TEMPOS DE CAPANEMA de Simon Schwartzman, Helena Maria Bousquet Bomeny, e Vanda Maria Ribeiro Costa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984, 388 pp.

"O passado que ainda está vivo", resenha de Norma Couri, Folha de São Paulo, 24 de março de 1985

Três competentes pesquisadores acabam de forçar os brasileiros a reconhecer que sem memória não somos nada. Simon Schwartzman, Helena Bomeny, Vanda Ribeiro Costa provaram isso se debruçando sobre duzentos mil documentos que compuseram a vida de um homem - e publicando Tempos de Capanema com esses fragmentos de memória que contam, também, a história do Brasil.

História é feita assim - do cotidiano sem grandezas, de disputas e mesquinharias, de erros e hesitações, de cartas para amigos de infância, para o pai, para a mãe. A nossa não foi diferente. Por isso, ao concluir seu trabalho com um livro bem escrito mia raridade nessa área - com fascinantes meandros capazes de nos conduzir ao nosso próprio umbigo, Schwartzman, Helena e Vanda jamais cederam à tentação de criar heróis ou heroísmos.

Muito pelo contrário. Chamaram atenção para o ato de generosidade de Gustavo Capanema ao permitir pesquisa em seu arquivo particular, e para a falta que um homem com visão de futuro - como ele - nos faz. Mas foi só. Cientistas experientes, os três demarcaram o labirinto provocado a partir de um pequeno nó forjado às vezes nas relações pessoais de Capanema - ministro da Educação e Saúde de Getúlio Vargas e 1934 a 1945-, o que desnortearia por muitos anos o desenho idealizado para este país. Os pesquisadores apontaram onde foi que esses nós começaram a partir das anotações, as cartas e dos escritos guardados por Capanema que - coincidência ou não - morreria aos 85 anos, logo depois do livro publicado.

Nascido com o século, Capanema foi protagonista da revolução de trinta e esteve presente, muitas vezes o papel de condutor, ao giro do carrossel que roçaria ora num movimento integralista, ora num movimento comunista, tendo como pano e fundo o Estado Novo de Vargas.

Político hábil, deixou de Vargas - em defesa de quem faria um célebre discurso em 1945 - a seguinte descrição: olha para cima e não para a gente, incapaz de seduzir. Acabou seduzindo o próprio Capanema para ocupar uma de suas pastas mais importantes, quando este já estava devidamente azeitado na política doméstica de Minas Gerais, onde foi secretário do Interior. Capanema conspirou contra o presidente Artur Bernardes em 1937, participou da Legião de Outubro, assinou o manifesto dos Mineiros em 1938 junto com Milton Campos, contra quem se voltaria em breve ao disputar os votos para a Constituinte de 1934 na cidade onde ambos nasceram, Pitangui.

Ao se tornar ministro, Capanema assistiu e participou de um trecho de onze anos de história onde as raízes do Brasil mais se arraigaram, e dão frutos até hoje. Os tempos de Capanema permearam, sob pretexto de caiar novas formas de ensino a disputa da Igreja pelo poder - onde o papel de católicos como Alceu Amoroso Lima foi fundamental. E o dualismo religião versus ciência foi assim mantido, com todas as críticas ao "materialismo" e à "descristianização do ensino" conduzindo à implantação do horror ao comunismo

Da aproximação Igreja-Estado, um golpe político de Vargas, nasceriam também os moldes indissolúveis da instituição do matrimônio, garantindo à mulher sua condição de doméstica e procriadora limitada pela censura moral e pela autoridade do chefe da família. Totalitário também, o projeto das Forças Armadas, germinando na natural assepsia, na ordem e na disciplina, desembocaria no pró-germanismo representado entre outros pelo próprio chefe do Estado Maior do Exercito, general Góis Monteiro, com a juventude brasileira devidamente arregimentada para a marcha nazifascista.

Não há eufemismos na leitura dos três pesquisadores. O projeto educacional de Francisco Campos é achado de fascista. A decantada tendência nacionalista da época é denunciada como fonte tão farta que abrigou num veio o irracionalismo de Plínio Salgado, no outro o abrasileiramento dos brasileiros por homens como Mário de Andrade. Da mesma forma, a cultura ganharia papel de destaque para deslanchar por um lado a arquitetura moderna inspirada em Le Corbusier, por outro na censura imposta pelo Departamento de Imprensa e Propaganda criado em 1939. Os tempos de Capanema revelam também os fracassos das reformas educacionais que herdamos e sobre asquais não se fez uma reflexão aprofundada até hoje.

Depois de escrever 266 páginas sobre tempos de ação, de política, de reforma e de transição de Gustavo Capanema, os autores enriqueceram o livro com quase uma centena de cartas de 1916 a 1944. Hoje, selecionadas, ajudarão a fomentar a polêmica que, certamente, esse Tempos de Capanema vai gerar entre nós. <