TEMPOS DE CAPANEMA

SIMON SCHWARTZMAN, HELENA MARIA BOUSQUET BOMENY, VANDA MARIA RIBEIRO COSTA

1ª edição: Editora da Universidade de São Paulo e Editora Paz e Terra, 1984 - 2ª edição, Fundação Getúio Vargas e Editora Paz e Terra, 2000.



Capítulo 9
A Herança dos Tempos


1. Os novos tempos

2. A proposta de um novo pacto

3. A herança

Notas


1. Os novos tempos

"Ontem," escrevia Capanema a Francisco Negrão de Lima cm 28 de janeiro de 1942, "tivemos a mais emocionante reunião do governo, em Petrópolis. O presidente, como sempre, admirável de singeleza, gravidade e precisão. Todos os ministros seguros. E afinal a decisão de rompimento de relações diplomáticas com a Alemanha, a Itália e o Japão. Estamos, assim, meu caro amigo, às portas da guerra, de uma guerra que não pode deixar de ser perigosa. Aqui, o ambiente é de tranqüilidade, segurança e fé. O ritmo de nosso trabalho, o rumo do nosso trabalho estarão determinados pelos novos acontecimentos."(1)

O perigo não era só a guerra. O rompimento de relações com o Eixo completaria o ciclo que levou o país, do namoro explícito com as experiências fascistas européias, a um realinhamento não só estratégico e militar, mas também politico e ideológico. Esta mudança deveria ser feita, no entanto, sem substituir as pessoas que detinham o poder e que haviam criado toda a sua máquina administrativa. Era necessário, pois, que as próprias pessoas se transformassem e se adaptassem aos novos tempos.

A participação brasileira na guerra uniria, por algum tempo, os mais rancorosos inimigos de pouco antes. Em fevereiro de 1942 o Partido Comunista, clandestino, publica uma declaração dando "seu inteiro apoio e sua plena colaboração à posição democrática assumida pelo governo da República", conclamando à desarticulação da quinta-coluna no país e à mobilização do povo para a luta contra a agressão nazista.(2) E ainda desses dias o reconhecimento, pelo governo federal, da União Nacional dos Estudantes. Um manifesto estudantil anônimo, publicado pouco depois, é enviado ao ministro da Educação exigindo o expurgo de professores e funcionários identificados com a quinta-coluna, "maus brasileiros que solapam a nacionalidade, a união do povo, que obstruem por todos os meios as providências do governo, que espionam a favor dos inimigos". "Outrora," dizia o manifesto, "esses miseráveis seriam encostados ao muro e fuzilados sem vacilação. Hoje, na técnica moderna da guerra traiçoeira do quinta-colunismo, eles se metamorfoseiam, se mascaram em patriotas, em defensores da família, blasfemam o nome divino praticando a ação mais vil, impunemente."(3) As cabeças pedidas incluem desde funcionários subalternos da Reitoria da Universidade do Brasil até professores universitários e altos funcionários do Ministério da Educação e Saúde.

Era um tipo de pressão ao qual o Ministério da Educação já se acostumara, ainda que vindo do extremo oposto. Em 16 de fevereiro de 1939 o ministro da Guerra, Eurico Dutra, enviara uma carta a Capanema lembrando que "os professores de nossas escolas superiores, que foram demitidos como comunistas, vêm desenvolvendo tenaz e insidiosa atividade no sentido de serem reintegrados em suas cadeiras". O caso, como reconhecia Dutra, estava afeto ao Ministério da Educação. Não obstante, dizia o general, "como se refere a assunto cuja solução vem, de maneira impertinente, ferir interesses da segurança nacional, permito-me, com as responsabilidades que me cabem e sempre couberam ao Exército, nas horas amargas da incerteza e do sacrifício, quando a ele se recorre para a manutenção da ordem e do regime e das instituições, declarar ao eminente amigo que a reintegração dos referidos professores, sendo obra comunista, como realmente o é, não pode ser bem recebida pelos que têm o dever de zelar pela segurança da pátria e estar vigilantes pela sua defesa e seu governo, do qual o ilustre amigo é figura destacada pelo seu talento e sua prudência."(4)

