RELAÇÕES CENTRO-PERIFERIA:
O CASO DA AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA João Batista Araújo
e Oliveira e Simon Schwartzman
Estudos e Debates (Brasília, Conselho de
Reitores), nº 3, 1980, 133-143. Publicado no Jornal do Brasil,
2 de dezembro de 1979.
Os dois modelos
Vantagens e Desvantagens do Modelo Centralizado
Dilemas da Transição
A Autonomia Desejada
Ministério
Reitoria
Departamento de Pesquisa
Departamento de Ensino
Alunado
Em Busca de Alternativas
Conclusões e Implicações
Referencias Bibliográficas
Os dois modelos
As relações entre o centro e a periferia de grandes sistemas organizacionais,
como é o sistema de Universidades federais brasileiras, podem ser vistas
a partir de dois modelos extremos e alternativos: no primeiro caso, a direção
do fluxo de decisões, informações e controle fica centralizada; no outro,
os órgãos periféricos são muito mais do que agentes, delegados ou instituições
de base: eles, de fato, adquirem capacidades de auto-regulação, auto-controle
e uma apreciável dose de autonomia e adquirem condições mesmo de se opor
às diretrizes do centro.
A questão da autonomia e descentralização administrativa não é um mero problema
burocrático e administrativo, mas tem implicações bastante importantes em
relação a possíveis transferências de centros de poder. Aos problemas conceituais
de demarcação de novos limites entre a organização e o ambiente, de um lado,
e a organização dentro de uma rede inter-organizacional, por outro, somam-se
as peculiaridades do processo político. A viabilização de formas conceituais
esbarra, assim, num problema não totalmente novo, mas, sem dúvida, mais
complexo, em termos de planejamento estratégico, em que o desafio consiste
em procurar "delinear políticas aceitáveis para todos os participantes,
embora possivelmente mais vantajosas para alguns" (Lindbloom, 1977,
p. 323).
No presente trabalho, procuraremos delinear as características, vantagens
e desvantagens do modelo centralizado de administração universitária; e
discutiremos, a seguir, as possíveis implicações de uma possível autonomização
dos órgãos periféricos, isto é, as Universidades e Escolas Isoladas Federais.
Finalmente, delinearemos algumas possibilidades, a nível conceitual, de
uma mudança nessas relações, sem perder de vista o ambiente político circundante,
os limites de qualquer estratégia planejada.
Vantagens e Desvantagens do Modelo Centralizado
O cerne do problema da centralização reside na preocupação com o controle
adequado dos recursos face aos resultados esperados. Na prática, a ênfase,
nos resultados, cede lugar a preocupações mais formais.
No caso das Universidades brasileiras, embora seja difícil avaliar o quanto
de autonomia elas detinham efetivamente, antes de 1964, elas seguiram o
padrão mais geral verificado no País: centralização de recursos, poder e
decisão. A centralização ocorreu não apenas na relação Governo Federal (MEC)
com cada Universidade. Internamente, pelas incorreções e deturpações da
Reforma Universitária implementada a partir de 1968, as burocracias proliferam
em tomo das Reitorias, que também se tomaram mais poderosas e organizacionalmente
mais bem equipadas, para lidar com os fluxos de informação e de recursos.
As conseqüências do modelo centralizado constituem-se em experiência geral
comum a todos os países e em diversos tipos de instituições. No geral, o
que mais se nota é a incapacidade das burocracias centrais exercitarem suas
funções de coordenação, em prejuízo visível de seus objetivos.
No setor universitário, ocorreu um fenômeno interessante; enquanto as Universidades
eram muito pequenas e a demanda reduzida, fora possível uma aliança forte
entre o pequeno número de burocratas do poder central os professores, que
dividiam entre si as esferas de atuação e de poder. Dessa forma, um alto
grau de uniformidade curricular, estrutural, de pessoal e critérios de seleção
e admissão pôde conviver com o estabelecimento de padrões e mecanismos colegiados
de aferição de qualidade do trabalho acadêmico. Isso ocorreu em países como
a França, Itália, Alemanha Oriental e Polônia, entre outros. O acesso de
grupos cada vez maiores, no entanto, e o crescimento de camadas intermediárias
de poder e pressão (os comitês de direção, os burocratas das próprias instituições
universitárias, etc.) levaram ao enrijecimento desse sistema, ora já em
revisão em muitos países. (Clark, 1978).
