CIÊNCIA E HISTORIA DA CIÊNCIA

Simon Schwartzman

Publicado por FINEP, Grupo de Estudos sobre o Desenvolvimento da Ciência, Documento de Trabalho n. 2, 1976 (mimeografado).


Sumário:


1. INTRODUÇÃO

2. CIÊNCIA NA PERIFERIA

3. CIÊNCIA E SUBDESENVOLVIMENTO NO BRASIL

4. O PLANEJAMENTO DA CIÊNCIA

5. CIÊNCIA E TECNOLOGIA

6. A NATUREZA DA ATIVIDADE CIENTIFICA: UM MODELO DE MERCADO?

7. A HISTÓRIA SOCIAL DA CIÊNCIA NO BRASIL: UMA ESTRATÉGIA DE PESQUISA
a. Ciência e "dependência"
b. Metodologias quantitativas e qualitativas
8. UMA ESTRATÉGIA DE PESQUISA (continuação)
a. A Unidade de análise: comunidades científicas
b. O "sucesso" da atividade científica
c. A base institucional: Institutos e Universidades
d. Little Science, Big Science
e. Ciência e policy
9. CONCLUSÃO: OS DILEMAS DA CIÊNCIA BRASILEIRA

Notas


1. INTRODUÇÃO:

Qual a necessidade de estudos históricos sobre a ciência? Stephen F. Mason, autor de uma monumental obra, A History of the Sciences, não se dá ao trabalho de responder diretamente a esta pergunta. Seu estudo parte da ciência antiga na Babilônia e Egito e chega até suas manifestações mais modernas da atividade científica nos Estados Unidos e União Soviética. Na pratica, ele descreve o contexto social, político e cultural em que a atividade científica se desenvolveu, tratando de mostrar as interrelações entre a ciência e seu contexto mais amplo. Uma de suas conclusões mais gerais é que:
"We cannot regard science as an entirely self-moving historical phenomenon, nor as a completely autonomous agent of historical change, even though it has a tradition and a momentum of its own. The development of science has only been one of a number of historical movements that have formed an interconnected complex, in which science until recently has been a minor force. The science of a given age has belonged, not only to its own tradition with its own methods, values and accumulated knowledge, but also to its own historical period, in which other movements have made impact upon it"(1)
Em termos amplos, então, estudos históricos sobre a ciência permitem entender melhor uma época, saber em que medida um certo tipo de atividade denominada "científica" teve condições de florescer, e em que medida ele exerceu alguma influência sobre outros aspectos daquela sociedade.

Uma concepção mais restrita da história da ciência é aquela que deixa de lado as referências ao contexto histórico, ao ambiente social, aos condicionamentos econômicos, e se concentra na análise da evolução do conhecimento e das idéias. Robert K. Merton, ao discutir as limitações da sociologia contemporânea em comparação com as ciências físicas, mostra a importância de uma visão histórica e cumulativa da ciência:
"Perhaps sociology is not yet ready for its Einstein because it has not found its Kepler. Even the nonpareil Newton has, in his day, acknowledged the indispensable contribution of cumulative research, saying: 'If I have seen further, it is by standing on the shoulders of giants'" (2)
O conhecimento da história da ciência permitiria, então, ter uma idéia do processo de desenvolvimento do conhecimento humano, de suas limitações e possibilidades, e ultrapassar assim as concepções utilitárias mais simplistas que tratam de vincular a ciência de uma dada época às demandas e pressões sociais que sobre ela se exercem mais diretamente:
"...social science, like all civilization, is continually in the process of development and there is no providential dispensation providing that, at any given moment, science must be adequate to the entire array of problems confronting men at that moment. Historical perspective right enable scientist and layman alike to see these facts of repeated experience in their fitting proportion. Otherwise it is a though the status and promise of medicine in the seventeenth century had been forever judged by its ability to produce, then and there, a preventive or cure for cardiac diseases" (3).
2. CIÊNCIA NA PERIFERIA

Tanto os estudos mais preocupados com o contexto social, como os de Mason e Bernal (4), quanto os mais especificamente orientados para a história do conhecimento, como os de Khun e Heilbron sobre a história da Física Quântica(5), têm em comum o fato de se referirem aos centros que, em diversas épocas no tempo, estiveram à frente da atividade científica em sua época., Caracteristicamente, a ciência tende a ser entendida como uma sucessão de eventos - descobertas, novos métodos e teorias, revoluções conceituais - que se dão nos centros científicos mais dinâmicos, e cujas origens e impactos são analisados.

Entretanto, estes feitos espetaculares não são senão a ponta do iceberg que é a atividade científica quotidiana, Thomas Khun afirma que, na realidade, a atividade quotidiana de "puzzle-solving", ou seja, da resolução de problemas limitados, específicos e não espetaculares de observação, experimentação e refinamento conceitual e teórico - é que constitui o corpo principal do trabalho científico, que se desenvolve a partir dos marcos mais amplos que são os paradigmas científicos em cada área de conhecimento(6).

Se isto é assim, a história dos feitos científicos padeceria das demais deficiências da historiografia mais tradicional, preocupa da com reis, papas e batalhas. Pessoas e eventos espetaculares não permitem conhecer a realidade quotidiana, sem a qual a própria existência destas pessoas e eventos não é inteligível. É isto que faz com que a historiografia moderna tenda a ser mais social, econômica e institucional do que, para utilizar a expressão francesa, "événementiel". É isto que permite, também, que se inicie o estudo histórico das ciências em regiões e países periféricos aos centros científicos mais dinâmicos; por que se trata de entender a ciência não naquilo que ela tem de mais espetacular e aparente, e sim no que ela tem de mais permanente e continuo . É neste sentido que a história da ciência na periferia se faz, necessariamente, uma história social. Porque há provavelmente pouco a conhecer e narrar em relação à história de idéias originais e próprias ou de impactos realmente significativos da ciência sobre a sociedade e a economia, em contextos em que a atividade científica sempre teve uma importância e uma prioridade relativamente marginal; mas há certamente muito a contar e a entender a respeito dos esforços de estabelecer uma ciência "normal", um sistema universitário moderno, uma capacidade de participar de maneira efetiva, ainda que não central, das fronteiras contemporâneas de conhecimento. É a história deste esforço, com seus sucessos e fracassos, que necessita ser contada e entendida.

3. CIÊNCIA E SUBDESENVOLVIMENTO NO BRASIL

Fernando de Azevedo, em sua introdução a As Ciências no Brasil(7) apresenta um belo trabalho em que busca identificar as razões pelas quais a revolução científica que assolava a Europa desde a Renascença, e que assume grande intensidade a partir do século XIX, não encontra senão pálidos reflexos no Brasil. Trata-se de uma tentativa de proporcionar uma teoria social do desenvolvimento da ciência, ou sua falta, em nosso meio, e que por isto merece ser vista em certo detalhe, com a perspectiva que 20 anos de distancia nos proporcionam.

Basicamente, o pouco ou nenhum desenvolvimento científico no Brasil e, mais geralmente, na América Latina, no século passado, teria a ver com a própria marginalização da Península Ibérica em relação ao resto da Europa, que tem suas origens na resistência que a contra-reforma, estabelecida firmemente em Portugal e Espanha, opôs à mentalidade experimental e à liberdade de espírito e iniciativa trazidos pelo Renascimento e corporificados na quebra da ordem medieval e escolástica produzida pela Reforma. Esta é uma tese clássica de Antônio Sérgio, entre outros, que afirmava que "enquanto a França, a Suíça, a Holanda, a Alemanha e a Inglaterra fazem ampliar no século XVII as conquistas do Renascimento, com grande esplendor de sol merídio, nós regressamos à Idade Média"; "um século de luz para o restante da Europa (o maior século de luz para a restante Europa) é um século de treva para Portugal"(8)

É este espírito conservador, avesso e resistente à indagação e à experimentação, que os ibéricos tinham trazido a América. Suas universidades, quando as formam aqui (como no Peru, Equador, São Domingos, México) são instituições medievais, que nada fazem senão perpetuar o conservadorismo intelectual importado da Europa.. O próprio D. João VI, quando cria no Brasil os primeiros centros de estudos médicos e de engenharia militar na Bahia e Rio, nada mais faz do que tratar de prover as necessidades técnico-profissionais do exército e marinha portugueses em reorganização, sem chegar a vislumbrar a idéia de criação de um centro de estudos e pesquisas dentro das características modernas já tão difundidas na Europa, é até mesmo introduzidas antes em Portugal pela reforma pombalina .