Não existem registros sobre as conseqüências desta carta. É provável, contudo, que ela tenha gerado mais uma comissão ou grupo de trabalho, que na prática protelasse qualquer decisão. O confronto entre os dois extremos tendia a se acentuar, e a posição do ministério era, tanto quanto possível, a de atenuar os choques e buscar a conciliação. No ano de 1943, o conflito entre os estudantes do Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, e as autoridades policiais, iniciado com a prisão de seu presidente, culmina com um choque no largo de São Francisco que ficaria conhecido como a "chacina de Nove de Novembro". Segundo o relato de um estudante paulista ao VII Congresso da UNE, "caíram estudantes, operários, funcionários, velhos, mulheres e crianças, presos de momentos de indizível angústia, quando não foram atingidos pelos tiros de metralha dos carros instalados no largo do Ouvidor, que apontavam em direção ao largo de São Francisco."(5)

A própria realização desse congresso estivera ameaçada e foi precedida por intensas negociações entre o ministro e a UNE. Capanema chega a pedir, por telegrama, o adiamento do congresso, e em 12 de julho os estudantes enviavam um documento intitulado "Bases para a discussão com o Sr. ministro Capanema sobre a realização do VII Conselho Nacional dos Estudantes", onde lembravam que "os estudantes de todos os estados não estão em oposição sistemática ao governo, mas, ao contrário, oferecem lealmente sua colaboração" e ameaçavam, caso o Conselho fosse suspenso, com uma "repercussão continental e internacional que colocarão o governo em posição pouco agradável". Em 20 de julho o próprio ministério redige uma carta de compromisso a ser assinada pelos estudantes, que é revista e corrigida pessoalmente pelo ministro. Nela, os estudantes diziam se comprometer a fazer suas reuniões "de modo singelo, calmo e pacífico", evitando "pronunciamento exaltado ou ruidoso". Também se comprometiam a não fazer passeatas ou movimentos de rua, não admitir a adoção do expediente da greve, não discutir a questão constitucional ou eleitoral do país, não tratar da nomeação de Coriolano Góes como chefe de polícia do Distrito Federal, abster-se de qualquer pronunciamento contrário ao governo sobre os acontecimentos de 9 de novembro, e permitir um encaminhamento negociado em relação à situação do professor Cândido Mota Filho, cuja nomeação havia provocado uma greve na Faculdade de Direito de São Paulo. Os estudantes aceitam todas as condições, exceto no que se referia aos eventos de 9 de novembro, sobre os quais seria feito "um relato sereno dos acontecimentos, esperando-se que o Conselho reafirme a sua solidariedade aos sofrimentos dos colegas paulistas."(6) No dia seguinte Capanema escreve a Vargas dizendo estarem "todos convencidos da necessidade de que o VII Conselho Nacional dos Estudantes se realize de modo pacífico e sereno", e que diante. do compromisso assumido, "pareceu-me solução conveniente conceder aos rapazes o apoio tão insistentemente por eles pedidos."(7) O congresso se realizaria conforme o planejado, os acontecimentos de 9 de novembro seriam devidamente relatados em público e anotados pelo DIP.

Acomodações como estas se tornavam cada vez mais difíceis, e Capanema percebia que chegava a hora de propor um novo caminho, que garantisse a continuidade do trabalho feito e se adaptasse, ao mesmo tempo, às novas realidades do após-guerra. A obra passada precisava ser conhecida, valorizada, e a liderança de Vargas ressaltada. Nos anos da guerra, Capanema dá continuidade à elaboração de um grande livro, iniciado ainda no apogeu do Estado Novo, que deveria ficar para a posteridade como uma síntese das grandes realizações do período.(8) Escrevendo o capitulo introdutório em meados de 1940, Capanema afirmava que "em três anos e meio, o Brasil deu um passo gigantesco no seu progresso. A economia desenvolveu-se extraordinariamente. A vida social estabilizou-se e atingiu um grau admirável de harmonia entre as classes. As Forças Armadas tiveram finalmente o aparelhamento de que necessitavam para garantir a liberdade e a honra da pátria em hora tão grave. Problemas de vulto incomparável, como o da grande siderurgia, marcham para a solução definitiva. O povo está contente e confiante, vendo o Brasil maior, mais poderoso, certo do seu destino, afrontando com dignidade, firmeza e prestigio sempre crescente as responsabilidades que lhe cabem nesta fase culminante do mundo e da América. A nação, tonificiada, cheia de esperança e entusiasmo, volta-se agradecida para o homem que tanto a serviu e que constitui a sua expressão humana, interpretando-a nos atos do governo, vivendo para a sua causa e para a sua defesa."(9)