A crise universitária que eclodiu por volta de 68, em vários países. e que
abalou profundamente a idéia mesma daquela instituição, oferece lições de
particular interesse para o nosso caso: ela demonstrou, entre outras coisas,
a incapacidade daquelas estruturas uniformes de se antecipar e reconhecer
dramáticas mudanças no ambiente, adaptando-se para absorvê-las, acomodá-las
ou a elas responder. Os prejuízos causados sobretudo à pesquisa universitária
não são fáceis de se avaliar, embora, em diversos países, também se discutam
os efeitos sobre a baixa na qualidade do ensino. Ademais, as conseqüências
causadas pelas rigidez de formatos organizacionais uniformes não são impunes,
já que a equalização de carreiras, critérios e mecanismos de alocação de
recursos cria custos futuros que tomam o uso dos recursos cada vez mais
restrito e inflexível.
As vantagens apregoadas da centralização se referem sobretudo aos conceitos
de eficiência, economia, controle, eqüidade e igualdade de oportunidades.
Eficiência e economia, indubitavelmente, podem advir de economias administrativas
de escala, como está fartamente documentado na literatura. Aliadas aos aspectos
positivos do controle centralizado, que permitiram, inclusive, um reaparelhamento
e modernização da máquina burocrática central, a eficiência e economia,
em princípio, podem constituir-se em passos importantes para uma racionalidade
administrativa. É preciso não esquecer, no entanto, que a realidade organizacional
nem sempre se curva aos princípios e regras do jogo burocrático. Pfeffer
e Salancik (1978) mostraram como a alocação de recursos dentro de Universidades,
no caso americano, é influenciada pelo poder real e pelo poder percebido
dos departamentos mais fortes: em última instância, as regras se acomodam
ao poder.
Quanto ao conceito de eqüidade e igualdade de oportunidades advindas de
um sistema burocrático impessoal e com regras gerais comuns, é preciso observar
que, na realidade, hoje já é importante distinguir entre a oportunidade
de entrar, de se manter, e de se graduar numa instituição universitária.
Nem mesmo a seletividade sutil do sistema educacional francês, por exemplo,
consegue esconder o fato de que da já reduzida parcela da população que
conclui o "baccalauréat." Com sucesso, pouco mais de 5% alcançam,
efetivamente, a Universidade: esta, de "livre" acesso, reduz,
ainda mais drasticamente, o alunado do final do primeiro ano, sem os desconfortos
de um sistema público de vestibular...
Em termos mais específicos, a centralização das Universidades, no caso brasileiro,
levou a uma extrema dependência financeira e orçamentária; ao excesso de
ritualismo e formalismo na disciplina dos currículos e mecanismos de titulação;
a uma uniformidade organizacional, quiçá desnecessária, entre as diversas
Universidades, a par dos problemas diferenciados que encontram em suas regiões;
a um rígido sistema de carreiras - esse ainda mais vinculado às amarrações
do órgão central controlador de pessoal; a critérios de seleção e oferta
de vagas que dependem de decisões de conselhos superiores externos a própria
instituição.
Quanto aos efeitos positivos do modelo centralizador, eles se fazem sentir
diferentemente de acordo com os beneficiários potenciais: o arranjo desses
diversos grupos e suas preferências será objeto de análise posterior.
Dilemas da Transição
Como um ator interdependente do jogo de relações sociais, a Universidade,
enquanto instituição não pode deixar de refletir, em seu seio, as suas contradições
próprias e as advindas do ambiente externo.
