TEMPOS DE CAPANEMA

SIMON SCHWARTZMAN, HELENA MARIA BOUSQUET BOMENY, VANDA MARIA RIBEIRO COSTA

1ª edição: Editora da Universidade de São Paulo e Editora Paz e Terra, 1984 - 2ª edição, Fundação Getúio Vargas e Editora Paz e Terra, 2000.



Capítulo 4
Contenção das Mulheres, Mobilização dos Jovens


1. O lugar das mulheres

2. O Estatuto da Família

3. A Organização Nacional da Juventude

4. A Juventude Brasileira

5. Os limites da mobilização

Notas


1. O lugar das mulheres
Os poderes públicos devem ter em mira que a educação, tendo por finalidade preparar o indivíduo para a vida moral, política e econômica da nação, precisa considerar diversamente o homem e a mulher. Cumpre reconhecer que no mundo moderno um e outro são chamados à mesma quantidade de esforço pela obra comum, pois a mulher mostrou-se capaz de tarefas as mais difíceis e penosas outrora retiradas de sua participação. A educação a ser dada aos dois há, porém, de diferir na medida em que diferem os destinos que a Providência lhes deu. Assim, se o homem deve ser preparado com têmpera de teor militar para os negócios e as lutas, a educação feminina terá outra finalidade que é o preparo para a vida do lar. A família constituída pelo casamento indissolúvel é a base de nossa organização social e por isto colocada sob a proteção especial do Estado. Ora, é a mulher que funda e conserva a família, como é também por suas mãos que a família se destrói. Ao Estado, pois, compete, na educação que lhe ministra prepará-la conscientemente para esta grave missão.(1)
O tratamento especial que Capanema reserva às mulheres se desdobraria em dois planos. Por um lado, haveria que proteger a família; por outro, haveria que dar à mulher uma educação adequada ao seu papel familiar. Os diversos projetos e propostas elaborados com este objetivo mostram certa evolução, que vai desde uma divisão extrema de papéis entre os sexos até uma atitude mais conciliatória, que chega até mesmo, a aceitar, em 1942, a co-educação, ainda que de forma excepcional. Foi uma evolução provocada, acima de tudo, pela força dos fatos.

O projeto do Plano Nacional de Educação de 1937 previa a existência de um ensino dito 'doméstico', reservado para meninas entre 12 e 18 anos, e que equivaleria a uma forma de ensino médio feminino. Seu conteúdo era predominantemente prático e profissionalizante, e fazia parte, no plano, do capítulo destinado ao ensino da "cultura de aplicação imediata à vida prática ou ao preparo das profissões técnicas de artífices."(2) Era, pois, destinado principalmente a mulheres de origem social mais humilde, ainda que pudesse atrair também mulheres de origem social mais elevada, que dessa forma poderiam manter-se em um regime escolar estritamente segregado.

Manifstação Cívica. FGV - CDPODC, Arquivo Capanema

Segundo o plano, o ensino feminino se dividiria em doméstico geral (dois ciclos), doméstico agrícola (também dois ciclos) e doméstico industrial. O primeiro ciclo prepararia as mulheres para a vida no lar, o segundo formaria as professoras para esse sistema. No primeiro ciclo haveria, além dos trabalhos domésticos, o ensino do português, moral familiar, noções de civilidade, matemática elementar, ginástica e canto. O aperfeiçoamento, por mais um ano, incluía a puericultura e "noções práticas de direito usual." A formação de professores para o sistema seria feita através da Escola Normal Doméstica, onde, durante dois anos, seriam estudados psicologia, moral e educação familiar, sociologia, direito da família, economia doméstica e contabilidade doméstica. O ensino agrícola e industrial femininos seguiriam trajetos similares, mas adaptados à realidade da vida no campo ou no mundo fabril. O ensino doméstico rural deveria incluir, por isto, ensinamentos sobre diversas técnicas de cultivo e colheita, industrialização caseira de alimentos etc.

Este sistema paralelo de ensino não chegaria a ser criado, sobrevivendo, no entanto, desse modelo o programa de educação doméstica tradicionalmente desenvolvido em algumas poucas instituições católicas destinadas à educação feminina. A Lei Orgânica do Ensino Secundário termina por adotar um ensino único, ainda que com recomendações específicas para o tratamento diferencial dos sexos. Em uma de suas versões preliminares, havia ainda a previsão de uma "educação familiar, que será ministrada somente às mulheres, até os 21 anos, e que consistiria no ensino de matérias relativas aos deveres femininos dentro do lar."(3) Mais adiante, porém, fica dito que "a legislação será uma só e idênticos os preceitos. Apenas os preceitos relativos aos programas determinarão que estes atendam diversamente, onde convier, aos dois sexos. Os programas devem ser organizados com a conveniência educativa de cada sexo. Certos programas não podem deixar de ser idênticos. Em outros, far-se-á a distinção não na matéria mas nas instruções pedagógicas. Em outros, a distinção será recomendada em tudo, recomendações pedagógicas e matéria a ensinar."(4)

Podemos dar um exemplo de como seriam essas instruções pedagógicas: "(...) O livro de leitura deve conter além das páginas que satisfazem à prescrição do programa para cada série, matéria de leitura orientada em dois sentidos. Os textos destinados de preferência à atenção das meninas devem encarecer as virtudes próprias da mulher, a sua missão de esposa, de mãe, de filha, de irmã, de educadora, o seu reinado no lar e o seu papel na escola, a sua ação nas obras sociais de caridade, o cultivo daquelas qualidades com que ela deve cooperar com o outro sexo na construção da pátria e na ligação harmônica do sentimento da pátria com o sentimento da fraternidade universal. Os excertos que visarem à educação das crianças do sexo masculino procurarão enaltecer aquela têmpera de caráter, a força de vontade, a coragem, a compreensão do dever, que fazem os grandes homens de ação, os heróis da vida civil e militar, e esses outros elementos, mais obscuros, porém não menos úteis à sociedade e à nação, que são os bons chefes de família e os homens de trabalho, justos e de bem."(5)

Estas idéias são preservadas na Lei Orgânica do Ensino Secundário, que inclui uma série de "prescrições especiais" para o ensino secundário feminino:
1 - É recomendável que a educação secundária das mulheres se faça em estabelecimentos de ensino secundário de exclusiva freqüência feminina.
2 - Nos estabelecimentos de ensino secundário freqüentados por homens e mulheres, será a educação destas ministrada em classes exclusivamente femininas. Este preceito só deixará de vigorar por motivo relevante, e dada especial autorização do Ministério da Educação.
3 - Incluir-se-á na 3a. e na 4a. séries do curso ginasial e em todas as séries dos cursos clássico e científico a disciplina de economia doméstica.
4 - A orientação metodológica dos programas terá em mira a natureza da personalidade feminina e bem assim a missão da mulher dentro do lar.(6)
A economia doméstica foi o que ficou implantado definitivamente nas escolas secundárias como educação feminina. As associações femininas católicas, tradicionalmente ligadas à educação e à assistência de meninas, prestariam inestimável contribuição a este tipo de ensino. A Liga das Senhoras Católicas de São Paulo organiza, logo depois de promulgada a Lei Orgânica do Ensino Secundário, um Curso de Emergência para a preparação de professores de economia doméstica "sob os auspícios do Ministério da Educação e Saúde".

As aulas de higiene tratariam, entre outras coisas, de alimentos, vestuário, habitação, higiene da escola e do lar. A enfermagem consistia em ensinar cuidados com o doente, seu ambiente, visitas, tomar temperatura, pulso e injeções. A culinária ensinaria a preparar alimentos, doces, salgados, bebidas, sua ornamentação e maneiras de receber visitas. O programa de economia incluiria o estudo do custo de vida e salário, o salário do chefe de família e sua distribuição, a mulher no trabalho, importância, restrições. A sociologia educacional trataria de ensinar o papel da família, da Igreja e do Estado na educação; a crise, o salário, a mulher no trabalho, seus problemas, causas e soluções para o pauperismo.

O programa destinado à educação de meninas de 12 a 15 anos destinava-se a "dar às mocinhas que terminaram o seu curso primário uma formação complementar que possa facilitar-lhes no futuro o acesso a boas colocações, tornando-se ao mesmo tempo boas donas-de-casa e mães de família."(7) O curso de aperfeiçoamento seria mais complexo, incluindo não só os estudos de arte culinária, mas também várias disciplinas voltadas para o aspecto nutricional dos alimentos. Os cursos de higiene, puericultura e contabilidade seriam de alto nível. O curso de criação e trato de animais domésticos seria um verdadeiro curso de veterinária. Na Escola Normal de Educação Familiar estudar-se-ia, entre outras coisas, a geografia econômica e a pedagogia, concentrando-se em assuntos como "o domínio da vontade", "o amor-próprio", "o ponto de honra", "Freud e a psicanálise". A sociologia trataria especificamente da "sociedade doméstica", "a família à luz da razão e da fé", "o divórcio", "o feminismo", "a relação da família com o Estado" e "problemas democráticos."

2. O Estatuto da Família

Mas a educação feminina era somente parte de um todo muito mais amplo. Em 19 de abril de 1941, Getúlio Vargas assinava o decreto-lei de número 3.200, que "dispõe sobre a organização e proteção da família." O decreto regulava o casamento de "colaterais do terceiro grau", dispunha sobre os efeitos civis do casamento religioso, estabelecia incentivos financeiros ao casamento e à procriação e facilitava o reconhecimento de filhos naturais. Em sua aparência modesta, o decreto era o resultado, no entanto, de um projeto muito mais ambicioso, que, a pretexto de dar proteção à família brasileira, teria tido profundas conseqüências em relação à política de previdência social, ao papel da mulher na sociedade, à educação e até, eventualmente, em relação à política populacional do país.

O ponto de partida foi o projeto de um decreto-lei de um "estatuto de família" que seria assinado por Vargas em 7 de setembro de 1939, oriundo do ministério Capanema, mas que não chegou a ser promulgado. Antes, ele sofreria as críticas de Francisco Campos e Osvaldo Aranha, haveria uma réplica de Capanema, outros pareceres seriam elaborados, e finalmente seria constituída uma Comissão Nacional de Proteção da Família, da qual uma série de projetos específicos se originariam.

O estatuto proposto por Capanema era um documento doutrinário que buscava combinar duas idéias para ele indissociáveis: a necessidade de aumentar a população do país e a de consolidar e proteger a família em sua estrutura tradicional. Segundo o texto, a prosperidade, o prestígio e o poder de um país dependiam da sua população e de suas forças morais: a família era a fonte geradora de ambos. No dizer do preâmbulo do projeto, "a família é a maior base da política demográfica e ao mesmo tempo a fonte das mais elevadas inspirações de estímulo morais".

