TEMPOS DE CAPANEMA

SIMON SCHWARTZMAN, HELENA MARIA BOUSQUET BOMENY, VANDA MARIA RIBEIRO COSTA

1ª edição: Editora da Universidade de São Paulo e Editora Paz e Terra, 1984 - 2ª edição, Fundação Getúio Vargas e Editora Paz e Terra, 2000.

Capítulo 3
A Ação Cultural


1. Presença do modernismo

2. Cultura e propaganda

3. O canto orfeônico

4. O Palácio da Cultura e a Cidade Universitária

Notas


1. Presença do modernismo

Se a tarefa educativa visava, mais do que a transmissão de conhecimentos, a formação de mentalidades, era natural que as atividades do ministério se ramificassem por muitas outras esferas, além da simples reforma do sistema escolar. Era necessário desenvolver a alta cultura do país, sua arte, sua música, suas letras; era necessário ter uma ação sobre os jovens e sobre as mulheres que garantisse o compromisso dos primeiros com os valores da nação que se construía, e o lugar das segundas na preservação de suas instituições básicas; era preciso, finalmente, impedir que a nacionalidade, ainda em fase tão incipiente de construção, fosse ameaçada por agentes abertos ou ocultos de outras culturas, outras ideologias e nações. Como sempre, estas ações do Ministério da Educação não se dariam no vazio, mas encontrariam outros setores, movimentos e tendências com as quais seria necessário compor, transigir, ou enfrentar.

Este projeto ambicioso só explica em parte, no entanto, a preocupação do ministro com as atividades de tipo cultural e artístico. Uma outra parte, talvez mais importante, deve ser creditada a suas vinculações de origem com a intelectualidade mineira e, particularmente, com alguns dos expoentes principais do movimento modernista, vinculações mantidas e constantemente realimentadas por seu chefe-de-gabinete, Carlos Drummond de Andrade.

Não era uma relação tão fácil quanto se imagina. Não há nada que revele, nos documentos e escritos do ministro, que ele se identificasse com os objetivos mais profundos do movimento modernista, que, na perspectiva de Mário de Andrade, buscava uma retomada das raízes da nacionalidade brasileira, que permitisse uma superação dos artificialismos e formalismos da cultura erudita superficial e empostada. "Enquanto o brasileiro não se abrasileirar," escrevia Mário a Carlos Drummond em 1925, "é um selvagem. Os tupis das suas tabas eram mais civilizados que nós nas nossas casas de Belo Horizonte e São Paulo. Por uma simples razão: não há Civilização. Há civilizações. Cada uma se orienta conforme as necessidades e ideais de uma raça, dum meio e dum tempo. (...) Nós, imitando ou repetindo a civilização francesa, ou a alemã, somos uns primitivos, porque estamos ainda na fase do mimetismo."(1) Mário não aceitava a arte pela arte. Sua obra, dizia, "tem uma função prática, é originada, inspirada dum interesse vital e para ele se dirige. Nisto sou tão primitivo como um homem das cavernas quaternárias." Mas era um primitivismo "que vem da consciência duma época e das necessidades sociais, nacionais e humanas dessa época. É necessário. É intelectual, não abandona a critica, a observação, a experiência e até a erudição. E só aparentemente se afasta delas. É o meu. É necessário. Minha arte aparente é antes de mais nada uma pregação. Em seguida é uma demonstração."(2)

Era um projeto revolucionário em seus objetivos. Mas o modernismo, do qual Mário de Andrade foi um dos principais representantes, era suficientemente amplo e ambíguo para permitir interpretações bastante variadas, e não se colocar em contradição frontal com o programa político e ideológico do Ministério da Educação. Em algumas versões, o modernismo se aproximaria perigosamente do irracionalismo nacionalista e autoritário europeu, e não é por acaso que o próprio Plínio Salgado seja identificado com uma das vertentes deste movimento. O que preponderou no autoritarismo brasileiro, no entanto, não foi a busca das raízes mais populares e vitais do povo, que caracterizava a preocupação de Mário de Andrade, e sim a tentativa de fazer do catolicismo tradicional e do culto dos símbolos e lideres da pátria a base mítica do Estado forte que se tratava de constituir. Capanema estava, seguramente, muito mais identificado com esta vertente do que com a representada pelo autor de Macunaíma, que não temia entrar em contato com "a sensualidade, o gosto pelas bobagens um certo sentimentalismo melado, heroísmo, coragem e covardia misturados, uma propensão política e pro discurso" que faziam parte da visão andradiana do caráter brasileiro.(3)

Era sem dúvida no envolvimento dos modernistas com o folclore, as artes, e particularmente com a poesia e as artes plásticas, que residia o ponto de contato entre eles e o ministério. Para o ministro, importavam os valores estéticos e a proximidade com a cultura; para os intelectuais, o Ministério da Educação abria a possibilidade de um espaço para o desenvolvimento de seu trabalho, a partir do qual supunham que poderia ser contrabandeado, por assim dizer, o conteúdo revolucionário mais amplo que acreditavam que suas obras poderiam trazer.

A correspondência de Mário de Andrade a Carlos Drummond revela que, pouco depois de empossado em 1934, Capanema lhe havia solicitado que elaborasse um projeto de lei de proteção às artes no Brasil, que seria o embrião do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Desde São Paulo, Mário de Andrade redige um texto que seria enviado para a aprovação do Congresso, e terminaria sendo aprovado como decreto-lei em dezembro de 1937. Em 1935 Mário de Andrade é convidado para vir ao Rio, mas estava totalmente envolvido com o departamento de Cultura de São Paulo, e não aceita. Em 1938, com a mudança de governo em São Paulo, a posição de Mário de Andrade como chefe da Divisão Cultural do departamento de Cultura de São Paulo torna-se insustentável, e a ida para o Rio surge como a melhor alternativa. Capanema lhe oferece o posto de diretor de um departamento de Teatros no Ministério da Educação, que Mário de Andrade recusa, preferindo "o lugar modesto no Instituto do Livro".(4) Segundo a anotação de Drummond, "a preferência de Mário de Andrade foi satisfeita. O Ministério da Educação o contratou para chefe da seção do Dicionário e Enciclopédia Brasileira, do Instituto Nacional do Livro. "(5)

As cartas de Mário de Andrade a Capanema mostram, contudo, que as coisas foram bem mais complicadas, e vividas com bastante ansiedade por Mário de Andrade. "Depois de nossa conversa", escrevia ele ao ministro em 22 de junho de 1938, "me pus refletindo muito sobre o meu caso. E sou obrigado a lhe confessar mais uma vez que o posto de diretor do serviço teatral eu não posso mesmo de forma alguma aceitar. É um lugar de projeção muito brilhante e muito violenta, vou lutar certamente muito e vou certamente fracassar. A sua oferta me encontra derreado, despido de muitas das minhas ilusões e sem o menor desejo de me vingar de ninguém. Preciso de trabalho e estou sempre disposto a trabalhar. Mas não quero lutas fortes, não quero gritaria em torno de mim."(6) Havia a oferta de uma posição na Universidade de São Paulo, e Mário mostra-se tentado a aceitá-la, condicionando-a, porém, ao acordo do ministro.