A idéia ou a possibilidade de um modelo de relacionamento que privilegie
a autonomia dos órgãos periféricos não pode, numa análise sociológica, ignorar
a existência dessas contradições, nem o fato de que a tentativa de sua resolução
pode, até mesmo, inviabilizar a implementação de alternativas. Essa ameaça,
no entanto, não pode impedir a busca de saídas, a nível conceitual ou teórico,
mesmo quando isso implique um nível de abstração ou de simplificação da
realidade. De outra maneira, seria impossível romper o imobilismo refletido
tanto a nível teórico, em termos do nível de reflexão sobre formas organizacionais,
quanto a nível prático, em termos de saídas institucionais.
No modelo centro-periferia, o conceito de autonomia implica a capacidade
dos órgãos periféricos em assumirem e se capacitarem, para desempenhar,
eficazmente, as funções de controle, sobretudo na forma de auto-regulação.
Na perspectiva dos órgãos centrais, sua preocupação mais visível é a de
superar o impasse entre ser uma fonte de suporte, de um lado, e fonte de
controle, por outro. Para tanto, esses órgãos desenvolvem uma série de mecanismos
que tendem a exacerbar suas características formais, e se tomam, via de
regra, incapazes, por si sós, de exercer qualquer tipo de ação substantiva.
E, no entanto, desempenham um papel preponderante de intervenção política,
gerando manifestações inevitáveis de centralização e autoritarismo.
Assim, a idéia de autonomia pode evocar diferentes imagens, de acordo com
perspectiva que se adota: pode tratar-se de uma autonomia, para se obter
um pouco mais de flexibilidade, para diminuir o papel de suporte (sobretudo
financeiro), ou uma autonomia para se auto-dirigir e para se prover, na
periferia, a capacidade de responder diferenciadamente a problemas diversos.
Além de uma diferença de percepção sobre o que é ou deve ser uma mudança
das relações entre centro-periferia, através do conceito de autonomia, não
se devem ignorar dois outros aspectos importantes que influem decisivamente
na fixação das posições, a nível empírico, a nível do real.
O primeiro é de ordem processual. O processo dialético, as próprias discussões
e busca de alternativas, a reflexão sobre as contradições internas da Universidade,
todos esses mecanismos e processos de busca de identidade e de posicionamento
tendem a ampliar a discussão até limites inimagináveis: o processo de deliberação
passa a ser uma grande "lata de lixo" (Olson e March, 1976), onde
diversos temas diferentes se juntam, e a oportunidade de se discutir um
deles cria condições para a inclusão de outros. Assim a discussão sobre
pesquisa, pós-graduação, carreiras universitárias, ensino pago, titulação,
influências das multinacionais, etc., junta-se à discussão sobre autonomia.
O processo social de definição do conceito de autonomia que se deseja, corre,
assim, o risco de se perder ou misturar com temas que podem, até mesmo,
não ter nada a ver com o problema em pauta. Daí porque a analise organizacional
tem que abstrair-se, um pouco, dessa realidade, sob o risco de tornar-se
apenas um discurso político-ideológico. Mas, obviamente, não pode ser ignorada,
se se pretende, com a análise, abranger os problemas da implementação. Isso
nos leva à consideração do segundo aspecto, qual seja, o das forças internas
à Universidade e sua participação enquanto definidores de uma realidade.
A Autonomia Desejada(1)
Um dos temas difíceis da sociologia organizacional é a definição da unidade
em análise. Peter Drucker, certa vez, definiu a Universidade como um conjunto
de professores e prédios cujo único elo comum seria o estacionamento. Uma
visão monolítica da Universidade ou do poder central poderia levar a um
entendimento profundamente errôneo a respeito da definição e aspiração de
cada grupo face ao tema da autonomia universitária. Curioso também é observar
como, num processo de definição e de posicionamento, os diversos atores
tendem a formar alianças que, à primeira vista, pareceriam espúrias. Veremos,
através de exemplos, como o estudantado, por exemplo, teria mais tendência
a se aliar às posições e resoluções do Conselho Federal de Educação do que
certos grupos de pesquisa e pós-graduação, que preferiam vê-lo extinto,
no processo de autonomização.
