Cor, Raça,
Discriminação e Identidade Social no Brasil Simon
Schwartzman
texto preliminar, março de 1998
as idéias são de responsabilidade exclusiva do autor
Há muito tempo se discute, no Brasil, se as diferenças de rendimento e oportunidades
entre brancos e negros é uma questão de classe ou uma questão de raça. Antes
da guerra, haviam autores que diziam que a "mestiçagem" contaminava
o povo brasileiro com características morais e intelectuais indesejáveis,
e que nossa esperança estaria no "branqueamento" gradual da população.
Esta maneira racista de entender as coisas ficou desmoralizada depois do
Nazismo, e a questão das diferenças entre as raças passou a ser interpretada
em termos de classe. Nesta nova visão, não existe diferenças raciais significativas
entre as pessoas, e sim diferenças sociais, de classe. Quando os pobres
fossem menos pobres, quando houvesse educação e oportunidade para todos,
os problemas de desigualdade de renda e sobretudo de oportunidade desapareceriam.
Esta visão de que o problema racial no Brasil era, na verdade, um problema
de classe, com raízes na história tão recente da escravidão, se apoiava
no fato de que o Brasil nunca teve barreiras raciais tão rígidas quanto,
por exemplo, os Estados Unidos, e sempre experimentou um grau muito alto
de mestiçagem e convivência entre pessoas de características raciais e culturais
muito distintas. Alguns autores trataram de explicar isto pelas diferenças
entre a Igreja Católica, que trata a todos como iguais, e a tradição protestante,
que tende a manter as comunidades muito mais isoladas e fechadas. Outros
buscam a explicação na cultura portuguesa, tradicionalmente mais promíscua
e menos preconceituosa do que a anglo-saxã. Seja como for, o fato é que
o Brasil nunca teve legislação que tratasse as pessoas de forma diferente
conforme sua raça ou cor, e o preconceito e a discriminação racial, que
nunca deixaram de existir, permanecem no mundo das relações privadas, e
não são comportamentos aceitos nem aprovados abertamente pela sociedade.
A esperança dos defensores da tese de que o problema racial era uma questão
de classe era de que o Brasil poderia evoluir realmente no sentido de um
grande cadinho racial, o "melting pot" que alguns autores norte-americanos
previam para seu país, mas do qual os Estados Unidos parecem se afastar
cada vez mais.
O problema com esta maneira de ver as coisas é que ela muitas vezes levava
à tése de que no Brasil não existia um problema racial e que a discriminação
era uma coisa de pouca importância. Esta visão, na aparência benevolente,
se chocava com a experiência quotidiana de milhões de pessoas de origem
negra, e as pesquisas começaram a mostrar a realidade mais profunda das
diferenças de raça no país. Hoje sabemos que não se trata, somente, de que
os negros sejam mais pobres, menos educados, e por isto ganhem menos, e
tenham menos oportunidades. Para o mesmo nível de educação, na mesma profissão,
na mesma região geográfica, o negro ou pardo está quase sempre em posição
inferior ao branco. Esta realidade, combinada com a influência e o exemplo
do movimento negro nos Estados Unidos, levou à criação de um movimento afirmativo
entre intelectuais negros no Brasil. Não havia por que continuar esperando
que as diferenças de classe desaparecessem, e muito menos continuar a imitar
os brancos como forma de evitar o preconceito e a discriminação. Era necessário,
ao contrário, assumir a identidade negra, valorizá-la, e partir para a ação
no sentido de impedir o racismo e obter compensação e correção dos efeitos
da discriminação passada. Como isto pode ser feito, e que resultados podem
ser conseguidos, é um tema muito discutido, e objeto de grandes controvérsias
nos Estados Unidos, onde o movimento de valorização da cultura e da tradição
negra e os programas de ação afirmativa avançaram mais. Em um extremo estão
os que insistem no ataque à discriminação dos brancos, e no recebimento
de compensações, para uma maior integração na sociedade; no outro, estão
os que insistem na valorização da cultura e da tradição negra, discriminam
os brancos e preferem o isolamento. Há quem diga que a ação afirmativa foi
um sucesso, e outros que argumentam que ela só serviu para aumentar a desconfiança
e o fosso de comunicação entre negros e brancos. O fato, nos Estados Unidos,
é que existe hoje uma identidade cultural e social negra que pode ser valorizada,
dando a muitas pessoas um sentido de dignidade e pertencimento que não existia
antes, ainda que, em muitos casos, a condição de pobreza, desigualdade e
mesmo discriminação continue presente.
