TEMPOS DE CAPANEMA

SIMON SCHWARTZMAN, HELENA MARIA BOUSQUET BOMENY, VANDA MARIA RIBEIRO COSTA

1ª edição: Editora da Universidade de São Paulo e Editora Paz e Terra, 1984 - 2ª edição, Fundação Getúio Vargas e Editora Paz e Terra, 2000.



Capítulo 5

A Constituição da Nacionalidade


1. A política de nacionalização

2 A institucionalização da violência

3. Cidadania e nacionalidade

4. A nacionalização e a Igreja

5. Conclusão

Notas


A constituição da nacionalidade deveria ser a culminação de toda a ação pedagógica do ministério, em seu sentido mais amplo. É possível distinguir pelo menos três aspectos neste esforço de nacionalização. Primeiro, haveria que dar um conteúdo nacional à educação transmitida nas escolas e por outros instrumentos formativos. A natureza mais precisa deste "conteúdo nacional" jamais ficou totalmente definida, mas é claro que ela não incorporaria aquela busca às raízes mais profundas da cultura brasileira que faziam parte da vertente andradiana do projeto modernista; ao contrário, tiveram preferência os aspectos do modernismo relacionados com o ufanismo verde e amarelo, a história mitificada dos heróis e das instituições nacionais e o culto às autoridades. Não faltava a esta noção de brasilidade, transmitida nas publicações oficiais e nos cursos de educação moral e cívica, a ênfase no catolicismo do brasileiro, em detrimento de outras formas menos legítimas de religiosidade. Finalmente, a nacionalidade deveria firmar-se pelo uso adequado da lingua portuguesa de forma uniforme e estável em todo o território nacional.

O segundo aspecto era, precisamente, a padronização. A existência de uma "universidade- padrão", de escolas-modelo secundárias e técnicas, de currículos mínimos obrigatórios para todos os cursos, de livros didáticos padronizados, de sistemas federais de controle e fiscalização, tudo isto correspondia a um ideal de homogeneidade e centralização de tipo napoleônico, que permitiria ao ministro, de seu escritório no Rio de Janeiro, saber o que cada aluno estava estudando em cada escola do país em um momento dado. O terceiro aspecto, finalmente, era o da erradicação das minorias étnicas, lingüísticas e culturais que se haviam constituído no Brasil nas últimas décadas, cuja assimilação se transformaria em uma questão de segurança nacional. É este terceiro aspecto da política de nacionalização que examinaremos a seguir com mais detalhe.

1. A política de nacionalização

Em janeiro de 1938, o tema da nacionalização era matéria de oficio reservado do chefe do Estado-maior do Exército, general Pedro Aurélio de Góis Monteiro, ao ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra.(1) A tônica do documento é toda ela posta nos perigos que a presença de núcleos estrangeiros organizados trazem à segurança nacional. Góis Monteiro comunica ao ministro da Guerra o conteúdo do relatório da 5a. Região Militar, "manifestando sua preocupação com as conseqüências funestas de uma colonização estrangeira no Brasil (...) mal-orientada, sem a necessária diretriz do governo e controle indispensável, para anular os inconvenientes da existência de núcleos, que não se diluem no nosso meio mas, ao contrário, procuram se fortalecer, conservando as características dos países originários." Não escapou ao chefe do EM E a referência especial ao grupo alemão - de resto, presente no oficio da 5a. Região Militar:
O comando da 5a. R. M. ressalta os estados mais atingidos pelos perigos da colonização estrangeira, tanto alemã como italiana, japonesa e polonesa, achando que de todos os elementos radicados no nosso país, os mais bem-organizados são os alemães, devido ao isolamento em que procuram viver, transmitindo aos seus descendentes língua, costumes, crença, mentalidade, cultura e patriotismo.(2)
A dificuldade de assimilação alemã é atribuida à fecunda consciência patriótica que o grupo preserva. Esse processo de consciência é transmitido às gerações seguintes, constituindo-se em uma forte ameaça à formação da consciência patriótica brasileira. Pelo tipo de ocorrências que a 5a. Região Militar seleciona para conhecimento do Estado-maior do Exército, não é difícil compreender as razões de ter o Exército se imiscuído na questão da nacionalização, transformando-a em questão de segurança nacional. O comando regional chama a atenção do Exército para fatos como: a não compenetração dos deveres militares para com a pátria por parte dos conscritos de origem teuta; a dificuldade na repartição dos reservistas no plano de mobilização; o problema racial; a educação como base de formação da nacionalidade; a Igreja como colaboradora dos elementos estrangeiros e, finalmente, as atividades nazistas no Brasil. O comando da 5a. Região indica a colonização alemã como a mais perniciosa "porque tem atrás de si, com a política da Alemanha de hoje, uma organização capaz não só de encorajá-la como mesmo de protegê-la, quer pela força, quer pelas injunções diplomáticas."(3)

Para o Exército, o fortalecimento da consciência patriótica alemã é fruto de uma política deliberada e organizada da Alemanha para a ampliação de seu domínio no mundo. O relatório militar fundamenta essa afirmação enumerando as linhas básicas de orientação germânica aos alemães no estrangeiro: todo alemão no estrangeiro deve conservar-se alemão; todos os alemães fora da Alemanha pertencem ao Reich; os alemães devem estar unificados no mundo; os alemães não devem comprometer a política racial, precisam conservar a raça pura; "A Alemanha acima de tudo! A Alemanha sobre todos no mundo!" As escolas e os professores são os elementos indispensáveis à obra de germanização; os professores são sentinelas avançadas que devem dar toda a sua personalidade à pátria, de modo que a Alemanha possa confiar neles de modo absoluto; a Liga dos Professores Nacionais-Socialistas, junto com o partido e de acordo com os ministérios dos Estrangeiros e da Educação deve regular todas as relações com os professores alemães no exterior, orientando-os sobre todas as questões educativas. A conclusão, para o comando da região militar, era que as escolas se constituíam nos focos de orientação da doutrina nazista no Brasil.

Opinava Góis Monteiro que o projeto germânico obtinha sucesso nas zonas de colonização alemã. Usava como evidência a existência, em todos os estados de colonização alemã, de associações esportivas, culturais, recreativas e de classe, além de escolas (jardim de infância, ensino primário e secundário) e de uma vida nitidamente germânica, frutos da propaganda alemã expansionista e da busca de perpetuação da cultura através do ensino da língua materna. Tratava-se, segundo Góis Monteiro, de uma pátria alemã em território brasileiro. Como a construção de uma pátria engloba múltiplos aspectos da vida coletiva, Góis Monteiro vai enumerar uma série de providências sugeridas pelo comando da 5a. Região Militar, envolvendo a ação e atuação dos Ministérios da Guerra, da Educação, da Justiça e do Trabalho. O Ministério da Guerra deveria desenvolver núcleos de escoteiros, transformando os existentes e criando novos com a assistência de oficiais e sargentos capazes de imprimir um cunho verdadeiramente nacionalista a essas organizações. Deveria ainda criar uma estratégia para "penetrar" nas associações esportivas, dando-lhes instrutores e forçando a abertura dos quadros sociais a todos os brasileiros, impedindo, dessa forma, a existência de entidades privativas estrangeiras. Sugere ainda a transferência ou criação de unidades do Exército nas zonas de maior influência estrangeira e, finalmente, uma investida para forçar a aprendizagem da nossa língua nos quartéis, só fazendo a desincorporação para aqueles que falassem e escrevessem o português com relativa facilidade.

Desfile do Dia do Trabalho no Grêmio Esportivo Renner, Porto Alegre, 1937


O Ministério da Educação deveria criar e executar um programa de desapropriação progressiva das escolas estrangeiras, nomeando diretores brasileiros até a substituição completa dos professores estrangeiros por nacionais selecionados. Essa foi, sem dúvida, uma sugestão cumprida à risca pelo interventor Cordeiro de Farias no Rio Grande do Sul, conforme seu próprio depoimento:
Tendo em vista o problema da infiltração nazista, decidimos utilizar as escolas como meio de neutralizar as influencias do meio social. Resolvemos então criar incentivos especiais para as professoras que concordassem em se deslocar para locais mais distantes, sob maior influência alemã. Oferecemos a elas residência, serviço de saúde e proteção policial, além de salário normal a que tinham direito (...); nas áreas mais carentes fizemos convênios com entidades particulares para intensificar a formação de quadros. Enfim, foram cercadas de todo cuidado e tratadas como verdadeiras princesinhas (...).(4)
Ainda ao Ministério da Educação caberia a tarefa de atuar junto à Igreja, transformando-a em órgão que colaborasse com o governo e não com o grupo estrangeiro. Era preciso auxiliar a organização de sociedades recreativas e culturais, procurando modificar as que existiam e modelando-as dentro de um "espírito de brasilidade".

O Ministério do Trabalho contribuiria para a nacionalização, fazendo com que a organização sindical penetrasse nas zonas "comprometidas pela má colonização", transformando as atuais agremiações operárias em sindicatos nacionais. Afora essa sugestão, esse ministério poderia encaminhar de imediato o trabalhador nacional para essas regiões, a fim de contrabalançar a influência desnacionalizadora e forçar a mescla de brasileiros e estrangeiros, principalmente na organização da família.

