TEMPOS DE CAPANEMA

SIMON SCHWARTZMAN, HELENA MARIA BOUSQUET BOMENY, VANDA MARIA RIBEIRO COSTA

1ª edição: Editora da Universidade de São Paulo e Editora Paz e Terra, 1984 - 2ª edição, Fundação Getúio Vargas e Editora Paz e Terra, 2000.



Capítulo 8
O Ensino Industrial


1 As origens

2. O conflito com os empresários

3. O projeto ministerial: a escola-modelo

4. Conclusão

Notas


1. As origens

O ensino profissional não mereceria, do ministério Capanema, a mesma atenção o que o ensino sccundário e superior. Das diversas modalidades de ensino profissional, só o industrial recebe maior desta- que, graças, sem dúvida, à incipiente industrialização do país naqueles anos, que já começava a exigir alguma qualificação da mao-de-obra. A história mostra, no entanto, que os empresários e o ministério não viam este ensino da mesma maneira.

O ensino industrial teve inicio oficialmente, no Brasil, com a criação das Escolas de Aprendizes e Artífices pelo Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, baseada em decreto do presidente Nilo Peçanha, de 1909. É uma medida que visava, não o desenvolvimento da indústria e das profissões mas, principalmente, reduzir os problemas sociais que a urbanização incipiente do país já trazia. De fato, em sua introdução, o decreto presidencial afirmava que "o aumento constante da população das cidades exige que se facilite às classes proletárias os meios de vencer as dificuldades sempre crescentes da luta pela existência", e que para isto era necessário "não só habilitar os filhos dos desfavorecidos da fortuna com o indispensável preparo técnico e profissional, como fazê-los adquirir hábitos de trabalho profícuo que os afastará da ociosidade ignorante, escola do vicio e do crime."(1)

Pensadas como instituições beneficientes, as Escolas de Aprendizes e Artífices deveriam proporcionar assistência médico-dentária e ferramentas para seus alunos, e promover a eventual venda de seus trabalhos. Em 1910 já haviam sido instaladas 19 escolas em todo o país, com um total de 1.248 alunos efetivos. Diversas modificações foram feitas nos anos seguintes, destacando-se o trabalho da "comissão de remodelação" criada em 1921 pelo ministro Ildefonso simões Lopes, sob a direção de João Lauderitz, e a lei Fidelis Reis(2) que tornava obrigatório o ensino profissional em todos os estabelecimentos de ensino primário e secundário, mas que não chega a ser implementada. Em 1923 é criada a Inspetoria do Ensino Profissional Técnico, em substituição à antiga Comissão de Remodelação; em 1934 a inspetoria 6 transformada em Superintendência do Ensino Industrial, que pela primeira vez previa a colaboração das associações industriais com as escolas profissionais; finalmente, a reforma do Ministério da Educação e Saúde, de 13 de janeiro de 1937, coloca esta atividade sob a responsabilidade de sua Divisão do Ensino Industrial do Departamento Nacional de Educação.

A Carta de 1937 mantém, em linhas gerais, a antiga destinação do ensino industrial:
o ensino pré-vocacional e profissional destinado às classes menos favorecidas é, em matéria de educação, o primeiro dever do Estado. Cumpre-lhe dar execução a este dever, fundando institutos de ensino profissional e subsidiando os de iniciativa dos estados, dos municípios e dos indivíduos ou associações profissionais.(3)
A partir dai as antigas escolas de Aprendizes e Artífices são transformadas em liceus industriais, e um amplo programa de edificações é iniciado, com um orçamento de dez mil contos estabelecido especificamente para este fim em 1938. Em 1939 já havia cerca de sete mil alunos nestes estabelecimentos em todo o pais.

Do início do século até o Estado Novo, portanto, o ensino industrial foi visto essencialmente como uma forma de educação caritativa, destinada a tirar os pobres da ociosidade, mas sem maior significação do ponto de vista econômico e social mais amplo. A partir da década de 1930 outras concepções começariam a emergir e a ganhar força, culminando em um intenso conflito de bastidores entre o Ministério da Educação e Saúde e o do Trabalho, Indústria e Comércio, que tinha por detrás, principalmente, a Federação Nacional da Indústria e a Federação das Indústrias de são Paulo. Do lado do Ministério da Educação, o que mais ressalta é a ausência dos setores mais militantes da Igreja Católica em toda esta questão. Preocupada com o ensino universitário, levantando a bandeira da formação clínica c humanística a nível secundário, defendendo a escola privada e o ensino religioso, a Igreja como que não percebe a importância deste aspecto do sistema educacional que estava sendo gestado e que teria como meta atingir a grande maioria da população do país.

Quem defende a perspectiva mais radical dentro do Ministério da Educação, e que seria em grande parte endossada por Capanema, é Rodolfo Fuchs, pessoa ligada profissionalmente ao ensino industrial e que teria participação ativa nas diversas comissões, grupos de trabalho e outras atividades de assessoria ao ministério para este assunto. Para ele, em documento elaborado ainda em 1935, o ensino industrial deveria ser obrigatório para todos, de forma tal que fosse eliminada, de vez, a "idiossincrasia do trabalho manual, industrial e agrícola" que lhe parecia ser um traço cultural brasileiro responsável pelas dificuldades do país. O sistema proposto é tão abrangente que o autor precisa afirmar, a certa altura, que "não pensamos em destruir a escola primária, mas criar, ao seu lado, a Escola Profissional Elementar." Além desta, seriam criadas escolas profissionais de nível médio, normal (para a formação de professores e mestres) e tudo culminaria com a Universidade do Trabalho. Todo este sistema de ensino deveria estar vinculado à exigência de diplomas para o exercício do trabalho profissional em todos os níveis, de forma tal que a passagem pelo ensino industrial se tornasse inevitável e obrigatória.(4)

A universidade técnica já havia sido criada no papel em julho de 1934, através de decreto presidencial,(5) reunindo as escolas Politécnica do Rio de Janeiro, de Minas e Metalurgia de Ouro Preto e Nacional de Química, também do Rio. A criação desta universidade inspirou-se na experiência de muitos países europeus, onde a engenharia não chegara a encontrar lugar nas universidades tradicionais, e o decreto previa a instalação de oito institutos de pesquisa (física industrial, química industrial, mecânica industrial, hidro e aerodinâmica, ensino de materiais, eletrotécnica, metalurgia e organização do trabalho). Estes institutos jamais chegaram a ser criados, e muitas destas áreas passaram a ser cobertas nos anos posteriores, ainda que de forma incipiente, pelas divisões do Instituto Nacional de Tecnologia, vinculado desde 1934 ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. A proposta inicial de Capanema de nomear o reitor da nova universidade e dar inicio ao seu funcionamento efetivo não obtém o apoio de Vargas, e a Universidade Técnica Federal jamais chega a ganhar corpo.