O projeto de lei da Senadora Benedita da Silva, de tornar obrigatório o
registro da cor das pessoas nos documentos de identidade, nos registros
escolares, nos registros hospitalares e nos registros policiais(1),
é uma tentativa de intensificar, pela via legal e administrativa, a afirmação
da identidade negra que no Brasil. A justificativa é a persistência das
diferenças de raça no país, e a necessidade de "quantificar e especificar
a população negra, contribuindo também para a formação da consciência, de
nossa sociedade e da sua pluralidade". Apesar da boa intenção, a proposta
é muito problemática, e pode acabar criando uma situação extremamente difícil,
e não contribuindo para os objetivos a que se propõe.
Existe uma grande diferença entre o que ocorre com os grandes números, no
nível da estatística, e o que ocorre com as pessoas, e o projeto não toma
isto em consideração. Sabemos, por exemplo, que as pessoas gordas correm
mais risco de terem problemas coronarianos do que as demais, e isto deve
ser estudado estatísticamente. Não teria sentido, no entanto, exigir que
estas pessoas tivessem a identidade de "gordo" registrada em suas
carteiras. No passado, e ainda hoje em muitas sociedades, as pessoas eram
separadas em grupos fechados, e a identidade de cada um era definida de
forma clara e inequívoca, já que, quase sempre, quem era de determinada
raça era também de determinada religião, morava em determinada área, falava
determinada língua, e assim por diante. Nas sociedades modernas, as identidades
tendem a ser muito mais confusas, muito menos pre-determinadas, e dependem,
muitas vezes, da opção de cada um. Para mulheres ativas nos movimentos feministas,
a identidade feminina pode ser aquilo que elas preferem acentuar, e a através
da qual elas querem ser identificadas. Para os participantes dos movimentos
gays ou lésbicos, o que predomina é a preferência sexual. Para os religiosos
de determinados grupos, a marca principal é a religião; para os profissionais,
vale a profissão; para os membros do movimento negro, é a raça, ou a cultura
de origem africana, que identifica as pessoas acima de tudo. Tornar obrigatória
e oficial uma destas possíveis identidades - neste caso, a raça, expressa
como "cor" - pode ser um passo no sentido de obrigar as pessoas
a assumir uma identidade que elas podem preferir não ressaltar, por que
entendem que sua inserção na sociedade se dá por outras vias. O mesmo argumento
sobre a obrigatoriedade da "cor" nos documentos poderia se ampliado
para a obrigatoriedade do registro da preferência sexual, religiosa, constituição
física, origem e assim por diante, consistindo em uma intromissão indevida
do direito das pessoas por optar e administrar sua própria forma de inserção
na sociedade.