A moral e a conveniência estavam por conseguinte, totalmente conjugadas. A família era definida como uma "comunidade constituída pelo casamento indissolúvel com o fim essencial de gerar, criar e educar a descendência", e por isto considerada como "o primeiro fundamento da nação". Contudo, seria um equívoco pensar que ela de fato "fundasse" o Estado, ou tivesse, de alguma forma, precedência sobre ele. Ao contrário, a família era vista como uma planta tenra, bastante vulnerável e sob a ameaça constante de corrupção e degradação. É por isto que ela era colocada sob a tutela e "a proteção especial do Estado, que velará pela sua formação, pelo seu desenvolvimento, pela sua segurança e pela sua honra." Dai uma série de corolários inevitáveis que são explicitados no projeto.

A primeira medida seria facilitar ao máximo o casamento. Existia uma providência jurídica para isto - o reconhecimento civil do casamento religioso - e uma série de providências de tipo econômico: o casamento seria incentivado por empréstimos matrimoniais, impostos são propostos para solteiros e casados ou viúvos sem filho, e um abono é sugerido para recompensar financeiramente as famílias de prole numerosa. Outras medidas constantes do estatuto incluem o amparo á maternidade através da subvenção a instituições de assistência na área privada, o amparo à infância e à adolescência, a proteção legal aos filhos ilegítimos, e a concessão de prêmios de núpcias, de natalidade, de boa criação e outros. Não faltava, no projeto, a criação do Dia Nacional da Família.

Além destas medidas voltadas especificamente para o núcleo familiar existiam várias outras com repercussões mais profundas. Uma delas se referia ao mercado de trabalho. O estatuto previa que os pais da família tivessem preferência "em investidura e acesso a todos os cargos e funções públicas", na competição com os solteiros ou casados sem filhos, exceto em cargos de responsabilidade. Mais ainda, o artigo 14 previa que "o Estado adotará medidas que possibilitem a progressiva restrição da admissão de mulheres nos empregos públicos e privados. Não poderão as mulheres ser admitidas senão aos empregos próprios da natureza feminina, e dentro dos estritos limites da conveniência familiar".

Esta restrição ao trabalho feminino estava ligada à tese da mais absoluta divisão de papéis e de responsabilidade dentro do casamento. Isto se refletia, também, na área da educação, onde estava previsto que "o Estado educará ou fará educar a infância e a juventude para a família. Devem ser os homens educados de modo a que se tornem plenamente aptos para a responsabilidade de chefes de família. Às mulheres será dada uma educação que as torne afeiçoadas ao casamento, desejosas da maternidade, competentes para a criação dos filhos e capazes da administração da casa" (art. 13). Esta divisão de papéis precisava, evidentemente, ser garantida e protegida. Para isto, seria necessário fortalecer a comunidade familiar, "quer pela elevação da autoridade do chefe de família, quer pela maior solidificação dos laços conjugais, quer pela mais extensa e imperiosa obrigação de assistência espiritual e material dentro do núcleo familiar."

Não bastariam, entretanto, estas medidas, porque a ameaça à família parecia vir de todas as partes. Por isto, impunha-se a necessidade da censura generalizada: o artigo 15 previa que "o Estado impedirá que, pela cátedra, pelo livro, pela imprensa periódica, pelo cinema, pelo teatro e pelo rádio, ou ainda por qualquer meio de divulgação, se faça, direta ou indiretamente, toda e qualquer propaganda contra o instituto da família ou destinada a estabelecer restrições à sua capacidade de proliferação." Mas, não bastava proibir, era necessário incentivar: assim, o estatuto estabelecia para o Estado a responsabilidade de favorecer, "de modo especial, o desenvolvimento das letras e das artes dignamente inspiradas no problema e na existência familiar, e utilizará os diferentes processos de propaganda para criar, em todos os meios, o clima moral propício à formação, à duração, à fecundidade e ao prestígio das famílias."

O casamento incentivado, a prole numerosa premiada, a mulher presa ao lar e condicionada ao casamento, a chefia paterna reforçada, a censura moral estabelecida em todos os níveis, as letras e as artes condicionadas pela propaganda governamental: tal é o projeto que sai do Ministério da Educação e Saúde.

O arquivo Capanema contém inúmeros estudos e subsídios para a elaboração deste projeto. Dentre estes, ressalta um documento do padre Leonel Franca intitulado "O problema da natalidade." Nele, Leonel Franca começa por afirmar que "a diminuição da natalidade é o maior flagelo que pode ameaçar uma nação na sua vitalidade. Leva diretamente ao suicídio social." Além disto, esta seria uma doença de cura quase impossível, sendo necessário, portanto, preveni-Ia. Daí, uma série de sugestões, entre as quais:
- Redução progressiva do trabalho feminino fora do lar (a mulher que trabalha fora, funcionária ou operária, ou não é mie, ou não é boa mãe, ou não é boa funcionária). O salário familiar permite a volta da mulher à casa, com mentalidade renovada.
- Luta contra o urbanismo. Os grandes centros são hostis às famílias numerosas. Rumo à terra! Rumo ao campo!
- Proibição de instrumentos e drogas destinadas a práticas anticoncepcionais (veja anexa a lei francesa, de 31 de julho de 1920) - Proibição de livros, folhetos, cartazes, filmes, peças de teatro e de qual quer propaganda anticoncepcional.
- Proibição legal eficiente do aborto.
- Conservar o clima espiritual e cristão em que respiram as famílias brasileiras e lutar contra o materialismo que alimenta a concepção egoísta da vida estéril.
A inspiração dos setores católicos mais militantes ao projeto fica ainda mais patente quando nos deparamos, no arquivo Capanema, com o texto de um artigo assinado com o nome de Tristão de Ataíde, e em linguagem pretérita. É um artigo de elogios sem reservas a Vargas e a Capanema: "O governo nacional comemorou O Dia da Pátria, este ano, de maneira excepcional. Houve um movimento unânime de opinião. As demonstrações escolares e militares foram impressionantes. E não faltou a colaboração fraterna de grandes nações vizinhas, mostrando que a América entende e aprecia devidamente o que é o valor supremo da paz com dignidade." De todos os eventos da data, continua o artigo, "nenhum excedeu, a meu ver, em importância, o da promulgação da lei a que se deu o nome tão expressivo de Estatuto da Família." Por este ato, "o Dr. Getúlio Vargas e o Dr. Gustavo Capanema merecem os aplausos incondicionais da opinião pública brasileira."

Depois de elogiar a lei e sumariar seus principais dispositivos, o artigo levanta uma possível dúvida, mas que é logo desfeita: "A única restrição que lhe poderia ser aplicada, isto é, a do temor de uma ingerência exagerada do Estado na vida privada das famílias, está excluída pela leitura de todos os dispositivos da lei que visam, todos eles, dignificar e ampliar a posição da família no conjunto das atividades nacionais, sem que nenhum viole os seus direitos naturais e primaciais." Estabelecido desta forma que a intervenção do Estado é para o bem, resta a tarefa de evitar que o decreto não se efetive: "O que nos deve inquietar é que o despeito dos divorcistas, dos anticoncepcionistas, dos feministas libertários, dos pregadores confessados ou disfarçados do anarquismo sexual, consigam lançar sobre este admirável monumento legislativo o véu do silêncio, do descrédito e da letra morta."

A vitória, no entanto, fora cantada antes do tempo. Vargas sente, evidentemente, as dificuldades de um estatuto desta natureza, e prefere ouvir outras opiniões. A critica feita em conjunto por Oswaldo Aranha e Francisco Campos é bastante negativa na forma, mas, curiosamente, não apresenta maiores divergências de fundo. Assim, muitos dos artigos propostos são criticados, porque já estariam implícitos na legislação ou na Constituição de 1937. Do artigo 13, por exemplo, que previa uma educação diferenciada para os sexos, diz-se que ele "se reduz a uma tirada puramente literária", já que "esses fins já estão implícitos na legislação". O artigo 14, que restringia o trabalho feminino, foi considerado "de caráter puramente regulamentar, visto que os regulamentos relativos à admissão ao serviço público compreendem a restrição recomendada no artigo"; a parte sobre a censura é também considerada supérflua, já que "a propaganda contra a família já é considerada pelas leis em vigor como atividade subversiva"; os empréstimos familiares, finalmente, são considerados como um incentivo monetário ao "casamento de pessoas incapazes ou miseráveis, não cabendo evidentemente ao Estado estimular ou favorecer este tipo de casamento".

Capanema não teria maiores dificuldades em rebater ponto por ponto este tipo de objeções, e isto lhe dá oportunidade para explicitar melhor seus pontos de vista. Em sua "análise do parecer oposto ao projeto de Estatuto da Família", ele reafirma a importância da família para o crescimento demográfico do país, tendo em vista, principalmente, que "as boas correntes imigratórias vão escasseando, e, de outro lado, a nossa legislação adotou, em matéria de imigração, uma política restritiva. E não haveria dúvida de que a grandeza de um país depende, em grande parte, do número de habitantes que contém." Para confirmar isto, cita Daladier e Mussolini: "La potenza militare dello Stato, 1' avvenire e la sicurezza della nazione sono legati al problema demografico, assilante in tutti i paesi de razza bianca e enche nel nostro. Bisogna riaffirmare ancora una volta e nella manera piú perentoria e non sarà l' ultima che condizione insostituible dei primato à il numero."

Ora, a família, base para o poder nacional, está sob ameaça: "Também entre nós", escreve Capanema, "contra a estrutura material e moral da família conspiram os costumes", e isto exige ir muito além do que prescrevia a legislação existente. "É sabido que, apesar da declaração constitucional da indissolubilidade do casamento, apesar do caráter antidivorcista da nossa legislação civil, a sociedade conjugal aqui e ali se dissolve, não para o mero efeito da separação inevitável, mas para dar lugar a novos casamentos, celebrados alhures, sem validade perante nossas leis, mas praticamente com os mesmos efeitos do casamento verdadeiro. Neste ponto da defesa da comunidade conjugal, não pode o Estado cruzar os braços e dizer que o que cumpria fazer está feito." Uma das medidas propostas, a restrição ao trabalho feminino, também é justificada como inovação importante: "A restrição de que cogita o artigo criticado se refere também aos empregos de ordem privada", diz Capanema, observando que, até então, "as mulheres (eram) continuamente admitidas, sem nenhuma restrição, em quase todos os serviços públicos do país."