Nos levantamentos realizados, tentamos entender a posição que assumiriam
cinco grupos "típicos" e diferentes, dentro das Universidades
federais, face ao problema de autonomia universitária, tendo em vista suas
possíveis conseqüências em termos de administração, Finanças, liberdade
acadêmica, carreiras, poder interno e participação. Os grupos considerados
foram os funcionários do Ministério da Educação responsáveis pelo ensino
superior; as reitorias, nelas compreendendo os reitores e seus órgãos executivos
(e não os colegiados); um departamento "típico" voltado para o
ensino profissional de graduação; um departamento "típico" voltado
para a pós-graduação e para a pesquisa, com ênfase na qualidade; o grupo
dos alunos.
Para evitar mal-entendidos (aliás inevitáveis nesse tipo de empreendimento),
é importante notar que estes grupos não são "típicos", no sentido
de médios, ou representativos, e não correspondem a nenhum grupo real de
pessoas ou instituições específicas. O que fizemos, foi pensar em certos
grupos hipotéticos que assumissem, de forma acentuada e exagerada, as posições
mais explícitas decorrentes das diversas posições existentes no sistema
(são, em outras palavras, "tipos ideais" no sentido weberiano).
É claro que nenhum dos participantes reais do sistema universitário se comporta
como está aqui descrito. No entanto, estas reações "típicas" correspondem
à lógica da posição dos diversos grupos, e nossas observações empíricas
parecem indicar que estas caricaturas não estão demasiado distantes da realidade.
Ministério
Pela estrutura, rotinas organizacionais, tradição, know-how, poder
atual e pelas próprias circunstâncias, esse grupo, em geral, tenderia a
se voltar para um tipo de autonomia consentida, tutelada, sobretudo para
eficientizar e facilitar os aspectos administrativos e financeiros. Esta
atitude geral variaria, no entanto, conforme a relativa aproximação de diversos
setores do Ministério com o sistema universitário, com a coletividade acadêmica
de pesquisa ou com as corporações profissionais mais atuantes. Enquanto
uns tenderiam a se aliar com os Reitores na busca de um processo gradual
e diferenciado de autonomização das Universidades, outros tenderiam a se
aliar não tanto às estruturas das Universidades enquanto tais, mas a departamentos
mais fortes e promissores, apoiando-lhes as tentativas de autonomia e libertação
de regras e imposições do modelo centralizador. Outros, finalmente, tenderiam
de defender, ao extremo, os controles e mecanismos de regulamentação e supervisão,
em aliança com grupos profissionais que usam de seu poder para assegurar
seus direitos corporativos e regalias correspondentes.
Reitoria
Fundamentalmente, a aliança das Reitorias seria com o MEC, seja por ser
o interlocutor com quem mais se habituaram a falar, seja porque, no sistema
atual, é aí que reside o seu eleitorado decisivo. (Daí porque uma mudança
no sistema de escolha de reitores possivelmente determinaria um comportamento
organizacional diferente, a este respeito) Em Universidades mais fortes
e tradicionais, onde há fontes múltiplas de apoio e sustentação, essa aliança
tenderia a ser mais tênue, mesmo porque nelas as Reitorias, via de regra,
são mais enfraquecidas pelos departamentos ágeis e de grande interpenetração
no meio ambiente. As demais tenderiam a reforçar essa aliança com o centro.
Em ambos os casos, um fortalecimento da Reitoria seria buscado, seja concentrado
na figura do Reitor (favorecendo assim um modelo centralizado externo e
interno), seja na forma de colegiados internos mais fortes. É a nível desse
grupo que aparecem, mais claramente, as contradições possíveis entre uma
autonomia externa (MEC-Universidade) aliada ou não a um repasse interno
dessa autonomia aos departamentos e colegiados.
Departamento de Pesquisa
Os questionários e entrevistas se limitaram a departamentos fortes, seriamente
cometidos à pesquisa e à carreira de seus membros enquanto pesquisadores.