Em 23 de fevereiro de 1939 a situação ainda não está definida, e Mário volta a escrever ao ministro para recusar, desta feita, o posto no Instituto Nacional do Livro, dando algumas de suas razões e sentimentos:
Estive refletindo bastante estes dias e percebi definitivamente que não poderia aceitar o cargo de dirigir a Enciclopédia, no Instituto do Livro. As razões que tenho para isso são as mesmas que já lhe dei e a que você respondeu. Não pude verbalmente insistir nelas porque tenho uma espécie de defeito de alma que me põe sempre demasiadamente subalterno diante das pessoas altamente colocadas. Por mais amizade que lhe tenha e liberdade que tome consigo, sempre é certo que diante de você não esqueço nunca o ministro, que me assusta, me diminui e me subalterniza. Isto, aliás, me deixa danado de raiva e esta é a razão por que fujo sempre das altas personalidades. Por carta e de longe, posso me explicar com menos propensão ao consentimento.
Usando a distancias, Mário aproveita para protestar contra o fechamento da Universidade do Distrito Federal, por decisão de Capanema:
Não pude me curvar ás razões dadas por você para isso: lastimo dolorosamente que se tenha apagado o único lugar de ensino mais livre, mais moderno, mais pesquisador que nos sobrava no Brasil, depois do que fizeram com a Faculdade de Filosofia e Letras de São Paulo. Esse espírito, mesmo conservados os atuais professores, não conseguirá reviver na Universidade do Brasil, que a liberdade é frágil, foge das pompas, dos pomposos e das pesadas burocracias.(7)
A recusa de Mário de Andrade de trabalhar na Enciclopédia tem razões específicas, que vão desde divergências quanto à própria concepção do projeto até a existência de pessoas que teriam que ser deslocadas caso ele assumisse o posto. E termina a carta:
Tudo isso está perfeitamente certo, mas nos separa uma distância irredutível de pontos de vista. As suas razões são razões de ministro, as minhas são razões de homem. Você decide com o áspero olho público, mas eu resolvo com o mais manso olhar de minha humanidade.(8)
A partir daí, só lhe cabem pequenos trabalhos e uma situação incerta, que Mário de Andrade aceita por falta de alternativas, com grande custo pessoal. Em junho de 1939, Mário de Andrade trabalha precariamente para o Instituto Nacional do Livro, e escreve a Capanema pedindo que lhe paguem pelo que produziu. A situação é desesperadora:
"(...) venho pedir que me faça pagar isto imediatamente, e por outra via possível aí do ministério, pois estou numa situação insustentável, crivado de dívidas ridículas, sem cara mais para me apresentar a certos amigos, que positivamente não têm a obrigação de me sustentar. Felizmente não estou acostumado, em quarenta e cinco anos de vida, a viver de expedientes e situação penosa. O resultado é um desespero, uma inquietação, uma desmoralização interior que não mereço, e a que, espero, o ministério não tem razão para me obrigar."
Nessa época, Mário de Andrade aguardava uma nomeação prometida pelo ministro, que, entretanto, jamais se corporifica: "Muito mais agradável para mim será trabalhar com você, no Instituto do Livro, mas se não é possível, suplico mais este favor a você de me dizer francamente o que há, pra que eu me arranje."(9) Mário de Andrade, no entanto, jamais "se arranjaria" de forma satisfatória, e terminaria sua vida, enfermo e psicologicamente desgastado, alguns anos após.

As tensões inevitáveis entre os modernistas e o ministério exigiam freqüentemente que os vínculos de amizade falassem mais alto, servindo assim de anteparo a radicalizações mais fortes, e permitindo que a vinculação ambígua entre eles se mantivesse. Pelo menos em uma ocasião, no entanto, pareceu ao próprio Drummond que a conciliação não seria mais possível. Em março de 1936, Capanema convida Alceu Amoroso Lima para uma conferência no ministério sobre "A educação e o comunismo", à qual Drummond resolve não ir, e, por lealdade, coloca seu cargo à disposição do ministro:
"Meu caro ministro e amigo," diz ele. "Às 5 horas da tarde, subindo no elevador do ministério, e cruzando com colegas do gabinete que desciam para assistir à conferência do Alceu, fiz um rápido exame de consciência e verifiquei que eu não poderia fazer o mesmo, ou antes, que eu não devia fazer o mesmo. Uma outra conclusão, logo, se impôs: não podendo participar de um ato público, promovido pela autoridade a que sirvo, e que visava afirmar, mais do que uma orientação doutrinária, um programa de ação do governo, eu não só deixava de servir a essa autoridade como lhe criava uma situação desagradável. É verdade que minha colaboração foi sempre prestada ao amigo (e só este, de resto, lhe perdoaria as impertinências de que costuma revestir-se) e não propriamente ao ministro nem ao governo, mas seria impossível dissociar essa entidade e, se eu o conseguisse, isto poderia servir de escusa para mim, mas não beneficiaria o ministro. É verdade, ainda, que não tenho posição à esquerda, senão apenas sinto por ela uma viva inclinação intelectual, de par com o desencanto que me inspira o espetáculo do meu país. Isto não impede, antes justifica que eu me considere absolutamente fora da direita e alheio a seus interesses, crenças e definições. E aí está a razão por que me julguei impossibilitado de ouvir o meu amigo pessoal Alceu (...). Minha presença na conferência de hoje seria mais, talvez, do que silenciar inclinações e sentimentos. Poderia ser tida como repúdio a esses sentimentos e inclinações. Por isto não fui ao Instituto."
Drummond teme que sua atitude possa ser interpretada de forma prejudicial a Capanema, e por isto prefere se afastar:
"(...) daí esta carta, que tem o mais razoável dos propósitos: o de não permitir que, para não magoar o amigo, você ponha em risco a sua situação política e, mesmo, a sua posição moral em face ao governo. O amigo está intacto e continua a desejar-lhe bem. Dispensado o diretor de gabinete (e que irritante diretor de gabinete tem sido o seu), você conservará o amigo e afetuoso, que o abraça fraternalmente, Carlos."(10)
A amizade prevaleceria, e a dispensa não seria concedida. Drummond continuaria, até o final do Estado Novo, a servir de ponte e filtro nos contatos entre a cultura brasileira e o ministério Capanema. Ambos, cada qual a seu estilo e a partir de motivações tão diferentes, teriam enorme responsabilidade sobre os caminhos contraditórios, ás vezes fecundos e freqüentemente mistificados que a educação e a cultura brasileira assumiriam nas décadas seguintes.

As tensões não se davam somente com os intelectuais modernistas mais vinculados à esquerda. Em sua preocupação de não perder o vínculo com o movimento da Escola Nova, com o qual de certa forma se identificava, desde sua participação na reforma do sistema educacional de Minas Gerais sob Francisco Campos, Capanema tenta convidar Fernando de Azevedo para o cargo de diretor nacional de Educação, provocando, no entanto, forte reação de Alceu Amoroso Lima:
Nada tenho contra a pessoa do Dr. Azevedo, cuja inteligência e cujas qualidades técnicas muito admiro. Ele é hoje, porém, uma 'bandeira'. Suas idéias são conhecidas, seu programa de educação é público e notório. Sua nomeação seria, por parte do governo, uma opção ou uma confusão. E tudo isso, eu teria que dizer de público (...). Como prezo muito as posições definidas e já dei, há muito, a conhecer qual a minha atitude, em matéria pedagógica, não me seria possível continuar a trazer, ao Ministério da Educação, a pequena mas desinteressada colaboração que até hoje lhe tenho dado, na hora grandiosa que você está empreendendo nesses domínios, caso se confirmasse essa nomeação, a meu ver errada e inoportuna.(11)
Se Alceu veta Fernando de Azevedo, muitos nomes parecem em suas cartas, como recomendados a postos de importância na área educacional: Guilherme de Azevedo Ribeiro ("latinista emérito, elemento de 1a. ordem"); J. A. de Sousa Viana ("mineiro. Modestíssimo. Cabeça sólida. Enorme cultura científica"); Everardo Backheuser ("presidente da Confederação Católica Brasileira de Educação (...). Grande experiência"); Euryalo Canabrava ("grande cultura. Elemento à impulsionar"); Raul Leitão da Cunha ("grande valor moral e intelectual. Extrema independência"); Leonídio Ribeiro; Hamilton Nogueira ("moral irrepreensível; pessoa de absoluta confiança"); José Burle de Figueiredo ("excelente juiz; muito prestígio"); Isaías Alves ("ex-diretor de instrução municipal na Bahia. Perseguido, no Rio, pelo Anísio, por ter se oposto a seus sectarismos"); Artur Gaspar Viana ("inspetor escolar no Rio (...). Pessoa de confiança"); Wagner Antunes Dutra ("meu secretário particular (...). Alma puríssima e auxiliar precioso, como conselheiro diplomata (...). Observador. Oficial de gabinete ideal. Absoluta confiança"; Álvaro Vieira Pinto ("professor de biologia e filosofia. Moral ótima. Rapaz digno e paupérrimo").(12)

Outra carta sugere Murilo Mendes, Almir de Castro e Vinícius de Morais, "cada um dos quais é um valor autêntico, do ponto de vista intelectual como moral, dos melhores que temos no Brasil"; outra ainda indica José Maria Belo para o lugar de diretor nacional de Educação. Uma carta de 1936 indicava Mário Casassanta para o mesmo cargo. Outra apóia o padre Hélder Cãmara; e assim por diante.

Seria incompreensível a tentativa de Capanema de indicar Fernando de Azevedo para a diretoria geral de Educação com o beneplácito da Ação Católica, prezasse ele, tanto quanto Alceu Amoroso Lima, as "posições definidas" das quais este último fazia questão. No entanto, o estilo pessoal do ministro era outro. Capanema buscava o convívio, a amizade e a colaboração dos intelectuais, tratando de colocar-se, tanto quanto possível, acima e alheio ao fragor dos combates ideológicos nos quais todos estavam engajados, e que envolviam seu ministério. Se era uma atitude de respeito profundo à inteligência e à criatividade enquanto tais, por cima das ideologias, ou um desprezo íntimo pelas querelas acadêmicas dos escritores e pintores, é impossível saber. De qualquer maneira, era certamente mais fácil buscar esta neutralidade nas artes do que na educação. Se a influência de Alceu predomina e dá o tom da politica educacional de seu ministério, nas letras, e particularmente, nas artes plásticas, haveria ampla margem para o cultivo da cultura enquanto tal.