Este quadro, se descreve bastante bem a situação dos países ibéricos e suas colônias em contraposição à Europa mais moderna, deixa no entanto a dúvida sobre como esta realidade possa um dia vir a ser superada. Referindo-se ao Brasil no início do século XX, Fernando de Azevedo dizia que "uma espécie de 'daimon' , ou 'genius' , uma certa disposição primitiva, um fator cultural endógeno parecia constituir ainda o núcleo da personalidade e da cultura nacional"(9), impedindo que outra mentalidade se implantasse. Passando de uma explicação culturalista a outra mais sociológica, ele se refere ao "passado patriarcal , agrário e pastoril", que serviria de base para este tipo de cultura tradicional. Sua teoria de mudança, da mesma forma, é em parte cultural, em parte sociológica. "É certo", diz ele no início de seu trabalho, "que o motor do progresso não é a capacidade dinâmica de cada cultura, mas o fato histórico dos contatos entre culturas diferentes ou, por outras palavras, para nos servimos das de Taylor, que 'a civilização é uma flor cujo transporte se faz com mais facilidade do que o seu desenvolvimento". Mais adiante, no entanto, ele fala das "correntes de imigração, os dois surtos industriais, de 1914-20 e de 1939-45, em conseqüência das duas guerras mundiais, e a extraordinária expansão e diferenciação da vida urbana, que resultaram dos progressos da indústria e do deslocamento das populações"(10). Os contatos culturais trazidos pelos fluxos migratórios se conjugam com a modernização do país para permitir, enfim, a implantação da mentalidade científica dos principais centros do país". "Foi, por certo, também a expansão da indústria e do comércio, em pouco mais de 30 anos, que, se não determinou, favoreceu o salto dos textos ao mundo real, abrindo o caminho à revolução intelectual, ao desenvolvimento das ciências entre nós e à ruptura de unidade de concepção da vida e da cultura" (11).

A partir daí o desenvolvimento é contínuo, e na realidade a noção de um desenvolvimento contínuo e crescente no sentido do moderno, industrializada, científico, racional, etc., é ainda um pressuposto bastante compartido no clima intelectual de pós-guerra em que o trabalho de Fernando de Azevedo aparece. E este contínuo é amplo é abrangente:
"E, como o desenvolvimento da indústria, as descobertas da física e da química e das ciências experimentais, em geral, acarretam um aperfeiçoamento contínuo das ciências morais e políticas, não será demais esperar que aumente também, no campo das ciências humanas, o fundo formado pela observação e pela experiência com a crescente aplicação dos métodos modernos"(12)
Não é que o futuro seja límpido e sem problemas. O homem brasileiro ainda tem o germe do 'daimon' tradicional, que fica sempre à espreita para frustrar as tentativas de implantação de uma mentalidade moderna e científica. "Os progressos que temos feito e sobre os quais é preciso refletir", diz Fernando de Azevedo, "não devem levar-nos a ilusões sobre as possibilidades de pausas, mais ou menos longas, ou de regressões, embora transitórias, neste ou naquele setor do vasto domínio dos estudos e pesquisas científicas". "Todos conhecemos, em suas raízes e suas múltiplas ramificações, a velha concepção da cultura e a mentalidade que entre nós se formou (...) e de que se encontram ainda fortes resíduos e sobrevivências, apesar das transformações profundas que se operaram na sociedade"(13). A mentalidade diletante, a falta de espírito de equipe e de cooperação, o tradicionalismo do ensino secundário, a proliferação de Escolas de Filosofia sem os necessários cuidados pela qualidade do ensino, são algumas das principais ameaças que pairariam sobre o progresso ininterrupto do espírito científico nacional, que no entanto, de uma forma ou outra, as iria vencendo e superando.

Na perspectiva exemplificada por Fernando de Azevedo, pois, o desenvolvimento da ciência é um correlato natural, ainda que muitas vezes de implantação lenta é difícil, de processos mais amplos de modernização e industrialização. Esta maneira de pensar foi bastante típica de um período em que o desenvolvimento econômico e a modernização social (qualquer que seja o sentido dado a este termo) parecia um processo natural e inexorável a envolver cada vez mais os países que, até então, haviam permanecido às margens do progresso. É o período do otimismo da reconstrução do após-guerra, da criação de países novos em seguida ao desmembramento dos impérios coloniais, da implantação e desenvolvimento das Nações Unidas como órgão de difusão internacional do conhecimento e da ciência, através de instituições como a UNESCO.

4. O PLANEJAMENTO DA CIÊNCIA

O tempo mostrou, no entanto, que o desenvolvimento econômico e social não continuaria a se dar de forma espontânea nos países atrasados, e o fantasma da estagnação e da involução começou a se fazer presente. Por formação ou ofício, pessoas que se preocupam com recursos escassos e metas sociais e econômicas a longo prazo começaram a chamar a atenção para a necessidade de conduzir a atividade científica de forma mais sistemática. Para estes, ciência é algo sério demais para ser deixado aos cientistas. Cientistas são poetas, sonhadores, e não buscam senão a realização de suas vocações pessoais, sem pensar em custos e necessidades sociais. Eles devem ter liberdade de perseguirem seus próprios interesses, porque são sem dúvida pessoas inteligentes e competentes em suas áreas de conhecimento; mas esta liberdade deve ser balizada por um planejamento global que evite gastos excessivos em áreas pouco prioritárias, e que crie condições de trabalho e pesquisa em áreas carentes mas reconhecidamente importantes.

Neste contexto, houve quem visse no desenvolvimento da ciência nacional não um simples correlato, mas a verdadeira base sobre a qual o desenvolvimento econômico e social devesse ser construído. Em 1963 Stevan Dedijer escreve um curioso artigo publicado em Minerva, "na esperança de que ele atraia a atenção de uma audiência seleta de presidentes e primeiros ministros de países aonde a ciência ainda não existe em escala significante". Para ele, a ciência é a chave do futuro:
"Os primeiro passos efetivos no caminho do desenvolvimento nacional são impensáveis hoje em dia sem a utilização, desde o início, de resultados da pesquisa". "Praticamente cada decisão em qualquer campo de interesse nacional, seja na melhora da balança comercial ou no desenvolvimento comunitário, requer não somente know-how, mas conhecimento científico produzido por pesquisa realizada no meio ambiente local. Cada aspecto de uma política nacional de desenvolvimento depende de pesquisas realizadas dentro do país... " "A política científica deve ser uma parte tão importante de uma política de desenvolvimento nacional quanto a política econômica e educacional, e talvez mais importante que políticas na área externa, militar, etc. Negligenciar o desenvolvimento planejado e vigoroso da pesquisa nacional nas ciências físicas, biológicas e sociais, coloca em perigo todo o processo de desenvolvimento" (14).
Partindo desta premissa, ele se propõe a especificar como os sistemas científicos deveriam ser construídos em países menos desenvolvidos. A criação de um Ministério da Ciência, de um organismo central de pesquisa, alta prioridade para o ensino e pesquisa nas universidades, liberdade para importação de equipamentos, a criação de uma comunidade científica com suas próprias instituições de formação, pesquisa e comunicação, um governo sensível para as necessidades e produtos da ciência, instituições econômicas, educacionais, militares, médicas, agrícolas etc, capazes de reconhecer a importância e o valor da ciência . . .

Mais ainda, para evitar aquelas características e hábitos tradicionais assinalados antes por Fernando de Azevedo, um sistema abrangente e detalhado de planejamento da atividade científica deveria ser implantado. "Nos países subdesenvolvidos", diz ele, "militares poderosos mas mal informados, interesses econômicos ou políticos, cientistas nativos com qualidades científicas reais ou fictícias, mas sem experiência na administração da ciência, são capazes de desperdiçar orçamentos dedicados à ciência por anos a fio em projetos completamente irrealistas, simplesmente porque as decisões foram feitas ad hoc, sem uma discussão ampla . . .". Para reduzir a probabilidade destes fatos, cada decisão sobre a ciência deveria fazer parte de um plano nacional para o desenvolvimento e uso de resultados de pesquisa. A ciência deve ser vista como parte de uma política nacional de planejamento"(15). A importância da ciência é tal, conclui, que "não existe o que seja gastar demais em pesquisa é desenvolvimento".