A réplica de Capanema conclui, finalmente, com uma visão clara das profundas implicações do estatuto que propunha: "É necessário realizar uma grande reforma na nossa legislação sobre tudo que diz respeito ao problema da família. Esta reforma deverá consistir em modificações a serem feitas no direito civil e no direito penal, nas leis relativas à previdência e à assistência social, nas leis dos impostos e outras; há de consistir sobretudo na introdução de inovações substanciais de grande importância como sejam o abono familiar, o voto familiar, a educação familiar etc. E de notar que medidas parciais não bastam."

Esta legislação não passaria, entre outras razões pelo fato de que o governo Vargas preferia sempre a legislação pragmática e casuística à legislação doutrinária e ideológica. Não faltaram, além disso, outras vozes discordantes. Uma delas, cuja influência real é difícil avaliar, foi a de Rosalina Coelho Lisboa, jornalista e diplomata extremamente ativa na década de 1930 e identificada com o feminismo, por uma parte, e com as ideologias de direita por outra. Em 1939, eia escreve a Osvaldo Aranha uma longa carta sobre a questão feminina no Brasil, provocada, sem dúvida, pelo próprio Aranha, no contexto da discussão sobre o Estatuto da Família. Rosalina Lisboa atribui a Vargas um papel importante na melhoria da condição feminina no país. "Antes dele no Brasil a mulher era uma coisa que geralmente estava à venda como objeto de matrimônio (preço: casa, roupa, teto, dinheiro para alfinetes e, last but not least, garantia para os filhos); ou na venda aviltante da escravatura branca." Limitar hoje seu campo de trabalho, impedi r que ela possa competir, "leal e limpamente", com os homens seria voltar atrás na emancipação política que Vargas havia dado á mulher. E Rosalina Lisboa rebate argumentos do próprio Aranha: "Como é possível que se limite a possibilidade de trabalho de milhões de mulheres porque 'há países que não as aceitam e ridicularizam'? Mas você diz: qual o tratamento devido ao marido? Vaidade dos homens, terrível e cruel! (...) Pois o marido terá a posição a que ganhar direito - igualdade se é de valor pelo seu lado, e inferioridade se é inferior." "O elemento melhor do casal é que deve se impor naturalmente."(8)

A carta de Rosalina Lisboa desvenda um aspecto central da legislação proposta por Capanema, que não tem a ver nem com a questão demográfica, nem com os princípios religiosos, mas, simplesmente, com os preconceitos e a "vaidade dos homens". Uma critica mais profunda ao projeto, feita por um assessor qualificado de Vargas, que se mantém anônimo leva este desvendamento ainda mais longe. Esta crítica tem muitos pontos em comum com um texto de Oliveira Viana, intitulado "Política da população", elaborado ainda na fase preliminar do projeto, cujas idéias principais vale a pena reproduzir.

Perguntado sobre as medidas que o Estado deveria tomar para o rápido e progressivo aumento da população", por um lado, e para a "proteção da família", por outro, Oliveira Viana deixa de lado as preocupações morais dos setores católicos para abordar os dois temas em conjunto com o de uma política da população, para ele uma "politica de quantidade; mas, também, uma politica de qualidade, no sentido eugênico da palavra."

Seu ponto de partida é a própria observação da realidade brasileira: o Brasil não teria um problema de redução de nupcialidade, nem de redução de natalidade. Em relação ao primeiro, diz ele, "minha impressão é que o brasileiro, seja da cidade, seja do campo, seja da baixa, seja da alta classe, casa cedo, mesmo cedo demais e sem aquelas cautelas e garantias (dotes etc.) tão comuns nos povos europeus." A única coisa que dificultaria o casamento seria a falta de empregos; conseqüentemente, o problema seria meramente econômico. Ou, em suas palavras, "a nossa política da população, no que toca ao aumento da nupcialidade, será uma decorrência imediata de nossa política de fomento de novas fontes de riqueza, de novos campos de trabalho, de criação de novas indústrias, ou da abertura de novas terras à colonização." A nupcialidade poderia ser ainda estimulada por alguns incentivos específicos de tipo econômico, como preferência para empregos e nomeações, empréstimos e adiantamentos financeiros, principalmente para a aquisição de moradia. . . Todavia estas medidas só teriam efeito se estivessem vinculadas a uma política mais ampla, que incluísse "a) o barateamento do custo de vida; b) o desenvolvimento da estrutura industrial; c) a colonização do Hinterland e o fracionamento da propriedade rural."

A natalidade poderia também ser estimulada por medidas de tipo econômico, como prêmios e famílias numerosas, reduções de impostos, facilidades educacionais, e inclusive pelo "estímulo de correntes migratórias de etnias prolíficas (como a portuguesa e a italiana)". No entanto, nada disso seria muito importante, já que, em relação a casamentos e natalidades, "pecamos por excesso, e não por falta: estamos, neste particular, dentro do determinismo de todos os demais povos, semelhantes ao nosso, que habitam climas tropicais e amenos, em países onde a terra sobra e a vida é fácil e sem exigências." O problema real é, a seu ver, o da mortalidade infantil: "Os brasileiros como que surgem da terra aos cardumes; mas, destes recém-nascidos só uma porcentagem reduzida sobrevive e chega à segunda infinda e à adolescência. Eis o fato."

O problema é, pois, novamente econômico e principalmente rural. Nas cidades já existiriam instituições previdenciárias e assistenciais em grande número, que deveriam ser reforçadas e ampliadas. No campo, no entanto, a situação seria dramática: nesta população do interior, 90% dos brasileiros, segundo seus cálculos, "é que está a base de nosso povo, a sua fonte demogênica preponderante. Ora' é nela, entretanto, que encontramos os coeficientes mais altos de crianças cacogênicas ou mortas na primeira infância." A solução proposta é a criação de uma série de instituições assistenciais para o campo, incluindo o seguro-maternidade, a proteção à mulher grávida, maternidades e ambulatórios em todos os municípios, dispensários, creches etc.

A questão seria como financiar e organizar todo este programa. Oliveira Viana reconhece o problema e propõe como solução a mobilização de "dois sistemas de forças sociais que não tinham, por assim dizer, senão um desenvolvimento rudimentar no período anterior à Revolução de 30", quais sejam as instituições de previdência social e as associações sindicais. Quanto às primeiras, "tudo depende de um sistema de coordenação e colaboração a estudar e a estabelecer"; quanto aos segundos, isto seria relativamente fácil "tanto mais quanto estão estas associações, pela nova lei de sindicalização, obrigadas à obediência às diretrizes do governo e subordinadas ao controle orçamentário do Ministério do Trabalho, que lhes poderá fixar contribuições no sentido daquela política governamental."

Além destes dois pilares do sistema corporativo, Oliveira Viana menciona uma terceira força social, "que também poderia ser utilizada nos campos - e é o grande proprietário rural". E afirma: "Não seria despicienda a sugestão de forçar os proprietários rurais a uma contribuição para fins de assistência social nos campos, contribuição a ser paga pelos elementos mais ricos dos municípios. Seria chamar ao cumprimento de novos deveres sociais estes cidadãos, que são os 'chefes naturais' da população rural." E conclui: "Na verdade, este admirável organizador de nossas populações rurais para efeitos meramente partidários e eleitorais bem poderia ser chamado a organizá-las para fins mais altos - para fins sociais ..."

O parecer anônimo mantêm a mesma linha de raciocínio. Segundo ele, nenhum dos projetos em consideração, o de Capanema ou o substituto Aranha-Campos, mereceriam ser aprovados. "Este último, por ser muito limitado e modesto; o primeiro, por ser, realmente, um amontoado de disposições legais sem objetivo, inaceitável mesmo como base de discussão. Os seus consideranda são truísmos e os artigos de lei bem merecem a crítica Aranha-Campos, que é ainda benevolente."

O ponto básico da crítica é estabelecer a dissociação entre o problema demográfico, que o estatuto procura resolver, e a solução proposta, que são o fortalecimento da família tradicional e os incentivos econômicos à família e à natalidade. O parecer não se preocupa em entrar no mérito das concepções a respeito da família de um ponto de vista moral, e procura mudar o foco da questão para o exame das condições sociais e econômicas da população brasileira. "É ingênuo citar o recente estatuto da França," diz o texto: "Basta lembrarmos dois ou três fatos da geografia humana e social desse pais para verificarmos que não é o nosso caso, também diferente do que apresenta a Inglaterra e a Bélgica.," O parecer não cita estes fatos, mas não é difícil imaginar quais sejam: o tamanho reduzido das famílias européias, em contraposição às numerosas famílias brasileiras; a alta mortalidade infantil em nosso país, em contraste com a Europa; a composição etária das populações dos dois países.

A consideração destes fatos levaria a uma conclusão óbvia, que o parecer, por motivos também evidentes, deixa implícita: que a preocupação com a manutenção da família, com o uso de anticonceptivos, com a implantação da censura etc., tem na realidade pouco a ver com a questão demográfica, e muito com as preocupações dominantes entre os setores católicos mais militantes do país. O parecerista vê nas propostas de Aranha-Campos e Capanema implicações políticas e orçamentárias profundas, que necessitariam melhor análise: "Parece-me que a União não dispõe nem de meios financeiros nem de aparelhamento burocrático capaz de fazer cumprir a legislação que se pretende decretar. Em segundo lugar, os benefícios do anteprojeto Aranha-Campos viriam afetar de modo vário as rendas da União e, dada a impossibilidade de uma fiscalização séria, constituiriam, em numerosos casos, instrumentos políticos em mãos de municípios em encargo quase total da União."

O caminho alternativo que o parecerista aponta é fazer da questão demográfica parte da legislação social e trabalhista: "Auxiliar a natalidade deve ser auxiliar a produção nacional, auxiliar as camadas mais pobres para que elevem a capacidade aquisitiva e, principalmente, melhorem a qualidade da população, tornando-a mais hígida e forte." Assim como a população é diferenciada, seria necessário tratar diferentemente os trabalhadores da indústria, os do campo e os demais. Para os primeiros, são sugeridos auxílios pecuniários para o casamento e a criação de filhos. No campo, o básico seria o desenvolvimento de serviços de assistência médico-higiênica, e a "distribuição de terras públicas e pequeno empréstimo de instalação ao trabalhador rural que tenha seis ou mais filhos". Para os demais, uma série de medidas mais indiretas, como a isenção de certos tipos de impostos, facilidade de empréstimos etc., para o casamento.

E o parecer conclui: "Tentativas como a que pretende o projeto Capanema dificultam mais do que facilitam as soluções certas. A participação das mulheres no processo econômico não é um mal. Qualquer observador objetivo, atento às estatísticas, sabe que no Brasil o mal é, verdadeiramente, o reduzido número de produtores que sustentam o peso do orçamento familiar."