2. Cultura e propaganda

A ambigüidade do relacionamento entre o ministério e os intelectuais modernistas se estendia, na realidade, a toda a área de ação cultural do ministério, e mais particularmente às formas de ação orientadas para o grande público, ou seja, o rádio, o cinema e a música. A dificuldade, aqui, era estabelecer a tênue linha divisória que separasse a ação cultural, eminentemente educativa e formativa, da mobilização politico-social e da propaganda propriamente dita. Era uma dificuldade tanto conceitual quanto institucional.

Já em 1932, ainda na gestão de Francisco Campos, o Governo Provisório havia previsto, em dois decretos distintos (nos. 21.111 e 21.240, respectivamente) que o Ministério da Educação devia ter um papel de orientação educacional nos serviços de radiodifusão, que se iniciavam no país, e na sistematização da ação governamental na área do cinema educativo, através de órgão próprio. Parece ser também desta época um documento que existe na pasta do arquivo de Gustavo Capanema, sobre o Instituto Nacional do Cinema Educativo e que dá as grandes linhas do que seria um grande e ambicioso departamento de Propaganda do Ministério da Educação.(13) "Cumpre ao ministério", dizia o documento, "transpor os limites apertados das instituições existentes, buscando atingir, com a sua influência cultural, a todas as camadas populares. O Departamento de Propaganda, aqui projetado, terá esta finalidade. Ele deverá ser um aparelho vivaz, de grande alcance, dotado de um forte poder de irradiação e infiltração, tendo por função o esclarecimento, o preparo, a orientação, a edificação, numa palavra, a cultura de massas."

O cinema era visto como um instrumento privilegiado para esta ação. Ele teria o poder de "influir beneficamente sobre as massas populares, instruindo e orientando, instigando os belos entusiasmos e ensinando as grandes atitudes e as nobres ações. Mas pode, também, ao contrário disso, agir perniciosamente, pela linguagem inconveniente, pela informação errada, pela sugestão imoral ou impatriota, pela encenação do mau gosto."(14)

Daí a necessidade de o Estado intervir no cinema, "com o objetivo de fazer do simples meio de diversão que ele é, um aparelho de educação". O primeiro passo nesta intervenção deveria ser a censura, para que os filmes fossem "escoimados dos elementos maléficos e corruptores que contiverem"; depois, o estímulo à indústria cinematográfica privada (o projeto era contrário a uma indústria cinematográfica estatal, e afirmava que "o cinema educador deve realizar sua missão com total liberdade"). Haveria ainda o cinema pedagógico, a ser "empregado nas escolas como processo auxiliar do ensino das matérias constantes dos seus programas". Era algo distinto, mas não estanque: "o problema do cinema como aparelho de educação popular e o problema do cinema como meio de ensino das escolas se relacionam e se entrelaçam. O departamento de Propaganda, que terá como um de seus objetivos cuidar do primeiro, poderá igualmente, com a colaboração do departamento de Educação, cuidar do segundo."(15)

Em julho de 1934, no entanto, Getúlio Vargas cria o departamento de Propaganda e Difusão Cultural junto ao Ministério da Justiça, esvaziando o Ministério da Educação não só da propaganda - que este ministério, sob Capanema, possivelmente não queria - como também do rádio e do cinema.

Esta decisão fez parte, sem dúvida, de um esforço de colocar os meios de comunicação de massas a serviço direto do poder executivo, uma iniciativa à qual não faltava a influência do Ministério da Propaganda alemão, recém-criado com a instalação do governo nacional-socialista em 1933.0 texto sobre a "racionalização do governo" elaborado como parte da retrospectiva do Estado Novo nos anos 40, assinalava que, já em 1934, o novo departamento tinha como objetivo "a propaganda em si mesma, destinada a discutir de público os imperativos do Estado moderno, mostrando o sentido de suas realizações, a fim de conseguir o máximo de colaboração dos cidadãos. A tarefa do novo departamento deveria ser mais de experimentação, estudando a utilização do cinema, da radiotelegrafia e de outros processos técnicos, no sentido de empregá-los como instrumentos de difusão."(16)

Este foi o embrião da Agência Nacional e, mais tarde, do departamento de Imprensa e Propaganda. Diante destes propósitos governamentais, só cabe ao Ministério da Educação insistir na distinção entre "cinema educativo" e "cinema escolar." Isto permite que o Ministério da Educação proponha a divisão do departamento de Propaganda em duas partes. A primeira, de Publicidade e Propaganda, ficaria no Ministério da Justiça; e outra, Difusão Cultural, voltaria ao Ministério da Educação e Saúde.(17)

A reforma do Ministério da Educação e Saúde de janeiro de 1937, finalmente, institucionaliza tanto o Serviço de Radiodifusão Educativa quanto o Instituto Nacional de Cinema no âmbito do ministério. Contudo, não era uma posse tranqüila. Em 1938, Capanema é levado a dirigir a Getúlio Vargas uma longa exposição de motivos tratando de preservar sua atuação na área de radio difusão, contra as pretensões do Ministério da Justiça, agora com Francisco Campos. Era necessário, dizia ele, que a função de radiodifusão do Ministério da Educação fosse especificada de maneira a não haver "nenhuma confusão com o serviço do Ministério da Justiça."(18) Insiste ainda: "a radiodifusão escolar (...) é matéria diferente e separada da radiodifusão, meio de publicidade ou de propaganda. (...) É preciso introduzir o rádio em todas as escolas - primárias, secundárias, profissionais, superiores, noturnas e diurnas - e estabelecer através deste poderoso instrumento de difusão uma certa comunhão espiritual entre os estabelecimentos de ensino. O rádio será o único meio de se fazer esta comunhão de espírito, pois (...) tudo concorre a separar e isolar as nossas escolas, que são aqui e ali colmeias autônomas, cada qual com uma mentalidade e todas distantes do sentido que nós cá do centro desejamos imprimir-lhes."(19) Propõe a criação de uma estação radio difusora educativa para o MES, que seria entregue a um professor "para caracterizá-la como aparelho de estrita aplicação escolar."(20) E continua: "A hipótese de se transferir esta estação para o Ministério da Justiça não me parece conveniente. Antes do mais porque este ministério não precisa dele. O Ministério da Justiça precisa, sim, de todas as estações radio-difusoras existentes no país, durante o dia e durante a noite. Deve ser fixado em lei o tempo que as estações deverão dar à difusão do departamento de Propaganda, tempo este a ser utilizado parceladamente nos intervalos das irradiações musicais, de tal modo que todos sejam forcados a ouvir os textos mandados pelo governo, do mesmo modo que ouvem os anúncios comerciais .... ). Se, porém, o Ministério da Justiça passar a usar uma determinada estação dia e noite para sua obra de propaganda, o resultado será fatalmente o seguinte: tal estação não terá nenhum público, pois todo mundo, mesmo os amigos do governo, ligará o aparelho para as outras estações."(21)

A criação do departamento de Imprensa e Propaganda em 1939, agora subordinado diretamente á presidência da República, traz novamente conflitos de jurisdição, já que o DIP continha, em sua organização, uma divisão de radiodifusão e outra de cinema e teatro.(22) Em 1942, Roquette Pinto, na direção do Instituto Nacional do Cinema Educativo, prepara um arrazoado para demonstrar como sua atividade se distinguia da do DIP. "No Brasil o INCE, exclusivamente consagrado ao cinema educativo, em nada pode perturbar quaisquer planos ministeriais de propaganda. Ao contrário, tem cooperado com o DIP, O material, oficinas e laboratórios necessários ao DIP não se acham representados no INCE senão em proporção mínima. O DIP precisa de aparelhagem cinematográfica standard - 35mm, e o INCE trabalha especialmente com o filme substandard - 16mm." O relatório faz uma longa descrição da atuação do INCE em todos os setores - projeções em mais de mil escolas e institutos de cultura, organização de uma filmoteca, intercâmbios internacionais, elaboração de filmes documentais etc. - e termina afirmando que "o INCE vem, em marcha progressista e ascendente, servindo honestamente á cultura do pais."(23)

3.O canto orfeônico

A música também teria, ao lado do rádio e do cinema, um papel central neste esforço educativo c de mobilização, onde a linha divisória entre a cultura e a propaganda tornava-se tão difícil de estabelecer. Além disto, ela contava com a presença ativa e influente de uma forte personalidade, Heitor Villa-Lobos.