O projeto da Universidade do Trabalho tinha características totalmente distintas. Segundo Capanema, em Exposição de Motivos ao presidente escrita em 1934, enquanto a universidade técnica "visa a preparar engenheiros, das várias denominações, aquela tem por objetivo preparar operários, desde os simples artífices para as profissões elementares até os operários graduados e contramestres para o serviço da grande indústria moderna."(6) Antes de Capanema, O ministro Washington Pires havia encomendado a um especialista suíço, Omer Buyse, a elaboração de um projeto detalhado de criação de três universidades do trabalho, em Belo Horizonte, Porto Alegre e Recife. Capanema se opõe a isto, chamando a atenção para o fato de que a prioridade número um do país era a fundação de grande número de escolas profissionais especializadas, que pudessem atender às exigências industriais das regiões do país. "Quando muito podemos cogitar de ter uma universidade do trabalho na capital da República", afirma, "onde o desenvolvimento das indústrias já exige operariado numeroso, variado e competente. Os diferentes cursos dessa universidade poderiam servir de padrão para as escolas profissionais existentes nos outros pontos do país."(7) O embrião para isto seria a Escola Normal de Artes e Ofícios Venceslau Brás, do Rio de Janeiro, uma vez reorganizada. O texto de Capanema faz referência, ainda, aos estudos de João Lauderitz e Omer Buyse sobre o tema, afirmando que, "assim que esteja terminado este trabalho, poderá ser elaborado o plano nacional do ensino industrial."

2. O conflito com os empresários

Enquanto o ministério prosseguia nesta linha, uma outra corrente, com objetivos muito mais pragmáticos e limitados, tratava de implantar um sistema de aprendizagem industrial mais diretamente liga do à indústria e suas necessidades práticas. Esta corrente encontrava apoio da Federação das Indústrias de São Paulo, e tinha por base as experiências bem-sucedidas da Escola Profissional Mecânica do Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo e do Serviço de Ensino e Seleção Profissional da Estrada de Ferro Sorocabana, que deu origem ao Centro Ferroviário de Ensino de Seleção Profissional do Estado.(8) Roberto Mange, responsável principal por estas experiências, tornar-se-ia mais tarde consultor constante do Ministério da Educação para questões relativas ao ensino industrial. A tentativa de generalizar a experiência paulista para todo o país, no entanto, seria endossada principalmente pelo Ministério do Trabalho, e o conflito de orientações entre os dois ministérios, que chega ao ápice em 1940, é bem revelador.

Em 2 de maio de 1939 Getúlio Vargas assina um decreto-lei (n 1.238) obrigando as empresas de mais de 500 operários a construírem refeitórios para seus trabalhadores, e como que de passo, no artigo 4, dispõe que elas deverão também manter "cursos de aperfeiçoamento profissional", para adultos e menores, de acordo com o regulamento cuja elaboração ficará a cargo dos Ministérios do Trabalho, Indústria e Comércio e da Educação e Saúde.(9) E um decreto oriundo do Ministério do Trabalho (a assinatura do titular, Valdemar Falcão, antecede a de Gustavo Capanema), e dele resulta um conflito de bastidores, entre os ministérios, que culmina com o decreto n 6.029, de 26 de julho de 1940, que regulamenta os cursos profissionais conforme a ótica do primeiro.

De fato, em julho de 1940 chegam às mãos do presidente da República dois projetos de regulamentação do ensino profissional, um oriundo do Ministério da Educação e outro da área do Trabalho. Há um oficio encaminhado por Valdemar Falcão a Getúlio Vargas a este respeito que revela toda a trama. Nele Valdemar Falcão faz um histórico dos trabalhos da comissão inter-ministerial encarregada de elaborar o projeto de regulamentação (composta por Rodolfo Fuchs, Joaquim Faria Goes Filho e Licério Alfredo Schreiner pelo Ministério da Educação e mais três representantes do Ministério do Trabalho), e lembra que o projeto final havia sido entregue em novembro de 1939, tendo então Capanema avocado a si o assunto, "por isto que se tratava de matéria essencialmente ligada à sua pasta."(10) Sete meses depois, Capanema elabora um projeto de decreto-lei que é objeto de "dois longos encontros pessoais" do ministro do Trabalho com o presidente nos quais, segundo diz o ministro em estilo diplomático, "tive ocasião de verificar a alta compreensão que S. Excia. tem do problema do ensino profissional e da maneira perfeitamente lógica c sistemática por que pretende solucioná-lo."(11) Todavia, diz ainda, é necessário dar uma solução urgente ao problema, e por isto indaga:
Será conveniente realizar, com as devidas fases de implantação e organização iniciais, a concretização do ensino profissional, nos meios industriais, dentro dos moldes amplos e grandiosos por que o concebe o bem elaborado projeto de decreto-lei do Sr. ministro da Educação e Saúde, com os conseqüentes gastos orçamentários que passará a exigir, ou tratar de regulamentar no atual momento, em fórmula mais singela, o dispositivo do decreto-lei n 1.238, criando-se os cursos de aperfeiçoamento profissional junto às fábricas e centros de trabalho, mantidos à custa dos próprios empregadores e destinados principalmente aos filhos e irmãos de seus operários, o que não trará ônus financeiro para a União? Resolverá V. Excia. Sr. presidente, com o alto senso patriótico que dirige seus atos, qual a diretriz a seguir imediatamente.
Vargas opta pelo Ministério do Trabalho, mas não sem os protestos de Capanema Em carta ao presidente, de 25 de julho, o ministro da Educação afirma que o texto do Ministério do Trabalho é "contrário ao artigo 125 da Constituição de 1937, que "fixa o princípio de que a educação é dever dos pais e do Estado", e que o ensino profissional é o "primeiro dever do Estado" (art. 129).(12)

A partir dai, Capanema argumenta que o Estado deve participar necessariamente do ônus do ensino profissional e, por implicação, de seu controle e supervisão: "Não estando o aprendiz vinculado ao empregador, para servi-lo, por tempo determinado, na sua indústria, mas sendo livre de, finda a aprendizagem, tomar o rumo que quiser, é lógico admitir que o ônus de sua educação não seja somente dos empregadores, parcialmente interessados nela, mas também do Estado, que é o interessado maior pela educação popular." Não deixa de ser curiosa esta defesa aparentemente anti-corporativa do ensino público pelo Ministério da Educação, em um momento em que as idéias corporativas atingiam no país seu prestigio mais alto, concentrando-se exatamente na área das relações de trabalho. Na realidade, o que o Ministério da Educação defende não é a livre circulação da mão-de-obra, mas que seu controle fique nas mãos de um Estado ordenador e orientado para fins supostamente mais nobres, e não à mercê dos interesses mais imediatistas dos industriais.