Providências legais para a execução desse plano ficariam a cargo do Ministério da Justiça. Deveria ele forçar o cumprimento da lei que extinguira os partidos estrangeiros e fazer a legislação complementar no que dissesse respeito à existência de partidos ou sociedades civis, limitando a influência estrangeira em todos os seus aspectos e proibindo o uso de outros idiomas que não o nacional em todos os atos.

Tanto no projeto governamental de nacionalização, quanto nas reações dos grupos diretamente afetados por ele, preconceitos e estereótipos constituíam-se numa presença marcante. Quer se tratando da inferioridade dos asiáticos, ou da superioridade dos germânicos, quer na referência à incompetência dos brasileiros na criação de um ensino escolar aceitável e até mesmo na forma de manifestarem seu patriotismo - argumento freqüentemente utilizado pelos alemães - os estereótipos perpassam indiferentemente os documentos que tratam do tema da nacionalização. Alguns deles têm ressonância dupla: fortalecem a coesão do grupo, ao mesmo tempo que se transformam em alerta para ação do outro. É o caso específico do exacerbado nacionalismo alemão, que além de alimentar o próprio grupo, aparece como projeto a ser imitado. O nacionalismo excludente da política autoritária do Estado Novo teve como parceiro de luta o nacionalismo também excludente do grupo alemão que, sob o argumento de que não se poderia violar a liberdade dos alemães em manterem sua nacionalidade, seleciona seu convívio rejeitando assimilar a cultura de grupos que considera inferiores. E sem dúvida, os alemães representavam para a elite dirigente brasileira uma séria ameaça política pelo nível articulado de organização social, cultural e mesmo ideológica.

A atuação direta de agentes alemães no Brasil, vinculados ao Departamento do Exterior do Alto Comando das Forças Armadas da Alemanha (Abwehr), está extensamente documentada, entre outros, por Stanley Hilton, de 1939 a 1944,(5) e suas raízes são, evidentemente, anteriores. Ao mesmo tempo, a presença do nazismo serviu de argumento para a política repressiva dirigida ao grupo alemão, através da criação de um estigma que a legitimava aos olhos de quase todos. Desagregar o grupo alemão era garantir a unidade nacional e combater as influências nazistas no território brasileiro. Com esse novo ingrediente, o governo poderia eximir-se das acusações de propulsor de uma política nacionalista xenófoba - de resto, atribuida ao fascismo e ao nazismo -, legitimando-se como protetor de uma identidade nacional contrária à doutrina nazi-fascista. Tudo se passa como se a nacionalidade brasileira, já constituída, estivesse sofrendo a ameaça de ser destruída pela ação de grupos estrangeiros afinados com o nazismo, e não o contrário, ou seja, que sua construção estivesse condicionada à eliminação dos grupos e culturas diferenciadas.

A referência à infiltração nazista no Sul do país fazia exceção, freqüentemente, às antigas famílias alemãs, consideradas brasileiras e desligadas da ideologia nazista. O perigo estava entre os mais novos, que com mais facilidade cediam aos encantos e fascínios de Hitler. Segundo Cordeiro de Farias, "era uma política voltada para reorientar a nova geração de alemães e descendentes de alemães no Rio Grande do Sul. Mas, (...) não foi a geração alemã mais antiga que se deixou influenciar pelo nazismo. É claro que o nazismo, freqüentemente, brotava no seio dessas famílias. O que sinto, porém, é que as idéias nazistas tiveram mais força junto aos pouco aculturados, exatamente os mais sensíveis aos estímulos que, desde a ascensão de Hitler ao poder, eram emitidos da Alemanha para fortalecer os sentimentos nazistas no mundo inteiro."(6) Não obstante esse reconhecimento, a política de nacionalização seguiu indiscriminada, dirigida em bloco a todo o grupo estrangeiro. E especialmente com relação ao grupo alemão, as medidas repressivas e as perseguições com acusações de pertencerem ao nazismo foram absolutamente arbitrárias e indiferenciadas. Na opinião de Giralda Seyferth, o nazismo foi mais um fator de desagregação do que de união dentro do grupo teuto-brasileiro em Brusque, provocando uma cisão entre alemães novos e teuto-brasileiros. Para a autora, se foi verdade que muitos teuto-brasileiros se deixaram influenciar e empolgar pelos ensinamentos nazistas, a maior parte dessa população mostrava-se avessa à aceitação da tutela de um partido político estrangeiro - o partido nazista era encarado como tal.(7)

As referências que encontramos nos arquivos de Gustavo Capanema e Lourenço Filho sobre o envolvimento dos alemães com o nazismo dizem respeito à participação da juventude alemã, dos setores mais jovens desse grupo. Fala-se da Juventude Teuto-Brasileira, dirigida por Hans Neubert, seu organizador, e que tinha como objetivo prepará-los para futuros fuehrers de grupos, em cursos especiais. Esses cursos eram feitos na Alemanha, razão pela qual viajavam seguidamente caravanas de 15 a 20 jovens, com despesas pagas pelo governo alemão. Para as meninas existia a Bund Deutsches Auslands Madel, com regulamento interno semelhante ao da Juventude Brasileira. "Ocasiões houve em que os acampamentos eram mistos. Participavam tanto rapazes como meninas. Também estas trajavam um fardamento próprio, que, pelas fotografias, mostra ser o mesmo que usam as moças da Alemanha. A Fuehrerin (chefa) desta ala feminina, era a Srta. Nobel. (...) O governo alemão, a fim de desenvolver e incrementar a realização desses acampamentos, fornecia gratuitamente o material necessário. Desse modo, por intermédio do consulado, remeteu barracas modelares, avaliadas em dois e três contos de réis cada uma. Estas, porém, foram apreendidas pela alfândega e postas em leilão. Tendo sido arrematadas por um senhor, foram adquiridas posteriormente pelo cônsul local, em cujo poder continuam."(8)

É possível argumentar que o nazismo não tenha tido a penetração e nem mesmo influência tão profunda quanto a propalada entre os grupos alemães nas zonas de colonização. Aspectos dessa ideologia, entretanto, incorporavam o nacionalismo que os próprios alemães cultivavam como forma de sua sobrevivência como grupo étnico específico, razão pela qual ficou fácil a identificação de qualquer propósito de afirmação de nacionalidade com o nazismo. O fato é que a denúncia de infiltração nazista nas zonas de colonização dava legitimidade à política de repressão institucionalizada que seria implementada pelo governo brasileiro a partir de 1938.

A hostilidade aos alemães preocupava setores da elite política no governo interessados em manter, no nível internacional, o que Gerson Moura qualificou de "eqüidistância pragmática", ou seja, uma política de indefinições entre os centros hegemônicos emergentes.(9) Em 1938 e 1939, o Brasil havia ampliado o comércio com a Alemanha a ponto de causar enorme preocupação ao governo americano, uma preocupação que se entendia pelo fato de que esse estreitamento de relações entre Brasil e Alemanha estava tendo como resultado o estabelecimento de relações entre as Forças Armadas brasileiras e alemãs. As implicações políticas dessa aliança não escaparam aos dois governos, brasileiro e alemão:
(...) A presença alemã no Brasil centrava-se no intercâmbio comercial, embora não se restringisse a isso. Havia entre o governo brasileiro e o alemão um acordo tácito de que as dificuldades políticas não deveriam prejudicar os acertos econômicos. Os problemas políticos daquele momento eram os seguintes: do lado brasileiro havia a reclamação de que o nazismo procurava influenciar a população de origem alemã no Sul do Brasil, além da pretensão do governo alemão de proteger "minorias alemãs" e organizar o partido nazista em nosso país. Do lado alemão, havia queixas contra as leis de assimilação dos estrangeiros em território brasileiro promulgadas pelo governo em 1938, bem como a proibição de propaganda de partidos políticos estrangeiros.(10)
No ambiente internacional havia já a certeza de que as graves crises político-militares na Europa em 1938 levariam a um confronto drástico. Essa era a forte razão que levava o governo americano a ampliar sua área de influência no continente, e o estreitamento de relações Brasil-Alemanha era interpretado como um perigo de aliança do Brasil com o Eixo. O objetivo do governo brasileiro era manter uma situação que lhe fosse favorável sem que lhe custasse a ruptura de relações com qualquer dos dois países. É dentro dessa conjuntura de "opção estratégica pela indefinição" que se compreende a argumentação, sempre recorrente, da necessidade de aplicar uma política "severa, mas cautelosa" com relação à nacionalização do ensino, quando em confronto com os grupos alemães. Defendia-se, oficialmente, a separação entre o projeto de nacionalização e a posição de neutralidade do Brasil no contexto dos conflitos externos. A fórmula proposta combinava energia e suavidade na definição da ação politica nacionalizadora. Houve até momentos em que se chamava a atenção para a necessidade de não imprimir à nacionalização "alardes de xenofobia". A política deveria assumir uma feição tal que não criasse embaraços, colocando o Brasil numa situação constrangedora frente a estados estrangeiros pela aplicação de medidas violentas que, eventualmente, pudessem provocar qualquer choque de soberanias. Era um equilíbrio difícil de manter, sob o Estado Novo.