Este trabalho deveria não deixar dúvidas quanto à fidelidade de Capanema a Getúlio Vargas e ao Estado Novo. E talvez tenha sido esta fidelidade que o fizesse crer ter condições de propor os termos de um novo pacto entre o Estado e a Igreja, que renovasse a antiga aliança forjada por Francisco Campos, tendo de um lado Getúlio Vargas, e de outro ele próprio.

2. A proposta de um novo pacto

Os delineamentos do novo pacto estão contidos em um texto de três páginas denominado, despretensiosamente, "algumas informações sobre a nossa atualidade católica", redigido aparentemente ao final de 1944.(10) Logo no inicio há uma grande novidade, que é a distinção, pela primeira vez, entre "duas correntes de opinião no seio de nosso catolicismo". "Não se trata de uma divisão," enfatiza. "Com o mesmo pensamento cristão essencial, os católicos em nosso país apresentam hoje dois pensamentos políticos, duas concepções em face dos problemas que agitam o mundo e a nossa pátria." Uma destas correntes seria a conservadora, preocupada acima de tudo com a ordem e seu grande inimigo, o comunismo. "É ao comunismo que os conservadores temem sobretudo, e é contra o comunismo que combatem. Aceitariam qualquer solução que importasse a liquidação do comunismo."

A outra corrente era a formada pelos progressistas. Para estes, o simples combate ao comunismo não seria uma solução: "A corrente dos progressistas divisa no horizonte outros inimigos, e quer o combate contra todos eles." Essenclalmente, os progressistas se opunham ao totalitarismo, em suas três formas, o "totalitarismo nazista, de tipo alemão ou italiano; o totalitarismo soviético, de tipo russo; e o totalitarismo militar, de tipo argentino." Destes, o Brasil estaria particularmente ameaçado pelos dois primeiros, já que "deles existem germes bem vivos e fortes em nosso país (integralistas e comunistas)". O terceiro totalitarismo, significativamente, não parecia se constituir em maior problema. Mesmo assim, dizia o texto, "contra os três é preciso combater."

A intenção política do documento toma-se evidente em sua terceira parte, denominada 'Os objetivos da Igreja'. "Sem embargo de haver elementos apaixonados que se deixariam levar por prevenção de caráter pessoal", afirma o documento, "pode-se dizer que as correntes militantes do catolicismo brasileiro, de um modo geral, hão de cercar com grande simpatia a posição do presidente, colocado na defesa dos objetivos católicos essenciais." Estes objetivos são então enumerados como pertencendo a três grandes ordens. Primeiro, o combate ao totalitarismo em suas três formas; segundo, "assegurar, na existência do país, o primado do direito", sendo para isto necessário "tornar vigente em todos os seus termos a ordem jurídica nacional, para o que se oferece a solução de partir da Constituição de 10 de novembro, a qual envolve possibilidade ampla de sua própria adaptação a quaisquer novas condições politicas." E terceiro, manter as políticas governamentais que interessavam mais de perto à Igreja, ou seja, a política da família, do trabalho e da educação. As políticas da família e da educação eram as mesmas de sempre, afirmando a necessidade de proteger a família das ameaças de dissolução, garantindo a liberdade de ensino religioso, a exclusão das influências materialistas e o primado da orientação espiritualista no sistema educacional. A politica do trabalho deveria assegurar ao trabalhador a justiça social plena, tal como a definia a doutrina social da Igreja.