Em 1936, Villa-Lobos participa, junto com Antônio de Sã Pereira, de um Congresso de Educação Musical na cidade de Praga, como representante do governo brasileiro. Villa-Lobos era então diretor de educação musical e artística da cidade do Rio de Janeiro, e sua conferência, feita em francês, dá um panorama bastante significativo de sua atuação e maneira de pensar. Basicamente, o trabalho de Villa-Lobos consistia em desenvolver a educação musical artística através do canto coral popular ou seja, o canto orfeônico. "Nenhuma arte exerce sobre as massas uma influência tão grande quanto a música. Ela é capaz de tocar os espíritos menos desenvolvidos, até mesmo os animais. Ao mesmo tempo, nenhuma arte leva às massas mais substância. Tantas belas composições corais, profanas ou litúrgicas, têm somente esta origem - o povo." Para difundir a importância da música, Villa-Lobos afirma ter percorrido, em 1930, mais de 60 cidades do interior paulista, "fazendo conferências e demonstrações ao piano, violoncelo, violão e guitarra, com coros e com orquestras", e terminando por formar um coral de dez mil vozes para o canto de hinos patrióticos e a educação de sentimentos cívicos. Nos folhetos distribuídos nessa cruzada, Villa-Lobos lembrava que, no estrangeiro, pensava-se que o brasileiro era desprovido de vontade e de espírito de cooperação, que vivia disperso, sem unidade de ação, sem a coesão necessária à formação de uma grande nacionalidade. No entanto, isto seria corrigido pela educação e pelo canto. "O canto orfeônico, praticado pelas crianças e por elas propagado até os lares, nos dará gerações renovadas por uma bela disciplina da vida social, em beneficio do país, cantando e trabalhando, e, ao cantar, devotando-se à pátria!"(24)

Entre 1938 e 1939, Mário de Andrade, em papel timbrado do Instituto Nacional do Livro, redige as "bases para uma entidade federal destinada a estudar o folclore musical brasileiro, propagar a música como elemento de cultura cívica e desenvolver a música erudita nacional."(25) A cada uma destas funções caberia uma seção distinta. A do folclore deveria desenvolver uma discoteca, um museu de instrumentos e um serviço de tradução, estudo e publicação da música recolhida pelos serviços de discoteca. A seção de música cívica se destinaria a "criar por todo o país a prática do coral (a seco) e do coro com acompanhamento de instrumentos populares ou já perfeitamente popularizados no país"; a dar condições materiais de existência para esses corais; e a "controlar e suprir a programação deles, colecionando todo o hinário nacional, promovendo a criação de novos hinos, mandando converter todo esse hinário à música coral polifônica de vária dificuldade e para todas as organizações corais possíveis, só mulheres, só homens, os diversos coros mistos, só crianças, vozes iguais, vozes desiguais, duas, três, quatro, cinco, seis vozes corais, composição madrigalesca etc" Deveria ainda coralizar a música folclórica do país, promovendo "nos corais criados a execução anual em datas certas das danças dramáticas tradicionais, cheganças, reisados, congados, bumba-meu-boi etc. com prêmios, auxilio financeiro, fornecimentos de modelos de indumentária e professores-coreógrafos." A principal função da seção de música erudita seria a de criar ou auxiliar o estabelecimento de orquestras sinfônicas, companhias de ópera, agrupamentos instrumentais etc. Estava prevista ainda a criação de uma revista de folclore musical.

Existe também, junto ao projeto, uma página redigida por Mário de Andrade denominada "sugestões pro discurso", provavelmente do ministro, para a justificativa de seu projeto:
A música é universalmente conhecida como a coletivizadora-mor entre as artes. Só o teatro se lhe aproxima como função pragmática. É uma questão especialmente de ritmo, mas este por si não tem tamanho poder como quando auxiliado pelo som das melodias. A maior prova deste poder coletivizador e cívico da música está em que, dentre todas as artes, ela é a única que se imiscui no trabalho, Em todas as partes do mundo canta-se durante o trabalho, canções de remar, de colheita, de fiar etc., etc. É também a música que entra nos trabalhos militares da guerra. Pelo menos até este se tornar mecânico. Os hinários de religião, política, de civismo.(26)
Villa-Lobos também elabora seu projeto, e não esconde a certeza que tem de sua importância e do que está propondo: "Tomo a liberdade de propor a V. Excia. a solução que se segue, a qual nada mais é do que um plano de reforma e adaptação do aparelho educacional da música no Brasil, para que dessa forma possa ser considerado o problema da música brasileira, como o de absoluto interesse nacional a corresponder às respeitosas e elevadas idéias de nacionalização do Exmo. Sr. presidente da República."(27) Era um plano, segundo ele, que tinha por objetivo "fixar o característico fisionômico de nossa música", de maneira que o Brasil viesse a se assemelhar aos outros países, como "Espanha, Alemanha, Rússia, Itália, Estados Unidos da América do Norte e outros, que já se impuseram no mundo, dominando as tendências dos países fracos, de povos indiferentes". Essencialmente, o plano previa três escolas de música (de estudos superiores, profissional e de professores) e uma inspetoria geral de canto orfeônico, com ação sobre todo o país, para "zelar a execução correta dos hinos oficiais, intensificar o gosto e apreciação da música elevada e encaminhar as tendências folclorísticas da música popular nacional (música, literatura e dança)".(28)

As tentativas de organização do ensino e difusão da música, em todas as formas e níveis, se multiplicavam. Há um projeto de Magdalena Tagliaferro sobre a "reorganização do ensino musical no Brasil, e particularmente da Escola Nacional de Música do Rio de Janeiro, de julho de 1940"(29); há um minucioso anteprojeto de lei orgânica do ensino musical, que estabelecia este ensino em três ciclos, especificando as respectivas matérias, critérios de admissão etc., e outros.

Destes projetos mais ou menos grandiosos, o que adquire maior expressão é, exatamente, o de canto orfeônico. Um decreto-lei de novembro de 1942 (no. 4.993) cria o Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, subordinado diretamente ao Departamento Nacional de Educação, mas para funcionar junto à Escola Nacional de Música da Universidade do Brasil. Seu objetivo era o de formar candidatos ao magistério do canto orfeônico de nível primário e secundário. Além disto, deveria promover pesquisas "visando à restauração ou revivescência das obras de música patriótica que hajam sido no passado expressões legítimas da arte brasileira e bem assim o recolhimento das formas puras e expressivas de cantos populares no país, no passado e no presente"; e mais especificamente, promover "a gravação em discos do canto orfeônico do Hino Nacional, do Hino da Independência, do Hino da Proclamação da República, do Hino à Bandeira Nacional e bem assim das músicas patrióticas e populares que devam ser cantadas nos estabelecimentos de ensino do país."(30)

Em 1940, Antônio de Sá Pereira, diretor da Escola Nacional de Música, redige um texto denominado "Música do Estado Novo", que deveria constar da obra que o ministro coordenava sobre as realizações do governo Vargas. O relatório fala da criação da própria Escola Nacional de Música, em 1937, a partir do antigo Instituto Nacional de Música, e de seus concertos gratuitos, da publicação da Revista Brasileira de Música, e do trabalho de divulgação da música brasileira no exterior, através, principalmente, de Villa-Lobos, mas também Francisco Mignone, Guiomar Novais e outros; fala da comemoração do Centenário de Carlos Gomes; sobre a música dramática; sobre as transmissões musicais do Serviço de Radiodifusão Educativa do Ministério da Educação e Saúde (Estação PRA-2); fala dos programas de música popular organizados pelo DIP para transmissão através da "Hora do Brasil."

O trabalho de Villa-Lobos é descrito com detalhe, desde sua atuação no Rio de Janeiro, em 1932, até as "monumentais concentrações orfeônicas" organizadas para a comemoração do dia da pátria.(31)

A música popular, a recuperação do folclore, a implantação e o apoio à música erudita, jamais receberiam a mesma importância e apoio do que a música orfeônica. No sumário que faz em 1946 das atividades de seu ministério, Capanema se limita a mencionar o canto orfeônico entre as diversas modalidades de atividade musical, e mesmo assim associado à educação física, como parte das "práticas educativas visando à formação física, cívica e moral das crianças e adolescentes."(32) Não era exatamente isto, por certo, o que Mário de Andrade propusera.