2.A institucionalização da violência

Pela primeira vez, na história do país, o poder público vem tomando a peito o problema da nacionalização dos imigrantes e seus descendentes.
Antes de 1937 isso não teria sido possível nalguns estados, porque as instituições vigentes erigiam em forças eleitorais os núcleos de origem estrangeira, dando-lhes influência bastante para contrariar os intentos do governo central.(11)
Esse tipo de depoimento é mais ou menos recorrente na documentação oficial que diz respeito à questão da nacionalização do ensino. A vinculação freqüente entre a resolução do que era considerado um "problema nacional" e uma estrutura de poder fortemente centralizado no Estado Nacional funcionava como argumento de justificação da política do Estado Novo. E, sem dúvida, foi nesse período, entre 1938 e 1940, que medidas foram tomadas em prol da construção do que se chamava uma "política de nacionalização".

O ano de 1938 no Brasil é especialmente fértil em medidas legais e projetos identificados com a construção do nacionalismo brasileiro. Alguns desses projetos e medidas revelam o conteúdo doutrinário e político do projeto nacionalista que se criava. Falar dessas medidas e projetos é relembrar o contexto da época. Foi nesse ano que a investida integralista chegou ao seu apogeu e, simultaneamente, ao início de sua queda, por ação repressiva do Estado. Foi nesse ano que se formulou o projeto de Organização Nacional da Juventude, em moldes fascistas e mobilizantes na sua concepção, evoluindo para uma experiência cívica sem maiores expressões, por intervenção de setores do Exército. Foi também em 1938 que a campanha de nacionalização do ensino chegou ao seu clímax, com a formulação e promulgação de um número substancial de decretos-leis destinados essencialmente a deter a experiência educacional dos núcleos estrangeiros nas zonas de colonização.

Portanto, o ano de 1938 aparece na história politica brasileira com um duplo significado: faz renascer e revitalizar experiências consideradas de "cunho fascista", com maior ou menor assentimento do Estado, mas é também o momento que com mais rigidez se detém esse avanço. É como se o golpe de 1937 fosse um aval e um estimulo a práticas de mobilização política contrárias aos movimentos de esquerda, incentivando a criação de projetos de organização politica e mesmo partidária reconhecidamente de direita como futuros parceiros da nova ordem política, e 1938 fosse o momento de definição dos limites que o autoritarismo desmobilizador brasileiro imporia a essas iniciativas. A doutrina integralista poderia ser conveniente ao projeto autoritário do governo; a organização do integralismo em partido atuante e mobilizado, uma ameaça a ser detida. A ideologia de formação de uma juventude alinhada aos princípios estadonovistas era, sem dúvida, uma contribuição benéfica ao projeto de construção do Estado Nacional; a organização da juventude em moldes mobilizantes e mesmo milicianos, outra ameaça que afrontava a hierarquia e a estrutura de poder que o Exército reservava a si, como parceiro e sócio político do governo na construção do Estado Nacional.

A questão dos núcleos estrangeiros que emergia como problema e obstáculo para aqueles que se atribulam a responsabilidade de pensar o nacionalismo brasileiro desde o início do século, será redimensionada de forma radical no contexto do Estado Novo. Parecia impossível construir uma nacionalidade com a simultânea convivência de diferenças culturais. Construir o nacionalismo era, ao mesmo tempo, destruir as diferenças e proceder a uma seleção na formação da cidadania brasileira. No caso dos japoneses, por exemplo, as referências encontradas nos documentos são freqüentemente negativas:
Não se deve aplicar o mesmo critério assimilador a asiáticos e europeus. Por maior que seja a nossa boa vontade, por mais profundo que seja o nosso instinto de cordialidade internacional, cumpre-nos defender os caracteres morfológicos do povo brasileiro, preservar as suas possibilidades de aproximação com os tipos europeus iniciadores, mantendo à parte os grupos asiáticos e impedindo o seu desenvolvimento. Destarte, o problema japonês fica desde logo definido como um problema de política imigratória. A nacionalização, neste caso, não deve significar assimilação étnica.(12)
Sede da União Beneficiente e Educativa fechada pela polícia gaúcha. FGV - CPDOC, Arquivo Cordeiro de Farias


A estereotipia da superioridade alemã é comparável, em ênfase, ao seu contraponto com relação ao grupo nipônico. Na questão da nacionalização, ao que tudo indica, foram os japoneses e os alemães os que mais mobilizaram as autoridades brasileiras. A ação anti-germanista foi mais intensa - talvez pelo considerável grau de organização comunitária dos grupos alemães nas zonas de colonização. Mas os japoneses não ficaram imunes.

Em julho de 1940, João Carlos Muniz, presidente do Conselho de Imigração e Colonização, adverte Vargas da entrada de 60 caixas contendo livros pedagógicos impressos em língua japonesa, destinados às escolas japonesas no Brasil. Salienta que esses livros não puderam ser apreendidos por não se destinarem á venda. Esse oficio, de número 523/370, provocou a reação do secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional, general-de-divisão Francisco José Pinto, em um comunicado reservado ao ministro da Educação alertando para a necessidade de se tomar providências legais que legitimassem uma atitude repreensiva do Conselho de Imigração e Colonização. Diz ele textualmente:
Sabido como são férteis os japoneses em seus processos de sutileza e em sua pertinácia racial, contamos que V. Excia. em seu alto patriotismo se dignará mandar estudar o assunto pela seção de segurança desse ministério, no sentido de ser encontrada uma forma para neutralizar essa manobra de burla à nossa politica nacionalizadora.(13)
Solicitando a assessoria do INEP, o ministro da Educação dá prosseguimento às medidas cabíveis ao caso. Recebendo o memorando assinado por Lourenço Filho, foi constatado que com a legislação vigente não se poderia impedir a entrada de livros estrangeiros, pelo artigo 19 do decreto-lei n 1.006 de 1938, que regularizava a produção e distribuição do livro didático no Brasil. Por esse artigo, "é livre a importação de livros didáticos." Lourenço Filho chama a atenção para esse "embaraço legal" apontando como solução a alteração da legislação prevendo-se a liberdade de importação de livros didáticos, "desde que impressos em língua portuguesa."(14) Essa sugestão foi imediatamente acatada e incorporada ao conjunto de novos regulamentos que essa matéria recebeu no período do Estado Novo.(15)

O mesmo oficio que acusa a entrada de 60 caixas de livros didáticos japoneses, faz referência ao embarque de crianças brasileiras para o Japão. A bordo do paquete Brasil-Maru, em Santos, embarcaram 135 menores de 14 anos, filhos de japoneses, sendo que 106 nascidos no Brasil e 29 no Japão. Esse fato isolado pode não ter muita importância. Mas, se o associarmos ao movimento de retorno dos alemães ao seu pais por estarem sendo atingidos com a nacionalização, poderemos imprimir ao episódio um significado maior. Na verdade, a maioria dos decretos que reprimiam drasticamente as atividades estrangeiras no Brasil foi promulgada entre 1938 e 1939.0 fechamento de escolas, a proibição do ensino em língua estrangeira, os decretos relativos à importação do livro didático em língua estrangeira, a proibição de circulação de jornais em língua estrangeira, enfim, as medidas de nacionalização representavam para esses grupos a interrupção de um processo cultural que vinha sendo mantido há quase um século.(16) Todos os argumentos utilizados pelas autoridades brasileiras para justificar uma política repressiva à manutenção dos elos culturais estrangeiros no Brasil são utilizados pelo grupo alemão para justificar a importância da manutenção de suas atividades. Em uma correspondência particular interceptada pela censura encontramos esta declaração:
Até há cerca de um ano podia o alemão, ou de descendência, viver aqui sem ser molestado, desde que se portasse direito. Podiam, outrossim, as crianças dos alemães aqui nascidas, e que de acordo com as leis são brasileiras, freqüentar as escolas alemãs e ter assim ensino suficiente. Começaram as medidas de nacionalização do governo brasileiro, que destruíram sem razão e destroem dezenas de anos de uma cuidadosa conservação de costumes (...) De importância, é que com essa situação não pode haver uma educação direita dos filhos aqui. De nenhuma forma pretendo dar aos meus filhos um ensino escolar de apenas (quatro) anos, que é feito por professoras com 18 anos. Pois isso não é ensino. Além disso não estou disposto a mandar meus filhos sentarem num mesmo banco escolar com negros.(17)
O major Euclides Sarmento, em 1939, escreve ao ministro da Educação destacando os quatro mais importantes decretos promulgados em 1938 a respeito dos estrangeiros no Brasil. O decreto-lei n 383, de 18 de abril de 1938, que vedava aos estrangeiros o exercício de atividades politicas no Brasil; o decreto-lei n 406, de 4 de maio desse mesmo ano, regulamentando o ingresso e a permanência de estrangeiros, determinando providências para a assimilação dos mesmos e criando o Conselho de Imigração e Colonização como órgão executivo das suas disposições; o decreto n 868, de 18 de novembro de 1938, criando a Comissão Nacional de Ensino Primário, estabelecendo entre as suas atribuições a de nacionalizar o ensino nos núcleos estrangeiros; e, finalmente, o de n 948, de 13 de dezembro de 1938 que, considerando serem complexas e exigirem a cooperação de vários órgãos da administração pública as medidas capazes de promover a assimilação dos colonos de origem estrangeira e a completa nacionalização dos filhos de estrangeiros, determinava que as medidas com esse fim "fossem dirigidas e centralizadas pelo Conselho de Imigração e Colonização."