Este parece ter sido, ao que tudo indica, o golpe de misericórdia. Uma Comissão Nacional de Proteção à Família foi estabelecida em 10 de novembro de 1939, seguindo sugestão do próprio Capanema em sua réplica à crítica de Aranha-Campos, e em 9 de julho de 1940 ela conclui seus trabalhos. Composta por pessoas ilustres de várias origens - Levi Carneiro, Stela de Faro, Oliveira Viana, Cândido Mota Filho, Paulo Sá, João Domingues de Oliveira, Emâni Reis - ela propõe uma série de medidas já aventadas pelos projetos Capanema e Aranha-Campos, sem entrar em temas mais controversos, e sem adotar a defesa tão intransigente da família tradicional. Na área do trabalho feminino, ela pretendeu assegurar à mulher funcionária pública garantia de manutenção de emprego e salário em caso de transferência do marido, indo assim contra a legislação restritiva que se propunha.

É dos trabalhos desta comissão que resulta ó decreto-lei n 3.200, de abril de 1941, encaminhado à sanção presidencial não mais por Capanema, mas pelo ministro da Justiça, Francisco Campos. Um ano antes havia sido assinado outro decreto-lei, de número 2.040, que tinha como objetivo "a coordenação das atividades de proteção à maternidade, a infância e à adolescência". Este decreto criava mais um órgão da burocracia federal, o Departamento Nacional da Criança, que complementaria, pelo menos em intenção, a obra assistencial a ser realizada pelos institutos previdenciários e outras agências governamentais.

O decreto n 3.200 abandona todo o conteúdo doutrinário da proposta original de Capanema e adota, praticamente, todas as recomendações da Comissão. A questão, porém, teria ainda um epilogo agitado.

Um mês após assinado o decreto, em 19 de maio de 1941, ele é modificado por um outro, de número 3.284, que visa regulamentar e precisar as vantagens que haviam sido concedidas aos funcionários públicos de prole numerosa. Em seu artigo primeiro o novo decreto estabelece que "terá preferência, em igualdade de condições: a) o candidato casado ou viúvo que tiver maior número de filhos; b)o candidato casado; e c) o candidato solteiro que tiver filhos reconhecidos". Era uma afronta direta aos princípios da Igreja, cuja reação não se faz esperar.

Do Ministério da Educação sai uma proposta de republicação do decreto n 3.284, tendo como principal alteração que seja omitida a referência a solteiros com filhos naturais. "Se o objetivo principal da lei deve ser dar proteção moral e jurídica á família, e se a família tem como base o casamento, não se deve considerar como um título, como uma regalia jurídica, em um funcionário, o fato de ter ele filhos naturais. Cumpre à lei, como já o fez, assegurar ao próprio filho natural toda a proteção moral e material; não, porém, ir além disto," diz a exposição de motivos.

A proposta de modificação é enviada para apreciação do DASP, e recebe extensa e detalhada crítica, em parecer assinado por Luís Simões Lopes, com data de 23 de setembro de 1941. Toda a argumentação é no sentido de mostrar que a tradição jurídica brasileira tem sido a de equiparar progressivamente os direitos dos filhos legítimos e ilegítimos, e que negar os benefícios aos solteiros com filhos seria na prática prejudicar e discriminar contra estes. "O mal não está na existência dos filhos espúrios, mas no desvio dos pais sem respeito; condenem-se as causas, não as conseqüências. O temor às 'rutilâncias' do escândalo é a fórmula cômoda para exculpar os pais culposos e, gritantemente, incriminar os filhos sem crime." "O Estado", dizem outra parte o parecer, "que é hoje 'órgão bio-ético' [sic] não deve, por força de preconceitos e apriorismos, deixar de entrosar essa criança (ilegítima) na comunidade, como elemento inocente e útil. Esse menor constitui um dos tantos casos que a vida - e não a regra - materializa e para os quais exige solução" . Mais ainda, discriminar contra os pais solteiros seria ir contra os próprios princípios cristãos: "Depois do nascimento, não há motivo para que se criem hierarquias legitimistas, incompatíveis com os sentimentos humanos e cristãos, já que a própria Igreja, com toda a sua respeitável autoridade espiritual, não distingue a espuriedade, ou não, dos que lhe buscam a pia ou dos que lhe defendem a fé." O parecer é publicado no Diário Oficial de 21 de outubro, e sairia resumido também na Revista do Serviço Público de dezembro do mesmo ano (volume 4, n 3), sob o título "A filiação ilegítima em face da lei de Proteção à Família"

Caberia ainda o recurso à pressão da opinião pública. No final de dezembro um memorial encabeçado pela Associação de Pais de Família é enviado a Vargas, com cópia para Capanema, apoiando o projeto do Ministério da Educação e combatendo o parecer do DASP, que, "fazendo considerações sociológicas, procura demonstrar que a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos tende, atualmente, a desaparecer" . "A exigência da condição de casado, nas propostas de promoção", diz em outra parte o documento, seria "um estimulo à realização do casamento de solteiros com filhos, mormente naquelas situações em que o egoísmo, a esquivança, a indiferença ou o desleixo prolongam indefinidamente simples ligações, com grave prejuízo da proteção à mulher e à prole". "Jamais teorias, por mais bem arquitetadas, poderão superar a sabedoria humana, fruto da experiência de séculos. As inovações em matéria social demandam longo tempo para decantai os princípios pelos quais há de reger a sociedade do futuro." "As normas morais", conclui o memorial, "são a consciência dos povos, cristalizam sua sabedoria, por isso zombam de exotismos teóricos, que têm apenas um brilho efêmero." Além da Associação dos Pais de Família, assinam o documento representantes do Centro D. Vital, Confederação Nacional de Operários Católicos, Federação das Congregações Marianas, Associação das Senhoras Brasileiras, Federação das Bandeirantes do Brasil, Associação dos Jornalistas Católicos, União dos Jornalistas Católicos, União dos Católicos Militares, e várias outras entidades semelhantes.

Alguns meses depois (março de 1942) surge um outro documento, este do Instituto do Direito Social de São Paulo, com o mesmo objetivo do anterior. O documento afirma que ninguém ignora como em nosso país, mercê da formação moral de seu povo e da perdurável influência religiosa que presidiu seus primeiros movimentos históricos, é absolutamente intolerável, para o convívio doméstico ou ainda para as relações mais amplas dos grupos sociais, "a família ilegitimamente constituída". É neste sentido que o reconhecimento de igualdade de direitos a solteiros com filhos seria um ato "imoral, anti-religioso e atentatório de nossos hábitos sociais já seculares", além de anticonstitucional. O parecer do DASP, "embora longo e erudito, abandonou por completo todos os aspectos de direito constitucional e administrativo de que o caso se revestia, para ater-se a considerações de ordem sociológica, e até certo ponto sentimental, quanto à proteção dos filhos ilegítimos." Esta proteção, contudo, não deveria ser confundida com o reconhecimento legal das uniões ilícitas: "Dar aos funcionários que as mantêm uma vantagem, pela comprovação da existência de filhos espúrios, é afirmar, contra a Constituição, a desnecessidade da família legítima resultante do casamento."

Os protestos não foram, aparentemente, levados em consideração, e a norma de equiparação foi mantida. Seria necessária uma pesquisa minuciosa, que não caberia aqui, para avaliar o impacto real desta legislação sobre a família. Ainda em 1941 a concessão de abonos familiares, previstos no decreto-lei n 3.200, é suspensa pelo decreto n' 3.741 (de 23/10/41), até sua regulamentação. Novas entidades, como o Departamento Nacional da Criança, uma vez estabelecidas, continuaram a existir mas com atuação limitada. O papel assistencial dos sindicatos não chegaria a adquirir corpo, e o da previdência social, só muito lentamente. A mobilização dos senhores de terra no apoio á infância do campo, preconizada por Oliveira Viana, jamais seria tentada.

O episódio da definição de uma política estadonovista para a família ilustra com bastante clareza a forma pela qual se dava e até onde ia o relacionamento entre a Igreja e o Estado, naquele período. A Igreja ia com facilidade até o Ministério da Educação e Saúde; mas isto não significava que ela conseguisse necessariamente fazer prevalecer seus pontos de vista contra a orientação predominantemente secular e não confessional dos círculos mais próximos à presidência da República.

3. A Organização Nacional da Juventude

Se as mulheres deveriam ser postas em seu lugar, caberia aos jovens um papel extremamente dinâmico no projeto político e social que se esboçava. A década de 1930 foi fértil, em todo o mundo, de movimentos juvenis que traziam às ruas, em suas canções, bandeiras e marchas organizadas, uma idéia de dinamismo, fé e participação social que pareciam simbolizar a força e promessa dos regimes políticos que apoiaram e ajudaram a constituir. Já em 1931, a Legião de Outubro tratara de reproduzir no Brasil os mesmos efeitos, e o movimento integralista copiava tanto quanto podia os rituais coletivos que tanto impacto produziam na Europa. O projeto inicial de criação de uma Organização Nacional da Juventude com patrocínio governamental, gerado em 1938 no Ministério da Justiça na gestão de Francisco Campos, inspirava-se claramente nos modelos europeus, e tinha por objetivo formar uma organização paramilitar de mobilização.

O documento original, parte dos arquivos Getúlio Vargas e Gustavo Capanema, tem o timbre do Ministério da Justiça, e não traz nenhuma menção à participação do Ministério da Educação e Saúde em um empreendimento que poderia ser entendido como de cunho também educativo. Segundo ele, a organização político-miliciana da juventude caberia à direção e orientação exclusiva e direta do presidente da República e dos ministros de Estado da Guerra, da Justiça e da Marinha. O projeto, obedecendo à formalidade de um decreto-lei, é sucinto e objetivo, salientando apenas o esqueleto e os objetivos mais gerais da Organização, com algumas referências rápidas ao processamento e ao conteúdo político-ideológico da iniciativa. Bem mais substancioso é o projeto de regulamento técnico-disciplinar que o acompanha. Com um total de 41 páginas - contra 11 do projeto de decreto-lei - o documento desce a minúcias sobre os objetivos, a estrutura organizativa, os cargos, encargos e funções previstas para a Organização Nacional da Juventude, além de uma descrição pormenorizada da hierarquia a ser estabelecida quando implementado o seu plano.

Desfile da Juventude por ocasião da visita de Capanema a Curitiba, 14 de outubro de 1943. FGV - CDPOC - Arquivo Gustavo Capanema

A Organização deveria ser regida por uma Junta Suprema, que teria como função "instituir os serviços de natureza pré-militar à juventude arregimentada pela Organização Nacional."(9) O regulamento da juventude teria a aprovação dos ministros da Justiça e Negócios Interiores, da Guerra e da Marinha;(10) a Organização incluiria um setor de aspirantes, de oito a 13 anos, e outro de pioneiros, de 13 a 18 anos.