Duas atitudes foram detectadas, face à interpretação dos Sinais visualizados
na autonomia. Na medida em que, no processo de "lata de lixo",
a autonomia fosse percebida como ameaça generalizada (aliada a corte de
verbas, necessidades de venda de serviços técnicos ao mercado para sobreviver,
etc.), a tendência seria de estreita aliança interna com outros departamentos
e com a Reitoria. Para os que percebem a autonomia como um desafio, a tendência
é no sentido de descentralização, de fortalecimento de colegiados, de autonomia,
inclusive, a nível de pesquisador individual, de distribuição desigual dos
recursos (como já verificado empiricamente, no estudo citado de' Pfeffer).
É interessante notar que essas observações se coadunam com os achados de
Lodahl e Gordon (1973), que verificaram que, em grupos, onde o paradigma
científico é mais forte, mais bem estabelecido, os indivíduos tendem a ter
colegiados mais fortes, menos independência individual e menos burocracia
interna. Nos grupos que atuam sob paradigmas científicos mais débeis, há
tendência para exacerbação da liberdade individual e interna, os colegiados
são menos fortes e há maior incidência de burocracia e controles formais.
Departamento de Ensino
Os núcleos mais voltados ao ensino, com maiores compromissos com a formação
profissional e responsáveis pela carga docente tenderiam a ver, num processo
de autonomia, uma dupla ameaça. Por uma parte, a independência das Universidades
em relação ao Ministério poderia significar, na prática, uma redução dos
volumes globais de recursos disponíveis para as Universidades com repercussões
sobre seu funcionamento e sobre os salários de seus professores. A outra
ameaça seria uma conseqüência desta: as Universidades teriam que buscar
seus próprios recursos de forma independente, e, nesse processo, haveria
uma tendência a fortalecer os grupos e setores que tivessem maior agressividade
empresarial, melhores condições de se vincularem ao mercado, na venda de
serviços técnicos de todo o tipo, ou melhores condições de obtenção de fundos
especiais de pesquisa.
A questão crucial para esse núcleos não é descentralização, mas a democratização
das decisões no interior do sistema universitário. Existe, relativamente,
pouca preocupação com os problemas derivados da burocratização, padronização
de cursos e carreiras, ausência de autonomia na fixação de currículos, etc.
Ao mesmo tempo, existe uma sensibilidade acentuada para eventuais desigualdades
de base meritocrática, ou outras, que o processo de autonomização pudesse
consolidar. As maneiras de garantir estas igualdades básicas são duas, de
forma conjunta ou separada: a manutenção de um sistema centralizado e padronizado
de normas e controles e o estabelecimento de sistemas de decisão por votação
majoritária. Isto permite entender por que, neste grupo, a defesa da democratização
faz-se acompanhar, com freqüência, pela defesa da centralização ministerial.
Alunado
Existem grandes ameaças, no conceito de autonomia, a uma série de expectativas
que os estudantes têm da Universidade. Mesmo porque, em geral, a maioria
dos estudantes, hoje, nas Universidades, não possuem parâmetros muito firmes
a respeito de qualidade (e quase sempre o confundem com o de relevância).
A idéia de pesquisa drenar fundos do ensino e a idéia de desregulamentação
profissional - que é uma das formas de se entender a autonomia - lhes é
naturalmente assustadora. Daí porque lhes interessa muito a ação normativa
e equalizadora do CFE, assegurando, através de critérios formais, condições
de igual titulação, igual direito e, presumivelmente, mais recursos. Seus
aliados internos seriam, por decorrência, os departamentos de ensino que
esposariam um nível semelhante de preocupação. A par dessas alianças, a
busca de autonomia da Universidade e de participação constante de alunos
das decisões (já então mais autônomas) é um dos atrativos que traz a esses
grupos o conceito de autonomia.
Apesar de sua artificialidade e pouca base empírica, essas atitudes "típicas"
servem para ressaltar a complexidade e as contradições que um processo de
discussão e explicitação do tipo de autonomia desejado suscita. Na medida
em que esse processo é subjugado, numa discussão real, a um processo de
"lata de lixo", os resultados, obviamente, tornam-se mais imprevisíveis,
tornando-se assim impossível testar qualquer hipótese.
