SIMON SCHWARTZMAN, HELENA MARIA BOUSQUET BOMENY, VANDA MARIA RIBEIRO COSTA
1ª edição: Editora da Universidade de São Paulo e Editora Paz e Terra, 1984 - 2ª edição, Fundação Getúio Vargas e Editora Paz e Terra, 2000.Estive refletindo bastante estes dias e percebi definitivamente que não poderia aceitar o cargo de dirigir a Enciclopédia, no Instituto do Livro. As razões que tenho para isso são as mesmas que já lhe dei e a que você respondeu. Não pude verbalmente insistir nelas porque tenho uma espécie de defeito de alma que me põe sempre demasiadamente subalterno diante das pessoas altamente colocadas. Por mais amizade que lhe tenha e liberdade que tome consigo, sempre é certo que diante de você não esqueço nunca o ministro, que me assusta, me diminui e me subalterniza. Isto, aliás, me deixa danado de raiva e esta é a razão por que fujo sempre das altas personalidades. Por carta e de longe, posso me explicar com menos propensão ao consentimento.Usando a distancias, Mário aproveita para protestar contra o fechamento da Universidade do Distrito Federal, por decisão de Capanema:
Não pude me curvar ás razões dadas por você para isso: lastimo dolorosamente que se tenha apagado o único lugar de ensino mais livre, mais moderno, mais pesquisador que nos sobrava no Brasil, depois do que fizeram com a Faculdade de Filosofia e Letras de São Paulo. Esse espírito, mesmo conservados os atuais professores, não conseguirá reviver na Universidade do Brasil, que a liberdade é frágil, foge das pompas, dos pomposos e das pesadas burocracias.(7)A recusa de Mário de Andrade de trabalhar na Enciclopédia tem razões específicas, que vão desde divergências quanto à própria concepção do projeto até a existência de pessoas que teriam que ser deslocadas caso ele assumisse o posto. E termina a carta:
Tudo isso está perfeitamente certo, mas nos separa uma distância irredutível de pontos de vista. As suas razões são razões de ministro, as minhas são razões de homem. Você decide com o áspero olho público, mas eu resolvo com o mais manso olhar de minha humanidade.(8)A partir daí, só lhe cabem pequenos trabalhos e uma situação incerta, que Mário de Andrade aceita por falta de alternativas, com grande custo pessoal. Em junho de 1939, Mário de Andrade trabalha precariamente para o Instituto Nacional do Livro, e escreve a Capanema pedindo que lhe paguem pelo que produziu. A situação é desesperadora:
"(...) venho pedir que me faça pagar isto imediatamente, e por outra via possível aí do ministério, pois estou numa situação insustentável, crivado de dívidas ridículas, sem cara mais para me apresentar a certos amigos, que positivamente não têm a obrigação de me sustentar. Felizmente não estou acostumado, em quarenta e cinco anos de vida, a viver de expedientes e situação penosa. O resultado é um desespero, uma inquietação, uma desmoralização interior que não mereço, e a que, espero, o ministério não tem razão para me obrigar."Nessa época, Mário de Andrade aguardava uma nomeação prometida pelo ministro, que, entretanto, jamais se corporifica: "Muito mais agradável para mim será trabalhar com você, no Instituto do Livro, mas se não é possível, suplico mais este favor a você de me dizer francamente o que há, pra que eu me arranje."(9) Mário de Andrade, no entanto, jamais "se arranjaria" de forma satisfatória, e terminaria sua vida, enfermo e psicologicamente desgastado, alguns anos após.