Era uma proposta continuista que, como as outras, não vingaria, sendo varrida pelo turbilhão dos acontecimentos que se precipitaram ao fim da guerra, levando à deposição de Getúlio Vargas. Mas, assim como o fim do Estado Novo não significou o fim do varguismo, também não significaria o fim das estruturas educacionais, valores, atitudes e mentalidades formadas pelo seu Ministério da Educação e Saúde.

3. A herança

Seria necessário um outro livro para avaliar, com alguma precisão, a herança que ficou e que ainda temos dos tempos de Capanema; seria ainda mais dificil separar o que ela tem de positivo ou negativo, e indagar se poderíamos ter tido uma história diferente. Os diversos capítulos deste livro já dizem algo do desfecho das diversas ações e projetos de reforma iniciados pelo Ministério da Educação ao longo destes anos. Cabe aqui, no entanto, uma reflexão um pouco mais aprofundada sobre a área onde o impacto da ação ministerial foi mais marcante, que é a das reformas educacionais.

Os anos de 1930 e 1940 foram um período de grandes transformações em toda a sociedade brasileira, com inevitáveis rcpcrcussôes na área educacional. O aumento da população, o crescimento dos centros urbanos, o desenvolvimento da indústria e dos serviços, tudo isto conduziu a um aumento generalizado pela demanda por educação. O quadro abaixo resume as mudanças entre 1933 e 1945 neste campo:

Evolução Quantitativa do Sistema Educacional Brasileiro - 1933-1945
 

1933

1945

 

Cursos

Alunos

Cursos

Alunos

Nível primário

29.553

2.221.904

35.561

3.496.664

Secundário

417

66.420

1.282

256.664

Outros de nível médio

1.534

101.221

3.801

209.145

Superior

248

24.166

325

26.757

Outros

678

52.391

1.936

192.384

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Anuário estatístico de 1949, p. 480.

É fácil observar que a expansão educacional se deu com maior intensidade ao nível médio, e mais fortemente ainda nos cursos secundários propriamente ditos, os únicos que davam, pelo menos em prindpio, acesso ao ensino superior, cujo tamanho, todavia, não se alterou durante todo o período. A educação primária quase que só acompanhou a expansão demográfica do país.

Seria evidentemente ilusório atribuir a este ou àquele governo essa demanda crescente por educação. À medida que o país crcia e se modernizava, mais pessoas buscavam se educar, e ao governo caberia somente auxiliar, canalizar ou conter essa demanda. As tentativas de adaptar o sistema educacional brasileiro aos novos tempos ocorreram nos diversos estados, de forma descentralizada, já na década de 1920, e a Revolução de 1930 encontraria em andamento as inovações introduzidas em Minas Gerais, São Paulo, Distrito Federal, Rio Grande do Sul etc. Ela encontraria ainda, em pleno processo, a expansão do sistema privado de educação secundária, conduzido, em grande parte, pela Igrela Católica.

Em outros países e sociedades, a expansão dos sistemas educacionais esteve frequentemente relacionada com o surgimento de fortes movimentos políticos e sociais de base regional, não raro com conteúdo religioso. De fato, a educação tem sido, em muitos países, um instrumento privilegiado de afirmação de identidade étnica, cultural e linguística de setores dinâmicos que se sentem, eventualmente, marginalizados ou diante da necessidade de competir pelo seu lugar nos processos mais amplos de formação dos estados nacionais. Segundo o sOciólogo Randall Collins, "tanto a historia da religião quanto a história da educação mostram o padrão: movimentos religiosos e escolas proliferaram quando os governos eram relativamente fracos e descentralizados; e eram mantidos sob estritos limites quando os governos centralizados eram fortes. Isto é assim apesar do fato de que os governos centralizados frequentemente adotam uma religião de Estado, ou, nos tempos modernos, um sistema compulsório de escolas públicas, como a base da administração burocrática e do controle da população. Mas estes governos geralmente favoreceram uma única religião e reprimiram seus rivais; suas políticas educacionais também tenderam a manter o sistema educacional pequeno. Em contraste, os governos fracos, incapazes de intervir e controlar o mercado cultural, são os que permitiram ao mercado cultural expandir-se por si mesmo." Os efeitos desta descentralização são ainda mais fortes, diz Collins, "quando sociedades politicamente descentralizadas mas economicamente mobilizadas são multiétnicas."(11)

