os caracteres chamados a essas difíceis posições de mando. O momento que você está atravessando corresponde ao da adolescência, isto é, aquele em que mais facilmente somos vítimas das paixões e em que tudo o que fazemos marca para toda a vida Você teve a infância de sua vida politica coberta de rosas. Chegaram agora os espinhos, e você provará se pode passar além, vencendo as circunstâncias como anteriormente fora por elas conduzido. Por isso digo que o momento é o mais delicado de sua vida de homem público. Deus o ilumine e ampare."

Empossado no ministério, Capanema teria cm Alceu Amoroso Lima seu principal conselheiro, que indicaria nomes, vetaria outros, proporia leis e trataria de dar conteúdo às principais iniciativas do ministro. A lealdade de Capanema a seu mentor se manteria tanto quanto possível inalterada nos próximos onze anos de ministério. "Tudo que combinei com você está na minha memória", escreveria Capanema a Alceu anos mais tarde, a propósito da Faculdade Nacional de Filosofia, "e nada deixará de ser cumprido. (...) O governo é coisa constituída de tal natureza que exige que a gente adote a todo o momento um modo especial de agir, a fim de que o objetivo desejado e previsto se atinja. É a tal história de andar direito por linhas tortas, processo que, por ser divino, é também próprio da arte humana de governar."(40)

Não existem evidências de que Getúlio Vargas tenha mantido sua adesão ao pacto com a mesma fidelidade que seu ministro. A área de educação e cultura não parece ter sido central entre as preocupações quotidianas do presidente, e isto aumentava, sem dúvida, a liberdade de ação do ministro, ainda que restringisse um pouco o seu acesso. Em alguns casos - como nos episódios do Estatuto da Família e da disputa com o Ministério do Trabalho sobre o controle do ensino industrial, que serão vistos mais adiante - fica claro que a ação do titular da educação tinha seus limites, e que os princípios éticos e pedagógicos por ele defendidos eram vistos com ceticismo no palácio. Não há dúvida, no entanto, que Vargas não tinha nenhum interesse em alienar o apoio da Igreja, desde que ela não cobrasse um preço muito além das emendas religiosas.

A Constituição de 1934 incorpora essas emendas e dá ao novo ministro ampla margem de ação. Segundo ela, pelo seu artigo 150, caberia à União fixar o Plano Nacional de Educação para todos os graus e ramos de ensino, comuns e especializados; a coordenação e fiscalização da execução do plano em todo o território do país; e a organização do ensino secundário e superior nos territórios e no Distrito Federal. Além disto, lhe cabia exercer "ação supletiva onde se faça necessária pela deficiência de iniciativa e de recursos." A liberdade de ensino é reconhecida como principio geral, mas "observadas as prescrições da legislação federal e estadual." A definição desse plano e o estabelecimento de um sistema nacional de coordenação e execução dominariam as atividades do ministério nos anos seguintes. No entanto, não era uma tarefa fácil nem isoladas a questão educacional era, naqueles anos, tema altamente politizado, que atraía os melhores talentos e provocava os maiores conflitos.


Notas

1. Carlos Drummond de Andrade. "Experiência de um intelectual no poder". (cópia de uma crônica de Drummond enviada a Capanema por José Gomes Talarico, em 25 de abril de 1941.)

2. Na lembrança de Pedro Nava, a politica não era um objetivo na vida do jovem Capanema. "Ao contrário disto, ele foi sempre, como seus companheiros, um moço irreverente, idealista, simples, despreocupado de qualquer carreirismo e mais dado às letras e à cultura que propriamente à politica. Esta sucedeu-lhe na vida como um acaso e nela se viu transformado no maior homem que já passou pelo Ministério da Educação. Nós, seus companheiros, e que guardamos secreta mágoa da politica que nos roubou - quem sabe? - um grande ensaísta, um grande crítico de literatura e arte, talvez um prosador, talvez um poeta. (Comunicação pessoal a Helena Bomeny, em 21 de janeiro de 1983.)

3. Não é isto que surge, no entanto, de uma análise independente da atuação da Secretaria do Interior no período onde abundam as queixas quanto ao uso arbitrário da força à disposição dessa secretaria para a consecução de seus objetivos. Ver: Helena Maria Bousquet Bomeny, "A estratégia da conciliação: Minas Gerais e a abertura politica dos anos 30". Em: Ângela Maria de Castro Gomes et alii. Regionalismo e centralização política - Partidos e Constituinte nos anos trinta. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980.

4. Carlos Drummond de Andrade. "Experiência de um intelectual no poder , op. cit.

5. Carlos Drummond de Andrade. "Capanema faz falta? Enorme". Jornal do Brasil, 7 de dezembro de 1978.

6. Carlos Drummond de Andrade. "Experiência de "um intelectual no poder", op. cit. A dependência dos intelectuais da época, particularmente os mineiros, em relação ao governo é bem documentada em: Sérgio Miceli, Intelectualidade e classe dirigente no Brasil (1920-1945). Sao Paulo, Difel, 1979.