A indústria, contudo, não abria mão de seu controle sobre o novo sistema. Roberto Simonsen, presidente da Federação das Indústrias de São Paulo, havia pouco antes comentado o anteprojeto do Ministério da Educação e, em carta a Capanema, propunha emendas que visavam "aumentar a representação e, portanto, a responsabilidade da classe dos empregadores na organização do ensino profissional." E argumentava: "Recaindo sobre estes os maiores ônus e dependendo a sua eficiência de uma perfeita entrosagem entre os Centros de Formação Profissional e as fábricas, parece-nos perfeitamente justificáveis estas emendas." E concluía: "Muito embora leis como esta só existam em países em que fazem parte de um conjunto de disposições defensivas da indústria, nenhuma objeção maior apresenta à indústria de São Paulo, que tem plena consciência do novo e pesado ônus com que virá a ser sobrecarregada. Isto ela salienta, não para mostrar os sacrifícios que faz e esperar vantagens compensatórias, mas para que o lúcido espírito de V Excia. possa aquilatar de quanto é capaz a indústria de São Paulo sempre que se trate dos verdadeiros interesses nacionais, como é o caso do aperfeiçoamento da mão-de-obra entre nós."(13) Em outras palavras: a indústria paulista põe de lado sua ideologia liberal, aceita (ainda que de mau grado) as "disposições defensivas" e está disposta a assumir os custos, mas sob o seu controle.

As diferenças de posição entre os dois ministérios seriam explicitadas com clareza por parecer elaborado por Francisco Negrão de Lima para o Ministério da Justiça, a quem Vargas havia encaminhado a carta-protesto de Capanema.(14) Colocados lado a lado, os dois projetos revelam que, enquanto o decreto assinado previa que apenas estabelecimentos com mais de 500 empregados ficavam obrigados ao ensino profissional, no projeto do Ministério da Educação eram incluídos todos os estabelecimentos industriais, empresas de serviço público, de mineração, estaleiros, empresas de transporte etc., qualquer que fosse o número de empregados. Por outro lado, no entanto, o Ministério da Educação restringia este ensino a aprendizes entre 14 e 18 anos, e obrigava a indústria a contratar parte deles; o projeto do Ministério do Trabalho ampliava os participantes a todos os empregados, filhos, irmãos etc., mas sem obrigação de contrato posterior. Na previsão do Ministério do Trabalho os cursos seriam isolados, sujeitos somente a instruções gerais a cargo do Ministério da Educação, e a cargo das próprias indústrias; Capanema defendia a criação de um órgão burocrático federal para administrar o sistema de ensino industrial em todo o país, e uma participação significativa do governo em seus custos.(15) O autor do parecer nota que a organização proposta pelo Ministério da Educação era dispendiosa, "talvez seja mesmo exagerada, tendo-se em vista o estado de nosso progresso industrial. A do decreto assinado, mais modesta, mais de acordo com as necessidades de nosso meio, e menos cara." Ele aceita a tese do ministro de que a obrigação do Estado pelo ensino profissional não poderia ser totalmente abandonada; mas a proposta final é no sentido de diluir essa participação ao máximo, na forma de "facilidades e auxílios indiretos: isenções, redução de ônus gerais, relevação de penalidades etc."(16) (Esta linha de conciliação já havia sido proposta pelo próprio Capanema, que previa ainda uma quota governamental para subvenções ao ensino profissional, a ser fixada anualmente pelo presidente da República e movimentada pelo Ministério da Educação.)

Capanema ainda voltaria à carga, argumentando, em carta de 19 de maio de 1941 ao presidente, que "para que os estabelecimentos oficiais do país passem a dar ensino a seus operários e aprendizes, não um ensino de mera transmissão de processos técnicos rotineiros e inidôneos, mas de real elevação da sua qualidade profissional, força é que sejam obrigados a uma conveniente disciplina pedagógica e recebam orientação técnica de apurado estilo. E isto exige evidentemente um aparelho próprio de direção, por mais simples que seja. Onde, pois, o exagero?"(17)

O decreto n 6.029 de julho de 1940 não seria modificado; ele daria lugar, no entanto, já em 1942, a dois decretos quase simultâneos, um que criava o Serviço Nacional da Aprendizagem Industrial, o SENAI, conforme as aspirações da indústria e do Ministério do Trabalho; e outro que definia a Lei Orgânica do Ensino Industrial, oriundo das idéias e propósitos da área da Educação. A partir daí, os dois teriam que conviver. Na fórmula encontrada pelo ministro, o SENAI se encarregaria da "formação profissional dos aprendizes", e seria tão somente uma peça, delegada à Federação Nacional das Indústrias, do amplo painel de ensino profissional estabelecido pela lei orgânica Todavia, não deixa de ser sintomático que o projeto do SENAI, que só merece oito linhas na longa exposição de motivos de 5 de janeiro de 1942 com a qual Capanema encaminha a Lei Orgânica, termine sendo assinado em primeiro lugar.(18)

Essencialmente, a Lei Orgânica do Ensino Industrial é uma grande declaração de intenções, acompanhada de um amplo painel da organização à qual o ensino industrial se deveria ajustar. Uma de suas características principais, no espírito do Ministério da Educação da época, é a uniformidade que trata de impor a este tipo de ensino em todo o país. Em termos de intenções, ela busca atender, simultaneamente, aos interesses do trabalhador, "realizando sua preparação profissional e sua formação humana"; das empresas, "nutrindo-as, segundo suas necessidades crescentes e mutáveis, de suficiente e adequada mão-de-obra"; e da nação, "procurando continuamente a mobilização de eficientes construtores de sua economia e cultura." Uma de suas inovações é o tratamento quase igualitário para homens e mulheres, vedando a estas somente trabalhos que sejam a elas inadequados por supostas razões de saúde; e procura eliminar o estigma histórico que fazia do ensino industrial algo voltado somente aos pobres e marginais. Ela se opõe, tanto quanto possível, à "especialização excessiva e prematura", e busca combinar o ensino técnico com disciplinas de cultura geral. Do ponto de vista de sua organização, o ensino industrial é definido como de nível médio, sendo o primeiro ciclo destinado ao ensino industrial básico, de mestria, artesanal e de aprendizagem (por ordem decrescente de dificuldade e dedicação); e o segundo ciclo dedicado ao ensino técnico e pedagógico, sendo este último para a formação de docentes e administradores especializados em ensino industrial.

A solenidade de assinatura da criação do SENAI, em presença do presidente da República e do presidente da confederação Nacional da Indústria, permite que Capanema tente mais urna vez apresentar as linhas mestras de seu grande plano de ensino industrial, no qual a aprendizagem industrial teria um lugar definido e delimitado. Ele começa, tipicamente, insistindo na importância de uma "idéia de um plano nacional e de conjunto", "um ponto de vista total e nacional", "segundo os planos, métodos e orientação da mais avançada e moderna pedagogia."(19) O aspecto principal deste ponto de vista é pensar o ensino industrial não somente em função dos interesses da indústria, mas, principalmente, dos próprios trabalhadores: "É necessário que a educação industrial não se preocupe apenas em preparar o lado técnico do trabalhador, mas, também, o seu lado humano, isto é, o seu lado espiritual, o seu lado moral, o seu lado cívico e patriótico, o que quer dizer que o principal critério da formação do trabalhador nacional tem que ser precisamente este - o de atingir, a um tempo, a sua preparação técnica e a sua formação humana."(20)