4. O Palácio da Cultura e a Cidade Universitária
(Esta seção conta com a colaboração de Rosa Maria Barbosa de Araújo).

O projeto de construção do edifício-sede do Ministério da Educação, conhecido como o Palácio da Cultura, foi a grande oportunidade de colocar na prática o projeto de uma obra que concretizasse, ao mesmo tempo, os ideais revolucionários do modernismo e a consagração da obra educacional e cultural do ministro. Em uma carta de outubro de 1945, Lúcio Costa sintetiza os ideais que envolveram o projeto do edifício, e as condições que permitiram sua construção:
Foi, efetivamente, neste edifício onde, "pela primeira vez, se conseguiu dar corpo, em obra de tamanho vulto, levada a cabo com esmero de acabamento e pureza integral de concepção, às idéias mestras porque, já faz um quarto de século, o gênio criador de Le Corbusier se vem batendo com a paixão, o destemor e a fé de um verdadeiro cruzado (... ) Neste oásis circundado de pesados casarões de aspecto uniforme e enfadonho, viceja agora, irreal na sua limpidez cristalina, tão linda e pura flor - flor do espírito, prenúncio certo de que o mundo para o qual caminhamos inelutavelmente, poderá vir a ser, apesar das previsões agourentas do saudosismo reacionário, não somente mais humano e socialmente mais justo, senão, também, mais belo.(33)
Feita a grande obra, o mundo se curva diante do Brasil: "São agora os mestres arquitetos dos Estados Unidos da América e do império britânico que se abalam dos respectivos países para virem até aqui, apreciar e aprender (...). Que estranho encadeamento de circunstância tornou possível um tal milagre?"(34)

Esboços de um monumento à juventude para o prédio do Ministério da Educação e Saúde no Rio de Janeiro.

A resposta, para Lúcio Costa, estava em uma conjugação feliz de pessoas bem-dotadas, a começar pelo próprio Capanema: "Amparado, apenas, inicialmente, na intuição poética e no discernimento críticos de intelectuais como os senhores Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Rodrigo Melo Franco de Andrade, dentro em pouco sua consciência da legitimidade dos princípios fundamentais defendidos nesta obra adquiria tal força de convicção que, apesar dos interesses políticos em jogo e do seu natural apego ao cargo que exerce com tamanha dedicação, o senhor soube arrostar bravamente a maré montante das criticas, correndo todos os riscos sem jamais transgredir nem esmorecer no propósito de levá-las a bom termo."(35) É Capanema que promove a vinda de Le Corbusier ao Brasil em 1937, e "foi graças a esse convívio de apenas três meses que o excepcional talento do arquiteto Oscar Niemeyer - Oscar de Almeida Soares, conforme, no seu apego à tradição lusitana, preferia vê-lo chamar, que este é o seu legitimo nome -' até então inexplicavelmente incubado, revelou-se em toda a sua plenitude".(36)

Não seria aqui um lugar para uma avaliação critica mais aprofundada desta escola de arquitetura que se firma com o edifício do Ministério da Educação e chega à sua consagração e apogeu com a construção de Brasília. Basta a distância do tempo para darmo-nos conta de que o atual Palácio da Cultura do Rio de Janeiro, menos do que o prenúncio do mundo "mais humano, socialmente mais justo" além de mais belo, é pouco mais do que uma relíquia arquitetônica perdida no caos urbano do Rio de Janeiro. Mário de Andrade não tinha ilusões, como revelam suas cartas a Drummond, quanto ao poder redentor da arte enquanto tal, e certamente não compartiria a noção de que, pela pureza das formas, fosse possível contornar as profundas diferenças econômicas, políticas e ideológicas que marcavam e ainda marcam a sociedade brasileira. Contudo, a crença na força da arte e da cultura talvez fosse, naqueles anos, a única forma de legitimar o convívio entre os intelectuais e o poder do Estado Novo.

O próprio Capanema tinha da arte uma visão muito mais instrumental, como revela sua correspondência com Cândido Portinari. De fato, o ministro tinha idéias bastante definidas sobre o que o pintor deveria fazer:

"No salão de audiência, haverá os 12 quadros dos ciclos de nossa vida econômica, ou melhor, dos aspectos fundamentais de nossa evolução econômica. (...) Na sala de espera; o assunto será o que já disse - a energia nacional representada por expressões de nossa vida popular. No grande painel deverão figurar o gaúcho, o sertanejo e o jangadeiro. Você deve ler o III Capitulo da segunda parte de Os Sertões de Euclides da Cunha. Aí estão traçados da maneira mais viva os tipos do gaúcho e o do sertanejo. Não sei que autor terá descrito o tipo do jangadeiro. Pergunte ao Manuel Bandeira."(37) Em uma carta sem data, Portinari mostra como a orientação ministerial era acatada: "Não escrevi antes por andar muito cansado e desanimado, mas agora com a notícia de que o senhor quer novos e imensos murais estou novamente em forma e à espera da documentação para dar inicio aos estudos. Gostaria que o senhor me enviasse o seu discurso. As vidas de Caxias, Tiradentes e José Bonifácio. Foram os motivos que o senhor sugeriu. Gostaria de permanecer aqui ainda algum tempo e creio que seria até bom fazer os primeiros estudos aqui - fora do barulho do Rio. Mesmo que eu não fizesse estudos definitivos pelo menos iria lendo o que o senhor me mandar e me impregnando do assunto até transformá-lo em cores. Em todo caso estou à sua disposição. Se o senhor achar melhor eu estar aí, é só mandar avisar. Do seu amigo certo, Portinari."(38)

Esta amizade certa tinha uma importante história anterior, que foi a defesa e a proteção de Capanema ante as acusações que sofria Portinari de esquerdista ou comunista. Existe pouca informação a este respeito no arquivo Capanema, a não ser uma carta escrita desde Nova York, onde Portinari havia obtido grande sucesso com suas exposições. "Tive notícias ontem que me deixaram muito triste. Parece que publicaram artigo na Nação Armada - explorando o velho tema. Enquanto isto tinha sido tratado aqui como seu eu fosse um grande homem (...). É dizendo que o presidente Getúlio é querido pelo povo, que as nossas leis trabalhistas são as mais avançadas do mundo, queele criou o Ministério da Educação e Saúde, o Ministério do Trabalho. Que o presidente é um grande patriota que tem defendido o Brasil dos exploradores e coisas do gênero. Acho injusto o que estão fazendo comigo. Falo assim com o senhor, porque tem sido o seu apoio que me tem levantado até conseguir o sucesso que obtive aqui."(39)

Mas o principal projeto arquitetônico do Ministério da Educação não foi, como parece hoje, o do Palácio da Cultura, e sim o da Cidade Universitária, obra que jamais chegou a se iniciar em sua gestão. Na concepção do ministro, o projeto de construção física da Cidade Universitária quase que se confundia com a elaboração dos planos de seus cursos, institutos etc. De fato, ambas as atividades deveriam ser desenvolvidas pela mesma comissão. Ao definir suas funções em sua sessão de instalação, em 22 de julho de 1935, afirmava Capanema que "ela deve, primeiro, definir o que deve ser a universidade. Deve, depois, conceituar a universidade e em seguida projetar a construção universitária." A definição do que "deve ser a universidade" tinha um sentido bem prático, que era o de estabelecer quantas escolas, institutos etc., da teria - o que tinha implicações práticas imediatas para o projeto arquitetônico. "Suponhamos que a definição seja a de que a universidade deve ter uma escola de odontologia. Não basta isso, porém. É preciso que se diga que a escola em questão terá tais e tais repartições, tais e tais divisões, tal estrutura. Se for incluído um instituto de criminologia temos que ver de que partes, de que gabinetes, de que laboratórios o estabelecimento enfim se comporá."(40) Dai ao projeto arquitetônico era um passo, e dele fica encarregada uma comissão de professores formada por Ernesto de Souza Campos, Lourenço Filho, Jônatas Serrano e Inácio M. de Azevedo do Amaral, que instala um "escritório do plano da universidade", que age em nome da comissão.