A razão da comunicação ao ministro da Educação está na observação que Sarmento faz à ausência, no Conselho de Imigração e Colonização (CIC), de um representante do Ministério da Educação. A estratégia de ação pressupunha duas frentes; uma, que previa a proibição da concentração de estrangeiros de uma só nacionalidade em quantidade superior á 25% nos núcleos de colonização, assegurada sempre a proporção de 30% aos brasileiros natos - o que implicava proibir a concessão, transferência ou arrendamento de lotes a estrangeiros cuja quota-parte no núcleo já estivesse completa, tarefa que caberia ao CIC; a outra pressupunha a intervenção do Ministério da Educação nas tarefas de natureza educativa. Neste setor, o major Sarmento salienta a atuação destacada do Exército, "fundando escolas, nacionalizando os descendentes de estrangeiros que entram em suas fileiras, exigindo qualidade de reservista para os empregados públicos, fixando e deslocando tropas para fazer conhecida e respeitada a nossa bandeira."(18)

A associação entre as secretarias estaduais de Educação e as forças policiais na função repressiva foi salientada por Cordeiro de Farias: "Todos os documentos que tenho hoje (...) foram apanhados pela polícia, a quem cabiam as ações mais violentas de prisão e apreensão de documentos. Eram ações complementares à politica de nacionalização e de mudança de mentalidade realizada pela secretaria de Educação."(19) Não só referências oficiais confirmam a ação violenta muitas vezes empreendida no processo de nacionalização do ensino. Documentos e depoimentos dos próprios grupos estrangeiros aludem freqüentemente à prisão de alemães só pelo fato de serem alemães, por identificá-los automaticamente com o nazismo.

Em 1938, o Estado-maior do Exército alertava sobre a necessidade de ampliar as medidas de nacionalização do ensino, até então restritas às escolas da zona rural. Era uma decisão que implicava em novos recursos, uma vez que o fechamento de escolas particulares deveria ser compensado com a abertura de escolas oficiais. Em 1940, o INEP faz um relatório apresentando os resultados da implementação dessas medidas conforme as cifras seguintes:

ESTADO ESCOLAS FECHADAS ESCOLAS ABERTAS
R.G. SUL 103 238
S. CATARINA 298 472
PARANÁ 78 70
SÃO PAULO 284 51
ESPÍRITO SANTO 11 45
TOTAL 774 876

Não foram poupados métodos repressivos violentos. Inúmeras foram as queixas e perseguições aos alemães, de interceptação de correspondência particular, de jornais, revistas, programas de rádio e, ainda, perseguição e molestamento às pessoas que tinham por hábito o uso da língua alemã. Uma das cartas encontradas no arquivo Capanema trata dos reflexos dessa politica sobre a vida econômica da comunidade, pelo fato de muitos alemães desejarem se desfazer de suas propriedades para retornar à pátria. O autor da carta interceptada já mencionada anteriormente condiciona seu regresso definitivo à Alemanha à possibilidade de troca de sua propriedade no Brasil por uma outra na Alemanha, o que reconhece ser difícil na ocasião "em virtude de terem sido correspondidas as medidas de nacionalização com o retorno à Alemanha de grande parte da população, e o restante também quer vender, pelo que há demasiadas ofertas de imóveis."(20)

3. Cidadania e nacionalidade

Por mais verdadeira que fosse a presença e a ameaça do nazismo no Brasil, seria ingênuo acreditar que ela esgotasse todo o sentido da repressão nacionalizadora que se abateu sobre as colônias estrangeiras no Brasil naqueles anos. Por trás desta questão própria da conjuntura internacional da época havia uma outra mais genérica, que era a da confrontação entre os esforços de auto-preservação da identidade de um grupo étnico emigrado e as pressões homogeneizadoras do governo central. Esta questão foi objeto de um estudo aprofundado, que vale a pena sumariar em seus pontos principais.

O trabalho de Giralda Seyferth, citado anteriormente, é o resultado de pesquisas realizadas nos municípios de Brusque e Gabiruba, Santa Catarina, uma região povoada com imigrantes de origem alemã desde a segunda metade do século XIX. Seu objetivo era examinar como se desenvolvia, nestas comunidades, um sentido de identidade étnica teuto-brasileira que não renunciasse ao seu componente cultural germânico, sintetizado pela expressão Deutschtum. A manutenção deste componente era constantemente defendida pela imprensa brasileira de lingua alemã desde 1852 até sua proibição em 1941, e foi particularmente intensa nos períodos de maior atividade da Alldeutsche Verband (Liga Pangermânica), de 1890 a 1918, e posteriormente pela propaganda nacional-socialista durante a década de 1930. Na concepção corrente na época, havia uma distinção extremamente marcada entre a noção de cidadania e a de nacionalidade. Como diz a autora:
(...) Existem duas formas, ou melhor, três, de se estabelecer a nacionalidade de uma pessoa: pela herança de sangue, fundamentada no jus sanguinis, que exclui critérios geográficos; pelo local de nascimento de uma pessoa, baseado no jus soli; ou pela combinação dessas duas coisas. Esta última alternativa levou a uma dualidade de nacionalidades, principalmente entre grupos de imigrantes, estabelecidos fora de seu país de origem, gerada pela confusão em torno dos conceitos de pátria, cidadania e nacionalidade. Por exemplo, na ideologia pangermanista divulgada no Sul do Brasil, qualquer pessoa descendente de alemães teria direito à nacionalidade alemã (expressada pelo termo Volkstüm), enquanto que a cidadania estava restrita aos nascidos na Alemanha.(21)
A conseqüência básica dessa concepção era a distinção entre os conceitos de cidadania e nacionalidade. Cidadania tinha que ver com vinculação ao Estado; nacionalidade, com direito de sangue (e não com a eventualidade de se ter ou não nascido na Alemanha). "Por isso, na concepção pangermânica, todos os alemães e descendentes de alemães, em todo o mundo, poderiam formar uma unidade nacional sem se constituírem, necessariamente, em traidores dos estados dos quais são cidadãos."(22) Este entendimento, considerado extremamente ameaçador às autoridades brasileiras, era para o grupo teuto-brasileiro absolutamente natural, uma vez que se consideravam brasileiros por cidadania e, como tal, cumpridores de todos os deveres cívicos e políticos a que o cidadão comum está sujeito. Mas sua nacionalidade alemã era mantida por suas instituições próprias: a imprensa teuto-brasileira, a escola alemã, a sociedade de caça e tiro, a Igreja Luterana. Junto a elas, prossegue Giralda Seyferth, a Escola Evangélica Alemã, as igrejas Luterana e Católica, as sociedades recreativas - e mais o uso quotidiano da língua alemã. Para um alemão, era possível construir uma Heimat para si no estrangeiro. Este termo se aplicava essencialmente ao local onde o indivíduo tinha seu lar. A Heimat de um teuto-brasileiro nascido em Blumenau, por exemplo, é esta cidade e será uma Heimat alemã se for mantida viva a cultura especificamente germânica pela utilização da língua alemã e até pela evocação da paisagem brasileira através de uma canção, a Lied. Dessa forma, a língua acabou por se tornar a principal característica do nacionalismo alemão fora de suas fronteiras, como o meio mais concreto de identificação étnica.(23)

As autoridades brasileiras sabiam disso, e das conseqüências dessa prática para o desenvolvimento do projeto nacionalista idealizado para o Brasil. Se ao longo do período de formação das zonas de colonização foi cômodo para o governo brasileiro deixar os núcleos estrangeiros por sua própria conta e risco, essa "displicência" estava agora sendo lembrada como responsável pelos problemas e obstáculos ao projeto de criação da nacionalidade brasileira.
De iniciativa exclusivamente particular, foram surgindo as instituições necessárias à vida coletiva: comunidades religiosas, sociedades recreativas e beneficentes, hospitais e uma vasta rede escolar (...) Criadas e mantidas pela diligência particular e só mais tarde subvencionadas pelo governo alemão, estas escolas representam um alto e quase comovente esforço de elevação, partido de criaturas abandonadas, desejosas de não regressar às condições primárias dos aglomerados não civilizados.(24)
A alusão ao descaso dos governos passados, da metade do século XIX até a década de 1930, vem tanto de fontes oficiais, como dos próprios grupos estrangeiros quando defendem a manutenção do que construíram sem auxílio e sem apoio do governo. Na investida final do processo de nacionalização esse tipo de argumento era utilizado com certa freqüência pelos próprios grupos estrangeiros, principalmente o alemão. Nas diversas avaliações de órgãos diretamente responsáveis pelo assunto, como é o caso do INEP, aparece igualmente na argumentação o fato de nunca ter havido uma politica definida sobre a imigração que prevenisse impasses futuros como os que estavam vivendo naquele período.