Não é necessário definir nos documentos e nos registros públicos a identidade
racial de cada um para que possam existir boas estatísticas a respeito das
questões envolvidas. É possível fazer boas estatísticas com pesquisas por
amostras, com pesquisas anônimas, onde as informações podem ser obtidas
e analisadas sem necessidade de pendurar etiquetas nas pessoas. As dificuldades
que o IBGE encontra para pesquisar esta questão é exatamente a mesma que
leva a Senadora a propor que seja registrada a "cor" das pessoas,
e não sua raça ou sua origem. Não seria possível, a não ser por pesquisas
genéticas extremamente complicadas, e de resultado duvidoso, classificar
as pessoas por "raça" no Brasil, e nem mesmo por "cultura"
ou "origem". A opção, adotada no passado pelo IBGE, de perguntar
pela "cor", foi uma tentativa de encontrar uma forma neutra de
se aproximar da questão da raça, sem pretender medí-la diretamente. Os termos
propostos - branco, pardo, amarelo, preto - foram pensados como totalmente
descritivos, sem nenhuma idéia de que eles servissem como forma de identificação
dos grupos. Mas as palavras nunca são totalmente neutras, e hoje muitos
negros não gostam de ser chamados de "pretos" (ao contrário dos
Estados Unidos, onde o termo "preto", black, é preferido
hoje ao de negro, negroe, ou ao supostamente neutro colored),
e nenhum "pardo" gosta de ser chamado por este nome. Além desta
dificuldade, os limites entre os diferentes grupos são fluidos, e dependem,
em grande parte, da definição de cada um, ou dos olhos de quem vê.
A criação de uma exigência legal de registrar a "cor" das pessoas
colocaria imediatamente a questão de quantas cores seriam admitidas, e de
quem faria a atribuição da cor para as pessoas. A questão de "quantas
cores" não está presente na proposta, e a idéia que transparece é a
de que a categoria de "pardos", que segundo as estatísticas do
IBGE corresponde a 42.5% da população, desapareceria, e seria assimilada
à de "pretos", ou negros, que também segundo o IBGE são cinco
por cento do total (mas elas também poderiam ser classificadas como "brancas",
que correspondem a 51% do total). Tampouco fica claro o que ocorreria com
a categoria de "amarelos", que, nos dados do IBGE, inclue pessoas
de origem oriental, índios brasileiros e boa parte da população nordestina.
A questão de quem faz a atribuição da cor, finalmente, é quase impossível
de solucionar. Em alguns casos, as próprias pessoas poderiam se auto-definir,
mas muito provavelmente elas prefeririam não se enquadrar em uma das poucas
categorias definidas pela legislação. Em outros casos - crianças recem-nascidas,
vítimas de acidentes - o funcionário encarregado do registro, ou quem sabe
algum parente, deveriam decidir. Mas como tornar a informação coerente?
Como evitar o preconceito nesta classificação? Usar uma escala cromática,
talvez, e comparar a cor da pele do braço das pessoas com uma série de cores
numeradas? Mas qual o sentido real, sociológico, cultural e biológico, de
uma mensuração como esta?
Podemos concluir observando que a época moderna tem presenciado um movimento
no sentido de recuperação e valorização da identidade das pessoas, em seus
diferentes aspectos - culturais, históricos, religiosos, e mesmo físicos
- e também fenômenos assustadores de violência e genocídio associados a
conflitos raciais, religiosos e culturais. Não é mais possível pretender
que as pessoas sejam jogadas na vala comum da uniformidade, que muitas vezes
encobre situações odiosas de discriminação e desigualdades. A recuperação
e valorização das identidades é um processo rico e profíquo, que pode dar
às pessoas mais sentido para suas existências, e abrir caminho para novas
conquistas. Mas deve ser um processo das pessoas, dos grupos, e permanecer
sempre aberto e plural. O Estado não deve assumir para si a tarefa de definir
de forma forçada a identidade das pessoas, mesmo em nome de ideais tão nobres
como a "pesquisa" ou o "conhecimento". O que hoje é
proposto em nome do melhor conhecimento pode se transformar com facilidade
em um instrumento de discriminações e conflitos entre cidadãos de diferentes
classificações. A igualdade de todos perante a lei, apesar de encobrir,
como sabemos, tantas desigualdades de fato, continua sendo uma das grandes
conquistas das sociedades democráticas contemporâneas, e não deve ser mexida;
se isto ocorrer, o que está pensado como um avanço pode terminar se transformando,
afinal, em um grande e lamentável retrocesso.
Nota:
1. Projeto de Lei do Senado nº 16,
de 1995.
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