Na realidade, o primeiro passo já havia sido dado, pois ao mesmo tempo em que se instalava a comissão, Capanema tratava de levar adiante a idéia de contratar o arquiteto italiano Marcello Piacentini, autor da Cidade Universitária de Roma, orgulho do regime fascista, para repetir seu feito no Brasil. Em telegramas à embaixada brasileira em Roma, de maio e junho de 1935, Capanema pedia que se contratasse o arquiteto para "vir ao Brasil realizar idêntico serviço informando preço e tempo provável." Uma longa carta do ministro de Relações Exteriores, J. C. Macedo Soares, instruindo a embaixada em Roma sobre o assunto, informava que a cidade deveria ser construída na Praia Vermelha, e para realizá-la era necessário um arquiteto "que seja não somente uma notabilidade de fama universal na matéria, como que disponha ainda de um corpo de técnicos profissionais que pela sua organização e capacidade possa dar, de antemão, a garantia de fiel e completa execução da obra". A carta previa que talvez fosse necessário convencer o governo italiano sobre a importância do trabalho, e para isto sugeria que a embaixada argumentasse mostrando "o alto e expressivo significado que terá para o nome da Itália e do regime fascista, em particular, a obra de vulto brasileira a ser executada pelo arquiteto italiano. A boa propaganda da cultura italiana no Brasil deverá impressionar a geração atual dos nossos universitários e dos que virão."(41)

Piacentini termina aceitando vir por um curto período, apesar das insistências de Capanema de que necessitaria mais tempo. Chega ao Rio de Janeiro em 13 de agosto de 1935, com a passagem paga pelo governo italiano e um pequeno honorário do governo brasileiro. Retorna no dia 24 do mesmo mês, deixando a promessa de voltar no fim do ano com um auxiliar, quando então pretenderia executar os planos completos e as maquetes do grande projeto.

A esta altura, contudo, uma pequena tempestade já se armava. Uma carta do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura do Rio de Janeiro ao ministro, escrita em 23 de julho, estranhava o convite ao arquiteto italiano, lembrando que havia um decreto n 23.569, de 11 de dezembro de 1933) que estabelecia que o governo, em todos os seus níveis, só poderia contratar, para serviços de engenharia, arquitetura e agrimensura, profissionais diplomados pelas escolas oficiais ou equiparadas do país, assinalando ainda que a Constituição de 1934 vedava aos estrangeiros o exercício das profissões liberais no país. Capanema responde que Piacentini havia sido convidado somente a visitar o país para expor seu trabalho sobre a Universidade de Roma, "oferecendo assim dados e sugestões para iniciativa idêntica" a ser levada a efeito pelo governo brasileiro.(42) Em alguns outros documentos a missão do arquiteto é definida como tendo por objetivo simplesmente, "emitir sua opinião sobre a localização da projetada Cidade Universitária."

A reação dos profissionais leva Capanema a constituir uma comissão de arquitetos e engenheiros brasileiros que teria por missão dar forma final ao projeto a ser sugerido por Piacentini, e que é composta a partir de indicações das diversas sociedades profissionais da área. Fazem parte dela Ângelo Bunhs, pelo Instituto Central de Arquitetos; Lúcio Costa, pelo Sindicato Nacional de Engenheiros e Instituto Centrai de Arquitetos; Firmino Saldanha, pelo Instituto Central de Arquitetos; Paulo Fragoso, pelo Sindicato Nacional de Engenheiros; e Washington Azevedo, pelo Clube de Engenharia. Esta comissão deveria trabalhar em estreita consonância com a comissão de professores, responsável principal pelo projeto. Uma das primeiras iniciativas da comissão de engenheiros e arquitetos foi propor a vinda de Le Corbusier da França, como forma de contrabalançar a presença de Piacentini Em 29 de janeiro de 1936, Capanema escreve a Getúlio Vargas solicitando a vinda de Le Corbusier junto com, novamente, Piacentini, já agora dizendo tratar-se de um pedido da comissão de engenheiros e arquitetos.

Houve também gestões para a contratação de arquitetos alemães, que não tiveram maiores conseqüências. Duas cartas de meados de 1936, enviadas por Antônio de Sá Pereira em missão do Ministério da Educação naquele país; revelam os contatos feitos em nome do ministro com o "professor Jansen, talvez o maior arquiteto urbanista alemão, criador do plano de construção de Ankara" e também com o "professor Werner Mach, o arquiteto que construiu o Estádio Olímpico e a Aldeia Olímpica (a moradia dos atletas), duas perfeitas maravilhas do gênero." Ambos manifestavam interesse em elaborar o projeto da Cidade Universitária, e a carta mencionava que "pensa o professor Mach que, com um pouco de tato por parte do urbanista estrangeiro, não haveria com esta solução com que ferir o amor-próprio dos arquitetos nacionais."(43)

Após prolongados trabalhos, a comissão de professores se decide por um local próximo à quinta da Boa Vista para a construção da Cidade Universitária, e dá início ao detalhamento dos projetos. A comissão de engenheiros e arquitetos, no entanto, tem idéias próprias.

Segundo longa carta de Ernesto de Sousa Campos e Azevedo do Amaral a Gustavo Capanema, em 14 de agosto de 1936, Lúcio Costa comunicara inesperadamente, ao final de junho, a existência de um projeto da comissão de engenheiros e arquitetos para construir a Cidade Universitária sobre as águas da lagoa Rodrigo de Freitas. Conforme a descrição, "assentariam todos os edifícios universitários sobre estacas, devendo ter todos a mesma altura standard com jardins suspensos, sendo cada um dos prédios ligado aos outros por meio de pontes e dos jardins suspensos atravessados por uma grande avenida aérea que, partindo da rua Humaitá, atravessaria todo o maciço universitário lacustre." A comissão de professores objeta com razões técnicas de vários tipos, afirmando, finalmente, que as comissões competentes encarregadas de determinar a localização da Cidade Universitária já tinham após longos estudos, concluído seus trabalhos em reunião realizada com o ministro.

Dado o clima político da época, é óbvio que o confronto entre as duas comissões, que se reflete no convite duplo a Piacentini e a. Le Corbusier, não era somente em função das diferenças estilísticas entre os dois arquitetos - o italiano com um estilo tradicional, monumental e pesado, o francês revolucionando a arquitetura moderna em tantos aspectos, em sua busca de formas puras e funcionais. Havia um componente profissional, já que Le Corbusier mantinha contatos com o grupo de arquitetos brasileiros liderados por Lúcio Costa; e um componente ideológico inegável, dada a dificuldade de separar a arquitetura italiana daqueles anos do fascismo.

Le Corbusier chega ao Rio de Janeiro a 13 de julho de 1936 pelo dirigível Hindenburg, quando o veto ao projeto inicial da lagoa Rodrigo de Freitas, inspirado por Lúcio Costa, já havia sido dado. Instala-se num escritório, informa-se sobre os programas, relatórios e estudos já feitos e dedica-se a um novo projeto da Cidade Universitária.

O ministro da Educação requisita a Le Corbusier três tarefas: um esboço geral, em planta, do plano urbanístico da Cidade Universitária, com a indicação do zoneamento dos diversos setores e dos edifícios de cada um deles; uma perspectiva geral da Cidade Universitária, de acordo com o esboço precedentemente indicado e a concepção adotada; e um relatório justificando o esboço.

Le Corbusier é contra pequenos edifícios disseminados e a favor de grandes blocos espalhados no campus. Seu projeto é de arquitetura e técnicas modernas, com todos os edifícios sobre pilotis para facilitar a livre circulação em todos os sentidos. Sugere a construção de 4km de viadutos e uma plataforma de 40.000m2 para resolver o problema de circulação de automóveis.

A rejeição pelo escritório dirigido por Ernesto de Sousa Campos e Azevedo do Amaral é total.(44) O longo arrazoado discute em detalhe as idéias de Le Corbusier sobre pistas elevadas para automóveis, e argumenta que mesmo nas maiores universidades da América do Norte, "mesmo naquele país onde o problema de conforto tem tido as soluções mais requintadas, jamais se cogitou de realizar o tráfego de veículos no recinto dos centros universitários por meio de um sistema de viadutos. Outras objeções incluem "a necessidade, estabelecida pelo projeto, de uso de ar condicionado para todos os edifícios da Cidade Universitária, o que acarretará elevadíssimas despesas não só de instalação como de manutenção; (...) a exigência de construção sobre pilares, segundo o tipo das habitações lacustres, não só para o hospital, como para todas as escolas, institutos e demais estabelecimentos universitários, sem indagar das exigências próprias às condições peculiares a cada um deles;" e inclusive a criação, no projeto, de instituições não previstas no plano da universidade "que não se coadunam com os princípios adotados, como sejam um museu de amostras e até uma faculdade de música mecânica". O parecer se volta finalmente contra a centralização das diversas unidades propostas no projeto de Le Corbusier, que é considerada como exagerada e não respeitosa das características específicas da instituição a que se destina. Segundo o parecer, a centralização deve estar condicionada "a um bom processo de sistematização capaz de conferir relativa independência a cada uma das unidades do centro universitário e mesmo a, cada um de seus departamentos. É um programa de individualização departamental que não se harmoniza com o da distribuição promíscua." "Neste sentido", acrescenta, "já por diversas vezes salientamos que o problema de composição do organismo universitário é de ordem educativa. As questões de arquitetura estão em plano inferior e principalmente no que diz respeito aos de doutrina arquitetônica." Em 10 de agosto Le Corbusier formaliza a entrega de seus trabalhos, e em 14 de agosto de 1936 os professores responsáveis pelo plano voltam à carga, fazendo uma retrospectiva detalhada do ocorrido até então. São comentados o projeto dos engenheiros e arquitetos e a vinda de Le Corbusier, "contratado por solicitação insistente dos arquitetos nacionais encarregados de elaborar o plano arquitetônico da Cidade Universitária e que alegaram ser indispensável, para o caso, a presença deste técnico estrangeiro, conduta aliás em contradição com a atitude assumida em relação à vinda ao Rio de Janeiro do arquiteto Marcello Piacentini."(45) O relatório constata a aparente improdutividade da comissão de técnicos e de Le Corbusier com as atividades da própria comissão de professores, sintonizada com Piacentini.