A exigência é tanta, que as possibilidades de fracasso rondam por toda a parte. Na realidade, segundo este autor, os países subdesenvolvidos têm pouca consciência de suas necessidades na área científica, são descuidados em relação ao cultivo do potencial científico necessário a produção de conhecimentos que necessitam, não vêm a relevância da ciência para seus objetivos. Nesta situação, o empreendimento já nasce rodeado de perigos. "Lidando com ciência, uma série de emboscadas e armadilhas esperam pelas elites políticas dos países subdesenvolvidos. Sua própria falta de conhecimento, de experiência, o meio cultural subdesenvolvido em que vivem", entre outros fatores, obscurecem sua visão(16). É por isto mesmo que qualidades quase sobre-humanas são necessárias para que uma política de desenvolvimento científico seja implantada: persistência, obstinação, força de caráter, devoção a ciência, são qualidades indispensáveis para que estes obstáculos possam, eventual mente, serem vencidos.

As idéias de Dedijer partilham, na realidade, de uma visão extremamente simplista dos fenômenos sociais, segundo a qual a simples identificação de um problema, somada à vontade de resolvê-lo, é suficiente para sua solução. Falta educação? Criemos mais escolas! Os salários estão baixos? Aumentemos os salários! Os lucros são poucos? Aumentemos os preços! A ciência não se desenvolve? Desenvolvamos a ciência! Esta visão das coisas, estritamente reativa, não permite pensar em mais de uma variável ao mesmo tempo, e deixa de levar em consideração as possíveis e prováveis dificuldades e problemas que as soluções propostas podem trazer. Existem problemas hoje suficientemente identificados com a noção de planejamento global e abrangente como a forma ideal de desenvolvimento de atividades humanas complexas em contextos de carência(17). Mais especificamente, existe uma séria controvérsia a respeito da possibilidade de submeter a atividade científica, que seria quase que por definição uma atividade aberta e orientada para a busca de inovações, a um sistema realmente efetivo de planejamento global. Antes de aceitarmos, como auto-evidente, a receita salvadora de Dedijer, convêm examinar mais de perto a realidade da atividade científica em sua complexidade, em termos gerais e nas condições específicas de cada contexto. O exame aprofundado e contínuo desta realidade é o objeto das pesquisas sobre a história social e institucional da ciência. Aqui, vale a pena tão somente as sinalar alguns temas conceituais que devem ser vistos e examinados neste tipo de pesquisa.

5. CIÊNCIA E TECNOLOGIA

Ainda que as sociedades industriais contemporâneas mostrem a ocorrência simultânea e a grande interrelação entre a atividade científica e a atividade tecnológica, esta relação não é simples e automática. Stephen Mason observa, em sua introdução a A History of the Sciences, que existem duas tradições independentes que conduzem à ciência moderna. Uma tradição técnica, baseada em uma pratica de utilização de recursos naturais em benefício humano; e uma tradição mais especulativa, ou espiritual, orientada para o conhecimento como um fim em si. Existem várias aproximações entre estas duas tradições, mas exemplos abundam de tecnologias desenvolvidas sem uma ciência adequada que as apóie, ou atividades científicas que adquirem proeminência em contextos de escasso desenvolvimento tecnológico. Os exemplos do Japão, que adquiriu maturidade tecnológica muito antes de adquirir uma capacidade científica própria; e o da Alemanha, que se transformou no centro mundial da ciência no século XIX antes de se transformar em uma potência industrial e tecnológica, dão uma idéia da complexidade do problema.(18)

Estas relações se tornam ainda mais complexas quando nos preocupamos com sociedades que, sem ter uma tradição científica ou tecnológica próprias, entram em contato com o mundo industrializado em uma economia de mercado. De uma maneira geral, é possível dizer que, enquanto os países desenvolvidos crescem economicamente pela criação de tecnologia, que aumenta a produtividade do trabalho, os países subdesenvolvidos ou periféricos crescem por importação e adaptação de tecnologia, obtida através de sua vinculação ao sistema econômico e produtivo internacional. Assim, grande parte da história das relações entre tecnologia e desenvolvimento econômico e social no Brasil é a história da importação de algumas tecnologias, especialmente aquelas vinculadas aos pontos mais diretos de contato entre o Brasil e os mercados internacionais (tecnologias de plantio agrícola, de mineração, de transporte ferroviário, etc.).

Entretanto, existem presumivelmente ocasiões e situações em que o processo de transferência de tecnologia não se deu de forma direta e automática, mas foi fruto de um esforço consciente e orientado de certos grupos sociais ou do Estado. Talvez o exemplo mais característico disto tenha sido a introdução de conhecimentos e técnicas relativas ao controle sanitário e epidemiológico, no Rio de Janeiro no início do Século XX(19). Ainda que estas técnicas já estivessem sendo desenvolvidas no exterior, sua introdução no Brasil, indispensável em uma época de importação de mão-de-obra para o ciclo do café, exigiu a criação de toda uma escola de pesquisa e estudos na área da medicina epidemiológica, imunologia, etc.

De uma maneira geral, estes esforços no sentido de absorver e adaptar todo um conjunto de conhecimentos e técnicas fazem com que o país adquira uma capacidade de ação e decisão, naquela área, que lhe dá alguns graus de liberdade acima do que os mecanismos mais ou menos automáticos de transferência de tecnologia via mercado fariam supor. Existem certamente algumas condições para que isto se dê. Primeiro, deve ser um tipo de tecnologia suficientemente complexa ou de adaptação " sui generis", para resistir a um simples transplante ou importação. Segundo, deve haver um grupo de pessoas suficientemente bem formadas para fazerem as opções, pesquisas complementares, adaptações, invenções, experimentos, etc., que se façam necessárias. Terceiro, deve ser, por alguma razão, difícil importar todo um "pacote tecnológico" do exterior. Em síntese, parece ser necessário que existam condições de uso da tecnologia, recursos humanos adequados, e uma vontade política explícita de gerar e manter esta linha de atividades e conhecimentos dentro do pais.

É aqui que se dá o relacionamento as vezes harmonioso, as vezes não, entre a ciência, por um lado, e a tecnologia por outro. Como atividade de conhecimento "puro", preocupada com a verdade das coisas e não com sua utilização prática eventual, a ciência tem muitas vezes dificuldades em se firmar em um contexto social dominado predominantemente pela importação de tecnologia. É bem verdade que, historicamente, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia tendem a ser vinculados um ao outro e à revolução industrial. Os países desenvolvidos deram condições para que a ciência se desenvolvesse com toda a aparência de conhecimento puro, teórico e desvinculado de pressões utilitárias práticas; mas, ao mesmo tempo, criava-se assim um pool de conhecimentos e recursos humanos que permitiam explorar ao máximo os conhecimentos científicos para atividades de tecnologia industrial e militar. Esta diferenciação entre conhecimento puro e conhecimento aplicado tomava muitas vezes caráter de divisão institucional - institutos de pesquisa universitários versus centros de pesquisa tecnológica - mas a abundância de recursos das economias mais adiantadas e a experiência da inter-fertilização das atividades científicas é tecnológicas faziam com que as duas atividades fossem percebidas como se desenvolvendo separada mais harmoniosamente(20).

Em países subdesenvolvidos, no entanto, a atividade científica tende a se guiar pelos padrões internacionais, que na realidade proporciona o treinamento e a formação do pessoal de mais alto nível destes países. A conseqüência é que o trabalho científico realizado nestas condições tenderá, quanto melhor for, a contribuir mais para o corpo central de conhecimentos de sua área, que tem maiores possibilidades de utilização prática nos países mais desenvolvidos, que são os que crescem por invenção de novas tecnologias. Daí o fato de que a ciência que se desenvolve na periferia seja muitas vezes percebida como "alienada", desligada das "necessidades práticas" nacionais. Está "alienação" faz com que muitas vezes, instituições científicas tenham dificuldades para justificar e obter da sociedade os recursos e a liberdade de ação necessárias para a busca "livre e desinteressada" da verdade e do conhecimento.

Não se trata, evidentemente, de uma questão de fácil equacionamento. É claro, por exemplo, que o conceito de "necessidades práticas", ou "nacionais", pode muitas vezes ser definido de forma simplista e imediatista, e não levar em conta a necessidade de um país em desenvolvimento procurar dotar-se de uma comunidade científica do mais alto nível. Não existe, evidentemente, ciência de ontem nem de amanha, mas somente a ciência de hoje, que é a que se desenvolve nos principais centros de pesquisa científica internacional. Os temas desta ciência - a biologia molecular, as pesquisas sobre o câncer, as analises de eco-sistemas, etc. - são aqueles que podem atrair as melhores mentes para o que há hoje de mais desafiador e avançado nas diversas áreas de conhecimento. Desenvolver grupos de pesquisa nestas linhas de vanguarda significa, pelo menos em princípio, atrair as melhores mentes para o uso mais intensivo de sua capacidade São estes grupos que permitem, potencialmente, a invenção original de novos conhecimentos, tecnologias e soluções que podem proporcionar ao país autonomia, graus de liberdade e opções próprias na definição de seus rumos e prioridades.