O que importa, das descrições acima, é demonstrar a importância da inércia,
da tradição, das rotinas e regras das organizações envolvidas bem como as
ameaças do poder de cada grupo. Esses aspectos e os imprevisíveis da realidade
tornam mais difícil o delineamento de modelos de possibilidade de rearranjo
institucional.
Apesar das dificuldades, é possível, no entanto, esboçar modelos organizacionais
alternativos em que os órgãos da periferia tivessem condição de assumir
- em maior ou menor grau - o poder e a autoridade de se auto-dirigir.
Em Busca de Alternativas
A discussão da autonomia deveria trazer à baila não apenas os problemas
organizacionais de desburocratização e descentralização administrativas,
mas a possibilidade de redefinição das próprias funções das instituições
universitárias. Deveria, ainda, abranger a discussão de outras formas de
atendimento aos problemas da educação superior e de atendimento a outros
anseios da comunidade. Para tanto, é necessário se pensar em formas e tipos
diferenciados de organização universitária.
O problema central, na busca de alternativas, consiste na delimitação mais
adequada dos sistemas sociais e no exame de modelos descentralizados em
que os órgãos periféricos assumam, a contento, as funções de controle. Resta
sempre o dilema último do controle: "qui custodet custodes,"
quem vigia os guardas. Mecanismos plurais e alternativos, conceitos de responsabilidade
substantiva e "public accountability" terão que ser arrolados.
O monopólio do poder tem que ser quebrado, e centros plurais e periféricos
de Supervisão e controle, tanto internos quanto externos às instituições,
são mecanismos que podem garantir uma diferenciação auto-sustentada. O modelo
inglês do University Grants Committee, por exemplo, oferece um
exemplo para superação do impasse aparente.
Como mecanismos intermediários de controle externo e incentivos para auto-regulação,
poderiam ser fortalecidas as associações profissionais (com ou sem exclusividade
de licenciamento profissional); associações inter-universitárias ou associações
de centros e departamentos de pesquisa, por exemplo, poderiam vir a se constituir
em mecanismos intermediários de compatibilização de políticas, alocação
de recursos e controle de qualidade. A Sociedade Brasileira para. o Progresso
da Ciência-SBPC e a Sociedade Brasileira de Física - SBF, em particular,
já funcionam, de certo modo, nessa capacidade.
Quanto à instituição, a idéia de autonomia levaria a examinar a possibilidade
de diferenciados tipos de Universidades ou instituições de nível superior,
com diferentes ênfases e missões: uma de vocação mais universal, abrangendo
os diversos ramos do saber, em vários níveis de profundidade e criatividade;
outras concentradas em tipos de profissão ou pesquisa; algumas poderiam
se conceber na forma de "teaching colleges" ou mesmo "rural
colleges"; outras, ainda, na forma de Universidades abertas, Universidades
populares, centros de extensão etc.
Na medida em que formas organizacionais e redes inter-organizacionais para
formulação de política, alocação de recursos, poder, pressão e controle
podem ser imaginadas com relativa facilidade - embora sua implementação
e legitimação não sejam matérias de tranqüila viabilização - torna-se necessário
voltar ao ponto de partida: como fica o centro?
A delimitação de novos papéis e funções para o centro impõe-se como passo
fundamental, depois de ter sido superado o impasse dos raciocínios em bloco
e admitida a possibilidade da coexistência com instituições diferenciadas,
ou de setores diferenciados dentro de instituições. Ao centro, passariam
a caber, nesse modelo, três papéis principais: (a) definir novos papéis
e funções a serem preenchidas pelas instituições (atuais e novas); (b) estabelecer
novas bases de suporte e poder, sobretudo para os grupos novos ou ainda
não legitimados ou suficientemente articulados; e (c) provocar, deliberadamente,
a diferenciação no sistema, seja demolindo entraves e regulamentos (que,
no caso concreto, implicaria a redefinição de órgãos como o Conselho Federal
de Educação - CFE), seja criando incentivos e condições para o florescimento
de novas instituições e formas organizacionais.