Em um extenso relatório datado de 1940 sobre a nacionalização do ensino, o INEP acompanha historicamente o trajeto dos imigrantes e sua fixação no solo brasileiro. Nessa recuperação, seleciona depoimentos de historiadores, escritores e pensadores políticos desde o século XIX já alertando para o fato de estarem os estrangeiros, especialmente os alemães, ocupando um espaço deixado pelas autoridades brasileiras. A precariedade da instrução oficial nos estados do Sul, principalmente no Rio Grande do Sul, levava a que os colonos dessem preferência ao ensino dos colégios particulares alemães. Na avaliação, a assessoria do INEP julgava esse fato como "perfeitamente lógico e natural. A escola não é um órgão abstrato, mas um centro de coordenação da própria ação educativa da comunidade. Tendo-se cometido o erro de permitir o nucleamento de estrangeiros, sem maior vinculação ou disciplina aos centros nacionais de cultura, as instituições educativas que aí deveriam surgir seriam as que ensinassem em lingua estrangeira."(25)

É do próprio chefe da nação a acusação aos governos anteriores de desleixo e mesmo negligência em relação aos grupos estrangeiros, deixados à sua própria sorte:
(...) Há noventa anos passados chegava no vale do Itajaí a primeira colônia dos povoadores alemães. Decerto, no meio de imensas florestas, foram deixados ao abandono. Abateram a mata, lavraram a terra, lançaram a semente, construíram suas casas, formaram as lavouras e ergueram o edifício de sua prosperidade. Dir-se-á que custaram muito a assimilar-se à sociedade nacional, a falar a nossa lingua. Mas a culpa não foi deles, a culpa foi dos governos que os deixaram isolados na mata, em grandes núcleos, sem comunicações. Aquilo que os colonos de então pediam era o binômio de cuja resultante deveria sair a sua prosperidade. Só pediam duas coisas: escolas e estradas, estradas e escolas. No entanto, a população que prosperava isolada, devido somente ao seu próprio esforço, só tinha uma impressão de existência do governo. Era quando este se aproximava dela como algoz para cobrar-lhes impostos, ou como mendigo, para solicitar-lhes o voto. O governo que se aproximava somente quando precisava dos votos perdia a respeitabilidade, porque vivia de transigências. E à troca desses votos, não vacilava em desprezar os próprios interesses da nacionalidade (...).(26)
Ora, exatamente porque foram obrigados a vencer esse "descaso",os alemães reivindicavam agora o reconhecimento de sua existência como grupo cultural autônomo e até a participação efetiva do governo na sustentação desse patrimônio já conquistado. Na perspectiva do grupo, o governo faria justiça se auxiliasse e apoiasse o empreendimento já construído, e nesse sentido é freqüente a solicitação dos alemães ao governo da mesma atenção que recebem os que chamam "luso-brasileiros":
(...) A primeira grande ofensiva do Estado nesse sentido constituiu a perseguição aos alemães em 1919, e a segunda começa a se esboçar agora (...). Segundo nosso conceito de brasilidade, porém, a nossa escola teuto-brasileira é tão brasileira quanto a escola oficial de lingua portuguesa; nós a consideramos equivalentes e equiparadas. A nossa exigência vai ao ponto de reclamar do Estado que ele auxilie não só financeiramente mas em todos os sentidos a escola teuto-brasileira, como sendo a escola de milhares de seus filhos.(27)
Na avaliação do grupo germânico, os luso-brasileiros detinham um poder exacerbado e achavam injusto que, "pelo acaso de terem descoberto o país e vivido ali sozinhos durante 500 anos, em companhia de negros e índios, hajam conquistado o direito de impingir a sua norma de existência a todos os habitantes do Brasil."(28) Não atribuem aos portugueses nada de especialmente distinto que os credencie a um título de proprietário político, ideológico ou mesmo cultural dominante sobre os demais grupos estrangeiros que vieram construir a sociedade brasileira. Colocam em pé de igualdade e de direito a formação de uma vida teuto-brasileira, ítalo-brasileira, luso-brasileira. Cada grupo se nacionalizaria com uma marca especifica de etnia e isso em nada transtornaria a formação de uma sociedade, desde que os deveres fossem rigorosamente cumpridos frente ao estabelecido em lei na sociedade brasileira. Na verdade, o que se sentem enfrentando é uma conquista que os luso-brasileiros tiveram na constituição de 34 que oficializou a "brasilidade concebida no sentido lusitano."

A derrota ofendia mais ainda pela visão preconceituosa que alimentavam dos luso-brasileiros. Sempre que os alemães recorriam a comparações, reproduziam a crença da inferioridade dos luso-brasileiros frente aos germânicos. Essa crença servia também de justificativa para a explicação dos casamentos fechados no próprio grupo:
O colono alemão foi forçado, desde o começo, a realizar trabalho físico, no qual, visto serem pequenos os estabelecimentos agrícolas, todos os membros da família - inclusive mulheres e crianças - tinham que participar. Como os filhos de colonos alemães cedo descobriram a relutância da mulher brasileira em se dispor ao trabalho físico, foram forçados a procurar esposas tão dispostas ao trabalho quanto eles. Dai a maior parte dos casamentos se fazerem quase que exclusivamente entre alemães ou pessoas de origem alemã ou, mais raramente, com colonos poloneses e italianos, os quais também não tinham relutância ao trabalho.(29)
Logo adiante, contudo, outra razão é oferecida para essa escolha dentro do grupo: "Se um grupo é separado de sua pátria e, ao mesmo tempo, seu sangue é diluído por casamentos mistos, os traços típicos e as habilidades do grupo são destruídas."

A fidelidade e a participação na construção do país eram garantidas, segundo os alemães, pelo seu empenho no trabalho, pelo cumprimento de deveres e pela obediência às leis brasileiras. Isso levou a que os teuto-brasileiros - no propósito de se defenderem de políticas agressivas contra a manutenção de sua identidade cultural - acusassem os luso-brasileiros de um "patriotismo de palavras", ao contrário do deles, definido como "patriotismo de ação". Não tinham a menor dúvida com relação à sua fidelidade patriótica e muito menos da contribuição que ofereciam à formação da pátria brasileira. Consideravam-se patriotas e, em muitos casos, até mais comprometidos com o Brasil do que os luso-brasileiros.

A definição de cidadão é, assim, essencialmente econômica: se os teuto-brasileiros trabalham e produzem para o bem-estar econômico do Estado brasileiro, então por que não podem permanecer alemães? Lealdade política e prosperidade econômica são consideradas condições essenciais para identificar o bom cidadão. Esta concepção não ficou restrita à compreensão do grupo alemão. O secretário de Educação e Saúde Pública do Rio Grande do Sul, J. P. Coelho de Sousa, em exposição de motivos à Comissão Nacional de Ensino Primário, em 1939, mesmo referindo-se ao grupo alemão como "problema gravíssimo", afirmava ser "uma injustiça, decerto, negar o amor da gente de origem germânica à terra brasileira. Poucos anos depois de sua entrada no país, já os colonos alemães ofereciam contingentes à tropa brasileira, quer nas guerras externas, quer nas guerras intestinas, mantendo, sem solução de continuidade, essa colaboração: na Guerra da Cisplatina, na guerra contra Rosas, na Guerra do Paraguai, na revolução Farroupilha, na Revolução Federalista, na Revolução Nacional de 30 etc."(30)

Este conceito de cidadania ligado ao trabalho não era, certamente, muito distinto do de "cidadania regulada", proposto por Wanderley Guilherme dos Santos para caracterizar a prática do regime varguista e baseado, segundo ele, "não em um código de valores políticos, mas em um sistema de estratificação ocupacional", segundo o qual tornavam-se cidadãos "todos aqueles membros da comunidade que se encontram localizados em qualquer uma das ocupações reconhecidas e definidas por lei."(31) Se isto era assim, no caso dos grupos estrangeiros operava-se uma curiosa inversão, na qual os alemães se faziam porta-vozes desta concepção limitada de cidadania, ao passo que o governo invocava um sentido muito mais amplo de cidadania pela incorporação de valores políticos e culturais nacionais.

Enquanto a questão ficasse restrita ao tema da cidadania, a resposta imediata do grupo estrangeiro alemão consistia em argumentar que eram cidadãos brasileiros. Mas, se a questão fosse recolocada nos termos mais precisos da formação de uma nacionalidade brasileira, então o impasse surgia. Esta era uma questão que extrapolava o dado territorial, entrando na esfera da formação da ideologia, cultura, hábitos e crenças nacionais, de construção e valorização de símbolos nacionais, tudo o que se constituía na matéria-prima da manutenção do que o grupo alemão denominava sua Heimat. O confronto seria drástico. Nenhuma das partes cederia espontaneamente ao seu propósito essencial. Voluntariamente, o grupo alemão não abriria mio de sua razão de ser como identidade étnica. E dificilmente o caminho da negociação pacifica pareceria resolver, para a elite dirigente brasileira, o impasse historicamente consolidado. O que a história nos mostra é que a via de resolução foi violenta e muitas vezes cruel. A nacionalização do ensino acabou sendo a expressão mais pura da tentativa de destruição de uma cultura lentamente edificada, mas que não tinha mais espaço na nova ordem política do país.

