NOTA INTRODUTÓRIA
Qualquer cronologia, do tipo que seja, é arbitrária e precária por definição. Arbitrária, porque implica decisões de inclusão/exclusão sobre fenômenos fundamentalmente da mesma espécie, mas sempre selecionados a partir de critérios subjetivos de peso e relevância. Mesmo que esta relevância esteja submetida explícita ou implicitamente a uma teoria, a própria adoção desta ou daquela implica necessariamente a eliminação de outros critérios, provavelmente tão válidos e consistentes quanto os efetivamente adotados. Precária, porque os dados são muitas vezes precários e se encontram geralmente muito dispersos; porque o processo de coleta sofre limitações de fontes e de tempo, mas principalmente porque falta uma contextualização que lhes atribua sentido e lhes dê um valor operacional determinado. Apesar disso tudo, julgamos útil sua elaboração, principalmente quando encarada como peça complementar de um esforço interpretativo como este, sobre a formação da comunidade científica no Brasil.
A presente cronologia teve, na realidade, como ponto de partida, um conjunto de fichas que registravam eventos relacionados direta ou indiretamente com a produção científica brasileira, desde os seus primórdios até os dias de hoje, resultado de um esforço coletivo por parte de todos os membros da equipe ligada ao Projeto História Social da Ciência no Brasil.
De base serviu principalmente a obra As ciências no Brasil, coordenada por Fernando de Azevedo e editada por Leonídio Ribeiro, completada, no entanto, pelas fontes bibliográficas consultadas no decorrer do Projeto. Este conjunto de dados teve uma primeira edição mimeografada, que recebeu, além de criticas, várias sugestões para ampliação e complementação.
Da constatação das lacunas e deficiências desta primeira versão, decorreu a decisão de proceder a uma revisão completa e sistemática da cronologia, desta vez por parte de uma única pessoa, favorecendo assim uma certa homogeneidade de critérios. Além disso, tomaram-se algumas decisões quanto à metodologia de trabalho.
Em primeiro lugar foi feita a opção de enriquecer os verbetes em termos de informação, indo-se um pouco além da data e do evento, pelo menos quando fosse possível. O que se buscava realmente era uma unidade de informação efetiva, se possível com indicações sumárias, quanto aos pontos de contato com outros eventos ou, então, oferecendo um mínimo de contextualização.
Segundo: as informações se restringiam inicialmente a três categorias bem distintas. A primeira dizia respeito aos resultados concretos e imediatos da produção científica em forma de descoberta, artigo, livro, etc. A segunda se referia a eventos relacionados com o "ambiente" desta produção, como expedições, presença no Brasil de cientistas estrangeiros, realização de congressos, etc. A terceira dava conta do plano estritamente institucional deste ambiente, como a criação de institutos, academias, faculdades, cadeiras, etc., a fundação de revistas, a decretação de leis ou reformas referentes ao ensino e à pesquisa, etc. Esta tríplice divisão, considerada a mais adequada, foi abandonada aqui, por motivo de representação gráfica. Optou-se, assim, por uma apresentação em duas colunas: (I) A institucionalização da ciência; (II) A atividade científica.
Terceiro: o problema dos critérios de seleção a que já nos referimos e que determinariam a inclusão ou exclusão de um evento é aparentemente um problema insolúvel, pelo menos se colocado em termos de normas claras e unívocas ou de classificações mutuamente exclusivas. Em primeira instância se situa a questão geral da avaliação da relevância objetiva do dado, em confronto seja com o avanço daquela especialidade específica, seja com o campo da produção científica como um todo, e a conseqüente necessidade de proceder a um corte. Em cima disso, no entanto, põe-se, ainda, o problema mais sério: o das implicações de um julgamento externo em assuntos especializados.
A opção final foi. de certa maneira drástica: não há por que exercer o papel de juiz. O que se tentaria era incluir, sem exceção, todos aqueles eventos que cada autor-especialista considerou suficientemente importantes para figurarem como significativos em seu trabalho sobre a área. Esta opção teria uma dupla vantagem. A primeira é a de não introduzir mais uma etapa de julgamento. A segunda, a de não reforçar a concepção, por sinal muito criticada, da ciência como acúmulo cronológico, porém a histórico, de "pontos altos" ou de "marcos notáveis", considerando o resto .do trabalho científico como, na realidade, pré-científico ou simplesmente irrelevante, embora necessário. A idéia aqui era dar, de alguma forma, unia noção, embora fatalmente incompleta, da ciência brasileira ou da ciência calcada sobre a realidade brasileira, enquanto processo mais ou menos contínuo e "normal" de produção, para que pudéssemos estudar-lhe as variações e as constâncias, seja internas a cada campo, seja entre as diferentes ' especialidades, em termos de objeto, de instituição, de intensidade, etc. Nesta maneira de ver a ciência, o que importa menos são os grandes eventos, que acabam por eclipsar o esforço cotidiano do conjunto de cientistas nos seus laboratórios. É da constância e da intensidade e qualidade destes trabalhos que geralmente depende a possibilidade de surgirem vez ou outra os grandes feitos científicos, capazes de estabelecer um marco, internamente ou até em nível internacional. Mais do que o histórico dos grandes feitos, é o estudo deste fluxo mais ou menos constante de produção, suas inflexões e seus cortes, que interessa para quem está preocupado com uma história social da ciência.
Além disso, há ainda outra distorção que com isso se procurou neutralizar, no que foi possível. Todos somos, consciente ou inconscientemente, portadores de uma certa preferência quanto ao ramo da ciência que, mais do que os outros, representaria o lado da produção científica mais importante, mais nobre, mais relevante para o progresso da cultura humana, em suma, mais "científico". Assim, pode-se dar mais valor à física do que à zoologia ou astronomia, preferir a genética à botânica, e assim por diante. Mesmo dentro de cada especialidade, existem preconceitos: os trabalhos descritivos ou classificatórios' são frequentemente desvalorizados frente às atividades teóricas e nomológicas. Independente de qualquer justificativa, por mais plausível que fosse, a favor desta ou daquela especialidade, optou-se por dar a cada campo o mesmo peso e lugar, e a cada atividade dentro de cada um dos campos, a relevância que o autor lhe atribuiu. Assim, fica-se na dependência de trabalhos interpretativos posteriores, para detectar estruturas e precedências "a nível da teoria ou da práxis, que fundamentariam um tratamento diferenciado e que certamente terão de ir além de um eventual consenso quanto aos preconceitos, ainda que compartilhados pela própria comunidade científica.
Enfim, o resultado do trabalho está aí. Seguramente haverá omissões, erros e imperfeições. Espera-se, no entanto, que sua publicação possa vir a ser útil para tantos quanto se interessam pelo estudo da produção científica brasileira. E, se assim for, terá sido alcançado o objetivo com que foi idealizado.
Tjerk Guus Franken