"Meu caro ministro e amigo," diz ele. "Às 5 horas da tarde, subindo no elevador do ministério, e cruzando com colegas do gabinete que desciam para assistir à conferência do Alceu, fiz um rápido exame de consciência e verifiquei que eu não poderia fazer o mesmo, ou antes, que eu não devia fazer o mesmo. Uma outra conclusão, logo, se impôs: não podendo participar de um ato público, promovido pela autoridade a que sirvo, e que visava afirmar, mais do que uma orientação doutrinária, um programa de ação do governo, eu não só deixava de servir a essa autoridade como lhe criava uma situação desagradável. É verdade que minha colaboração foi sempre prestada ao amigo (e só este, de resto, lhe perdoaria as impertinências de que costuma revestir-se) e não propriamente ao ministro nem ao governo, mas seria impossível dissociar essa entidade e, se eu o conseguisse, isto poderia servir de escusa para mim, mas não beneficiaria o ministro. É verdade, ainda, que não tenho posição à esquerda, senão apenas sinto por ela uma viva inclinação intelectual, de par com o desencanto que me inspira o espetáculo do meu país. Isto não impede, antes justifica que eu me considere absolutamente fora da direita e alheio a seus interesses, crenças e definições. E aí está a razão por que me julguei impossibilitado de ouvir o meu amigo pessoal Alceu (...). Minha presença na conferência de hoje seria mais, talvez, do que silenciar inclinações e sentimentos. Poderia ser tida como repúdio a esses sentimentos e inclinações. Por isto não fui ao Instituto."Drummond teme que sua atitude possa ser interpretada de forma prejudicial a Capanema, e por isto prefere se afastar:
"(...) daí esta carta, que tem o mais razoável dos propósitos: o de não permitir que, para não magoar o amigo, você ponha em risco a sua situação política e, mesmo, a sua posição moral em face ao governo. O amigo está intacto e continua a desejar-lhe bem. Dispensado o diretor de gabinete (e que irritante diretor de gabinete tem sido o seu), você conservará o amigo e afetuoso, que o abraça fraternalmente, Carlos."(10)A amizade prevaleceria, e a dispensa não seria concedida. Drummond continuaria, até o final do Estado Novo, a servir de ponte e filtro nos contatos entre a cultura brasileira e o ministério Capanema. Ambos, cada qual a seu estilo e a partir de motivações tão diferentes, teriam enorme responsabilidade sobre os caminhos contraditórios, ás vezes fecundos e freqüentemente mistificados que a educação e a cultura brasileira assumiriam nas décadas seguintes.
Nada tenho contra a pessoa do Dr. Azevedo, cuja inteligência e cujas qualidades técnicas muito admiro. Ele é hoje, porém, uma 'bandeira'. Suas idéias são conhecidas, seu programa de educação é público e notório. Sua nomeação seria, por parte do governo, uma opção ou uma confusão. E tudo isso, eu teria que dizer de público (...). Como prezo muito as posições definidas e já dei, há muito, a conhecer qual a minha atitude, em matéria pedagógica, não me seria possível continuar a trazer, ao Ministério da Educação, a pequena mas desinteressada colaboração que até hoje lhe tenho dado, na hora grandiosa que você está empreendendo nesses domínios, caso se confirmasse essa nomeação, a meu ver errada e inoportuna.(11)Se Alceu veta Fernando de Azevedo, muitos nomes parecem em suas cartas, como recomendados a postos de importância na área educacional: Guilherme de Azevedo Ribeiro ("latinista emérito, elemento de 1a. ordem"); J. A. de Sousa Viana ("mineiro. Modestíssimo. Cabeça sólida. Enorme cultura científica"); Everardo Backheuser ("presidente da Confederação Católica Brasileira de Educação (...). Grande experiência"); Euryalo Canabrava ("grande cultura. Elemento à impulsionar"); Raul Leitão da Cunha ("grande valor moral e intelectual. Extrema independência"); Leonídio Ribeiro; Hamilton Nogueira ("moral irrepreensível; pessoa de absoluta confiança"); José Burle de Figueiredo ("excelente juiz; muito prestígio"); Isaías Alves ("ex-diretor de instrução municipal na Bahia. Perseguido, no Rio, pelo Anísio, por ter se oposto a seus sectarismos"); Artur Gaspar Viana ("inspetor escolar no Rio (...). Pessoa de confiança"); Wagner Antunes Dutra ("meu secretário particular (...). Alma puríssima e auxiliar precioso, como conselheiro diplomata (...). Observador. Oficial de gabinete ideal. Absoluta confiança"; Álvaro Vieira Pinto ("professor de biologia e filosofia. Moral ótima. Rapaz digno e paupérrimo").(12)