O golpe de misericórdia ainda tardaria alguns meses. Em 21 de outubro de 1936 o projeto de Le Corbusier, agora endossado pela comissão de engenheiros e arquitetos, é apresentado a uma comissão especial formada pela comissão geral do plano, e constituída por Leitão da Cunha, Azevedo do Amaral, Rocha Vaz, Luís Catanhede, Paulo Esberard Nunes Pires e Ernesto de Sousa Campos. A 12 de março de 1937, o parecer desta comissão, rejeitando o plano, é aprovado pela comissão geral, com o endosso de Capanema.

Em setembro de 1937 Lúcio Costa toma conhecimento do parecer da comissão e escreve ao ministro sobre seu desalento:
Agora que tudo já parece bem 'arrumado', venho lhe dizer o quanto dói ver uma idéia alta e pura como essa da criação da Cidade Universitária, tomar corpo e se desenvolver assim desse jeito. Quando, há dias, tomei conhecimento do relatório e verifiquei que tudo não passava de pura mistificação, quis exigir um inquérito, protestar, gritar contra tamanha injustiça e tanta má-fé. Logo compreendi, porém, a inutilidade de qualquer reação e que, quando muito iria servir mais uma vez de divertimento à maldade treinada dos 'medalhões'. Não veja, portanto, Dr. Capanema, neste meu alheamento, a aceitação das criticas abusadas que o relatório contém, nem a intenção, em outras circunstâncias louvável, de querer evitar maiores embaraços à sua ação, mas, tão-somente, a certeza - desamparado como me sentia - de que tudo seria vão. E o mais triste é que enquanto se perseverar, durante anos e anos, na construção dessa coisa errada, estará dormindo em qualquer prateleira de arquiteto a solução 'verdadeira' - a coisa certa(46).
A "coisa certa", como sabemos, teria sua oportunidade em outro projeto que, em comparação com o plano da Cidade Universitária, tinha todas as características de um prêmio de consolação: O edifício do Palácio da Cultura, o único que seria, afinal, realizado.(47)

Em outubro de 1937 Capanema extingue formalmente a comissão de engenheiros e arquitetos, agradecendo por carta a seus participantes e justificando o ato pelo veto da comissão do plano a seu projeto, sobre cujo mérito, diz, não lhe cabia julgar. Enquanto isto, haviam sido retomados os contatos com Marcello Piacentini, para a elaboração final do projeto.

Já em julho de 1936 o arquiteto Piacentini escrevia a Capanema reclamando dos meses de silêncio do governo brasileiro. Informado pelos jornais italianos, Piacentini estranha que a comissão encarregada do programa esteja se reunindo sem seu conhecimento. O arquiteto quer saber se ainda querem seu parecer e se deverá voltar ao Rio. Capanema responde que está interessado em sua participação, mas que o projeto foi entregue a arquitetos brasileiros, como exige a lei. Ainda assim convida Piacentini a vir ao Rio por um mês, como assistente da comissão.

Piacentini ressente-se com a atitude do ministro, já que o trabalho se desenvolveu de forma diferente do combinado no que se refere à sua participação. Ainda assim, aceita colaborar, mas diz não poder voltar ao Rio devido a seus compromissos na Europa. Sugere mandar em seu lugar seu assistente, o arquiteto Vitorio Morpurgo. O Ministério da Educação informa-se sobre Morpurgo e tem boas referências, concordando com sua vinda ao Rio. Capanema escreve ao presidente Vargas em setembro de 1937 pedindo autorização para o novo colaborador e a liberação de verba para a viagem e estadia. Nesta carta, Capanema fez uma retrospectiva do programa da Cidade Universitária, lembrando ao presidente a visita de Piacentini, o veto do anteprojeto de Le Corbusier, o anteprojeto da comissão de arquitetos brasileiros indicados pelas instituições representativas de engenharia e arquitetura e sua recusa pela comissão do plano da universidade. Capanema argumenta que se havia criado uma situação embaraçosa, já que o projeto foi elaborado pelos cinco melhores arquitetos brasileiros. Desta forma, justifica o novo contato com os italianos e a vinda de Morpurgo.

Em setembro de 1937 Vitorio Morpurgo chega ao Rio de Janeiro para fazer o anteprojeto geral da universidade. De acordo com a lei, fica acertado que Morpurgo se incumbiria de designar a distribuição dos edifícios das áreas livres e dar orientação arquitetônica para a obra, enquanto que os projetos de cada edifício seriam de responsabilidade dos arquitetos brasileiros. Morpurgo lança-se ao trabalho, acompanhado por carta por Piacentini. O ministro Capanema informa a Piacentini que Morpurgo é eficiente e que seu trabalho será publicado no Brasil como parecer técnico. Terminada sua estadia, o governo paga a Morpurgo e a seu secretário, Giovanni Contessi, que retornam à Itália. O embaixador da Itália comunica ao ministro da Educação a "honra e gratidão" do governo fascista pela colaboração Brasil-Itália.

Reunidos em Roma, Piacentini e Morpurgo desenvolvem o projeto. Fazem plantas, perspectivas, dando uma visão da distribuição dos edifícios, das áreas livres, do estilo arquitetônico. Utilizam os projetos feitos pelos brasileiros como o edifício da reitoria, a faculdade de direito, o hospital e o estádio. Enviam o anteprojeto para o Brasil, e este é aprovado por uma comissão composta por Inácio Azevedo do Amaral, Luís Catanhede e Ernesto de Sousa Campos. Piacentini e Morpurgo fazem uma maquete completa do conjunto para enviar para o Brasil, que fica retida na Alfândega. Capanema pede autorização ao presidente da República para desembaraçar a caixa com a maquete, a tempo de figurar na exposição do Estado Novo.

Antes de ser enviado ao Rio, no entanto, o projeto é exposto na embaixada brasileira em Roma, e é noticiado e descrito pela imprensa italiana. La Tribuna, de Roma, publica uma foto do edifício da reitoria, e descreve em detalhe o projeto. "A faculdade de ciências, letras e filosofia, com as de direito e de ciências sociais, formam as alas da praça da reitoria, à qual se acede por uma frente de pórticos onde nasce o Museu Geral; ao fundo da praça fica o palácio da Reitoria, que, na solenidade de sua expansão arquitetônica, expressa sua função de órgão coordenador e de comando das atividades didáticas e culturais do Ateneu."(48)

Maquete do Prédio da Reitoria da Cidade Universitária do Rio de Janeiro, Projeto de Marcello Piacentini

FGV - CPDOC, Arquivo Gustavo Capanema

"Em estreita ligação com o parque da Boa Vista", prossegue o artigo, "quase como um prolongamento deste, está o centro de esportes, dominado pelo grande estádio olímpico; um viaduto duplo, passando sobre a linha férrea, estabelece a continuidade entre o velho e o novo parque. Enlaçado ao grupo dominante da reitoria está o centro de engenharia próximo da zona industrial e servido pela linha férrea. O centro de Medicina se desenvolve em direção ao populoso bairro de São Luís Gonzaga,(49) com o Hospital das Clínicas e com as clinicas especiais, enquanto que o conjunto das faculdades afins à medicina circunda o bloco dos laboratórios. A casa das enfermeiras, na forma de casa-torre, fica aos fundos da maior artéria transversal da Cidade Universitária. O conjunto de clínicas de doenças mentais fica afastado, em uma Posição elevada, e dispõe de um parque próprio e fechado." Depois de descrever a localização da Escola de Belas-Artes, o artigo menciona que o velho palácio da família imperial, cercado de pórticos e parcialmente transformado para dar lugar à construção de uma grande sala de concertos, poderá dar lugar "à Escola de Música, em nobre isolamento". Há lugar para uma residência universitária e um observatório astronômico, no morro do Telégrafo, e, finalmente, um templo: "A pouca distância do observatório e ligado a ele por uma disposição arquitetônica saliente, com grandes degraus, surge sobre o terraço belvedere um pequeno templo circular, nobre elemento de estilo clássico que permite identificar à distância a zona ocupada pela Cidade dos Estudos. Á noite, potentes fachos luminosos saindo do recinto das colunas transformarão o pequeno templo em um farol que bem poderia ser designado pelo nome de 'Farol da Civilização Latina'." O Il Messagero, do mesmo dia, descreve o projeto em termos semelhantes, ilustrando com a maquete do estádio olímpico e dos viadutos sobre a linha de trem.