Estas possibilidades de atrair as melhores mentes e constituir grupos de alto nível dotados de autonomia e capazes de criação independente não se dão, no entanto, de forma automática e necessária. A "alienação" da ciência nos países em desenvolvimento pode existir sem aspas tanto pela incapacidade de criação de uma massa crítica local dotada de condições de definir seus interesses de forma autônoma, quanto pela incapacidade de o sistema social mais amplo realmente assimilar e aceitar a existência continuada de grupos de pesquisa e estudo que fazem demandas, custam dinheiro e produzem coisas ininteligíveis e inaproveitáveis por uma tecnologia local baseada essencialmente em "black boxes" importadas. Neste como em outros casos, trata-se de um dilema sem solução real em nenhum de seus extremos.

6. A NATUREZA DA ATIVIDADE CIENTIFICA: UM MODELO DE MERCADO?

A discussão anterior estabelece uma distinção entre a atividade científica, orientada para a busca desinteressada do conhecimento, e atividade tecnológica, voltada para o aumento da capacidade de controle do homem sobre a natureza, valendo-se ou não de conhecimentos científicos. Outro tipo de distinção se refere ao fato de que, em ciência, o valor de uma descoberta ou teoria se estabelece na medida em que ela é publicada, difundida e adotada pelos demais; enquanto que, em tecnologia, predomina o segredo e a posse de conhecimentos efetiva ou potencialmente rentáveis.

Esta ultima distinção aponta para o fato de que a separação entre ciência e tecnologia é, muitas vezes, mais uma questão de diferentes contextos institucionais e atitudes do que de atividades de conhecimento de natureza claramente distintas. Não é possível , assim, estabelecer um critério pelo qual seja possível decidir, em cada caso, se se trata de uma atividade científica ou tecnológica; mas é possível pensar em instituições de tipo predominantemente científico - preocupadas com a geração de idéias e conhecimentos, sua publicação e transmissão para novas gerações - e instituições predominantemente tecnológicas, orientadas para a obtenção de resultados práticos. Esta distinção permite examinar, com mais detalhe, a natureza da atividade científica como fenômeno social, sem entrar nos aspectos mais especificamente epistemológicos do problema.

O termo "ciência" encobre, evidentemente, uma série de sentidos diferentes, que devem ser esclarecidos. Antes de mais nada, a ciência é um conjunto de conhecimentos a respeito das coisas, conhecimentos que se desenvolvem, acumulam, se transformam e se reestruturam em função de uma lógica própria de organização do conhecimento - de seu logos. Em segundo lugar, a ciência e um tipo especial de conhecimento, e não um conhecimento qualquer. É um conhecimento que tem regras próprias e, em geral, explícitas, de incorporação de novas informações e de critérios de avaliação de resultados. Terceiro, ela implica uma atitude por parte dos cientistas, que é uma atitude chamada "científica", que consiste em estar aberto a novos dados e incorporar novas informações sempre que elas surjam de acordo com os cânones considerados satisfatórios para a área de conhecimento em questão. Quarto, estas pessoas dotadas de atitudes "científicas" e de um conhecimento satisfatório dos supostos, teorias e informações mais gerais de sua área de conhecimento, formam uma comunidade que funciona como uma extensa rede de pessoas e conhecimentos. É ilusório supor que, digamos, todos os físicos ou biólogos sejam capazes de entender todos os trabalhos de seus colegas. Cada qual entende sua área específica de conhecimento e algo de áreas adjacentes à sua. Existe, assim, uma certa superposição entre os trabalhos e especializações, sem que ninguém, na realidade, tenha um conhecimento exaustivo e sistemático de toda sua área.. Existem ainda uma serie de outros elementos que entrariam em uma caracterização mais completa da ciência como um sistema social, dentre os quais sobressai a existência de sistema de autoridade que zele pelos critérios de probidade intelectual, plausibilidade e aceitabilidade de resultados, critérios que em geral não fazem parte, explicitamente, da metodologia científica, mas são não obstante parte integrante e fundamental de seu funcionamento(21).

Esta comunidade científica funcionaria, então, como urna grande e complexa república, a República da Ciência, na expressão de Michael Polanyi. "A Republica da Ciência", diz Polanyi, "é uma Republica de Exploradores. Sociedades como estas buscam um futuro desconhecido, que elas crêem ser acessível e que vale a pena ser alcançado. No caso dos cientistas, os exploradores buscam uma realidade oculta, para sua satisfação intelectual. Ao mesmo tempo em que eles se satisfazem a si mesmos, eles iluminam a todos os homens e, assim, ajudam a sociedade a preencher suas obrigações no sentido de seu desenvolvimento intelectual"(22). A melhor maneira de promover esta exploração é permitir o máximo de liberdade a cada explorador. Não seria possível trazer critérios externos, extra-científicos, para influenciar nas decisões sobre o que e mais ou menos importante dentro da atividade científica. A comunidade científica funcionaria, assim, como um amplo mercado que naturalmente promoveria às coisas mais importantes e deixaria de lado as de menor significação, e caberia à sociedade como um todo prover a comunidade científica de recursos para suas atividades, sem entretanto tratar de influenciar seu uso.

Quanto desta caracterização da atividade científica, corno algo próprio de uma "República da Ciência" orientada para a busca desinteressada do conhecimento, e claramente diferenciada da atividade técnica, não corresponde a uma idéia ultrapassada da "little science"'?(23) Esta expressão é utilizada para caracterizar a atividade científica anterior à Segunda Guerra Mundial, em que a atividade de pesquisa era essencialmente feita por indivíduos isolados, utilizando-se de um instrumental técnico relativamente simples e barato. A partir do "Projeto Manhattan", que leva à construção da bomba atômica norte-americana, a ciência parece dar um salto para a 'big science", caracterizada pelos grandes orçamentos e pela complexidade das atividades da pesquisa que envolvem centenas ou mesmo milhares de pessoas em trabalho coordenado. Quando a pesquisa adquire este nível de custo e complexidade, desaparecem, aparentemente, as fronteiras entre a ciência e a técnica, e o "mercado" científico concebido por Polanyi deixa lugar a uma situação em que opções políticas na área de ciência e tecnologia passam a determinar às atividades de cada pesquisador.

Para Jean-Jacques Salomon,(24) as raízes são mais antigas. Ele afirma que a ciência moderna tem sido sempre voltada para a busca de resultados práticos. Para ele, a idéia de uma separação entre o conhecimento "puro" e o conhecimento "aplicado" não passa de resquício de uma atitude elitista de origem aristotélico-escolástica, que na realidade se constitui em um obstáculo ao surgimento da ciência moderna. Referindo-se ao Século XVII na Europa, ele afirma que:
"Aucune époque, mieux que celle-là, ne montre combien l'état de la science est lié à toute une représentation du monde: cette science que consiste a contempler est réservée aux 'hommes libres' , khis font oeuvre 'libérale', alors que la technique est le propre des artisans, qui font oeuvre servile'; comme la technique est au dessous de la science, l'artisan est su-dessous de l'home libre' qu'est le savant"(25)
A partir do Renascimento, no entanto, a prática começa a ser mais valorizada, tanto no sentido da nova dignidade que a pesquisa experimental passa a assumir quanto na atribuição que o conhecimento científico recebe de ajudar à realização de objetivos mundanos. É Descartes, aconselhando ao Cardeal Richelieu, que dá o sentido que a ciência moderna passaria a ter a partir de então:
"Il faudrait que M. le Cardinal vous eut laissé deux ou trois des ses millions, pour pouvoir faire toutes les expériences qui seraient nécessaires pour découvrir la nature particulière de chaque corps; et je ne doute point qu'on ne put venir à des grandes connaissances, que seraient bien plus utiles su public que toutes les victoires qu'on peut gagner en faisant la guerre" (26).
Esta crença de Descartes na utilidade da ciência não significa ainda, no entanto, que esteja estabelecida à indissolubilidade entre ciência e técnica. O reconhecimento do valor da atividade experimental pode ter significado tanto que o conhecimento especulativo se tornou mais prático quanto, ao contrario, que a atitude experimental adquiriu "dignidade" e foi incorporada à atividade acadêmica.