O artigo primeiro do projeto de decreto-lei de março de 1938 estabelece que a Organização Nacional da Juventude teria por fim "assistir e educar a mocidade, organizar para ela períodos de trabalho anual nos campos e oficinas, promover-lhe a disciplina moral e o adestramento físico, de maneira a prepará-la ao cumprimento dos seus deveres para com a economia e a defesa da nação."(11) Prevê-se ainda, no artigo 18, que à mocidade arregimentada pela Organização Nacional serão proporcionados, entre outros, serviços adequados a infundir nos jovens "o sentimento de disciplina e da educação militar" acrescentando-se que teriam "efeitos equivalentes aos da prestação do serviço militar exigida pelas leis em vigor".

Em outubro de 1938 é elaborado um projeto de regulamento administrativo, prevendo a incorporação e submissão imediatas à Organização, de instituições de educação cívica, moral ou física da mocidade, "tais como associações, ligas e clubes esportivos atléticos, o escoteirismo e as de proteção à infância, autônomas ou anexas a estabelecimentos de instrução, centros culturais ou sociedades religiosas."(12) Essas instituições, pelo decreto, passariam a ser dependentes da Organização Nacional no sentido de que deveriam conformar-se ao espirito e à estrutura da Organização. Dessa forma, ver-se-ia garantido seu objetivo primeiro, de propagar a significação e a superioridade do novo regime instituído no Brasil em 10 de novembro de 1937, ao mesmo tempo em que ampliaria em muito o quadro de efetivos pela filiação automática dos associados dessas instituições á Organização Nacional.

Dois outros aspectos chamam atenção na proposta: a previsão de um secretário-geral com a função de presidir o Conselho Nacional (composto de 15 cidadãos nomeados pelo presidente da República) e a inclusão nesse Conselho de um sacerdote da Igreja Católica, indicado pela autoridade eclesiástica. O Conselho Nacional atuaria no sentido de fazer implementar o plano de desenvolvimento da Organização em todo o território nacional, e o secretário-geral acumularia em suas mãos uma parcela considerável de poder junto a esse Conselho, cabendo-lhe presidir e convocar as sessões, superintender os serviços administrativos e técnicos da Organização em todo o país, orientar a propaganda e divulgar os fundamentos doutrinários, propor ao Conselho nomes das pessoas a serem admitidas como sócias, nomear, requisitar e demitir os funcionários da Organização etc.

Coroando toda essa armação, não ficaram de fora os aspectos de orientação cívica e politica necessárias à propagação do novo regime: o culto à bandeira, o canto do Hino Nacional e da Mocidade, o ensino de noções militares e patrióticas. Através da educação individual, praticada dentro da disciplina da Organização, contava-se com uma preparação para o exercício dos atos e deveres da vida civil, o que vale dizer, do fortalecimento de uma milícia civil organizada. A Organização deveria espelhar a vida familiar e social. Deveria ser a matriz geradora de comportamentos mais afinados à nova realidade politica que deveria ser encarnada no país. Para tanto, enaltecia-se no projeto "o culto fervoroso dos símbolos e cânticos nacionais e o cumprimento mais rigoroso da disciplina da Organização e dos seus deveres na família e na sociedade."(13)

O projeto de Francisco Campos não teria a boa acolhida do ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra. Através de um documento reservado dirigido ao presidente da República, Dutra deixa transparecer as áreas de discordância e de atritos que o projeto inicial provocaria. Segundo o ministro da Guerra:
Em princípio, não pode deixar de ser aconselhável a arregimentação da mocidade em normas preestabelecidas de orientação doutrinária e cívica, em hábitos de disciplina e no culto do dever militar. No Brasil, e no momento atual, é mais do que indicado esse trabalho de educação moral, física e intelectual da mocidade. Mas, para que seja atingida a finalidade visada, torna-se necessário que a organização da juventude brasileira se faça de acordo com as nossas realidades, boas ou más, e nunca sob inspiração de modelos, que se não ajustam ainda ao nosso meio. E, ao que parece, é isso que se depreende do projeto ora em apreço.
Como é sabido, três países na época atual se destacam na organização da mocidade: a Alemanha, a Itália e Portugal.
O projeto em estudo pretende, como se faz naquelas nações, emassar a mocidade brasileira numa organização de feição militar, miliciana, com formação de colunas, falanges, bandeiras, companhias legiões e grupos de legiões; postos graduados de bandeirantes, mestre de companhias etc.; continências, comando e instrução de infantaria, idênticas às do Exército etc.; e com atribuições até de conceder cadernetas de reservista.
Baseia-se ainda a organização numa articulação de núcleos, dos municípios com os estados e destes com a União (...)(14)
Dutra prossegue salientando o fato de apresentar o Brasil características absolutamente distintas daqueles países que estão servindo de modelo à elaboração desse projeto de Organização.
(...) convêm ponderar a questão do analfabetismo. Quando aqueles países cuidam da organização da juventude e, sobretudo, da sua instrução pré-militar, partem da preliminar de que essa juventude já está alfabetiza da. (...) O mesmo não se dá no Brasil, onde ainda é elevado, como se sabe, o número de analfabetos nos jovens de sete a 17 anos. E não é lógico imaginar-se uma campanha cívica, sem primeiro ser resolvido, ou convenientemente impulsionado, o importante problema do analfabetismo.
Em terceiro lugar, cumpre atender ás razões que determinaram a organização miliciana da juventude nas referidas nações, a qual se justifica como decorrente:

1o.) do regime da nação armada, a que estão sujeitos aqueles países;
2o.) da permanente ameaça de guerra em que os mesmos têm vivido há vários anos num ambiente de nervosismo e de amarga expectativa.
Nada disso se verifica presentemente no Brasil. Nessas condições, o projeto, conforme está, parece não se adaptar convenientemente à realidade brasileira.
Trata-se de uma organização complexa e cara. E, sobretudo, de difícil execução.(15)
No lugar do projeto do Ministério da Justiça, Dutra propõe, essencialmente, trabalhar através do sistema escolar existente, e envolver o Ministério da Educação:
Com o enquadramento da mocidade escolar já existente, dentro de normas que seriam traçadas pelo Ministério da Guerra e o da Educação e que visariam a sua conveniente educação física, cívica e instrução pré-militar. (...) Em vez de distribuir-se os alunos das atuais escolas nas fileiras de uma entidade nova, como o é a Organização Nacional da Juventude, melhor seria conservá-los nos estabelecimentos a que pertencem e que passariam, então, a células da ONJ.
A segunda fase consistiria no recrutamento da juventude que ainda não pertence a nenhum estabelecimento de ensino. O melhor meio de recrutá-la seria com a Fundação de escolas.(16)
No fundo, as considerações de Dutra resumem-se no seguinte: nem criar uma organização nacional paramilitar que implicaria, além de uma orientação política que julga inapropriada ao Brasil, despesas e custos administrativos vultosos; nem deixar que as escolas fiquem livres de uma intervenção de cunho político-pedagógico. O pomo de discórdia localizava-se na invasão da área de autoridade que ele considerava como restrita ao Exército Nacional. Consentir na criação da Organização Nacional na forma proposta seria admitir uma estrutura paralela ã do Exército, o que não escapa à observação e ao enérgico protesto do ministro da Guerra, ainda que membro integrante do Conselho Supremo que dirigiria a Organização Nacional da Juventude:
(...) Caso, porém, não prevaleçam as considerações de ordem geral acima expostas e que, nessas condições, o projeto se mantenha como está, cumpre, atendendo às imperiosas razões de segurança nacional, objetar o seguinte:
1o.) O projeto em apreço contraria fundamentalmente o decreto-lei n 432 de 19 de maio de 1938, que regula o ensino no Exército, bem como a lei do Serviço Militar. Nessas condições não podem subsistir os seguintes artigos do Regulamento Técnico-Disciplinar anexo:
Art. 5o. O serviço pré-militar preparatório à reserva das forças passa a ser feito exclusivamente nas fileiras da Organização. Os Tiros de Guerra autônomos ou adjuntos a estabelecimentos de ensino ou sociedades esportivas, as Linhas de Tiro, e os Tiros Navais cessarão de existir, passando seus filiados às fileiras da Organização, na forma do disposto no art. 6o.
Art. 6o.-O preenchimento dos quadros do Exército Nacional continuará a ser feito pelo sorteio militar, realizado anualmente entre os cidadãos que se encontrem na idade determinada pela lei.
O certificado de aprovação no curso de instrução pré-militar dada aos pioneiros de segundo grau exclui a obriga ção de prestar serviço ativo dentro dos quadros regulares do Exército.
Ao final da exposição, o ministro da Guerra conclui:
Como se vê, a Organização Nacional da Juventude se permite dar caderneta de reservista e chega a determinar a extinção dos Tiros de Guerra e Navais, o que não consulta aos interesses da defesa nacional e vem retirar das classes armadas uma atribuição que não deve ser concedida a outrem.
Só ao Exército deve caber todo o poder militar.
Eurico Dutra afirma categoricamente que, consentir na criação de outra entidade coletiva com tais atribuições, seria decretar o enfraquecimento do Exército como força nacional, redundando, conseqüentemente, no enfraquecimento do Estado e da União. "A instrução pré-militar já está regulada nas próprias leis militares e com vantagens perfeitamente especificadas para os jovens que recebem instrução nos estabelecimentos de ensino."(17)

Outra área a ser reparada, segundo Dutra, dizia respeito à designação de "inferiores", como instrutores da Organização Nacional da Juventude. O projeto previa o fornecimento pelo Exército, pela Marinha e pelas polícias estaduais desse efetivo que significaria, nos cálculos do ministro da Guerra, um total de aproximadamente dois mil instrutores, devendo o Exército contribuir com 1.332 sargentos, parcela exagerada se se lembrasse que o efetivo de sargentos naquela ocasião era de 7.118.

Uma outra apreciação sobre o projeto de Regulamento Técnico-Disciplinar da Organização Nacional da Juventude reforça, em grande medida, apesar da argumentação mais generalizada, as preocupações expostas pelo ministro da Guerra. Trata-se de um documento escrito por Alzira Vargas e datado de março de 1938. Já de início, a autora refere-se à Organização como "obra de importação clandestina, traduzida das organizações européias sem a competente adaptação ao meio nacional."(18) Antes de qualquer iniciativa, o Estado Novo deveria trabalhar no sentido de homogeneizar a massa tão heterogênea da juventude brasileira, acrescenta Alzira Vargas. Essa homogeneização seria feita através de um programa intensivo de propaganda que apresentasse e difundisse a alta significação do novo regime.