É possível que, no Brasil, a proliferação de experimentos estaduais de renovação educacional tenha refletido esta tendência universal. Outros exemplos são a atuação educativa da Igreja Católica, dos diversos grupos protestantes, das colônias de imigrantes. As próprias universidades de São Paulo e do Distrito Federal podem ser entendidas como parte de um esforço de afirmação regional. A estas manifestações descentralizadas se justapõem freqüentemente, instituições educacionais criadas pelos governos, com o objetivo de formar as elites necessárias para a gestão do Estado. No passado, estas instituições são melhor tipificadas pelas academias militares, que formavam também engenheiros militares e, eventualmente, civis. O Brasil seguiu este modelo desde a vinda de D. João VI, com a criação da Escola Militar, depois Escola Central, mais tarde transformada na escola Politécnica. A ação governamental se estendeu, além disto, ao controle das poucas escolas superiores criadas no país ao longo do século XIX - de direito e medicina - e, mais tarde, à criação de um estabelecimento modelar de ensino formativo geral, o Colégio Pedro lI.

A ampliação do controle governamental a todo o conjunto do sistema educacional foi levado a seu extremo na França, após a Revolução de 1789, que, em nome do princípio da Égalité, havia destruído todas as formas de organização autônoma e diferenciada dos diversos segmentos da sociedade. O modelo educacional francês, que ficou conhecido como o "modelo napoleônico", buscava um ensino público cada vez mais amplo e padronizado, o que exigia a criação de uma grande máquina administrativa governamental para sua supervisão, controle e implementação. Não é de admirar que este ensino público, centralizado e leigo encontrasse grande resistência por parte da Igreja Católica, que se via excluída de suas tarefas educativas tradicionais, e que tomava para si a bandeira da liberdade de ensino. Na França, a centralização e a nacionalização do ensino traziam consigo o ímpeto e os ideais igualitários da revolução, que mobilizavam amplos setores da sociedade contra o que restava, real ou imaginariamente, do ancien régime.

Esta perspectiva nos ajuda a entender melhor os paradoxos e dificuldades da tentativa, feita pelo ministério Capanema, de reproduzir no Brasil a estrutura centralizada de tipo napoleônico. Em vez de uma oposição entre uma classe média ascendente e uma Igreja tradicional e aristocrática, é a própria Igreja que participa do esforço de centralização, abdicando, logo de início, de seus pruridos descentralizadores e anti-estatistas. O sentido das reformas educacionais era menos o da ampliação do sistema de ensino do que o de seu controle e regulamentação. Neste processo, as tendências mais vitais que poderiam dar conteúdo e força a um movimento educativo mais dinâmico fenecem. A grande frente ampla formada, ainda na década de 1920, pela Associação Brasileira de Educação, não resiste à polarização entre católicos e "escolanovistas", e perde seu ímpeto. Dos principais lideres do "movimento da escola nova", alguns são marginalizados, outros cooperam na montagem da máquina ministerial, mas cada vez mais afastados de seus ideais mais ambiciosos. A centralização politica, que se implanta de fato a partir de 1935, elimina quase que completamente as tentativas de criação de sistemas estaduais de educação mais independentes, com exceção talvez do de São Paulo. A própria Igreja, comprometida com a política educacional do regime, se limita a defender os interesses mais imediatos das escolas particulares, e não se decide, a não ser no final da década de 1930, a criar sua própria universidade.

Todo este esvaziamento das iniciativas isoladas, regionais e setoriais deveria ser compensado por um trabalho de mobilização cívica e patriótica realizado por iniciativa do próprio governo, através de diversos instrumentos de mobilização e propaganda. Aí, no entanto, existiam outros obstáculos. O regime Vargas não comportava, na realidade, dose tão grande de mobilização. As estreitas bases sociais que lhe deram origem, a necessidade de manter constante negociação com fortes setores da sociedade e do Estado que nunca se submeteram completamente à sua tutela - as Forças Armadas, os grupos empresariais, a Igreja, as lideranças políticas dos estados - e, finalmente, a própria evolução da conjuntura internacional faziam com que a mobilização ficasse contida nas manifestações muitas vezes eloqüentes, mas de efeito quase meramente ritualístico, dos desfiles da Juventude Brasileira, dos corais orfeônicos espalhados pelo país, dos hinos memorizados pelas crianças sem o entendimento de seus conteúdos, dos materiais de propaganda difundidos pelo DIP.