Nesse processo, lia cuidados essenciais a serem relevados pelo centro. Os
órgãos periféricos não deveriam ser concebidos numa visão corporativa como
órgãos de base de um sistema central, ao qual não podem se contrapor ou
deles se diferenciar e exercer a criatividade. Contra-exemplos, entre nós,
lia muitos, mas o caso mais transparente é o do sistema de planejamento
urbano, onde os órgãos periféricos não fazem mais do que reproduzir as diretrizes
e comportamentos emanados e gerados no centro.
Quanto aos problemas enfrentados pelos órgãos da periferia, sobretudo aqueles
que têm de enfrentar duras disputas para sobreviver, é essencial o estabelecimento
de sistemas de auto-correção e de indicadores de desempenho e qualidade
que lhes permita assumir, de direito, as responsabilidades pelos sistemas
de controle.
Conclusões e Implicações
O delineamento e análise dos problemas de auto-regulação de organizações
autônomas ou periféricas requer um esforço de superação de posições românticas
e de posições dogmáticas.
A visão estrita de racionalidade no planejamento tem que dar lugar, diante
de uma realidade institucional tão complexa, a teorias organizacionais que
possam efetivamente captar as novas dimensões e implicações políticas e
gerenciais dessas redes inter-organizacionais. A nível de uma instituição
universitária, em particular, é forçoso reconhecer a natureza peculiar -
mas não exclusiva - desse tipo de organização.
A Universidade é uma anarquia organizada (Sproull et alia 1978; Clark, 1978),
na medida em que tem objetivos problemáticos, lida com tecnologias incertas
e depende de elementos que participam intermitente e fluidamente de seus
processos decisórios.
As idéias de eficientização e racionalização, geralmente associadas com
esforços de redução de gastos e alocação ótima de recursos em organizações
industriais e comerciais, têm que ser entendidas dentro de um quadro muito
mais difuso de relações e ações inter-organizacionais, na medida em que
se encaminhar efetivamente para sistemas interativos auto-reguláveis.
O requisito central para viabilizar formas de autonomia deve repousar em
um sistema de administração diferenciada, dentro e fora da Universidade,
calcado no aprendizado da convivência com formas múltiplas de monitoramento,
controle e financiamento.
A administração universitária, como disse James March (1978), é como um
calendário com anotações de rodapé escritas por Kierkegaard. Ela inclui
pragmatismo, leis, regras, lógica, logística, terapia, crítica construtiva,
arte e fé.
A arquitetura de formas organizacionais, semelhantemente a um manual de
administração universitária ou a um livro de puericultura, deve conter respostas
concretas a problemas práticos, apresentar modelos genéricos para casos
gerais e expressar um ponto de vista coerente, que sirva de orientação geral.
A esta altura, estamos mais bem servidos com os livros de puericultura,
mas nem por isso devemos nos desiludir quanto ao precário estágio de desenvolvimento
de nossa ciência das organizações.
Referencias
Bibliográficas
Clark, B. R. "The insulated Americans: five lessons from abroad."
Change, Nov. 1978 p. 24-30.
Lindbloom, C., Politics and Markets. New York, Basic Books, Inc.,
1977.
Lodahl, J. B. & Gordon, G. "Differences between physical and social
sciences in University Graduate Departments. Research in Higher Education.
1 (3 191-213, 1973.
March, J. G. "American Public School Administration: a short analysis."
School Review, Fev. 1978, p. 217-250.
March, J and Olsen, J. B. Ambiguity and Choice in Organization.
Oslo, Universitat Forlaget, 1976.
Pfeffer, J. and Salancik, G. R "Organizational Decision Making as a
Political Process: The Case of a University Budget," A. S. Q., 19,1974
p. 151-315.
Sproull, L; Weiner, S. Woff, D. Organizing and Anarchy. Chicago,
The University of Chicago Press, 1978.
Nota
1. As informações utilizadas para esta parte do trabalho
são fruto de coleta de dados sistemática e assistemática. Parte dos dados
advém de um questionário utilizado num exercício de simulação junto a professores
universitários; inúmeras entrevistas foram também efetivadas, com esse propósito,
a nível de Ministério da Educação e Cultura e com professores universitários.
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