Apresentando em seguida alguns dos inconvenientes da referida Organização - criação de um novo aparelhamento burocrático; atribuição de controle ao Ministério da Justiça, em detrimento do Ministério da Educação; exigência do culto religioso católico, quando o Brasil não tem uma religião oficial; excessivo número de conselheiros (15); exagero na extensão das atribuições do secretário-geral para serem exercidas totalmente pelo ministro da Justiça - Alzira Vargas tocará no aspecto da organização paramilitar com a seguinte observação: "A orientação demasiado militar sugerida pelo decreto parece-me perigosa. Não temos o objetivo de fabricar soldados, mas o de formar cidadãos."(19) Elaborada na intimidade do palácio do Catete, esta crítica mostra a desconfiança presidencial dos projetos mais ambiciosos do ministro da Justiça, assim como os limites do Estado Novo em seu relacionamento com o autoritarismo.(20)

As críticas de Eurico Dutra e Alzira Vargas, levam naturalmente ao envolvimento de Gustavo Capanema com o projeto, que encaminha-ao presidente da República seu parecer, com data de 13 de setembro de 1938. Apesar de iniciar manifestando seu aplauso e apoio a "tão patriótica iniciativa", formula algumas objeções e sugestões.

Sugere de inicio uma mudança no nome da instituição, denominando-a Mocidade Brasileira ou mesmo Juventude Brasileira. "Organização é palavra a ser usada com sentido meramente apelativo," diz ele. "Por outro lado, seria mais expressivo que na denominação da instituição estivesse marcado o seu vinculo ao Brasil. Mocidade Portuguesa é o título que os portugueses preferiram, parece-me que com razão."(21)

Depois, considera por demais extensa a finalidade da Organização, que incluía a educação cívica, moral, física, religiosa, o ensino profissional, instrução militar e assistência, o que ampliaria desmesuradamente os encargos e a complexidade burocrática exigida para tal empreendimento. Concorda com as demais criticas quanto ao caráter excessivamente militar com que é imprimido o projeto: "A juventude de oito a 18 anos passa a constituir uma tropa rigorosamente enquadrada, com um aparelhamento, uma disciplina, um método, uma atitude em tudo militares. Não acredito que tal organização seja aplaudida em nosso meio."(22) Reforça a discordância manifestada por Dutra, acrescentando que o ensino militar deveria ser uma atribuição exclusiva do Ministério da Guerra: "Dar a outro órgão o papel de preparar as reservas militares é enfraquecer, pela supressão da unidade de direção, a organização militar do país"(23) Sugere, nesse particular, que se redefina os limites da Organização, restringindo seus objetivos a dois somente: a educação física e a educação moral e cívica. E foi esta, sem dúvida, a sugestão que prevaleceu. Capanema fundamenta sua sugestão no exemplo da experiência portuguesa:
O bom exemplo, nesta matéria, é a organização juvenil portuguesa. Foi instituída com finalidades singelas. Diz a lei portuguesa (decreto-lei n 26.611 de 1936, art. 40) que a Mocidade Portuguesa "abrangerá toda a juventude, escolar ou não, e se destina a estimular o desenvolvimento integral da sua capacidade física, a formação do caráter e a devoção à pátria, no sentimento da ordem, no gosto da disciplina e no culto do dever militar."(24)
A exemplo daquele país, dever-se-ia mobilizar a juventude brasileira sem afetar as instituições já constituídas de segurança nacional. Em Portugal, a instituição da Mocidade não se confundia com a organização paramilitar da Legião Portuguesa. Ao contrário, eram entendidas como organismos distintos, nunca concorrentes. A primeira, uma organização pré-militar e a segunda, paramilitar, o que evidentemente as distinguia na essência. A própria forma como eram compreendidas essas organizações deixa clara a distinção que os próprios portugueses faziam. A Mocidade Portuguesa funcionava como um apoio essencial à formação do efetivo a ser incorporado á Legião. Devia ela, portanto, concentrar seus esforços nos aspectos fundamentalmente educativos, reservando para a Legião toda a responsabilidade pela formação militarizante, necessária em um momento considerado excepcional da vida política portuguesa.

No decorrer de sua apreciação, Capanema reitera as críticas já formuladas anteriormente a respeito da criação de um aparelho oficial de grandes proporções, constituído por numerosas dependências espalhadas por todo o país. "No fundo", diz ele, "é uma espécie de ministério novo, destinado a superintender a educação da juventude em todos os seus aspectos salvo no que se refere ao ensino ou instrução."(25)

A duplicação organizacional, ou seja, a divisão da área educativa em dois órgãos e da instrução militar em dois outros, seria motivo de conflitos permanentes, sem falar dos conflitos que se estabeleceriam no terreno da assistência social e no terreno da saúde, também previstos no projeto inicial. "Posto o assunto nestes termos, só uma conclusão parece lógica, isto é, a Organização Nacional da Juventude deve ser uma instituição, não separada do Ministério da Educação e a ele paralela, mas incluída na sua estrutura, como um de seus serviços."(26) Também nesse particular, cita a experiência portuguesa de mobilização da juventude. Das experiências de organização conhecidas na época, parecia ao ministro da Educação que a única que se aproximava ao ideal de organização brasileira era a portuguesa. As outras eram distintas e fugiam ao que se pretendia criar política e educacionalmente no Brasil:
Na Itália, na Alemanha e na URSS, as organizações juvenis são órgãos relacionados, mas não subordinados aos ministérios da Educação; é que nesses países as organizações juvenis São, não instituições de precípua finalidade educativa, mas órgãos políticos, entidades filiadas e encorpa das aos partidos únicos nacionais.(27)
A preocupação com a duplicação de estruturas paralelas de controle e funções não se restringia, na análise de Capanema, à esfera dos ministérios. A forma centralizada e unitária com que foi pensada a Organização abriria espaço para conflitos com os governos estaduais preteridos na sua estrutura de controle e funcionamento. "A estrutura unitária da Organização Nacional da Juventude tem como conseqüência o fato já assinalado de ficar ela inteiramente desvinculada dos governos estaduais e municipais. É excluída toda ligação com os órgãos locais de administração dos serviços de educação."(28) A proposta do ministro era uma estrutura conforme o princípio federativo, o que significaria uma redução do vasto campo de domínio do secretário-geral da Organização.


Como Eurico Dutra, argumenta a favor da vinculação da Organização às escolas públicas e privadas existentes e contra o plano de "instrutores" a quem, para Capanema, faltariam os atributos pedagógicos essenciais ao desenvolvimento desse projeto que, a seu ver, deveria ser educativo por excelência.

Capanema conclui pela necessidade de se redefinir o escopo do decreto-lei, de forma que pudesse o Ministério da Educação ocupar-se prioritariamente de sua implementação. Para isso, a primeira decisão.deveria ser a de excluir da instituição projetada o ensino militar, ou seja, esvaziar seu conteúdo paramilitar.

Os projetos se sucedem, e é fácil ver como a idéia de que seria possível criar no Brasil, pela via de um decreto presidencial, as formas paralelas de poder que caracterizavam na Europa as milícias fascistas, foi pouco a pouco sendo transformada em um movimento cívico-educativo bem menos virulento, onde a dinâmica da mobilização miliciana era substituída por atividades tais como o enaltecimento às datas, aos vultos e aos símbolos nacionais. Em dezembro de 1938, surge um novo projeto de decreto-lei, desta vez oriundo do Ministério da Guerra, e encaminhado pelo próprio ministro:
Tenho a honra de submeter á apreciação de Vossa Excelência o incluso projeto de decreto-lei sobre a criação da Juventude Brasileira, de autoria do sr. general José Meira de Vasconcelos, com o parecer favorável do Estado-maior do Exército.
A Juventude Brasileira, como a imagina e propõe o seu autor, será uma instituição nacional e permanente, cujo objetivo essencial é a formação e a orientação cívica da mocidade, nos moldes da educação extra- escolar de Baden Powell (escoteirismo).
O Estado-maior do Exército julga não haver inconveniente na fundação dá Juventude Brasileira, nos termos exatos em que está prevista no projeto de decreto-lei. Não devem, entretanto, os encargos de seus diferentes órgãos ser atribuidos, exclusivamente, a militares, senão na fase primeira da organização, (...) se faça mister o elemento militar. Depois, melhor ficará a instituição sob a direção imediata do Conselho Superior de Segurança Nacional, coadjunto ao seu trabalho por funcionários de um ou mais ministérios.
Este ministério já teve ocasião de se manifestar sobre o projeto semelhante que cogitava da Organização Nacional da Juventude (ONJ).(29)
O novo projeto contribui para reforçar a autoridade do Exército, auxiliando-o na sua função educativa, sem ameaçar esse monopólio com a criação de instituições paralelas com atribuições semelhantes às suas. Orientar civicamente a juventude para o bom desempenho de suas funções como futuros "cidadãos-soldados" é fundamentalmente diferente de militarizá-la nos quadros de uma nova organização. A primeira atividade é de reforço; a segunda, de competição.

4. A Juventude Brasileira

Desfile da Juventude Brasileira durante o Estado Novo, foto de Peter Langue, FGV - CPDOC, arquivo Gustavo Capanema.


Este não seria, ainda, o texto final. O arquivo de Getúlio Vargas contém um outro projeto, elaborado possivelmente no fim de 1938 ou início de 1939, que já inclui a participação do Ministério da Educação e Saúde na direção da organização da juventude e suprime pontos básicos dos projetos anteriores.(30) É possível que ele represente um passo intermediário entre o primeiro projeto e o que acabou vingando, pelo fato de manter algumas referencias à educação pré-militar e de ter preservado parte da linguagem que constava do projeto inicial e que seria finalmente suprimida. Mesmo assim, a tônica militarizante sofreu um enfraquecimento crucial:
As finalidades a que se propõe a Juventude Brasileira, em proveito da infância e da juventude são essencialmente: a) a educação moral, cívica e física; b) a educação pré-militar; c) a educação doméstica.(31)
A organização paramilitar da juventude cede lugar à transmissão de valores que visava inculcar "nos infantes e nos pioneiros inscritos na Juventude Brasileira, o amor ao dever militar, a consciência das grandes responsabilidades do soldado, o conhecimento das técnicas elementares do serviço militar e os hábitos singelos e duros da vida de caserna e de campanha."(32) O projeto prevê o estabelecimento do 21 de abril como data de sua comemoração; o realce ao culto constante e fervoroso à bandeira nacional; a definição de símbolos de sua unidade moral; o estabelecimento de comemorações cívicas em todo o território nacional etc. O efetivo básico da agremiação seria formado por jovens matriculados em qualquer estabelecimento de ensino oficial ou fiscalizado, devendo estes inscreverem-se obrigatoriamente. Aos jovens não matriculados, a inscrição seria facultativa.