Um ano mais tarde, em outubro de 1939, Morpurgo volta ao Brasil para informar-se sobre o andamento dos trabalhos e receber a parte final dos seus honorários. O governo brasileiro havia pago 300 contos pelo serviço e só as despesas de elaboração do projeto somavam 600 contos. O embaixador italiano no Brasil, Ugo Sola, intervém na cobrança. Escreve a Osvaldo Aranha, ministro das Relações Exteriores, reclamando o pagamento.

Passa-se mais um ano e a questão da Cidade Universitária não é resolvida. Em novembro de 1940, Piacentini escreve novamente a Capanema, argumentando que o trabalho estava concluído há mais de um ano e que ele e Morpurgo ainda não haviam recebido os 300 contos restantes.

É possível que esta dívida tenha sido saldada; a construção da Cidade Universitária, no entanto, não chegaria a ser iniciada na gestão de Capanema. Um decreto-lei de 1944 n 6.574, de 8 de junho, transfere a localização da futura Cidade Universitária para a Vila Valqueire, antiga fazenda Valqueire; outro, de 21 de maio de 1945 n 7.566, transfere novamente o local para a ilha do Fundão, onde a sede da futura Universidade Federal do Rio de Janeiro seria finalmente construída sem nada incorporar dos projetos de Piacentini ou Le Corbusier.



Notas

1. Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond. Em: Carlos Drummond de Andrade. A lição do amigo. Cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro, José Olympio, 1982, pp. 15 e 16.

2. Idem, ibidem, p. 26.

3. Idem, ibidem, p. 104. A noção de que o modernismo se converteu, de um projeto estético, em um projeto ideológico, é defendida por João Luís Lafetá, 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo, Duas Cidades, 1974. Um panorama do ambiente cultural brasileiro na década de 30 é apresentado por Antônio Cândido em sua contribuição ao simpósio sobre a Revolução de 30 organizado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 1983 (Porto Alegre, Estante Riograndense União de Seguros, pp. 108-123).

4. Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. Em: Carlos Drummond de Andrade. A lição do amigo, op. cit., p. 197..

5. Idem, ibidem, p. 198

6. Carta de Mário de Andrade a Capanema, 22 de junho de 1938. GC/Andrade, M. doc. 6, série b.

7. Idem, 23 de fevereiro de 1939. GC/Andrade, M. doc. 7, série b.

8. Idem, ibidem.

9. Carta de Mário de Andrade a Capanema, 30 de junho de 1939. GC/Andrade, M. doc. 9, série b.

10. Carta de Drummond a Capanema, 25 de março de 1936. GC/Andrade, C. doc. 8, série b.

11. Carta de Alceu Amoroso Lima a Capanema, 19 de março de 1935 (?) GC/Lima, A-106, série b.

12. Nomes constantes de um papel com o título "Pessoas que eu recomendaria vivamente cargo em matéria pedagógica." GC/Lima, A. doc. 94, série b.

13. Arquivo Gustavo Capanema. GC 34.09.22.

14. Idem, ibidem.

15. idem, ibidem

16. "A racionalização do governo". Em: Simon Schwartzman (org.). Estado Novo, um auto-retrato. Brasilia, Editora da Universidade de Brasilia, 1983, pp. 61-62.

17. Projeto de Lei; arquivo Gustavo Capanema. GC 34.09.22.

18. Gustavo Capanema. "Exposição de motivos do projeto sobre o Serviço de Radio difusão do MES". 24 de fevereiro de 1938. GC 36.12.00.

19. Idem, ibidem.

20. Idem, ibidem.

21. Idem, ibidem.

22. Decreto-lei no. 5.077, de 29 de dezembro de 1939.

23. Roquette Pinto ao ministro Capanema, 11 de julho de 1942. GC 35.00.00/2.

24. Villa-Lobos, conferência em Praga. Traduzido do francês. GC 36.02.12-A. Pasta 1. Observa Alberto Venâncio Filho que "as primeiras demonstrações de massa de canto orfeónico foram iniciadas por Villa-Lobos quando Anísio Teixeira era secretário de Educação e Cultura do Distrito Federal, sem os aspectos de culto à personalidade nas quais posteriormente foram envolvidas" (comunicação pessoal).

25. Plano de Mário de Andrade (manuscrito, sem assinatura, s.d.) enviado a Capanema. GC 36.02.12.

26. Idem, ibidem.

27. Oficio de Villa-Lobos ao ministro Capanema. GC 37.00.00/5-3.

28. Idem, ibidem.

29. Arquivo Gustavo Capanema, GC 37.00.00/5-A-5.

30. Idem, GC 42.05.12/2.

31. Idem, GC 36.02.12.

32. Simon Schwartzman (org.). Estado Novo: um auto-retrato. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1983.

33. Carta de Lúcio Costa a Capanema, outubro de 1945. GC/Costa, Lúcio. doc. 1 série b.

34. Idem, ibidem.

35. Idem, ibidem.

36. Idem, ibidem.

37. Carta de Capanema a Portinari, 7 de dezembro de 1942. GC/Portinari, C. doc. 19, série b.

38. Carta de Portinari a Capanema, s.d., GC/Portinari, C., doc. 18, série b.

39. Carta de Portinari a Capanema, 29 de novembro de 1940. GC/Portinari, C. doc. 5, série b.

40. Discurso de Capanema na sessão de instalação solene da comissão do plano da Cidade Universitária, 22 de julho de 1935. GC 35.07.19, pasta 1, doc. 3, série g. Em 1935, faziam parte da Comissão: Raul Leitão da Cunha, reitor da Universidade do Rio de Janeiro; Rocha Vaz, da Faculdade de Medicina; Filadelfo de Azevedo, da Faculdade de Direito; Inácio de Azevedo do Amaral e Carneiro Felipe, das Escolas de Química e Politécnica; Flexa Ribeiro, da Escola Nacional de Belas-Artes; Antônio de Sá Pereira, do Instituto Nacional de Música; Lourenço Filho, da área de educação; Roquette Pinto e Jônatas Serrano, "portadores de profundos conhecimentos literários, filosóficos e científicos", como representantes da futura Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras; e Ernesto de Sousa Campos. Mais tarde foram incluídos Plinio Catanhede e Paulo Eduardo Nunes Pires.

41. Carta do ministro das Relações Exteriores, José Carlos Macedo Soares à embaixada de Roma. Arquivo Gustavo Capanema.

42. Resposta do ministro Capanema, em telegrama, ao presidente do Sindicato Nacional de Engenheiros, 25 de julho de 1935. GC 35.03.09, pasta 1, doc. 34, série g.

43. Cartas de Antônio de Sá Pereira ao ministro Capanema, 22 de julho de 1936 e 25 de agosto de 1936. GC 36.02.12-B.

44. Parte de um documento enviado particularmente ao Dr. Luís Simões Lopes com um cartão de Bittencourt de Sá a 12/9/1944, em papel timbrado do Departamento de Administração do MES. GC 35.07.19, pasta VIII - doc. 10, série g

45. Oficio enviado ao ministro Capanema, 14 de agosto de 1936, por Ernesto de Sousa Campos e Inácio Azevedo do Amaral GC 35.07.19, pasta 1, doc. 35. série g.

46. Carta de Lúcio Costa a Capanema, setembro de 1937. GC 35.03.09, pasta V-19, série g. Veja Colunas da educação: a construção do Ministério do Educação e Saúde, Rio de Janeiro, FGV e Fundação Nacional Pró-Memória, 1985.

47. A história da construção do Palácio da Cultura é objeto de uma coletânea de documentos que está sendo organizada por Mauricio Lissovsky e Paulo Sérgio Morais de Sá, pesquisadores do CPDOC.

48. La Tribuna, 7 de julho de 1938. (Agradecemos à Patrizia Suzzi pela tradução do original).

49. Trata-se do bairro de São Cristóvão.