Capanema se dedica, depois, a defender a importância da educação mais geral para evitar a transformação do homem em máquina: "O trabalhador não se transformará em máquina, uma vez que nós tentemos realizar, a um tempo, os dois objetivos - sua preparação técnica e sua formação humana." Ele se opõe, assim, à especialização prematura e apressada, que levaria o trabalhador à similitude com a máquina, e declara como "falha, insignificante e prejudicial a educação profissional que fica imbuída da idéia da prática, abandonando a preocupação teórica". "É preciso não forçar, não apressar a especialização, não exigir que o trabalhador aprenda restritamente um oficio ou uma determinada maneira de exercer um oficio."(21)

Depois de se referir, brevemente, aos outros dois objetivos do ensino industrial, o interesse da empresa e o interesse da nação, orientado este para "o problema do enriquecimento nacional e o problema da cultura nacional", o ministro passa a distinguir as duas soluções possíveis para o ensino industrial: a escola de tempo todo, "dispondo, em seu próprio recinto e ambiente, de todas as condições pedagógicas e todas as condições técnicas para uma plena educação"; e as de tempo parcial, combinadas com o trabalho, e "limitando-se a transferir para os próprios centros de trabalho a técnica' o ensino da tecnologia e a prática do oficio."(22) Este seria o trabalho do SENAI, cujo escopo Capanema tratava de circunscrever, definindo-o como limitado a "trabalhadores menores que vão receber nas escolas suplementares ensino do oficio que estejam exercendo", sendo todo ele, portanto, "obra que tem objetivo preciso, delimitado e seguro, e não uma obra de dimensões ilimitadas."

Nestes limites, o ministro via no novo serviço o renascer, no Brasil, das antigas corporações de oficio medievais: "Nós estamos numa escala muito maior, muito mais importante e decisiva, realizando nesta moderna idade, da técnica e da indústria, aquele sistema antigo da educação artesanal em que o trabalhador, aprendiz e mestre, isto é, em que o dono da indústria e o seu trabalhador, menor ou maior, formavam uma comunidade, uma corporação, uma entidade de interesses estritos, e em que se realizou, na sua forma mais alta, mais expressiva, mais segura, a melhor educação profissional de todos os tempos." "O Brasil, neste ponto, passou na frente de todas as nações do mundo, chegamos a uma forma moderna de cooperação entre o trabalhador aprendiz, entre o operário menor e o patrão, em que todos se reúnem em família, todos se reúnem na comunidade de interesses para formar uma obra que não é mais de interesse da corporação, mas, sim, de interesse da nação."(23) E, mais ainda: "É um empreendimento que se aproxima muito da obra da educação medieval, em que a educação não era de ensino acadêmico, de sentido artificial (rias,..) mas é a educação prática, segura, eficiente, em contato permanente com a vida, uma educação que é, não propriamente uma preparação para a vida, mas, rigorosamente, a própria vida."

Ao final, o ministro lembra que a educação profissional havia sido, até então, uma educação para os pobres, enquanto que os que tinham recursos enviavam seus filhos para as escolas secundárias. Na sua visão, contudo, a estratificação educacional deveria obedecer a critérios estritamente meritocráticos. Com a criação do novo sistema de ensino industrial, do qual o SENAI era uma parte, as pessoas seriam distribuídas para os diferentes cursos por um sistema de orientação vocacional, o que faria com que a educação profissional deixasse de se constituir em um setor à parte. Com a orientação vocacional, os trabalhadores deixariam de seguir esta ou aquela formação pelo acaso ou pelo palpite, mas passariam a ser guiados "pelas suas qualidades, pelos seus atributos, pelas virtudes, pelas suas possibilidades físicas, pelas suas aptidões intelectuais e pelas suas qualidades morais." O resultado final seria "misturar a juventude do país em uma unidade moral e individual, fazendo com que toda a juventude seja uma só, e portanto, toda ela, pobres e ricos, no trabalho industrial ou no trabalho civil, todos possam atingir as mais altas posições que pelo ensino industrial leva à universidade, acessível a todos." De modo que a orientação vocacional será "aquele veículo em virtude do qual os mais capazes, os mais inteligentes, os mais cheios de vocação cultural possam realizar uma carreira cultural e atingir os mais altos postos universitários, políticos ou culturais, e em que os trabalhadores de vocação técnica possam realizar sua carreira em termos da mais alta envergadura."(24)

Na realidade, este ideal se chocava com a divisão estanque que o próprio Ministério da Educação manteria entre a educação secundária e os demais ramos do ensino médio, no que se refere às possibilidades de acesso aos níveis superiores da educação. Só a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, aprovada em 1961, é que permitiria, finalmente, que se estabelecesse a equivalência dos diplomas de nível secundário e médio, abrindo a todos os caminhos do ensino superior. Em um parecer sobre o assunto, escrito em 1962 para o Conselho Federal de Educação, Valnir Chagas notava que, "de inicio, a simples escola primária bastava como elemento de contraste para 'distinguir' as classes mais favorecidas, já que o povo ainda a ignorava completamente. Em seguida, à medida em que as camadas populares manifestavam maior interesse pela educação elementar, a despeito do analfabetismo reinante, instituiu-se para as chamadas 'elites' a escola secundária, que já qualificava para as poucas faculdades existentes. Cedo, porém, a educação do povo atingia também o nível médio, surgindo em conseqüência um novo sistema paralelo e estanque - o ensino técnico profissional, feito em sua quase totalidade por meio de aulas noturnas - que 'apenas' preparava para o trabalho sem conduzir à escola superior, ficando assim preservado o caráter discriminatório do curso 'propriamente' secundário." Nesse parecer, Valnir Chagas previa, otimista, que a equivalência instituída pela nova lei iria "contribuir poderosamente para valorizar os cursos profissionais de nível médio e encorajar-lhe a procura numa fase de desenvolvimento humano como é a segunda adolescência, em que os estudos mais específicos se tornam psicologicamente mais recomendáveis."(25) A idéia de que, eliminadas as barreiras legais, a seleção de cursos pelos alunos passaria a obedecer a variáveis de tipo psicológico já estava contida, como vimos, na própria justificação que Capanema oferecia para os cursos profissionais. Na prática, seu principal efeito não foi organizar a sociedade segundo a distribuição das aptidões, e sim desenvolver toda uma área de trabalhos em psicologia educacional, que encontrou seu lugar privilegiado no Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, sob a liderança de Lourenço Filho.