Na realidade, pareceria que esta não é uma questão que possa ser resolvida conceitualmente, nem que tenha uma resposta única. A "República da Ciência" de Polanyi descreve parte da realidade, tanto quanto se pode ver pela própria aceitação que sua proposta de organização da atividade científica encontra; vinculação estreita entre ciência, prática e política corresponde também à outra parte da realidade, o que também se evidencia pelas críticas e resistências que o modelo de mercado encontra. A utilização de um modelo de mercado para o entendimento da atividade científica traz todas as vantagens e problemas que fazem destes modelos objetos de tanta atenção. Em primeiro lugar, trata-se de um modelo lógico, racional, mas não necessariamente verificável empiricamente. Pesquisa realizada entre cientistas paulistas que receberam auxílios financeiros da FAPESP(27) mostra que a grande maioria deles esposa a ideologia científica expressa pelo modelo de mercado, ainda que seu comportamento, na prática, seja outro:

Cientistas Paulistas: razões ideais e razões reais na escolha de temas de pesquisa
  Aspiração (%) Realidade (%) Diferença percentual
Interesse acadêmico pelo assunto 70 33,3 36,7
prestígio do tema 5,8 2,5 3,3
interesse pessoal 2,4 0,8 1,6
facilidades materiais 4,1 10,8 -6,7
determinação da organização 1,7 11,7 -10
abordagens anteriores, parte de um projeto global de pesquisas 9,2 20,8 -11,6
importância prática do assunto 5,8 19,2 -13,4
não respondeu 0 8 -0,8
Baseado em Neide Soares de Oliveira, Cientista - O Indivíduo e a Ocupação, Tese de Mestrado, USP, Departamento de Ciências Sociais, 1975, p. 115. O estudo está baseado em um questionário aplicado a uma amostra de 120 cientistas entre os 1.641 que receberam financiamentos da FAPESP entre 1962 e 1970.

As diferenças percentuais da última coluna indicam a presença de uma escala progressiva que vai do acadêmico ao prático, e que corresponde à discrepância entre o desejado e o efetivamente feito. A explicação desta discrepância parece estar no fato de que existe, em um sistema de mercado, um componente ético-ideológico, é um componente de racionalidade. Do ponto de vista ético-ideológico, parece ser valorizada a noção de que o pesquisador deve agir de acordo com suas motivações internas, escolher suas linhas de pesquisa por um processo estritamente intelectual e livre, etc. A lógica deste comportamento está baseada no fato de que o sistema científico, quando ele é realmente competitivo, recompensa seus participantes pela sua contribuição intelectual , e esta tende a ser máxima em relação a aqueles temas e questões mais condizentes com as inclinações, interesses e formação prévia de cada um. Quando, no entanto, o mercado é imperfeito, e a obtenção de recursos - financiamentos, prestígio profissional, acesso à publicações, etc. - passa a depender de outros fatores que não os de logro pessoal, a situação evidentemente se altera. Fatores que podem deformar o "mercado" cientifico incluem a existência de redes interpessoais de favoritismo baseada em critérios não científicos (e sim políticos, governamentais e institucionais) que canalizam recursos para determinados temas e áreas de pesquisa; situações de monopólio ou quase monopólio que impedem o funcionamento dos mecanismos saneadores do mercado em grupos e instituições cientificamente obsoletas; etc. É importante notar, assim, que esta discrepância não é simplesmente algo "irracional", ou fruto de uma percepção inadequada que os pesquisadores possam ter de sua própria atividade. O mais provável é que ela expresse uma intenção e um esforço, por parte dos cientistas, de fazer prevalecer aqueles valores que maximizam o peso do mérito intelectual e da produtividade científica como critérios na distribuição de recompensas, reconhecimento e recursos dentro do sistema educacional e científico em que vivem; ou seja, de fazer prevalecer os valores relacionados com aquilo que os cientistas têm de melhor.

A existência de uma tensão entre o que o cientista faz e o que ele pensa, ou acha que deveria fazer, é somente uma das dificuldades, e não a mais importante, das limitações ao funcionamento da lógica de mercado. Seria possível transferir para aqui toda a crítica que a economia liberal utiliza na sua defesa das economias de mercado em relação às economias de monopólio: a ineficiência, à manutenção indefinida de instituições e organizações obsoletas, a construção e desenvolvimento de "elefantes brancos" de todo o tipo, a criação de sistemas cada vez mais complexos e, em geral, ineficientes, de planejamento. Em contrapartida , cabem também as razões que justificam a existência de critérios de prioridade, alocação preferencial de recursos, manutenção de esquemas protecionistas, etc.: a necessidade de evitar a concentração espontânea de recursos e talentos que os sistemas de mercado produzem, de proteger iniciativas ainda débeis que seriam absorvidas ou liquidadas pela competição indiferenciada, o custo social inevitavelmente alto e as distorções de permitir o laissez-faire em uma atividade cada vez mais cara e cada vez mais caracterizada por grupos de interesses profissionais bem constituídos(28).

O que a discussão até aqui sugere é que a passagem da "little science" para a "big science" dentro de certo ponto de vista, é tão somente um caso particular de cerceamento do mercado da "República da Ciência", por fatores exteriores de crescimento. Com efeito, as análises de Derek de Solla Price chamam a atenção para duas características essenciais da ciência moderna que estão presentemente em crise(29). A primeira têm a ver com o crescimento exponencial da atividade científica, que tende a duplicar em volume e dimensões cada 10 ou 15 anos desde, pelo menos, o Renascimento. Este crescimento exponencial leva à segunda característica, que é a que a cada momento no tempo, o número de cientistas vivos seja maior do que todos os que viveram até então, como é facilmente demonstrável. É bastante razoável supor que o ideal da "República da Ciência" tenha muito a ver com este clima de horizontes abertos, incorporação contínua de novas pessoas e novas idéias, estímulo à experimentação, de um sistema em contínua expansão. A "big science" parece corresponder ao ponto em que este crescimento começa a atingir valores demasiado altos, surgindo assim a necessidade de um planejamento que cerceia, de fato, o livre funcionamento do mercado.

Se este parece ser o predicamento da ciência nos seus centros mais avançados, outras dificuldades podem existir em países periféricos, tanto em função dos custos geometricamente crescentes da "big science" que busca se firmar quanto, mais comumente, em função da relevância que a sociedade como um todo, e seu sistema educacional em particular, atribuem à atividade científica e ao sistema de recompensas e gratificações baseado no mérito intelectual que ela tende a trazer consigo.

7. A HISTÓRIA SOCIAL DA CIÊNCIA NO BRASIL: UMA ESTRATÉGIA DE PESQUISA

A discussão precedente dá o pano de fundo sobre o qual é possível propor uma estratégia inicial para estudos e pesquisas sobre a historia social da ciência no Brasil. É útil começar pela referência a duas coisas que devem, aparentemente, ser evitadas, para depois examinar às linhas de trabalho que parecem ser mais frutíferas.

a. Ciência e "dependência" - Antes de mais nada, é necessário evitar as tautologias que costumam surgir sob a égide da expressão "dependência". Não há dúvida que o Brasil depende dos países ocidentais em muitas áreas, inclusive nas de ciência e tecnologia, e é claro que sem o conhecimento desta realidade elementar não é possível começar a entender o que acontece no país em muitas coisas. As tautologias consistem em gastar tempo é energia em evidenciar este fato, para depois concluir exatamente com o já sabido, ou seja, que a ciência e a tecnologia nacionais não são tão desenvolvidas quanto a dos países mais avançados porque o Brasil tem uma posição de relativa inferioridade e dependência. Na realidade, o que realmente interessa é ver como a mesma situação constante de "dependência" permite uma física mais desenvolvida que uma biologia, por exemplo: ou porque o Instituto Oswaldo Cruz consistiu em uma experiência de criação de ciência moderna mais bem sucedida do que a do Instituto Bacteriológico de São Paulo(30). É a partir do estudo com estas diferenças que poderemos ir entendendo melhor a realidade e as possibilidades e limites que ela permite. Em outros termos, é importante que, em um estudo deste tipo, as variáveis dependentes sejam realmente variáveis, e não uma constante.

b. Metodologias quantitativas e qualitativas - Derek de Solla Price, em Little Science, Big Science, se propõe a tratar o sistema social da ciência com os instrumentos conceituais e analíticos da própria ciência, ou seja, através da observação sistemática de fenômenos, sua quantificação e análise por técnicas estatísticas e matemáticas. A partir desta concepção, uma série de medidas quantitativas começaram a ser desenvolvidas para os estudos sociais da ciência: dimensionamentos da atividade científica através de publicações (livros. revistas, "papers") taxas de crescimento da comunidade científica em termos demográficos; índices de citações e referências bibliográficas; redes sociométricas de influência e interrelacionamento. Tais indicadores permitem uma série de análises baseadas em curvas de crescimento da atividade científica,(31) definição de limites e características de "colégios invisíveis"(32), avaliações objetivas de qualidade e produtividade científica, para fins comparativos, etc. Dado que esta é uma metodologia já razoavelmente consolidada, existe certamente a tentação de utilizá-la também para os estudos sobre a ciência no Brasil. No entanto, existem duas razões pelas quais isto talvez não deva ser feito de firma prioritária. Primeiro, estes estudos quantitativos partem normalmente de uma definição operacional relativamente simples do universo, ou seja, de quais são os limites que circunscrevem a atividade científica - quer pela qualificação formal dos cientistas, quer pelas instituições às quais eles se vinculam, quer pelas revistas em que eles publicam os resultados de seu trabalho. Em um país como o Brasil, o sistema científico tende a ter uma delimitação menos clara, já que o sentido e a natureza dos títulos acadêmicos, instituições e publicações tendem a variar no espaço e entre diferentes disciplinas. Isto faz com que os métodos quantitativos devam ser utilizados com um cuidado - e por isto um custo - redobrado, sob pena de surgirem números e dados sem maior significação.