Da linguagem anterior, o projeto ainda mantém a estrutura de formação de legiões, com as "coortes", "pelotões", "grupos", "esquadras" e "divisões", contando para seu funcionamento com a participação de comandantes retirados dos quadros de oficiais das Forças Armadas. "Vinte legiões, dentro da mesma cidade, do mesmo município ou de um grupo de municípios, formarão uma divisão, que será comandada, na forma do artigo 39 desta lei, por um oficial das Forças Armadas."(33) O decreto finalmente aprovado e publicado no Diário Oficial suprime todas essas formas mais incisivas de organização e educação paramilitar.

Segundo ainda esse projeto, "a educação moral, cívica e física se destina aos homens e às mulheres. É destinada a educação pré-militar somente aos homens, e a educação doméstica somente às mulheres."(34) Os papéis são rigidamente distribuídos nos artigos 18 e 19, incentivando nos homens "o amor ao dever militar, a consciência das grandes responsabilidades do soldado" e nas mulheres, batizadas por "brasileirinhas" e "jovens brasileiras", "o sentimento de que o seu maior dever é a consagração ao lar", ministrando a estas os "conhecimentos necessários ao cabal desempenho de sua missão de mães e donas-de-casa".

Na questão da educação cívica, privilegia-se a formação de uma consciência patriótica, significando que "na alma das crianças e dos jovens deverá ser formado o sentimento de que o Brasil é uma entidade sagrada, e que a cada cidadão cabe uma parcela de responsabilidade pela sua segurança, pelo seu engrandecimento e pela sua perpetuidade, e ainda de que, a exemplo dos grandes brasileiros do passado, deve cada brasileiro de hoje estar por tal forma identificado com o destino da pátria, que se consagre ao seu serviço com o maior esforço e esteja a todo momento pronto a dar por ela a própria vida."(35)

O decreto-lei que instituiu a Juventude Brasileira é de número 2.072, de 8 de março de 1940, e a qualifica como uma corporação formada pela juventude escolar de todo o país, com a finalidade de prestar culto à pátria. Esse decreto dispõe ainda sobre a obrigatoriedade da educação cívica, moral e física da infância e da juventude, fixando suas bases de execução. É uma ruptura definitiva com o projeto inicial. Preservando a figura dos ministros de Estado da Guerra e da Marinha no Conselho Supremo, reservou-se a eles somente a incumbência de dar "ao Ministério da Educação os necessários esclarecimentos quanto à orientação a ser ministrada à modalidade de educação referida no parágrafo único do artigo 13", que dizia que as 'atividades destinadas a dar às crianças e aos jovens os conhecimentos elementares dos assuntos relativos à defesa nacional serão terrestres e marítimas, segundo as condições do meio em que vivam e na conformidade da inclinação de cada um."

Esvaziada de suas pretensões iniciais, impedida de competir com as Forças Armadas na militarização da sociedade, a Juventude Brasileira se limitaria, daí por diante, ao culto mais ou menos ritualístico das grandes datas nacionais, sem que ninguém por ela realmente se interessasse e tratasse de dar-lhe impulso. A entrada do Brasil na guerra ao lado dos Aliados seria a pá de cal que levaria à extinção do projeto já natimorto de uma organização fascista da juventude no Brasil só prolongado um pouco mais pela inércia da burocracia. Em agosto de 1944 Capanema propunha a extinção do quadro de funcionários da secretaria-geral da Juventude Brasileira, e a incorporação de seus funcionários à Divisão de Educação Física, o que é feito pelo decreto n 17.889, de 26 de agosto de 1945.0 Correio da Manhã e O Jornal de 3 de março saúdam a medida, com o reconhecimento de que os tempos eram outros. "Nesta hora de recuos, diz o Correio da Manhã em um artigo intitulado Giuventù com a mesma sutileza com que tentou organizar a Juventude (Capanema) decidiu-se, sem estardalhaço, despreocupar-se do assunto... Dissolveu dela a única coisa que dava a ficção de sua existência. Dissolveu o grupo de funcionários. Tirou o boi da linha, dando serviço a quem não o tinha, e passou a ver diante dos olhos uma vereda que o leve à estrada-tronco da democratização (. . . )."

5. Os limites da mobilização

A transformação da Organização Nacional da Juventude em movimento de Juventude Brasileira reflete com clareza a opção por uma política de desmobilização do regime autoritário do Estado Novo. Para bem compreender a ruptura com a proposta inicial de organização miliciana da juventude, pode ser proveitosa uma reflexão que associe essa decisão ao bloqueio intermitente feito pelo governo ao movimento integralista, em franca ofensiva na década de 1930.

Fundada em maio de 1932, a Ação Integralista Brasileira (AIB) começou a se ressentir, em 1935, das perseguições a ela dirigidas pelo governo, perseguições que, paradoxalmente, vinham acompanhadas de um certo tipo de apoio que o próprio governo oferecia à AIB, o que acabava confundindo a liderança integralista. A ambigüidade com que o governo tratava a AIB, ora manifestando sua aprovação, alimentando até mesmo a possibilidade de alianças com ela, ora reprimindo suas atividades, termina com a decisão do governo, cm dezembro de 1937, de decretar a dissolução da AIB. Antes, o governo Vargas já se havia aproveitado da força política do integralismo para apoiar o golpe de 1937. Ainda em 1936, depois, portanto, da lei de Segurança Nacional, as relações do governo com a AIB eram marcadas pelo reconhecimento e estímulo. A notícia da imprensa integralista que reproduzimos abaixo pode confirmar isso:
O nosso companheiro secretário nacional de Educação e Cultura Artística recebeu do Exmo. Sr. Dr. Gustavo Capanema, DD. ministro da Educação e Saúde Pública, um convite para que a mencionada Secretaria da Ação Integralista Brasileira prestasse a sua colaboração à I Exposição Nacional de Educação e Estatística, que se inaugurará no próximo dia 20 de dezembro, sob o patrocínio do referido ministério.
Atendendo ao convite recebido, o companheiro secretário nacional enviará diretivas aos chefes provinciais transmitindo-lhes instruções afim de que, com diligência, possam colaborar na brilhante e patriótica iniciativa, uma das valiosas e grandes realizações do ministro Capanema.(36)
Um indicio da afinidade do projeto da Organização Nacional da Juventude com o movimento político chefiado por Plínio Salgado é a ligação que Francisco Campos manteve com o chefe da AIB, reiterando a importância daquele movimento para a consolidação da política autoritária que se implantava no Brasil. Esses contatos são lembrados por Plínio Salgado em uma carta a Getúlio Vargas contendo uma exposição das perseguições que a AIB vinha sofrendo por parte do governo e, principalmente, da decepção que essa organização sofrera com a ruptura de um pacto estabelecido de início entre o poder central e a Ação Integralista Brasileira. Neste documento, Plínio Salgado fala a respeito de um plano de ação que consistiria no apoio da AIB ao projeto político do Estado Novo em troca do consentimento e do apoio do governo ao desenvolvimento da ação integralista no Brasil:
A influência do integralismo na sociedade brasileira e nas Forças Armadas atingira amplíssimas áreas e tocava às profundidades dos corações. Os comunistas e os governadores dos estados bem o sentiam. Desencadeava-se uma propaganda tenaz contra os princípios ensinados pelo integralismo: os mesmos princípios políticos que serviram em grande parte à nova estrutura constitucional do país.
Foi nessa ocasião que me procurou o Dr. Francisco Campos, com o qual me encontrei em casa do Dr. Amaro Lanari. Ele me falou dizendo-se autorizado pelo Sr. presidente da República e me entregou o original de um projeto de Constituição que deveria ser outorgada, num golpe de Estado, ao país. Estávamos no mês de setembro de 1937.
O Dr. Francisco Campos, dizendo sempre falar após entendimento com V. Excia., pediu o meu apoio para o golpe de Estado e a minha opinião sobre a Constituição, dando-me 24 horas para a resposta. Pediu-me, também, o mais absoluto sigilo.(37)
Em termos de princípios, não havia dúvida sobre a conveniência de uma ligação do integralismo com o poder central; a bandeira principal de combate ao comunismo parecia ser uma arma eficaz de ajuda ao governo na desmobilização da esquerda. Ademais, toda a ênfase do integralismo no culto à pátria, na valorização da nacionalidade e da soberania nacional, na prática de atividades cívicas e politicas simbolizadas no patriotismo exacerbado, se adequavam perfeitamente à proposta de implantação de um regime autoritário no Brasil, podendo representar uma sólida base de apoio e sustentação à politica do Estado Novo em processo de gestação. O governo, além de não descartar esse apoio, por um certo tempo efetivamente o alimentou. A expectativa do chefe integralista, segundo seu depoimento, foi mesmo acrescida com promessas estimuladoras:
Perguntei qual seria, na nova ordem, a situação da Ação Integralista Brasileira ao que o Dr. Francisco Campos me respondeu que ela seria a base do Estado Novo, acrescentando que, naturalmente, o integralismo teria de ampliar os seus quadros para receber todos os brasileiros que quisessem cooperar no sentido de criar uma grande corrente de apoio aos objetivos do chefe da nação (...).(38)
A ligação com o projeto futuro da Organização Nacional da Juventude já fora feita, nessa ocasião. "Em relação ao integralismo, V. Excia. (Francisco Campos) falou-me da reorganização da nossa milícia. Tais palavras me encheram de confiança. Acreditei até que essa grande organização da juventude seria patrocinada pelo ministro da Educação, uma vez que V. Excia. me dizia que esse ministério tocaria ao integralismo."(39)

A história, como sabemos, foi distinta. Em primeiro lugar, não coube ao chefe integralista a pasta da Educação, mantendo-a Gustavo Capanema que, em outros tempos, desenvolvera, ao lado de Francisco Campos, toda uma ação política em prol da construção da Legião de Outubro em Minas Gerais. Em segundo lugar, não caberia ao Ministério da Educação a criação e a responsabilidade inicial sobre o projeto de organização miliciana da juventude. E, por fim, o integralismo foi vítima de uma ação direta de fechamento e perseguição por parte do governo federal. E isto porque, se aparentemente a AIB representava um projeto extremamente oportuno à política do governo, na prática a mobilização política que engendrava comprometia a tranqüilidade dessa aliança, pelas conseqüências imprevisíveis que uma força política organizada e paralela ao governo poderia acarretar. Não foi por acaso que, tão logo efetivado o golpe de 37, o governo interveio no sentido de restringir essa força com um decreto de dissolução da Ação Integralista Brasileira, neutralizando, dessa forma, as esperanças que o movimento integralista acalentava.