Em julho de 1942, ainda se ouviam protestos na área da educação em relação ao sentido que a Federação das Indústrias pretendia dar ao SENAI. Rodolfo Fuchs escreve em 21 de julho a Capanema lamentando que a regulamentação do Serviço tivesse sido assinada pelo presidente antes que o parecer que lhe fora solicitado estivesse feito, mas não deixa de registrar suas dúvidas. Segundo ele, a regulamentação teria feito com que a aprendizagem industrial deixasse de ser "a grande couraça protetora do adolescente brasileiro que trabalha", para ser "somente o instituto de aperfeiçoamento técnico da mão-de-obra requerida pela indústria." "A regulamentação referida quase conseguiu fazer voltar o problema aos termos da solução que lhe dera o ministro Valdemar Falcão", lamenta. E objeta, principalmente, à eliminação da exigência de contratação dos aprendizes pela indústria, ao lado do condicionamento das escolas de aprendizagem "às necessidades e conveniências da economia nacional" (art. 30 do regimento do SENAI). "Em lugar de cumprir a lei", prossegue, "proporcionando ensino a todos os aprendizes cujo oficio exige formação profissional, as normas limitam o número destes a 5% do total dos operários empregados nos referidos ofícios."(26)

Uma última área de conflito e derrota do Ministério da Educação em relação ao ensino industrial foi a tentativa de criar um amplo sistema de regulamentação do exercício profissional nos diferentes domínios da vida industrial. Objeto de exposição de motivos encaminhada a Vargas em 30 de julho de 1942 e aparentemente aprovada quase em seguida, ela permanece, não obstante, como letra morta, até receber parecer contrário do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio em fevereiro de 1944. Em 11 de maio de 1945 Capanema ainda insiste no assunto, pedindo, pelo menos, que esta regulamentação se faça "quanto aos direitos inerentes aos diplomas concedidos em virtude da conclusão dos cursos técnicos do ensino industrial", todos eles, em número de 14, dados no nível de segundo ciclo do ensino médio (construção de máquinas e motores, eletrotécnica, edificações, pontes e estradas, indústria têxtil, indústria de pesca, química industrial, mineração, metalurgia, desenho técnico, artes aplicadas, decoração de interiores, construção naval, construção aeronáutica). "Justo é", argumenta, "que aos diplomados por tais cursos a lei conceda prerrogativas definidas, em beneficio, não só dos portadores de diploma, mas também da própria indústria, interessada que deve estar em obter, para função de elevado nível técnico, profissionais à altura de seu competente exercício."(27)

Esta regulamentação não seria conseguida. O grande projeto corporativo nacional havia fracassado em boa parte, sendo substituído por um tipo de corporativismo muito mais pragmático e realista, que delegava o ensino e o emprego industrial à indústria para conduzi-lo conforme, tão-somente, "às necessidades e interesses da economia nacional." Os anos seguintes mostrariam que o SENAI terminou por se constituir na experiência mais eficiente de ensino profissional já havida no país; enquanto isto, as tentativas de criar um sistema de ensino industrial a partir de uma orientação técnica de apurado estilo" e um princípio geral de ordenamento, definido por uma lei orgânica de aplicação geral, só encontrariam dificuldades.

Enquanto o SENAI se organizava e o Ministério da Educação tratava de montar o sistema nacional de ensino industrial, a participação do Brasil na guerra ia impondo novas realidades. Em 25 de abril de 1942 Roberto Mange se dirige ao ministro da Educação informando que fora contactado diretamente pelo coordenador de Assuntos Interamericanos em Washington, do qual recebera a incumbência de promover no Brasil urgentes entendimentos para que, com o auxílio dos Estados Unidos, possa ser posto em prática um novo plano visando a preparação técnica, rápida e em larga escala de mão-de-obra destinada à defesa de guerra."(28) O plano incluía os campos da construção naval, com particular relevo na construção de navios de madeira; siderurgia (manufatura de aço e ferro); fabricação de armamentos, principalmente manufatura de munições; e construção de aviões, visando sua reparação e conservação. "Deveriam ser organizados, na rede de escolas industriais, técnicas e de engenharia do Brasil, à semelhança do que se vem fazendo nos Estados Unidos, com os chamados Defense Training Courses, curso monotécnicos intensivos e de curta duração além de assegurar rapidamente à defesa de guerra o contingente de mão-de-obra especializada e de auxiliares técnicos de que necessita para atender ao seu previsto desenvolvimento."(29) Esta carta dá ensejo à criação de uma Comissão do Ensino Industrial de Emergência, composta por Francisco Montojos e Luís Palmeira, diretores dos serviços de ensino industrial do Ministério da Educação e da prefeitura do Distrito Federal, alem de João Lauderitz e Joaquim Faria Goes Filho, do SENAI, e Celso Suckow da Fonseca, diretor da Escola Técnica Nacional.

Sob o pretexto da situação de emergência o SENAI abandonou, logo de início, sua finalidade aparente, que era o treinamento de aprendizes, passando ao treinamento profissional dos empregados adultos da indústria. Segundo Celso Suckow da Fonseca, "os cursos para aprendizes e trabalhadores menores só puderam ser instalados mais tarde, e, além disso, havendo sido inaugurados em prédios impróprios, não incluíram, em seu inicio, o ensino prático em oficinas especiais, pois as acomodações utilizadas não permitiam que isto se realizasse. Assim, no começo da vida dos cursos de aprendizagem funcionaram, apenas, aulas teóricas de cultura geral, bem como de tecnologia e de desenho teórico. Posteriormente foram sendo postas em funcionamento as primeiras oficinas de aprendizagem, assim mesmo somente para atender a um número reduzido de menores."(30) Este tipo de educação geral para trabalhadores menores seria definitivamente abandonado pelo SENAI graças ao decreto-lei n 9.576, de 12 de agosto de 1946, a partir do qual o Serviço se concentraria exclusivamente nos cursos de aprendizagem que não mais obedeceriam à camisa-de força que o Ministério da Educação havia tratado de lhe impor.

3. O projeto ministerial: a escola-modelo

Ao lado da disputa pelo controle e âmbito de atuação do SENAI, o Ministério da Educação tratava de levar à frente um outro projeto que era a peça mestra de todo o plano de criação de um sistema nacional de ensino industrial: a implantação de uma escola-modelo no Rio de Janeiro, formada com professores europeus, e que pudesse, neste nível, repetir a experiência da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo e a que seria também tentada para a Faculdade de Filosofia da Universidade do. Brasil. Era já uma idéia antiga. Em 1935 Capanema encaminhava a Getúlio Vargas documento em que sugeria a contratação de 30 professores estrangeiros que preparariam professores brasileiros para o ensino industrial, prevendo para isto uma despesa anual de 1.080 contos de réis. Em documento da mesma época Rodolfo Fuchs, da Divisão de Ensino Industrial, apresentava uma série de sugestões específicas relativas ao contrato de mestres estrangeiros para os liceus nacionais, assinalando a preferência por franceses, alemães, italianos e ingleses, especialistas em mecânica, marcenaria, decoração, cerâmica, litografia, eletricidade, encadernação, serrralheria, pedreiros e instaladores. Com o acordo presidencial, sondagens são feitas em vários países, aproveitando eventuais viajantes à Europa. Em maio de 1936, Antônio de Sá Ferreira escreve longa carta desde Berlim, relatando seus contatos com o Arbeitsfront ("a organização do partido nacional-socialista que engloba todos os empregados, operários e trabalhadores de qualquer espécie e à qual estão também subordinadas as escolas profissionais") para a contratação de professores. Sua missão, no entanto, é demasiado vaga, e a sugestão dos alemães é que o governo brasileiro contrate um especialista "escolhido entre os atuais organizadores do admirável plano do ensino profissional do Terceiro Reich" que pudesse vir ao Brasil e propor ao governo brasileiro as medidas mais urgentes a tomar, e indicando, posteriormente, os instrutores a serem contratados.(31)