4. A nacionalização e a Igreja.

A religiosidade sempre foi um componente importante das tradições culturais alemãs, e isto tornou inevitável que, no projeto de nacionalização, o governo terminasse se confrontando com a Igreja, com a qual tratava de se entender no nível federal.

Segundo informações colhidas na época por Reinhard Maack, "cerca de 300 mil pessoas, ou seja, 30% da população alemã dos três estados do Sul do Brasil, são católicas e cerca de 70% (621 mil) pertencem a várias seitas protestantes, tais como a Igreja Evangélica Alemã, a chamada Missouri Synod e um certo número de congregações livres." Neste mesmo documento, o autor afirma terem os teuto-brasileiros devotado suas energias à Igreja, à imprensa e à vida social ativa. O zelo religioso dos colonos alemães impressionava os jesuítas alemães, tendo um deles escrito, ainda em 1845, ter-se surpreendido "tanto mais quanto a população vive sem ter quem se ocupe de suas almas, num ambiente de indiferença religiosa."(32)

A presença da Igreja Católica era explicada pelo comentarista com a declaração de que, em contraste com as condições existentes no Brasil setentrional, que não tinha recebido outra imigração européia além da de Portugal e onde o clero só é renovado com grande dificuldade, a Igreja Católica provê a zona de colonização alemã com o clero necessário, da mesma forma que os membros da Igreja Evangélica provêem a sucessão constante dos seus ministros.

A importância do papel da Igreja bem como a impossibilidade de negligenciar sua influência eram percebidas com clareza pela comissão de nacionalização, criada pelo decreto n 2.265, de 25 de janeiro de 1938. Em relatório minucioso sobre a questão da nacionalização, reserva uma parte à Igreja, já começando a análise com a afirmação de que "nunca poderá ser diminuída a função social da Igreja". A interferência da religiosidade pouca importância teria se houvesse uma relação direta de cada pessoa com o seu Deus. "Como, porém, qualquer culto constitui uma organização, a existência de intermediários se impõe - e temos então as igrejas de várias denominações, reciprocamente exclusivas, constituídas pelos respectivos sacerdotes de toda hierarquia. O sacerdote vai, então, exercer a função de professor das verdades religiosas e pode, assim, ser equiparado aos mestres que, na escola, ministram a educação."(33)

Ainda segundo o relatório, sob a órbita de sua exclusiva competência, tem a Igreja a missão de desenvolver a educação religiosa promovendo cultos e assistência à população com o objetivo precípuo de ampliar o número de seus adeptos pela difusão de sua atuação. Em certo sentido, o sucesso da missão religiosa escapa à estrita religiosidade, penetrando na lógica da atuação organizacional. O sucesso da missão eclesiástica é medido também - e em grande parte - por sua capacidade e habilidade de ocupar espaços de outras organizações religiosas. É, sem dúvida alguma, o resultado de um exercício de poder com todos os ingredientes de competição, de hierarquização, de disciplina, de barganha. Só que o poder emana de outra ordem que não aquela que define o poder estatal e, nessa qualidade, acaba exigindo do poder público uma maleabilidade especifica no trato de sua existência. Parece residir nisso o sentido da afirmação:
O Estado controla soberanamente a escola, mas a Igreja escapa à sua fiscalização, porque, enquanto aquela promana do poder político, esta se considera divinamente inspirada, e conseqüentemente subtraída, graças ao axioma da liberdade de consciência, à soberania do temporal. Cada culto reconhece, apenas, a autoridade de sua própria hierarquia em matéria espiritual; e como todos têm em mira, como objetivo primacial, a propagação de sua fé particular, procuram atrair para seu seio o maior número possível de fiéis, utilizando-se para esse fim de todos os meios adequados, seguindo, como é natural, o principio de conservação dos esforços, a linha de menor resistência.(34)
O conflito entre Estado e igreja estaria definitivamente aberto, caso não se tentasse e efetivamente não se realizasse um pacto entre ambos. Frente à mesma questão - a da convivência com núcleos estrangeiros no Brasil - duas estratégias opostas de ação se cruzavam. O Estado não abria mão do projeto de nacionalização que implicava na uniformização cultural, mesmo que para isso tivesse que utilizar métodos coercitivos e violentos; a Igreja, por sua parte, não se oporia - ao contrário, até estimularia - à preservação da cultura estrangeira se por esse caminho visse portas se abrirem à missão de multiplicar seus fiéis:
Enquanto o poder público, com o intuito de nacionalizar, procura disseminar a língua nacional, a Igreja prefere conservar a língua familiar dos núcleos estrangeiros, para facilitar sua tarefa. A ação do Estado, muitas vezes, é coatora, opondo-se aos desejos ou sentimentos dos núcleos desnacionalizados; a Igreja, para servir seus próprios fins, tudo faz para captar-lhes a simpatia. Nasce daí o choque de interesses antagônicos, suscitando conflito praticamente insolúvel.(35)
Padres, pastores estrangeiros e mesmo bispos brasileiros reagiram de inicio às medidas de nacionalização. Até 1940, o governo não tinha conseguido impor a obrigatoriedade das prédicas e sermões em língua nacional pela forte reação por parte do clero. O governo temia complicar ainda mais o problema, acirrando uma questão religiosa pelo conflito aberto com a Igreja. Chegou-se até a mencionar a necessidade de nacionalizar o clero, mas, de imediato, percebeu-se o fracasso inevitável de tal projeto, devido ao insuficiente número de padres brasileiros para atender aos fiéis. E, "entre o interesse da religião e o do Estado, os sacerdotes de qualquer denominação pendem por aquele."(36) E ai reside um aspecto de suma importância para essa reflexão. Ao nacionalismo extremado do projeto do governo brasileiro contrapunha-se o internacionalismo religioso. A barreira e a fronteira à religião não se definem por território, mas por princípios ideológicos e religiosos. O que abria portas ao avanço da Igreja parecia ao governo um obstáculo perigoso ao seu projeto nacionalista. A política menos eficaz seria aquela que se pautasse pela intransigência. O parceiro mais propicio à intransigência, nesse caso, era a própria Igreja, já que em nada lhe atrapalhava o fato de serem os grupos estrangeiros afinados à sua própria cultura. Ao contrário, uma posição rígida com relação a esse grupo lhe era de todo prejudicial. Uma política ofensiva e agressiva do Estado contra a Igreja teria como conseqüência a reação da população na defesa de seu sentimento religioso e da liberdade de preservação da prática religiosa tão familiar. Um recurso do governo poderia ser o de angariar apoio da estrutura eclesiástica brasileira, mas também ai alguns problemas já se anunciavam:
Entretanto, como para dificultar mais ainda a solução do problema da nacionalização, a própria Igreja Católica, no caso dos poloneses, por breve de S.S. Pio XI, concedeu ao cardeal Augusto Hlond, primaz da Polônia, atualmente refugiado no Vaticano, a direção de toda a atividade religiosa católica relativa aos polacos no exterior. Dai resulta a obediência do clero católico polonês no Brasil à orientação, profundamente contrária aos nossos interesses, do cardeal Hlond, sem possibilidade de intervenção, sequer, das autoridades eclesiásticas brasileiras.(37)
Era preciso uma política de extrema habilidade que, atendendo aos propósitos do governo, não ferisse a Igreja Católica. A posição do governo era particularmente difícil na área educacional, dado que o sistema privado, predominantemente confessional, era muito mais desenvolvido do que o oficial, e o governo não teria meios ou condições de substituir o primeiro pelo segundo. Além disto, era exatamente com a Igreja Católica que o Ministério da Educação contava para a tarefa de incutir nos alunos os valores éticos e morais que fariam parte de uma cultura nacional revigorada. Nas áreas de colonização alemã, contudo, o efeito era o oposto. O secretário de Educação do Rio Grande do Sul, por exemplo, considerava que o clero nesta região era, em última análise, um aliado do nacional-socialismo:
Na verdade, essa parte do clero combate a ideologia nazista, mas cultua a tradição alemã, com o fundamento de que na tradição reside o espírito de disciplina da gente de origem alemã - base de sua religiosidade.(38)
Ele acrescenta que, no entanto, o sentimento religioso poderia ceder passo a um ideal racista. A seqüência do relatório é mais reveladora. Os dados apresentados indicam que a colônia alemã mantinha perto de duas mil escolas nas zonas de colonização - as escolas da rede das igrejas e as escolas independentes, Essas primeiras estavam divididas entre a Igreja Católica, a Igreja Evangélica Alemã (Sínodo Riograndense), a Igreja Evangélica Luterana Missouri e a Igreja Adventista. Segundo esta fonte oficial, as Igrejas Adventista e Missouri mantinham praticamente o ensino em português. O contrário se dava na rede escolar católica e evangélica: a língua escolar oficial era o alemão. Algumas ensinavam o português, mas como disciplina de interesse acessório. Além disso, possuíam suas escolas de formação de professores (em São Leopoldo e Novo Hamburgo), centenas de escolas primárias e grande número de estabelecimentos de ensino secundário.