A resposta do integralismo às restrições do governo foi a tentativa de golpe para a derrubada do Estado Novo, em maio de 1938. Essa iniciativa fracassada serviu de alerta ao governo sobre os perigos de uma mobilização das massas no estabelecimento de uma ordem política autoritária. O trabalho de mobilização ficou identificado como uma sublevação que transpunha os limites aos quais estava circunscrita a identificação do governo ao projeto integralista. E, como sublevação, mereceria uma resposta no nível da que foi dada ao movimento de esquerda, em 1935.

Já no início do Estado Novo, o chefe integralista ressentia-se de estar preterido na nova ordem de poder. "Fomos, desde o primeiro dia do golpe, tratados como inimigos. Já não quero falar a V. Excia. o que se passou nos estados, antes mesmo do nosso trancamento oficial. Meus retratos foram rasgados por esbirros, meus companheiros presos e espancados, sendo numerosíssimos os telegramas que ao Dr. Campos foram apresentados, relativos às mais inomináveis violências em todos os pontos do país, onde os governadores, irritados com o Estado Novo ao qual aderiram por interesses pessoais, vingavam-se nos integralistas, apontados como sustentáculos de V. Excia."(40)

O fato é que, controlada a ofensiva da esquerda em 1935, passava a AIB a representar uma outra possibilidade de ameaça pelo nível é grau de mobilização civil que detinha. Segundo informação da própria AIB, em fins de 1934, o integralismo tornava-se uma força significativa na arena política, com aproximadamente cem mil membros.(41) A milícia integralista, se não controlada, poderia, da mesma forma que o movimento de esquerda, constituir-se numa estrutura de organização política deslocada do Estado. Pela descrição de Robert Levine, pode-se perceber a dimensão dos riscos que a AIB representava em um sistema político marcado pelo autoritarismo desmobilizador:
(...) A milícia armada da AIB era o que o povo mais temia. Segundo os estatutos da AIB, cada célula tinha seu próprio depósito de armas pesadas e leves, e inventários regulares eram feitos e submetidos aos centros regionais, e nacional da AIB. Plínio aboliu formalmente a milícia quando o governo promulgou a sua lei de Segurança Nacional de abril de 1935 (cujo alvo eram, naturalmente, as esquerdas), mas criou em seu lugar uma secretaria de Educação Moral e Física, também sob a orientação de Gustavo Barroso, o que vinha a dar na mesma coisa.(42)
Consentir no livre desenvolvimento do integralismo como força civil organizada era assumir os custos que poderiam implicar a proliferação das células que organizavam esquadrões paramilitares para a "educação moral e física"; uma reserva para a milícia integralista, autônoma e de âmbito nacional. Ora, isso significava a formação de um mecanismo de mobilização política que tanta reação provocou na cúpula militar. Em trabalho recente sobre a participação das Forças Armadas na política, no período de 30 a 45, José Murilo de Carvalho refere-se à reação militar ao integralismo desta forma:
(...) O integralismo era mobilizatório, provocava reações políticas contrárias, mantinha, enfim, viva a atividade politica. E isso era exatamente o que não interessava à cúpula militar que via a oportunidade de eliminar de vez a atividade política e conseguir assim eliminar também as perturbações disciplinares motivadas pelo partidarismo.(43)
A transformação da Organização Nacional da Juventude em movimento cívico acresceu-se de mais um significado político: o freio que foi dado às pretensões de liderança nacional de Francisco Campos. Da mesma forma que Plínio Salgado, o ministro da Justiça viu alimentada essa pretensão com a participação direta e ativa na articulação do golpe de 37 e na feitura da Carta Constitucional que traçaria as bases do regime autoritário. No entanto, quando do momento de implantação do regime, o governo vai deixar clara a distância entre essa política autoritária e o que o ministro da Justiça poderia pretender. Plínio Salgado, na correspondência a que antes nos reportamos, refere-se à afinidade de Francisco Campos com o fascismo, segundo o chefe integralista, uma característica que os distinguia essencialmente. "De minha parte, como conheço as idéias fascistas do Sr. Campos, eu me imaginava mais próximo do pensamento do presidente do que ele próprio." Essa afinidade vai-se transformar no argumento central utilizado por aqueles que combateram o projeto da Organização Nacional da Juventude.

Na verdade, as duas lideranças ofereciam riscos, tanto a de Plínio como a que Campos construiria, se colocado em prática o projeto da Organização Nacional da Juventude. Não havia razão para escrúpulos por parte do governo em sustar essas iniciativas, quando já degustados os frutos que poderiam, sem perigo, oferecer. Retirar de Francisco Campos a liderança do movimento político da juventude e passá-la a Gustavo Capanema era assegurar os limites necessários ao desempenho da política autoritária no país, ou seja, assegurar a desmobilização política considerada ameaçadora. As pretensões do ministro da Educação e Saúde eram mais modestas e muito mais convenientes nesse sentido: atuar junto ao governo federal para receber dele o apoio indispensável à sua atuação como ministro de Estado. Essa pretensão, além de não oferecer riscos, viria ao encontro dos objetivos do governo de consolidar o novo regime.

Todavia, dentro mesmo do Exército havia aqueles - ainda que solitários - que se embalavam ao som dos ideários do fascismo totalitário, revelando claramente a decepção e a reação dos que gritam isoladamente. O major Xavier Leal era um deles, e sua expectativa decepcionada com o movimento de juventude é reveladora:
(...) Não se compreende, pois, que se crie uma Juventude Brasileira e não se fixe imediatamente um programa de ação, enquadrando-a dentro do programa de ação do Estado. Juventude Brasileira para só aparecer nos dias de festa nacional ou para nomear diretorias e render homenagens aos vultos nacionais nos dias que lhes são consagrados, não se justifica. Precisamos de uma Juventude Brasileira orientada nos moldes das juventudes totalitárias, embora adaptada ao nosso ambiente e às diretrizes do Estado Novo.
Que representam na Alemanha ou na Itália as "Juventudes" nazistas? Representam organismos vivos, imbuídos dos programas do Estado, que desempenham num determinado escalão as tarefas preparatórias do escalão superior, inclusive a instrução pré-militar, de modo que qualquer membro dessas Juventudes possa evoluir naturalmente, sem sobressaltos ou malabarismos, para este ou aquele setor da organização nacional. Em uma palavra, qualquer membro dessas Juventudes sabe para que se está preparando (...)(44)
Mas, não seria no final de 1941, quando já passado o momento efervescente em que teve lugar a proposta da Organização Nacional da Juventude e já debelados os impulsos de organização miliciana, que teria eco um clamor dessa natureza. O movimento da Juventude Brasileira já se afirmara pela desmobilização e já fazia parte do folclore do civismo, a grande retórica nacional.


Notas

1. Gustavo Capanema. Conferência proferida por ocasião do centenário do Colégio Pedro II, 2 de dezembro de 1937. GC/Capanema, Gustavo, 02.12.37, série pi.

2. Plano Nacional de Educação, capítulo 2, artigo 66, Arquivo do Conselho Federal de Educação, Brasília, DF.

3. Gustavo Capanema. "Esboço do projeto da Lei Orgânica do Ensino Secundário" GC 36.03.24/1, pasta VII, série g.

4. Idem. "Anotações manuscritas sobre as diretrizes da reforma do ensino secundário". Arquivo Gustavo Capanema. FGV/CPDOC.

5. Professor Sousa da Silveira. "Instruções metodológicas para o ensino da lingua portuguesa no ginásio". Capanema concorda com a proposta, riscando, porém, as palavras "mais obscuros, porém". GC 39.01.00, doc. 3, série g.

6. Decreto-lei no. 4.244, 9 de abril de 1942.

7. Programa do curso de pajens da Escol. de Educação Doméstica. Lig. das Senhoras Católicas de São Paulo. GC 35.05.01, pasta 11-5, série g.

8. Carta de Rosalina Lisboa a Osvaldo Aranha. Arquivo Osvaldo Aranha, OA 39.00.00/6. FGV/CPDOC.

9. Arquivo Getúlio Vargas, GV 38.03.00/1. FGV/CPDOC

10. Idem.

11. Idem, p. 1.

12. Arquivo Gustavo Capanema, dossiê organização Nacional da Juventude.

13. Arquivo Getúlio Vargas, GV 38.03.00/1, p. 19. FGV/CPDOC.

14. Arquivo Gustavo Capanema, 9 de agosto de 1938, p. 1. GC 38.08.09, pasta 1-1, série g.

15. Idem, pp. 2 e 3.

16. Idem, pp. 3 e 4.

17. Idem, pp. 4.e 5.

18. Arquivo Getúlio Vargas, GV 38.03.00/1. FGV/CPDOC.

19. Idem, p. 2.

20. Essa tentativa já fora esboçada por Francisco Campos em 1931, por ocasião da formação, em Minas Gerais, da Legião de Outubro. Com toda a certeza, Campos conhecia o peso social do clericalismo católico mineiro que poderia servir como excelente base de apoio ao seu projeto legionário.

21. Arquivo Gustavo Capanema, 19 de setembro de 1938, p. 2. GC 38.08.09, pasta 1-3, série g.

22. Idem, pp. 3 e 4.

23. Idem, p. 4.

24. Arquivo Gustavo Capanema, 19 de setembro de 1938, p. 4.

25. Idem, p. 5.

26. Idem, p. 7.

27. Idem, pp. 7 e 8.

28. Idem, p. 8.

29. Arquivo do Exército. Minutas de correspondência do ministro da Guerra. Dezembro de 1938. (Grifo nosso).

30. Arquivo Getúlio Vargas, GV 38.03.00/1. FGV/CPDOC.

31. Idem, GV 38.00/1, artigo 14. FGV/CPDOC.

32. Idem, artigo 18.

33. Idem, artigo 12.

34. Idem, artigo 14.

35. Idem, 6V 38.03.00/1, artigo 16. FGV/CPDOC.

36. Arquivo Gustavo Capanema, recorte do jornal A Ofensiva, Rio de Janeiro, 23 de setembro de 1936.

37. Carta de Plinio Salgado a Getúlio Vargas. Em: Hélio Silva. 1938 - Terrorismo em campo verde. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1971, pp. 367-8. Para uma visão. abrangente do movimento integralista, ver a obra de Hélgio Trindade, Integralismo - o fascismo brasileiro na década de 30. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1974.

38. Idem, p. 368.

39. Idem, p. 373.

40. Idem, p. 376.

41. /Robert Levine. O regime de Vargas. Os anos críticos 1934-1938. Rio, Nova Fronteira, 1980, p. 132.

42. Idem, p. 143.

43. José Murilo de Carvalho. "Forças Armadas e política, 1930-1945" in A Revolução de 30 - Seminário Internacional Editora da Universidade de Brasilia, 1983, pp. 107-187.

44. Nação Armada, outubro 1941, 329. "Juventude Brasileira". (Grifo nosso).