Em julho de 1938, outra carta é enviada, desta vez por Rodolfo Fuchs, que se encontrava a caminho de Berlim, e que coloca em dúvida a idéia de publicar editais em vários países europeus solicitando técnicos para o Brasil, que teria sido sugerida por Francisco Montojos e aprovada pelo diretor-geral da Educação. Segundo ele, este procedimento, "aplicado no Brasil, só colheria nulidades; na Europa do mesmo modo só se apresentarão aqueles que não tiverem ocupação ou os que estiverem descontentes com as que ocupam. As provas, por mais rigorosas que fossem, só conseguiriam eliminar os incapazes; os medíocres mesmo passariam." Ao invés disto a carta propõe um recrutamento por contatos pessoais. Nesta carta ele insiste, ainda, em especificações sobre o número de profissionais a serem contratados, suas especialidades, vencimentos, condições do contrato etc., para que essa missão possa ser realizada.(32)

A idéia só ganharia forma, porém, em 1940, já em plena guerra, quando uma comissão formada por Francisco Montojos, Joaquim de Faria Goes e Rodolfo Fuchs apresenta uma proposta especifica de contratação de 27 técnicos para o Liceu Nacional a ser inaugurado no Rio de Janeiro; todos da Suiça, tornada a única opção pela sua posição de neutralidade no conflito europeu. Capanema solicita a Vargas recursos no valor de 396 contos para o segundo semestre do ano em curso e recebe a autorização presidencial cm 22 de fevereiro. A partir daí começam os contatos oficiais através da legação brasileira em Berna, e em março o assunto já é noticia na própria Suíça:

ON CHERCHE DES PROFESSEURS SUISSES POUR LE BRÉSIL

Nous lisons dans Ia Thurgauer Zeitung:

Le gouvernement du Brésil s'efforce de développer le pays, dans tous les sens. II veut que le Brésil exploite ses richesses lui même, sans avoir sans cesse recours aux colons. II a créé donc des écoles nombreuses pour instruire le peuple resté souvent inculte par le fait de la dissémination. La plupart des écoles seront industrielles, commerciales et artisanales. L'école militaire forme déjà les maîtres de sport et de gymnastique. Au tant que possible, le Brésil veut engager des Brésiliens - mais II n'en a pas assez encore. Pour la grande école industrielle qui va se terminer, le Brésil offre 27 places à des professeurs susses. Un fonctionnaire du ministère de I'éducation viendra sous peu en Suisse pour engager ces professeurs Ceci prouve l'estime dans laquelle le Brésil tient Ia Suisse.(33)

Em novembro de 1940, Getúlio Vargas aprova a indicação de Roberto Mangue, catedrático da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e de origem suíça, para fazer a seleção dos técnicos a serem contratados. A viagem é feita em dezembro daquele ano, e em 19 de maio de 1941 Capanema reporta a Vargas que "foram feitos os necessários entendimentos para o contrato de 42 técnicos, número menor do que o previsto no programa de viagem do professor Mange." A finalização dos contratos dependia de uma autorização especial do presidente da República, que a concede por decreto-lei, mas "mediante prévia e expressa autorização do presidente da República em cada caso"(34) Os contratos são finalmente assinados ao final de 1941, e em 1942 os técnicos chegam ao Brasil para trabalhar principalmente junto à recém-criada Escola Técnica Nacional.

Não existe, no arquivo Capanema, avaliação desse empreendimento. O que consta, todavia, são cartas e outros documentos elaborados por alguns dos técnicos suíços, que dão conta da precariedade a que estavam submetidos.

Em fevereiro de 1943 Constantin Wüthrich, engenheiro contratado como chefe técnico de mecânica de ensino industrial, envia ao ministro da Educação carta bastante patética e contundente, em que solicita seu repatriamento imediato. Suas razões:
ensino do idioma. "Na Suíça comunicaram a nós, técnicos suíços, que no Rio teríamos no mínimo duas horas diariamente de ensino de português por um professor competente. De fato, porém, só durante algumas semanas e ainda nas horas de maior calor, das 14 às 15 horas, e mais tarde somente três vezes por Semana tivemos à nona disposição um professor, que além de idoso era professor de francês. Reconheço seu esforço, porém não conseguiu lograr êxito, pois ignorava os termos técnicos só falando sofrivelmente o alemão. Após quatro meses as aulas cessaram completamente."

visitas a fábricas. "Como imagina a direção o ensino do desenho construtivo da fabricação de caldeiras, máquinas a vapor, turbinas e motores de todas as espécies, se não dão oportunidade ao chefe da escola de máquinas de obter dos correspondentes estabelecimentos industriais as plantas ou esboços e conhecer o método nacional destes trabalhos? Não se pode esperar que o professor pague do seu já escasso salário as despesas totais de uma visita a uma cidade industrial distante."

Ensino. "Embora eu tenha sido contratado como chefe da seção mecânica, oficialmente não sei até hoje o que se passa na oficina, quem dá ordens e qual o programa de ensino. Já tendo decorrido um ano podia-se esperar que estivessem regularizadas final e definitivamente as questões de pessoal e hierarquia. Se no entanto não me querem dar poderes como chefe da seção, impõe-se a pergunta de por que se foi buscar a dez mil quilômetros um reconhecido técnico suiço no ramo do aprendizado, ensino técnico e profissional. Certamente não para colocá-lo abaixo de um mestre de oficina."

"Há tempos me prometeram uma certa influência sobre os exames de admissão e conclusão, sendo que eu deveria fazer parte de uma comissão. No entanto não sei até hoje onde e quando se realizam tais exames. Não estou a par se para o ano escolar que entra serão abertos novos cursos de construção de máquinas e quantos, e se o primeiro curso terminado continuará de acordo com o programa."

"Como chefe da seção de construção de máquinas não posso me satisfazer com as matérias ensinadas em tecnologia e eletrotécnica. Acho um absurdo que as duas aulas semanais previstas para tecnologia sejam ministradas por pessoas diferentes. Assim mesmo, uma das pessoas lecionou eletrotécnica em vez de tecnologia, embora já estejam previstas três aulas semanais para aquela matéria. Como resultado, os técnicos no fim do primeiro ano não sabem nada de ferro, aço e suas ligas, porque o professor lecionou sobre o metro, o compasso, o paquímetro etc., passando depois para as relações no torno, usando para isto ilustrações de um catálogo ou folhas semelhantes."

Aquisições. "Existindo nas diversas seções da Escola, há bastante tempo, máquinas caras que por qualquer motivo não são usadas, seria sem dúvida melhor equipar e usar a seção mecânica que hoje é a mais importante em vez de ter muitas seções só parcialmente equipadas ou inteiramente desprovidas, o que não permite um trabalho racional porque ora falta o equipamento, ora as ferramentas, ora as matérias-primas."