O secretário de Educação faz referência à ineficácia das medidas de repressão - substituição de diretores escolares e fechamento de escolas particulares - que não puderam alterar o ambiente de resistência do grupo alemão. Já se sabia que ao lado desse tipo de investida teria que caminhar o que chamavam "a contra-ofensiva pela criação do sentimento de brasilidade", com a difusão de símbolos, saudações políticas etc. Não se poderia contar apenas com a policia; era necessário um investimento pesado na educação, e para isto era indispensável estar em bons termos com a Igreja.

À Igreja tampouco interessava um conflito aberto com o regime, quando não fosse pela posição privilegiada que havia adquirido em relação ao Ministério da Educação e Saúde. Assim, as tensões no sul evoluiriam pouco a pouco para soluções de compromisso. Antes, a exigência governamental de reconhecimento oficial das escolas deixava de fora grande parte das escolas privadas e confessionais. A Igreja, por sua vez, não reconhecia o ensino religioso ministrado em escolas não católicas, o que fazia com que as famílias religiosas dessem sempre preferência às escolas confessionais. Já em julho de 1940, no entanto, a Cúria Metropolitana de Porto Alegre envia uma circular aos vigários ordenando que a religião fosse ministrada indiferentemente nas escolas paroquiais ou públicas. Nesta circular, afirmava-se que a comunhão deveria ser sempre solene "e obrigatória para todas as crianças devidamente preparadas, ficando severamente proibida, neste particular, qualquer distinção entre os alunos dos colégios e os das escolas públicas."(39) Um convênio formal assinado entre a Arquidiocese e o governo do Rio Grande do Sul dá os termos do acordo conseguido:
    1. A Arquidiocese de Porto Alegre tem ampla liberdade e autonomia de fundar e de manter escolas católicas, bastando que as mesmas se sujei tem às cláusulas do presente convênio, para terem o amparo da lei e a proteção do Estado.
    2. A Cúria fornecerá à secretaria de Educação a lista completa das escolas católicas da Arquidiocese, declinando qualquer responsabilidade pela conduta de todas aquelas que, embora de orientação católica, não se incluam na referida lista.
    3. À proporção que se fundarem novas escolas católicas, as mesmas serão registradas na Secretaria de Educação, por intermédio da Cúria Metropolitana, a qual, igualmente, dará baixa das que deixarem de existir.
    A Cúria Metropolitana se compromete, sem prejuízo da completa autonomia administrativa e confessional das referidas escolas, a manter nas mesmas um ensino rigorosamente nacional, de acordo com a legislação federal e estadual atinente à matéria.(40)
Isto não garantia, evidentemente, que não continuasse a haver resistências por parte do clero de origem europeia ã politica de nacionalização. Mas seriam resistências meramente individuais, já que a harmonia institucional entre a Igreja e o Estado estava preservada.

5. Conclusão

O episódio da nacionalização do ensino mostra bem o conteúdo do projeto nacionalista brasileiro do período pós-1937. De feição conservadora e autoritária, foi ele marcado pelo caráter excludente, avesso à convivência pluralista e diversificada. Seu ponto de partida era o diagnóstico de uma absoluta ausência de integração nacional, em função da "prática degeneradora do liberalismo" predominante na história política do período anterior à Revolução de 1930. A crítica ao modelo liberal já trazia embutido seu conteúdo autoritário e centralizador. Nacionalizar o país era unificar o que estava decomposto, o que se desagregara por uma politica regionalista com acentuados vícios oriundos da disputa por interesses privatistas. Esta parecia ser a única forma de edificar a sociedade nacional e conferir à politica um caráter público, acima de interesses particulares de grupos privilegiados da sociedade civil.

Na perspectiva estadonovista, a persistência dos "quistos estrangeiros" no Brasil aparecia como mais uma resultante do período liberal desagregador, quando os políticos se importavam mais com a manutenção de seus currais eleitorais do que com o verdadeiro sentimento de nacionalidade. É evidente que muito mais foi incluído nessa mesma crítica: a representação politica liberal, a vida partidária, a organização sindical autônoma, a liberdade de manifestação e expressão etc. O projeto nacionalista do Estado Novo valorizava, em outras palavras, a uniformização, a padronização cultural e a eliminação de quaisquer formas de organização autônoma da sociedade, que não fosse na forma de corporações rigorosamente perfiladas com o Estado. Daí seu caráter excludente e portanto, repressor.

A formação do Estado Nacional passaria necessária e principalmente pela homogeneização da cultura, dos costumes, da lingua e da ideologia. Não faltaram propostas de criação de planos de "unificação ideológica do país" que tratavam basicamente da eliminação dos "focos de contaminação," identificados, ora com os comunistas, ora com os nazistas. A uniformização cultural implicava na exclusão dos "estrangeiros", entendidos aqui como grupos estranhos ao projeto de nacionalização. A amplitude do que era considerado "estrangeiro" poderia fugir à simples e direta vinculação à pátria de origem. Sendo uma estigmatização político-ideológica, cidadãos brasileiros poderiam ser considerados como tal se discordassem da doutrina oficial. Não era preciso ter nascido em outro país para ser identificado com o comunismo ou com o nazismo. A pretensão internacionalista do primeiro expansionista do segundo acabaram por reuni-los no rol dos que eram acusados de desagregar, contaminar e desfazer o que deveria estar agregado, puro e ordenado.(41)

No caso específico da nacionalização, quase toda a preocupação foi concentrada nos núcleos de colonização estrangeira, e era o grupo alemão o que mais se prestava à essa estigmatização, pela proximidade, sempre a ele associada, com o nazismo. Mas a agressividade contra os alemães parece ter sido mais reforça&i com o argumento da infiltração nazista do que propriamente inspirada e fundamentada nessa infiltração; de fato, a natureza uniformizadora do projeto do governo era anterior à penetração da ideologia nazista no sul do Brasil.

Curiosa a argumentação utilizada por um alemão para criticar o projeto nacionalista brasileiro. Em defesa dos alemães, Reinhard Maack acaba por recuperar elementos do próprio nacionalismo brasileiro, organizando-os, porém, contra essa mesma ideologia:
Embora o nacionalismo brasileiro difira em muitos pontos do bolchevismo, combatendo-o como "ideologia estrangeira", na sua destruição dos valores criadores da individualidade nacional, usam ambos os mesmos métodos universalistas e mecânicos. O bolchevismo deseja o abandono das características peculiares às nações do globo, e o nacionalismo brasileiro extremado tem o mesmo fito dentro das fronteiras.(42)
Na verdade, o modelo de nacionalismo brasileiro - ao contrário do liberal, que entendia a nação como uma coleção de indivíduos - buscava transformar a nação em um todo orgânico, uma entidade moral, política e econômica cujos fins se realizariam no Estado. O reforço do sentimento de nacionalidade parecia conferir à nação uma supremacia sobre o Estado, que se transformaria no mais forte instrumento de realização do ideário da nacionalidade. Nação e Estado construiriam a um só tempo a nacionalidade. Ora, é exatamente em cima de sua separação, e não de sua junção, que os alemães reivindicavam a liberdade para manutenção de uma dupla lealdade: à nação alemã e ao Estado brasileiro. A preservação simultânea da cidadania brasileira e da nacionalidade alemã.

Mas este ideal de um Estado multinacional, que pudesse abrigar em seu âmbito as diversas etnias que participaram de sua formação, sem tentar fundí-las e descaracterizá~las em um molde único, não encontraria obstáculos somente do lado brasileiro. A exacerbação do sentimento nacionalista alemão que o nazismo vinha promovendo não supunha uma simples coexistência de Estado e nação, mas a subordinação efetiva do primeiro à segunda, algo que na realidade tinha raízes bastante mais profundas, como observa Hanna Arendt:
Os pangermanistas politicamente mais articulados sempre insistiam na prioridade do interesse nacional sobre o interesse do Estado e geral mente argumentavam que "a política mundial transcende a estrutura do Estado", que o único fator permanente no decorrer da história era o povo e não o Estado e que, portanto, as necessidades nacionais, mudando com as circunstâncias, deviam sempre determinar os atos políticos do Estado.(43)
Se o sentimento de nacionalidade ganha prioridade sobre o interesse de Estado, ele pode se desprender de barreiras territoriais, unificando em torno desse ideário as populações dispersas em outras regiões que não pertencem ao país de origem. Esse movimento de unificação funciona ao mesmo tempo como elo de ligação e expansão do sentimento nacionalista nas mais distantes regiões do globo. Ampliar o sentimento de nacionalidade alemã era manter viva a lealdade à Alemanha e, ainda, estender ao mundo sua influência. É como se o nacionalismo, "substituto emocional da religião",(44) fortalecesse os movimentos de unificação, conferindo a seus adeptos uma origem como que sagrada, o que permitia a permanência da nacionalidade qualquer que fosse a contingência histórica.