Uma outra fonte de legitimação do sistema centralizado de ensino teriam sido seus efeitos na ampliação efetiva da escolaridade no país, sua modernização e o aumento da eficiência da atuação governamental neste setor. De fato, uma das grandes justificativas do Estado Novo foi a eliminação do poder estagnante e imobilista das velhas oligarquias regionais, e a criação de um Estado centralizado moderno, eficiente, que pudesse atingir, com sua política social e econômica, todos os setores da população. Todavia, é difícil dizer que isto tenha ocorrido. O Ministério da Educação não chegou a agir sobre o ensino primário, que continuou na mão dos estados. O ensino secundário cresceu e foi objeto de um grande esforço de redefinição; os cursos de tipo profissional não adquiriram maior significação, com exceção daqueles ministrados diretamente pela indústria nascente; o ensino superior, pelo menos em termos quantitativos, estagnou. O que aumentou de maneira significativa, e afetou de forma mais direta o ensino secundário e superior, foram as normas governamentais, os sistemas de controle e inspeção, a proliferação de atos legiferantes. Elas tiveram o efeito, que se esperava fosse de curto prazo, de gerar toda a sorte de solicitações, pedidos de exceção, de regulamentos e decisões casuísticas que o ministério tinha dificuldades em atender com presteza, e que se traduziam em lentidão burocrática e formalismo administrativo.

Ao final do Estado Novo, o projeto educacional do Ministério da Educação havia exaurido seu conteúdo ético e mobilizador, deixando em seu lugar a parafernália de leis, instituições e rotinas que haviam sido montadas nos anos anteriores. Ficou, por assim dizer, sem alma.

O debate sobre os destinos da educação brasileira que se reinicia após o Estado Novo retoma o confronto entre os defensores da escola pública e os da escola "livre", isto é, confessional. Na realidade, o que se discute é se o modelo napoleônico deveria ser levado às suas últimas conseqüências, com a implantação de um sistema amplo e nacional de educação leiga, universal e gratuita, ou se o governo deveria, em nome dos princípios de liberdade de pensamento e dos direitos da família, desmantelar a máquina administrativa ministerial e subsidiar a educação privada, em sua maioria de orientação católica. O debate, como sabemos, se arrastaria por muitos anos e terminaria com a lei de Diretrizes e Bases de 1961, que, segundo a interpretação corrente, tende muito mais para a segunda do que para a primeira alternativa, sem trazer realmente solução para os problemas mais profundos do sistema educacional brasileiro. A presença de Capanema no Congresso como o mais categorizado porta-voz do PSD em questões educacionais sem dúvida contribuiu para que os sucessivos governos de origem getulista ou pessedista não conseguissem ou preferissem não tocar no sistema educacional que haviam herdado, e que nem a lei de 1961 chegou, efetivamente, a substituir.

É possível que uma das principais heranças dos tempos do Estado Novo, na área educacional tenha sido um conjunto de noções e pressuposições que, desenvolvidas naquele contexto, adquiriram o caráter de verdades evidentes para quase todos, independentemente de seu lugar nos debates políticos e ideológicos que a questão educacional tem gerado. Elas incluem a noção de que o sistema educacional do país tem de ser unificado seguindo um mesmo modelo de Norte a Sul; de que o ensino em línguas maternas que não o português é um mal a ser evitado; de que cabe ao governo regular, controlar e fiscalizar a educação em todos os seus níveis; de que todas as profissões devem ser reguladas por lei, com monopólios ocupacionais estabelecidos para cada uma delas; de que para cada profissão deve haver um tipo de escola profissional, e vice-versa; de que ao Estado cabe não só o financiamento da educação pública, como também o subsídio à educação privada; e de que a cura dos problemas de ineficiência, má qualidade de ensino, desperdício de recursos etc., reside sempre e necessariamente em melhores leis, melhor planejamento, mais fiscalização, mais controle.