Organização geral. "De inicio e encerramento de aulas, feriados etc., muitas vezes só se teve conhecimento à última hora, muitas vezes por comunicação casual e verbal por terceiros em lugar dc um aviso prévio afixado em lugar apropriado, como é dc costume."

Coordenação. "Falta inteiramente a cooperação com a direção, os chefes e os mestres. Tem-se a impressão de que há grupos inimigos e é patente o desdém com que nós, suiços, somos tratados."

Oficina. "De acordo com minhas observações, os aprendizes e técnicos recebem simplesmente uma 'ocupação' na oficina, mas não um ensino sistemático com um grau progressivo de dificuldade. Provavelmente os mestres não tiveram uma longa prática industrial, preparo pedagógico e experiência de aprendizagem moderna. E com tudo isto, por uma falsa vaidade, não acham necessário consultar o técnico experimentado."
Ao final da carta, o técnico se queixa do baixo salário, mas, principalmente, da falta de perspectivas: "Não considerei este meu emprego como um trampolim para uma futura colocação na indústria. Vim para o Rio cheio de idéias de poder tomar parte em uma futura obra de organização 'do ensino industrial', porém como dirigente e não como personalidade recalcada." E pede sua repatriação imediata, conforme as cláusulas do contrato que havia assinado.(35)

Outras críticas dos técnicos suíços são encontradas em trechos de cartas enviadas a amigos e familiares, que eram rotineiramente censuradas pelos correios na época de guerra e enviadas para o conhecimento do ministro, devidamente traduzidas. Em outubro de 1943, por exemplo, Hans Gwerder-Hugi, mestre de ajustagem de máquinas, relatava para um parente da Suíça a farsa que foi a filmagem dos alunos e instalações da Escola Técnica para fins propagandisticos: "Determinado número de aprendizes operavam no primeiro dia, após seis horas de instrução, máquinas que não podem compreender, executando as mais variadas manipulações, mas nenhuma delas correta, donde se depreende o caráter de bluff . O cúmulo, porém, consistiu na filmagem de máquinas que ainda não estavam em condições de funcionar, por carecerem de motores individuais." "Desde o primeiro diretor até o terceiro, de hoje, tudo permaneceu no mesmo desleixo, exteriormente um estabelecimento escolar modelar, na realidade porém uma gigantesca ilusão, como é mesmo possível na América." "Soubemos que dentro em pouco honrar-nos-á o presidente do Brasil com sua alta visita. Para tornar a recepção mais expressiva, o serviço será suspenso e o elevado hóspede dificilmente perceberá algo da miséria da escola."(36)

Outra carta, da mesma época, também interceptada, tenta uma análise mais aprofundada da situação. Para o autor, Werner Amacher, mestre escultor em madeira, escrevendo em 1943, faltou cuidado na própria seleção dos técnicos, que terminaram por não cooperar entre si e deixar toda a iniciativa para os chefes de mais responsabilidade. Além disto, "verificou-se que nossa chegada surpreendeu as autoridades aqui, pois aparentemente não tinham certeza de como se utilizarem de nós. Tanto em conjunto, quanto individualmente, não quiseram dar instruções com relação às tarefas de organização, donde naturalmente resultou descontentamento, agravado pelo fato de que as informações quanto ao padrão de vida neste pais, apresentadas em Berna, induziram a interpretações errôneas e economicamente prejudiciais." Principalmente, no entanto, dizia que, "como de maneira alguma nos quiseram atribuir competências e como as leis delimitaram a nossa iniciativa, ficamos praticamente com as mãos amarradas. Do resto incumbiu-se o pessoal doméstico que nos olhou como uma espécie de invasores. Achamos incompreensível como se podia exigir de um aluno de 12 anos de idade que dentro de três e meio a quatro anos aprendesse cinco a seis profissões, sacrificando simultaneamente a metade do dia para fins escolares. Naquela época ainda não tínhamos percebido a prevenção que havia contra pessoas com idéias que não eram da chapa [sic] e que estavam lutando no sentido de cumprir o seu dever. Por que e para que fomos contratados, ninguém saberá responder com exatidão."(37)

O programa de emergência de ensino industrial organizado por iniciativa dos Estados Unidos teve também, como um de seus elementos, a vinda de técnicos norte-americanos especializados, e aqui há igualmente indicações de que as coisas não funcionavam como deviam. Em 1944 um desses técnicos, Robert S. Brent, contratado como mestre-armeiro para atuar junto à Escola Técnica Nacional, pede a rescisão de seu contrato e seu repatriamento aos Estados Unidos. Em carta para Francisco Montojos, se queixa, entre outras coisas, que não consegue sequer obter os materiais necessários para o seu trabalho: "Até o presente tem sido evidentemente impossível obter os materiais requeridos, e visto que estes materiais são de tamanha importância ao esforço bélico de nossos dois países, provavelmente será impossível obtê-los antes do fim da guerra." A carta faz referências ainda ao "Dr. Tomas Newlands, que naquela época estava auxiliando ao diretor da escola", uma indicação de que a presença de Brent junto à Escola Técnica não era um fato isolado.(38)

Apesar deste fracasso generalizado, a inércia criada com a importação dos técnicos é enorme. Wüthrich, que um ano depois dc sua carta ainda tentava, inutilmente, obter um despacho qualquer do ministro sobre seu pedido de repatriamento, termina voltando para a Suiça, mas em 1946 escreve novamente (sem saber que Capanema não estava mais no ministério) querendo voltar: "Hoje", escreve em seu português já bastante razoável, "as circunstâncias d'após guerra na Europa não me agradam, e eu, como minha filha, que nunca queria abandonar o Brasil, temos saudades do Brasil e dos brasileiros ambiciosos. Por isto, eu me permito de apresentar a sua Ilma. Excia. a pergunta de se há possibilidade de reativar o meu contrato como chefe da seção máquinas e motores, do gabinete de resistência dos materiais e como professor da Escola Técnica Nacional ou numa outra escola técnica semelhante. Se tiver necessidade, posso também recomendar maestros muito aptos para aprendizagem nas oficinas. "(39)

Uma boa parte dos técnicos permaneceu no Brasil, e pouco a pouco foi se adaptando ao meio. Ao final de 1951, ainda mantinham contratos com a Diretoria de Ensino Industrial 12 técnicos, em situação precária e inquietos sobre seu futuro. Um deles, Alfonso Marignoni, contratado originalmente como assistente técnico de eletricidade, procura o deputado Gustavo Capanema com um pedido de ajuda: "Sem qualquer comunicação de que o MES pretende não mais aproveitar-lhes os serviços, pelo contrário, confiantes nas promessas verbais que lhes têm sido feitas de renovação dos respectivos contratos, os referidos técnicos suíços, todos país. de família, vindos para o Brasil em face de contrato com uma sua entidade oficial, com compromissos decorrentes de instalação etc., não conhecem, nesta altura do ano, a respectiva situação como servidores públicos, isto é, se irão continuar a prestar serviços ou se deverão entender este retardamento do MES como um desejo de não renovar-lhes os contatos."(40)

4. Conclusão

Os antecedentes históricos do ensino industrial no Brasil dramatizam, em escala reduzida, toda a ambição, as dificuldades e os fracassos que marcaram os projetos educacionais do ministério Capanema.