Desta forma, manter uma tradição comunitária e cultural germânica fora da Alemanha era mais do que simplesmente conservar hábitos e valores culturais; era a forma de tornar alemão o espaço ocupado por esses grupos. No contexto político do conflito mundial, esse fato se reveste de uma gravidade especialmente maior. Em um artigo publicado em 1939, na revista americana Ken, o jornalista Ernesto Hanloch chama a atenção para "os perigos das ambições germânicas" com o seguinte comentário:
(...) O que ela (a Alemanha) cobiça é a imensa riqueza natural brasileira. A sua posse resolveria completamente todos os problemas que a sua política de militarismo econômico origina. A conquista por assalto não seria uma política prática, mas o domínio efetivo dos recursos brasileiros poderia ser obtido infiltrando-se no Brasil como "um alinhado ideológico", para, por essa forma, converter o Brasil num vassalo econômico e político da Alemanha. As possibilidades econômicas brasileiras são tão ilimitadas que o domínio delas pela Alemanha significaria uma realização rápida do objetivo expansionista da hegemonia germânica através do mundo. Em resumo, é este o escopo das ambições germânicas no Brasil.(45)
A ampla divulgação internacional das ambições e intenções do Terceiro Reich de aumentar seu domínio no mundo facilitou muito a associação imediata entre a existência de comunidades alemãs no exterior e a germinação de focos de representação do Terceiro Reich nesses países. E a insistência dos grupos alemães em defenderem a manutenção de sua lealdade à nação de origem fortalecia a crença em uma política deliberada da Alemanha de ampliação de suas fronteiras no mundo. O sentimento de nacionalidade transformava-se na própria razão de ser do Estado alemão, maior beneficiário de todo esse processo. Ser capaz de estar presente e viva, não obstante distâncias as mais longínquas, fazia da Alemanha um país distinto dos demais, provocando reações mais ou menos violentas, sobretudo daqueles países que igualmente disputavam maior controle e influência no cenário da política internacional.

Por todas essas razões - a natureza do projeto politico brasileiro, a resistência dos germânicos ao "abrasileiramento", a ascensão do nazismo e o agravamento do conflito international -, tornava-se insuportável e mesmo sem solução a permanência, dentro do Brasil, de lealdades nacionais múltiplas.

Em certo sentido, pois, o nacionalismo brasileiro encontrou no nacionalismo alemão seu modelo, seu fantasma e seu limite. Os alemães possuíam tudo aquilo que os brasileiros gostariam de ter e serviam de fonte de inspiração para o que aqui se pretendia construir. Sua presença no Brasil, no entanto, não os transformava em aliados, mas em uma ameaça terrível ao projeto nacionalista brasileiro, com o qual competiam, aparentemente, com vantagem. Havia, por conseguinte, uma contradição bastante profunda entre o projeto de construção de um Estado Nacional forte no Brasil e uma política de maior aproximação com a Alemanha nazista, defendida por tantos homens públicos na década de 1930. Uma posição de neutralidade na arena internacional ainda poderia ser possível, mas um alinhamento maior com o Eixo e conseqüente liberdade de ação dos colonos alemães em território nacional parecia estar além do limite do que os homens que construíram o Estado Novo poderiam aceitar. Aqui, como em outras questões, a linha divisória entre o autoritarismo e o totalitarismo não chegaria a ser ultrapassada.


Notas

1. Campanha de nacionalização. Oficio reservado no. 4, 24 de janeiro de 1938, do chefe do Estado-maior do Exército ao ministro da Guerra. (assinado por Góis Monteiro). Arquivo Gustavo Capanema, GC 34.1 1.30-A, pasta 11-1, série g.

2. Idem, ibidem, p. 11.

3. Idem, ibidem, p. 1

4. Aspásia Camargo e Walder de Goes, Meio século de combate: diálogo com Cordeiro de Farias. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981, p. 273.

5. Stanley Hilton. Suástica sobre o Brasil. A história da espionagem alemã no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977.

6. Aspásia Camargo e Walder de Goes, op. cit., p. 270.

7. Girarda Seyferth. Nacionalismo e identidade étnica. A ideologia germanista e o grupo étnico teuto-brasileiro numa comunidade do vale do Itajaí. Florianópolis, Fundação Catarinense da Cultura, 1981.

8. "A juventude hitlerista no Rio Grande do Sul". S.d., sem assinatura, p. 2. GC 34.11.30-A, pasta 11-1 série g.

9. Gerson Moura. Autonomia na dependência. Á política externa brasileira de 1935 a 1942. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1979, p. 63.

10. Idem, ibidem, p. 111.

11. Relatório da Comissão de Nacionalização ao ministro da Educação. 5 de outubro de 1940. Arquivo Lourenço Filho/INEP. FGV/CPDOC.

12. Idem, ibidem, p. 5.

13. Do secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional para o ministro Capanema. 29 de julho de 1940. GC 38.01.06, pasta III-8, série g.

14. De Lourenço Filho para Gustavo Capanema, 5 de agosto de 1940. CC 38.01.06. pasta 111-8, série g.

15. O acompanhamento da definição de uma politica para o livro didático do período do Estado Novo na década de 1980 pode ser visto em: Helena Maria Bomeny. "O livro didático no contexto da política educacional". Em: João Batista Araújo e Oliveira et alii. A política do livro didático. São Paulo, Summus e Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1984.

16. Dados sobre o fechamento de escolas japonesas e alemãs podem scr encontrados na pesquisa de Richard Dalbey, The German private schools of southern Brazil during the Vargas years. Indiana University, manuscrito, 1970.

17. "O engenheiro alemão Hans Heinrich, desejando regressar ao Reich, emite conceitos sobre ensino brasileiro". 1939, pp. 3 e 4. GC 34.11.30-A, pasta II-11, série g.

18. Nacionalização do ensino. Do major Euclides Sarmento ao ministro Capanema. 15, de maio de 1939. GC 34.11.30, pasta 1-10, série g.

19. Aspásia Camargo e Walder de Goes, op. cit., p. 274.

20. Carta do engenheiro Hans Heinrich ao engenheiro W. Hellmich, 27 de janeiro de 1939. GC 34.11.30-A, pasta II-11, série g.

21. Giralda Seyferth, op. cit., pp. 8 e 9.

22. Idem, ibidem, p. 43.

23. Idem, ibidem

24. "Exposição do secretário da Educação e Saúde Pública do Estado do Rio Grande do Sul", J. P. Coelho de Sousa, à Comissão Nacional do Ensino Primário. 29 de abril de 1939. GC 34.1 1.30-A, pasta 1-8, série g.

25. Ministério da Educação e Saúde/INEP. "Nacionalização do ensino". Arquivo Lourenço Filho. FGV/CPDOC, p. 8.

26. Getúlio Vargas, março de 1940, Blumenau. Em: Relatório à Comissão de Nacionalização ao ministro Capanema. Outubro, 1940. Arquivo Lourenço Filho, FGV/CPDOC, p. 6.

27. "Os trabalhos do ensino teuto-brasileiro e a questão de sua existência". Fritz Sudhaus. GC 34.1 1.30-A, pasta II-11, série g.

28. Idem, ibidem, p. 4.

29. Reinhard Maack. "Os alemães no Sul do Brasil: o ponto de vista alemão." Arquivo Lourenço Filho, julho, 1939, FGV/CPDOC, pp. 7 e 8.

30. "Exposição do secretário de educação e Saúde Pública do Estado do Rio Grande do Sul", op. cit.

31. Wanderley Guilherme dos Santos. Cidadania e justiça. Rio de Janeiro, Campos, 1979, p. 75.

32. Reinhard Maack, op. cit.

33. M. J. N. - Polícia Civil do Distrito Federal, outubro de 1940. Arquivo Lourenço Filho, FGV/CPDOC, p. 12.

34. Idem, ibidem, p. 13.

35. Idem, ibidem, p. 14.

36. Idem, ibidem.

37. Idem, ibidem.

38. "Exposição do secretário de Educação e Saúde Pública do Estado do Rio Grande do Sul", op. cit., p. 5.

39. Monsenhor Leopoldo Neis, vigário-geral de Porto Alegre. 12 de julho de 1940. GC 34.11.30-A, pasta 11-7, série g.

40. Convênio entre o governo do Rio Grande do Sul e a arquidiocese. 1940. GC 34.1 1.30-A, pasta 11-7, série g.

41. Para uma discussão da categoria de acusação no discurso politico integralista e mais especialmente a estigmatização sofrida pelos judeus na doutrina de Gustavo Barroso, ver: Ricardo Benzaquen de Araújo, "Os mercadores do mal. Os judeus na obra de Gustavo Barroso". Rio de Janeiro, FGV/CPDOC, 1979, mimeo.

42. Reinhard Maack, op. cit., p. 15.

43. Hanna Arendt. As origens do totalitarismo: imperialismo, a expansão do poder. Rio de Janeiro, Documentário, 1976, p. 151.

44. Idem, ibidem.

45. Arquivo Gustavo Capanema, IS de maio de 1939, pp. 6 e 7. OC 34.11.30-A, pasta I-11, série g.