7. Gabriel Passos. "Infância de Capanema". Rio de Janeiro, dezembro 1940.

8. Carta de Capanema ao pai, 6 de novembro de 1916. Arquivo Gustavo Capanema, série Infância de Capanema, em fase de organização.

9. Carta de Capanema ao pai, 1923. Arquivo Gustavo Capanema, série Infância de Capanema, em fase de organização

10. Carta de Gabriel Passos a Capanema, 11 de abril de 1924. Arquivo Gustavo Capanema, série Infância de Capanema, em fase de organização.

11. Carta de Capanema à mãe, 2 de abril de 1927. Arquivo Gustavo Capanema, série Infância de Capanema, em fase de organização

12. Carta de Gabriel Passos a Capanema, 28 de março de 1929. Arquivo Gustavo Capanema, série Infância de Capanema, em fase de organização

13. Carta de Capanema à mãe, 28 de outubro de 1930. Arquivo Gustavo Capanema, série Infância de Capanema, em fase de organização.

14. Carta de Capanema à mãe, 12 de janeiro de 1931. Arquivo Gustavo Capanema, série Infância de Capanema, em fase de organização. 15. Apontamentos de Gustavo Capanema, s.d. GC/Capanema, G. 00.00.00/2, série pi.

15. Apontamentos de Gustavo Capanema, s.d. GC/Capanema, G. 00.00.00/2, série pi.

16. Carlos Drummond de Andrade. "Experiência de um intelectual no poder", op. cit.

17. Idem, ibidem.

18. Apontamentos de Gustavo Capanema, s.d., GC/Capanema, G. 00.00.00/2, série pi.

19. Carta de Capanema a Francisco Campos, 8 de novembro de 1930. GC 30.11.03, doc. 2, série e.

20. Apontamentos de Gustavo Capanema, s.d. GC/Capanema, G. 00.00.00/2, série pi.

21. Idem, ibidem.

22. Ver Helena Maria Bousquet Bomeny, op. cit.

23. Apontamentos de Gustavo Capanema, Ld., GC/Capanema, G. 00.00.00/2, série pi.

24. Idem, ibidem.

25. Manifesto da Legião de Outubro Mineira (datilografado), datado de 26 de fevereiro de 1931. GC LL.M-A. 31.02.26, série pi.

26. Idem, ibidem.

27. Carta de V Cerruti a Capanema, 28 de agosto de 1931. GC/Cerruti, V., doc. 47, série b.

28. Telegrama circular de Francisco Campos, Capanema e Amaro Lanari ao José Venâncio Augusto de Godói. Fevereiro de 1931. Arquivo Gustavo Capanema.

29. Idem a líderes políticos.

30. Carta de Francisco Campos a Capanema. GC 31.02.26, doc. 66, série e. Outra carta mostra, ainda, que o filme com 540 metros acabou ficando por 5.400 mil-réis. GC 31.02.26, doc. 64, série e. Ver ainda: A Batalha de 14 de maio de 1931; e, também, A Legião mineira e seus condenáveis propósitos," GC 31.02.26-17, série e. Finalmente, GC 31.02.26, série e.

31. Helena Maria Bousquet Bomeny, op. cit., p. 166-7.

32. Carta de Francisco Campos a Capanema, s.d. (1933?). GC/Campos, F., doc. 6, série b.

33. Carta de Capanema a Francisco Campo:, 29 de abril de 1933. GC/Campos, F-A, doc. 7, série b.

34. Francisco Campos. "Uma análise enérgica do momento politico cuja publicação a censura impediu". (Panfleto). GC 33.03.08-A, pasta 1, doc. 29, série e.

35. Carta de Francisco Campos a Amaro Lanari, 4 de março de 1931. GC 31.02.26-4, série e.

36. Carta de Francisco Campos a Vargas, 18 de abril de 1931. Arquivo Getúlio Vargas, GV 31.04.18/1.

37. Sobre o Centro D. Vital, ver: Tânia Salem. "Do Centro D. Vital & Universidade Católica." Em: Simon Schwartzman (org.). Universidades e instituições científicas no Rio de Janeiro. Brasilia, CNPq, 1982, pp. 97-136. E, ainda, Francisco Iglésias, "Estudos sobre o pensamento de Jackson de Figueiredo". Em: Francisco Iglésias. História e ideologia. São Paulo, Perspectiva, 1971.

38. Carta de Alceu Amoroso Lima a Mário Casassanta, 9 de setembro de 1932. GC/ Casassanta, M-A, doc. 98, série b.

39. Carta de Alceu Amoroso Lima a Gustavo Capanema, 5 de marco de 1934, GC/Lima, A, doc. 8, série b.

40. Carta de Gustavo Capanema a Alceu Amoroso Lima, 21 de julho de 1939. GC 36.0.18, pasta IV, doc. 15, série g.