Havia três grandes ambições. A maior era a criação de um amplo sistema de educação profissional, que não se diferenciasse das outras formas de educação secundária a não ser pelas diferentes "vocações" dos estudantes, a serem descobertas pelos sistemas de seleção e orientação profissional. Este sistema deveria ser coroado pela regulamentação dos direitos e deveres de cada uma das profissões, dando à sociedade uma estrutura corporativa perfeitamente ajustada e coordenada. Na prática, a educação profissional continuou sendo uma educação para as classes baixas, e a regulamentação das profissões técnicas não foi conseguida. A segunda ambição era colocar todo o sistema sob a tutela do Ministério da Educação e Saúde. Aqui, o Ministério do Trabalho e a Federação das Indústrias se mostraram mais fortes e conseguiram criar seu sistema de educação profissional como achavam mais conveniente: de forma mais pragmática, mais ajustada a seus interesses imediatos e livres da tutela ministerial. A terceira, finalmente, era a da escola-modelo para a definição de padrões de excelência, que fosse para o ensino industrial o que o Colégio Pedro II fora para o secundário, e o que a Universidade do Brasil deveria ser para o superior. Aqui, a ausência de uma tradição de ensino profissional anterior, a não consideração dos processos reais de aprendizagem e a crença ingênua nos efeitos dos grandes projetos são os responsáveis pelo fracasso. Isolado no ministério, gastando sua energia para salvaguardar suas grandes concepções dos desgastes diários dos conflitos inter-ministeriais - conflitos estes envolvendo interesses de grupos poderosos -, Capanema termina por conseguir implantar, na aparência, seus grandes projetos - a Lei Orgânica, a importação de especialistas estrangeiros -, mas somente para deixar que a própria realidade se lhe escape pelos dedos.


Notas

1. Decreto nº 7.566, de 23 de setembro de 1909.

2. Lei nº 5.241, de 22 de agosto de 1927.

3. Constituição de 1937, artigo 129.

4. Rodolfo Fuchs, 1935. GC 34.11.28, pasta 1 doc. 3, série g. Esta concepção parece ter pontos em comum com a de Anísio Teixeira, que, na reforma das escolas profissionais do Rio de Janeiro, tratou de escoimá-las "do caráter discriminatório que até então tinham". (Alberto Venâncio Filho, comunicação pessoal)

5. Decreto n 24.735, de 14 de julho de 1934.

6. "Exposição de motivos sobre a Universidade Técnica". Gc 34.07.24, doc. 2, série g.

7. Idem, ibidem.

8. Marluce Moura de Medeiros, Estrada de ferro e ensino industrial: um estudo de caso. Tese de mestrado, IESAE/FGV, 1980; Celso Suckow da Fonseca. História do ensino industrial no Brasil. Rio de Janeiro, Escola Técnica Nacional, 1961,2 volumes; Luís Antônio Cunha. "A politica educacional e a formação da força de trabalho industrial na era de Vargas". FGV/CPDOC, seminário sobre a Revolução de 30,1980. Em A Revolução de 30 - Seminário Internacional (Editora da Universidade de Brasília, 1983), pp. 437-470.

9. Decreto-lei nº 1.238, de 2 de maio de 1939.

10. Carta de Valdemar Falcão a Vargas, 3 de julho de 1940. GC 38.04.30, série g, anexo documento IIa -1.

11. Idem, ibidem.

12. "Organização da aprendizagem industrial"; de Gustavo Capanema a Vargas, 25 de julho 1940. GC 38.04.30, pasta IV, doc. 5, série g.

13. Carta dc Roberto Simonsen a Capanema, 7 de julho de 1940. Gc 35.04.30, pasta IV, doc. 5, série g.

14. Parecer de Francisco Negrão de Lima sobre projetos de ensino industrial. 17 de fevereiro de 1941. GC 35.04.30, pasta IIb, doc. 1, série g.

15. Idem, ibidem

16. Idem, ibidem.

17. Oficio de Capanema a Vargas sobre a "Organização da aprendizagem industrial", 19 de maio dc 1941. GC 38.04.30, pasta IV, doc. 7, serie g.

18. Decreto n 4.048, de 22 de janeiro de 1942. A Lei Orgânica seria assinada no dia 30 de janeiro sob o n 4.073.

19. Gustavo Capanema, conferência proferida perante a Confederação Nacional da Indústria na solenidade de abertura do SENAI. GC/Capanema, G. 42.08.00, série pi. 20.

20. Idem, ibidem

21. Idem, ibidem

22. Idem, ibidem

23. Idem, ibidem

24. Idem, ibidem

25. Valnir Chagas (relator), parecer n 5 62 do Conselho Federal de Educação sobre "Concurso de Habilitação aos Cursos Superiores". Em Guido Ivan de Carvalho, Ensino superior - legislação e jurisprudência. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, vol. III, 1975, pp. 50-63.

26. Rodolfo Fuchs, documento enviado ao ministro da Educação, 21 de julho de 1942. GC 41.09.13, pasta 1-6, série g.

27. Carta de Capanema a Vargas, 11 de maio de 1945. GC 35.10.18/2, anexo documento IV-7, série g.

28. Carta de Roberto Mange a Capanema, 25 de abril de 1942. GC 35.12.00, pasta 112, série g.

29. Idem, ibidem.

30. Celso Suckow da Fonseca. op. cit., vol. 1 p. 500.

31. Antônio Sá Ferreira, 26 dc maio dc 1936. GC 36.05.26/2, pasta 1-1, série g.

32. Carta de Rodolfo Fuchs a Capanema, 22 de julho de 1935. GC 36.05.26/2, pasta I-4, série g.

33. Gazette de Lausanne, sexta-feira, 15 de março de 1940.

34. Decreto-lei n 3.297, de 22 de maio de 1941.

35. Carta de Konstantin Wüthrich a Capanema, 4 de fevereiro de 1943. GC 35.05.26/2, pasta 111-6, série g.

36. Carta de Hans Gwerder-Hugi à família, 6 de outubro de 1943. Arquivo Gustavo Capanema, série í, em fase de organização.

37. Carta de Werner Amacher a amigo, 30 de outubro de 1943. Arquivo Gustavo Capanema, série i, em fase de organização.

38. Carta de Robert S. Brent ao diretor da Divisão do Ensino Industrial do Ministério da Educação e Saúde, Sr. Francisco Montojos, 20 de julho dc 1944. GC 36.05.26/2, pasta 111-10, serie g.

39. Carta de Konstantin Wüthrich a Capanema, 29 dc outubro de 1946. Arquivo Gustavo Capanema, serie í, em fase de organização.

40. Alfonso Margignoni. Agenda de seu encontro com o deputado Capanema na Câmara dos Deputados, 27 de dezembro, sem especificação do ano. O documento refere-se a eventos ocorridos nos primeiros dias de dezembro de 1951 e indica que o ano a se iniciar seria o de 1952.