Esta dificuldade aponta para a segunda razão pela qual estes métodos não deveriam ter prioridade neste momento; é que eles só fazem realmente sentido quando vêm responder a uma série de questões conceituais importantes. São estas questões que necessitam uma atenção prioritária, e elas exigem, em um primeiro momento, uma familiarização com os problemas substancialmente relevantes e com a realidade em seus aspectos mais qualitativos. Isto não significa que a utilização de métodos de quantificação, quando factível, não deva ser feita, mas simplesmente que esta talvez não seja, no momento, a melhor estratégia para dar início a uma linha de estudos cuja própria necessidade, em nosso meio, ainda está em vias de ser estabelecida.

Finalmente, a opção por uma metodologia mais qualitativa não significa, como veremos mais adiante, que ela não deva ser sistemática. Não há dúvida que, de certa maneira, tudo é relevante e interessante, e estudos históricos sobre a ciência podem facilmente cair na tentação do detalhe, do anedótico, do pitoresco ou do excepcional, tentação esta à qual é necessário resistir.

8. UMA ESTRATÉGIA DE PESQUISA (continuação)

a. A unidade de análise: comunidades científicas - A definição da unidade de análise em uma linha de pesquisa responde à pergunta fundamental de sobre quem, ou o quê, estamos falando. Aqui, o termo "ciência brasileira" é demasiado amplo, a as distinções entre as diversas disciplinas são ainda demasiado formais e genéricas. Em um certo momento pareceria que o foco do estudo deveria se concentrar em pessoas que tiveram um papel crucial na implantação de instituições e tradições científicas relativamente bem sucedidas no país. A partir da identificação destas pessoas e instituições, ficou claro que o ponto de referência mais importante são estas próprias "tradições" científicas, geralmente desenvolvidas a partir de cientistas proeminentes, e em instituições que tiveram condições de se manterem através do tempo.

Esta noção de "tradição científica", como uma linha de trabalho mais restrita que uma área de conhecimento, mas mais ampla que a atividade de um pesquisador ou projeto isolado, corresponde ao conceito de "comunidade científica" tal como Thomas S. Khun o apresenta no "postscript'" da segunda edição de seu livro. Segundo ele, é possível pensar em diversos níveis em que estas comunidades se estabelecem, sendo possível, em cada caso, definir indicadores para caracterizá-las. O quadro abaixo resume esta idéia:

Níveis de estruturação das comunidades científicas
Nível Tipo de Comunidade Indicadores
1 a totalidade dos cientistas profissão
2 principais grupos profissionais físicos, astrônomos, químicos... qualificação acadêmica mais alta, filiação a associações profissionais, revistas lidas.
3 principais subgrupos (química orgânica, física do estado sólido, economia agrícola...) (semelhantes aos indicadores acima)
4 especializações que compartem um "paradigma" específico participação em reuniões de especialistas, redes informais de circulação, estruturas sociométricas de citações, etc.
Baseado em T. S. Khun, The Structure of Scientific Revolutions, 2 ed., 1970, p.176.

Uma boa lista do que seriam estas comunidades de 4 nível pode ser obtida a partir das "Gordon Research Conferences", organizadas anualmente nos Estados Unidos. Elas incluem temas como na letra "A", ciência da adesão, química analítica, células e viroses animais e interações moleculares e atômicas; e terminam com, entre outros, separação e purificação, "'Solid-liquid interactions in cement hidration", e macro moléculas estruturais. São ao todo 92 tópicos, que cobrem presumivelmemte as áreas de interesse mais ativas na ciência norte-americana contemporânea, excluindo as ciências sociais(33).

Seriam estas comunidades, no dizer de Khun, que compartiriam um "paradigma" científico, entendido como uma 'constelação de compromissos de grupo" a respeito de métodos, linguagem, valores, experiência e critérios de relevância e validade. Sem entrar mas complicações e debates havidos ao redor deste tema, desde sua introdução por Khun em 1962 até sua reformulação no postscript de 1970, poderemos reter dele a idéia que nos interessa; existem grupos de pessoas que, ao mesmo tempo, formam uma comunidade no sentido sociológico do termo (isto é, estão em contato, compartem uma série de percepções a respeito das coisas) e também contribuem para desenvolver uma tradição de estudos e pesquisas que lhes é comum.

São estes grupos, trabalhando em comum ao longo do tempo, que constituem o centro da análise que nos interessa. A discussão sobre se eles constituem a contra-partida sociológica dos "paradigmas", se eles se estruturam essencialmente no nível 4 ou 3, é algo que a própria pesquisa ajudará a ir evidenciando. É possível que ela revele que os grupos e tradições reais de trabalho científico que existem no Brasil não possam ser definidos simplesmente por compartirem uma área unificada de conhecimento. Existem certamente pessoas que trabalham em contato a partir de uma problemática científica comum, como parece ter sido o caso do grupo de física de altas energias. Mas existem outros fatores, não estritamente científicos, que colocam pessoas em contato: o fato de serem discípulos ou seguidores de um professor ou cientista proeminente; o fato de tratarem com um objeto de interesse prático, como recursos minerais, recursos naturais de tipo biológico, ou genética para fins de produtividade agrícola; ou de pertencerem a uma instituição determinada. Haveria que examinar, em algum momento, as conseqüências da justaposição destas diversas formas e redes de relacionamento. A existência de um objeto definido para a pesquisa básica - por exemplo, recursos minerais - permite realmemte a comunicação científica inter-disciplinar entre geólogos, químicos e economistas? A existência de comunidades ou tradições definidas em termos institucionais ou de lideranças pessoais não impede a comunicação e conhecimento recíprocos entre, por exemplo, biólogos ou químicos da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade de São Paulo?

A estratégia de pesquisa adotada consiste em partir das grandes sub-divisões do nível três, e tratar de solicitar a pessoas pertencentes à comunidade científica brasileira que indiquem e descrevam as comunidades científicas que operam em sua área profissional. O que se busca, com esta metodologia, é precisar os principais grupos e tradições de trabalho com os quais os cientistas se identificam, e que eles consideram como lhes proporcionando sua identidade profissional mais característica. Ela permite trabalhar a partir da própria percepção que a comunidade científica tem de si mesma, permite adiar para posteriores refinamentos a aplicação de técnicas sociométricas mais precisas, e passar com relativa rapidez ao exame das questões de tipo social e institucional realmente substantivas que mais interessam. Esta estratégia permite também deixar de lado, como algo meramente heurístico, os conceitos de "paradigma" e "matriz disciplinar" sugeridos por Khun, que podem ser eventualmente retomados por estudos que tenham um foco mais orientado para os aspectos epistemológicos da ciência.

b. O "sucesso" da atividade científica. Identificada uma linha determinada de trabalho científico, trata-se agora de poder caracterizar o que entendemos por seu relativo "sucesso". Essencialmente, poderemos considerar bem sucedida uma linha de trabalho que consegue produzir resultados de alta qualidade e ter continuidade através do tempo. "Resultados de alta qualidade" podem ser avaliados por medidas objetivas, essencialmente aquelas referidas à produção de trabalhos reconhecidos internacionalmente; "continuidade" tem a ver com a capacidade de formar novos cientistas, de continuar o trabalho de uma a outra geração, sem solução de continuidade e sem esclerosamento, ou fixação em práticas científicas ultrapassadas.