A música é universalmente conhecida como a coletivizadora-mor entre as artes. Só o teatro se lhe aproxima como função pragmática. É uma questão especialmente de ritmo, mas este por si não tem tamanho poder como quando auxiliado pelo som das melodias. A maior prova deste poder coletivizador e cívico da música está em que, dentre todas as artes, ela é a única que se imiscui no trabalho, Em todas as partes do mundo canta-se durante o trabalho, canções de remar, de colheita, de fiar etc., etc. É também a música que entra nos trabalhos militares da guerra. Pelo menos até este se tornar mecânico. Os hinários de religião, política, de civismo.(26)Villa-Lobos também elabora seu projeto, e não esconde a certeza que tem de sua importância e do que está propondo: "Tomo a liberdade de propor a V. Excia. a solução que se segue, a qual nada mais é do que um plano de reforma e adaptação do aparelho educacional da música no Brasil, para que dessa forma possa ser considerado o problema da música brasileira, como o de absoluto interesse nacional a corresponder às respeitosas e elevadas idéias de nacionalização do Exmo. Sr. presidente da República."(27) Era um plano, segundo ele, que tinha por objetivo "fixar o característico fisionômico de nossa música", de maneira que o Brasil viesse a se assemelhar aos outros países, como "Espanha, Alemanha, Rússia, Itália, Estados Unidos da América do Norte e outros, que já se impuseram no mundo, dominando as tendências dos países fracos, de povos indiferentes". Essencialmente, o plano previa três escolas de música (de estudos superiores, profissional e de professores) e uma inspetoria geral de canto orfeônico, com ação sobre todo o país, para "zelar a execução correta dos hinos oficiais, intensificar o gosto e apreciação da música elevada e encaminhar as tendências folclorísticas da música popular nacional (música, literatura e dança)".(28)
Foi, efetivamente, neste edifício onde, "pela primeira vez, se conseguiu dar corpo, em obra de tamanho vulto, levada a cabo com esmero de acabamento e pureza integral de concepção, às idéias mestras porque, já faz um quarto de século, o gênio criador de Le Corbusier se vem batendo com a paixão, o destemor e a fé de um verdadeiro cruzado (... ) Neste oásis circundado de pesados casarões de aspecto uniforme e enfadonho, viceja agora, irreal na sua limpidez cristalina, tão linda e pura flor - flor do espírito, prenúncio certo de que o mundo para o qual caminhamos inelutavelmente, poderá vir a ser, apesar das previsões agourentas do saudosismo reacionário, não somente mais humano e socialmente mais justo, senão, também, mais belo.(33)Feita a grande obra, o mundo se curva diante do Brasil: "São agora os mestres arquitetos dos Estados Unidos da América e do império britânico que se abalam dos respectivos países para virem até aqui, apreciar e aprender (...). Que estranho encadeamento de circunstância tornou possível um tal milagre?"(34)
Esboços de um monumento à juventude para o prédio do Ministério da Educação e Saúde no Rio de Janeiro. |
Agora que tudo já parece bem 'arrumado', venho lhe dizer o quanto dói ver uma idéia alta e pura como essa da criação da Cidade Universitária, tomar corpo e se desenvolver assim desse jeito. Quando, há dias, tomei conhecimento do relatório e verifiquei que tudo não passava de pura mistificação, quis exigir um inquérito, protestar, gritar contra tamanha injustiça e tanta má-fé. Logo compreendi, porém, a inutilidade de qualquer reação e que, quando muito iria servir mais uma vez de divertimento à maldade treinada dos 'medalhões'. Não veja, portanto, Dr. Capanema, neste meu alheamento, a aceitação das criticas abusadas que o relatório contém, nem a intenção, em outras circunstâncias louvável, de querer evitar maiores embaraços à sua ação, mas, tão-somente, a certeza - desamparado como me sentia - de que tudo seria vão. E o mais triste é que enquanto se perseverar, durante anos e anos, na construção dessa coisa errada, estará dormindo em qualquer prateleira de arquiteto a solução 'verdadeira' - a coisa certa(46).A "coisa certa", como sabemos, teria sua oportunidade em outro projeto que, em comparação com o plano da Cidade Universitária, tinha todas as características de um prêmio de consolação: O edifício do Palácio da Cultura, o único que seria, afinal, realizado.(47)
Maquete do Prédio da Reitoria da Cidade Universitária do
Rio de Janeiro, Projeto de Marcello Piacentini FGV - CPDOC, Arquivo Gustavo Capanema |