A polarização do debate entre ensino público, estatizado e leigo versus ensino privado, confessional e elitista tornou extremamente difícil examinar com outros olhos as eventuais dificuldades e virtudes de cada uma das alternativas, e terminou fazendo com que a questão educacional, que até o final da década de 1950 se colocava no centro das discussões políticas do país, terminasse se transformando em pouco mais do que um conflito de interesses entre tecnocratas, administradores, donos de escola, professores e estudantes, cada qual agindo dentro de sua ótica e interesses particulares, e sem a preocupação mais ampla quanto ao papel que a educação deveria desempenhar em uma sociedade mais justa, democrática e eqüitativa.

É uma grandeza que parece haver-se perdido, e que, contudo, certamente esteve presente nos tempos de Capanema. Em um nível muito amplo, e independentemente de suas eventuais ações e preferências, todas elas ligadas ao contexto da época, o ministério Capanema tinha uma visão do futuro, um mundo que queria construir, e que, de alguma forma - freqüentemente imperfeita, freqüentemente contraditória coincidia com outras visões que outras pessoas e grupos, dentro e fora do ministério, tratavam de realizar. Talvez seja esta grandeza de intenções o que explique uma certa mística que ainda hoje envolve os tempos de Capanema, e que hoje, mais do que nunca, nos faz falta.


Notas

1. Carta de Capanema a Francisco Negrão de Lima, 28 de janeiro de 1942. GC/Lima, F., doc. 54, série b.

2. "Declaração" - Partido Comunista Brasileiro. Rio de Janeiro, fevereiro de 1942. Arquivo Gustavo Capanema, série i, em fase de organização.

3. "Manifesto ao Excelentíssimo Senhor ministro da Educação e Saúde", setembro de 1942. Arquivo Gustavo Capanema, série i, em fase de organização.

4. Carta de Eurico Dutra a Capanema, 16 de fevereiro de 1939. Arquivo Gustavo Capanema, série i, em fase de organização.

5. Discurso de Domingos Marmo no VII Congresso NacionaI dos Estudantes, transcrito em oficio sem assinatura enviado em 28 de julho ao diretor-geral do Departamento de Imprensa e Propaganda da Agência Nacional. GC 38.04.18. puta IV, doc. 39. série g.

6. Carta da União Nacional dos Estudantes a Gustavo Capanema, de 20 de julho de 1944, assinada por Luís de Carvalho Bicalho, presidente da UNE em exercício; Pedro Luís da Costa, presidente da UNE do Rio Grande do Sul; Rui de Melo, presidente da UEE de Minas Gerais, e Fernando de Sant'Ana, presidente da UEE da Bahia.

7. Carta de Capanema a Vargas, 21 de julho de 1944. GC 38.04.18, pasta Vi-3 I, série g.

8. Estes materiais foram organizados para publicação pelo CPDOC como Estado Novo, um auto-retrato, (organização e apresentação de Simon Schwartzman). U niversidade de Brasília, 1983.

9. Gustavo Capanema. "O presidente Getúlio Vargas e sua obra". GC 45.00.00, sêrie pi. Reproduzido no livro Estado Novo, um auto-retrato (organização e apresentação de Simon Schwartzman). Brasilia, Editora da Universidade de Brasilia, 1983.

10. GC/Capanema, G. 45.01.10, série pi.

11. R Collins. The credential society. New York. Academic Press, 1979. pp. 61-2. (A tradução é nossa). Veja tambêm R. Collins. "Some comparative principies of educational stratification", Harvard Educational Review, vol. 47, pp. 1-27,1977. Sobre as religiões protestantes no Brasil no inicio do sêculo veja, entre outros, James Kennedy, Cinquenta anos de metodismo no Brasil. São Paulo. Imprensa Metodista, 1928, citado por Fernando de Azevedo. A Cultura Brasileira. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 4a edição, 1963.