Este conceito de "sucesso" deixa de lado, evidentemente, a questão da relevância dos frutos da atividade científica para a tecnologia nacional. Esta é uma questão importante, que pode inclusive ser decisiva na definição de uma política governamental de investimentos em atividades científicas. Mas, como vimos anteriormente, trata-se de um outro problema, de equacionamento não trivial. Sabemos, por exemplo, que a física brasileira teve seu início na USP na área de estudos sobre raios cósmicos e altas energias, que são essencialmente inúteis do ponto de vista de aplicação tecnológica. Trata-se, no entanto, de tradição de pesquisa científica talvez mais importante que tenha existido no Brasil.

Estudos sobre a história social da ciência no Brasil de vem ter como foco a identificação de linhas e tradições de pesquisa científica, e seu sucesso ou fracasso em se transformar em uma atividade permanente de alta qualidade. Uma vez que isto esteja suficientemente caracterizado, é chegado o momento de explicar quais as condições que permitiram o resultado que se obteve, e quais as conseqüências.

c. A base institucional: Institutos e Universidades. Uma das principais diferenças que podem eventualmente explicar o relativo sucesso ou fracasso das tradições de pesquisa se refere à sua base institucional. Existe uma noção bastante difundida de que a universidade é o lugar "natural" para a atividade científica, enquanto que institutos de pesquisa e centros tecnológicos seriam "mais adequados" para a produção de tecnologia. A realidade histórica mostra que as coisas são bem distintas: por exemplo, a pesquisa científica se localiza preferencialmente junto à Academia de Ciências na União Soviética , aos Institutos Kaiser-Wilhelm na Alemanha(34), ao Centre National de la Recherche Scientifique na França e, em boa medida, junto a empresas privadas nos Estados Unidos. No Brasil, centros como o Instituto Oswaldo Cruz, o Instituto Agronômico de Campinas, o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, o Instituto de Matemática Pura e Aplicada, o Museu Nacional, são exemplos de atividades científicas que se desenvolvem ou desenvolveram fora do contexto universitário. Ao mesmo tempo, a Universidade de São Paulo é o grande exemplo de uma base institucional mais estritamente acadêmica.

Os exemplos acima são suficientes para sugerir que a questão importante não é tratar de definir qual é o lugar "natural" para a atividade científica, mas sim quais são as conseqüências de um ou outro setting para as atividades que neles se desenvolvem. É evidente que, em sociedades modernas, as Universidades desempenham uma série de funções que não coincidem, e muitas vezes são incompatíveis com a atividade científica. Nos Brasil, as Universidades são geralmente formadas pela aglomeração de escolas profissionais, em um contexto em que a prática profissional tende a ser vista como mais importante que as de tipo estritamente científico. É ainda bastante comum que o adjetivo "teórico" seja visto como pejorativo, em oposição ao "prático", que vem ligado à idéia de efetividade. As exigências da tradição das escolas profissionais, acrescidas pela necessidade de formar grande número de pessoas, quando as universidades se expandem nas ultimas décadas, fazem com que a atividade de pesquisa de alto nível, a longo prazo, tendo como referência um contexto acadêmico muitas vezes no estrangeiro, tenha muita dificuldade em se estabelecer. Estruturas universitárias complexas estão sujeitas a sistemas organizacionais burocratizados, ou intimamente ligados a um contexto social e político mais amplo que não atribui à pesquisa científica de tipo "teórico" a importância e as condições de trabalho que ela exigiria, além de estarem sujeitos a crises e instabilidade de todo tipo(35).

Estes e outros problemas explicam porque muitas vezes tentativas pioneiras de criação de centros avançados de pesquisa são feitas fora do contexto universitário, livres de todas as dificuldades e pressões que este contexto implica. No entanto, pareceria que existem duas dificuldades básicas quando a atividade científica é colocada fora do contexto universitário. A primeira é que a universidade é o lugar por excelência para o recrutamento de talentos e a atividade científica, quando desligada da formação de novos especialistas, tende a se esclerosar. Segundo, a atividade científica em Institutos de Pesquisa tende muitas vezes a ser mais dependente de resultados práticos, ou pelo menos de financiamentos obtidos através de projetos renegociados periodicamente com agencias financiadoras, do que a atividade de pesquisa no próprio âmago do sistema universitário. 0 ambiente universitário seria, assim mais condizente com os valores de liberdade de pesquisa e livre circulação de idéias, característicos da República da Ciência, e teria as condições de continuidade que faltam aos institutos.

No caso brasileiro, não há dúvida de que a Universidade de São Paulo, ou mais especificamente, a sua Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, foi a grande experiência de criação de um centro de pesquisa e ensino científicos, cujos resultados perduram até hoje, espalhados por todo o país. Seria importante comparar a atividade desenvolvida no contexto universitário, a partir da experiência da USP e em experiências mais recentes, com a dos institutos e centros de pesquisa não universitários. Esta comparação permitirá ver em que medida o modelo de mercado da República da Ciência funciona em um e outro contexto, e em que medida a ausência ou presença deste modelo conduz a melhores ou piores resultados na atividade de pesquisa científica. Ela permitirá também, talvez, um conhecimento mais adequado do processo que levou a atividade de pesquisa científica a ficar, no Brasil, cada vez mais ligada à área de planejamento econômico, e menos à área de educação e cultura. Este aspecto, se visto em combinação com o fato de que a vinculação entre ciencia e tecnologia e o planejamento econômico se dá principalmente a nível federal, enquanto que o sistema universitário mais avançado do país pertence ao Estado de São Paulo, permite abrir um vasto campo de indagações sobre as relações entre a questão Universitária vs Institutos e as diferenciações regionais no Brasil(36).

d. Little Science, Big Science. Quais foram os efeitos do surgimento da "big science", em escala internacional, sobre a ciência brasileira? Existem talvez duas características importantes da "big science" de após-guerra que devem ser levadas em consideração a este respeito. Uma delas é o simples cus to da pesquisa científica contemporânea, em termos de pessoal, equipamento, tempo de maturação, etc. Estes custos crescentes e a utilização de equipamentos cada vez mais caros e sofisticados muitas vezes exigem uma mudança de escala da atividade científica que as universidades e institutos brasileiros certamente não acompanharam. Quais as tradições científicas mais afetadas por esta situação? Que tipo de relacionamento se estabelece entre uma tradição científica relativamente bem estruturada

que se vê subitamente confrontada com uma revolução de escala em nível internacional? Ela se retrai, busca um caminho próprio, ou trata de se ligar a um pedaço do grande quebra-cabeça da ciência mundial? Quais são as conseqüências destas diversas formas de resposta?

A segunda característica da "big science " contemporânea e que ela integra, efetivamente, uma série de atividades que vão desde a pesquisa básica até sua aplicação prática. No capítulo final de seu livro a respeito dos inícios da ciência brasileira, Nancy Stepan conclui que:
"(1) What makes science an effective part of the modern industrial system is the integration of research, applied science, and technology into a single system with a flow of ideas and information in both directions, from techno-logy to applied science, applied science to research, research to applied science; (2) this integrated system is the result of a very large research and development effort and the involvement of the state in science; (3) it is extremely difficult for developing countries to develop such a system for themselves, owing to the small industrial base, the ties between domestic industry and international economy, the lack of domestic technical manpower, but above all the fragmentation of their research, development and technological efforts" (37).
e. Ciência e policy. Esta segunda característica da "big science" significa que não basta que aumente o volume de recursos atribuidos à atividade científica; é necessário também que exista uma vontade política, uma policy orientada para estabelecer todo o ciclo entre a ciência básica e sua aplicação prática.

A ausência ou presença de uma decisão política específica de desenvolver determinada área, se torna tanto mais significativa para a caracterização da atividade científica quando se trata de uma área de conhecimento típico de "big science". A existência de um "carro- chefe" tecnológico(38), como o projeto Manhattan ou o programa espacial nos Estados Unidos, ou a erradicação da febre amarela no período de Oswaldo Cruz, com apoio político explícito, é essencial para que se dê uma efetiva integração entre pesquisa básica, pesquisa aplicada e tecnologia industrial, a partir de uma série de mecanismos de apoio financeiro e institucional a órgãos de pesquisa e reserva de mercado para os produtos. Este "carro chefe" tanto pode ser referido a uma tecnologia de interesse político-estratégico, como a nuclear, ou econômico, como a pesquisa geológica, ou a problemas sociais mais diretos, como a saúde, alimentação , emprego, etc.

A falta deste "carros chefes" de política tecnológica pode fazer com que a atividade científica jamais passe de uma atividade contemplativa, que se esgota em si mesma, não necessariamente pelas qualidades e vantagens da liberdade acadêmica, quanto pela impossibilidade de fazer outra coisa. Por outro lado, o estabelecimento destes "carros chefe" pode conduzir à morte da pesquisa livre, ao investimento maciço na absorção de tecnologia importadas, sem que sejam dadas chances para novos caminhos e novas perspectivas serem descobertas, propostas e tentadas.

9. CONCLUSÃO: OS DILEMAS DA CIÊNCIA BRASILEIRA

Em síntese, a estratégia da pesquisa consiste em seguir o desenvolvimento de algumas das principais tradições científicas brasileiras em seus esforços por confrontar os dilemas que a atividade científica normalmente traz. O primeiro destes dilemas, o pano de fundo dos demais, é o da contradição entre o modelo de mercado, caracterizado pela liberdade de escolha de temas de pesquisa, livre fluxo de informação, etc., e o modelo de ciência dirigida e orientada por critérios de interesse político, econômico e social. O segundo é o dilema entre a atividade desenvolvida no interior da universidade, que aparentemente se adaptaria mais ao modelo de "mercado", e a atividade em institutos de pesquisa, aparentemente mais aplicados. O terceiro seria o de buscar atrelar-se a um "carro chefe" tecnológico próprio da "big science", ou ao contrário, buscar manter-se como uma atividade livre, independente e artesanal.

Permeando estes dilemas, existe um outro, constante, que é o de vincular-se clara e definitivamente à comunidade científica internacional ou tentar estabelecer uma base de atividades própria e dotada de continuidade em nível nacional. A opção por uma orientação " nacional" pode sem feita tanto por " boas" quarto por "más" razões; tanto pela perspectiva em manter realmente uma atividade de pesquisa de ponta que tenha condições de se reproduzir e produzir resultados de interesse social a nível nacional, quanto como simples forma de insular uma atividade medíocre e ultrapassada das pressões e exigências do sistema científico internacional. Em contraposição, a opção por um vínculo estreito ao sistema científico internacional pode significam tanto um esforço por mantém-se ao dia com o que há de melhor e mais avançado em sua área de conhecimento, e a partir daí criar uma tradição científica local de valor real, quanto a simples criação de satélites insulados de sistemas científicos é tecnológicos guiados por centros de atração externos. A opção por uma ou outra destas alternativas, em suas versões "boas" ou " más", depende naturalmente de fatores institucionais, políticos, culturais, etc..., que a pesquisa poderá ir tratando de identificar.

Toda esta discussão pode sem resumida em poucas palavras. Ao perguntarmos pela natureza do sistema de interações entre cientistas, em nível nacional e internacional , indagando em que medida funciona ou não uma estrutura "'Polanyiana" de mercado; ao perguntarmos sobre a institucionalização que assume a atividade científica, em termos das opções entre universidades e institutos; e ao perguntarmos, finalmente, sobre o relacionamento entre a atividade científica e suas aplicações práticas, incluindo o relacionamento com outros componentes da cadeia científico- tecnológica, estaremos em condições de traçar, caso a caso, a história de tentativas, sucessos e fracassos da ciência brasileira. E aprender, sem dúvida, algo que seja útil para o futuro.

Rio, Setembro de 1976


Notas

1. Stephen F. Mason, A History of the Sciences (New York, Macmillan, 1962), p. 63.

2. Robert K. Merton, Social Theory and Social Structure (New York: The Free Press, 1967), p. 7.

3. Merton, p. 8.

4. J. Bernal, Science in History (London, Penguin, 1970), 4 volumes.

5. J. L. Heilbronn, A History of the Problem of Atomic Structure from the Discovery of the Electron to the Beginning of Quantum Mechanics, Ph.D. thesis, Berkeley, 1964; e T. S. Kuhn e outros, Sources for History of Quantum Physics - an Inventory and Report, Philadelphia, 1967.

6. The Structure of Scientific Revolutions,. 2 edição, Chicago, 1970.

7. Fernando de Azevedo, As Ciências no Brasil, 2 volumes edição Melhoramentos, 1955.

8. Fernando de Azevedo, vol. 1, p. 13 e nota 7.

9.

10. p. 31.

11. p. 33.

12. p. 34.

13. p. 35.

14. Stevan Dedijer, '"Underdeveloped Science in Underdeveloped Countries", Minerva, 11,1, 1963. Reproduzido em E. Shils, ed., Criteria for Scientific Development: Public Policy and National Goals (MIT, 1968) A referência é da p.146 de Shils (tradução minha).

15. p. 153-4.

16. p. 152.

17. Naomi Camden e Aaron Wildavsky, Planning and Budgeting in Poor Countries (New York, Wiley, 1974), e rezenha em Pesquisa e Planejamento Econômico, 6,1, abril de 1976.

18. Para uma discussão do exemplo da Alemanha no século XIX veja Joseph Ben-David, The Scientist's Role in Society - A Comparative Study (Prentice-Hall, 1971).

19. Nancy Stepan, Beginnings of Brazilian Science - Oswaldo Cruz, Medical Research and Policy, 1890-1920 (New York, Science History Publications, 1976).

20. Para o conceito de ciência como atividade pura, desinteressada e seu relacionamento com a tecnologia e a política governamental, veja os trabalhos em E.Shils, Criteria for Scientific Development, Public Policy and National Goals (M.I.T., l968), e particularmente os artigos de Michael Polanyi ("The Republic of Science: Its Political and Economic Theory"), Stephen Toulmin ("The Complexity of Scientific Choice: A stock-taking"), assim como J. A. Giannotti, Ciência para o Desenvolvimento? trabalho apresentado à XXVI reunião da SBPC, Recife 1974. Para uma tentativa de colocar a questão do desenvolvimento científico e tecnológico no contexto de uma teoria mais geral do desenvolvimento, veja Ricardo M. L. Tolipan, "Tecnologia e Produção Capitalista", Estudos CEBRAP 11, 1975.

21. Esta noção do conhecimento científico como uma rede de pessoas e conhecimentos é explicitamente desenvolvida por Michael Polanyi, Personal Knowledge - Towards a Post-Critical Philosophy (London, Routledge & Kegan Paul, 1958 e 1962), e retomada posteriormente por Thomas Kuhn.

22. "The Republic of Science", in E. Shils, Criteria for Scientific Development, p. 19. (A tradução é minha).

23. Alvin M. Weinberg, Reflections on Big Science (M. I. T. , 1967).

24. Jean-Jacques Salomon, Science et Politique (Paris, Seuil, 1970).

25. p. 36.

26. p. 38.

27. Neide Soares de Oliveira, Cientista: O Indivíduo e a Ocupação, Tese de Mestrado, Universidade de São Paulo, Departamento de Ciências Sociais da FFLCH, 1975, mimeografado. Trata-se, aparente mente, do único levantamento estatístico de atitudes, valores e comportamentos de cientistas brasileiros já feito.

28. A referência contemporânea mais importante para esta discussão, é certamente o livro de Albert Hirshman, Exit, Voice and Loyalty - Reponses to Decline in Firms, Organizations and States (Harvard, 1970). Uma discussão a respeito se encontra em S. Schwartzman, "Da Responsabilidade Política dos Governantes - Paradoxos e Perspectivas", Rio de Janeiro, Dados 12, 1976.

29. D. S. Price, Little Science, Big Science (New York, Columbia University 1963).

30. Esta análise comparada é feita por Nancy Stepan, que conclui haver faltado no caso de São Paulo o esforço de aproveitar o sucesso tecnológico para a criação de um centro de pesquisa básica, como foi o caso com Oswaldo Cruz.

31. Price, especialmente o capítulo 1, "Prologue to a Science of Science".

32. Diana Crane, Invisible Colleges: Diffusion of Knowledge in Scientific Communities (Chicago, 1972).

33. Para a lista r descrição das Gordon Research Conferences de 1976 veja Science, vol. 191, nº 4231, de 12 de março de 1976.

34. Para uma análise comparada das experiências alemã e soviética, veja Loren R. Graham, "The Formation of Soviet Research Institutes: A Combination of Revolutionary Innovation and International Borrowing"', Social Studies of Science 5, 1975, p. 303-29.

35. Veja por exemplo Tulio Halperin Donghi, Historia de la Universidad de Buenos Aires, (Buenos Aires, Eudeba, 1962).

36. O tema das diferenciações regionais, com ênfase em aspectos políticos, está desenvolvido em S. Schwartzman, São Paulo e o Estado Nacional (São Paulo, DIFEL, 1975).

37. Stepan, p. 170.

38. Esta expressão está tomada de trabalho ainda inédito de José Murilo de Carvalho sobre a política científica e tecnológica no Brasil. <