O Temporário
e o Permamente
Simon Schwartzman
Comentário ao livro de Roberto da Matta, Carnavais,
Malandros e Heróis, O Estado de São Paulo, 14 de setembro de 1979.
Hoje conhecemos o Brasil mais profudamente do que ontem, graças ao esplêndido
Carnavais, Malandros e Heróis, do antropólogo Roberto da Matta.
Na torrente de idéias, intuições, discussões conceituais e análises extremamente
surpreendentes de coisas que vivem despercebidas sob nossos narizes, da
Matta mostra que as ciências sociais podem ser inteligíveis, pertinentes
e reveladoras, sem a esterilidade de textos onde a preocupação com o rigor
científicoe metodológico esconde, muitas vezes, a pobreza de idéias dos
autores.
Uma das ambições do livro é entender, não aquilo que temos de historicamento
datado e cambiante, mas aquilo que é mais permanente e duradouro. São pertinentes
"os valores, relações, grupos sociais e ideologias que pretendem estar
ao lado e acima do tempo", e que definem, de forma mais profuda, o
"caráter" ou a "cultura" de uma sociedade. O estudo
destes elementos invariantes da sociedade brasileira é o que dá ao mesmo
tempo força e fraqueza à contribuição de da Matta. Por um lado, ele nos
permite entender melhor e de maneira mais sistemática uma série de aspectos
reiterativos de nossa vida social, muitos dos quais consabidos de maneira
difusa, mas difíceis de apreender de maneira coerente. Por outro lado, ficamos
com poucas condições de entender como estas estruturas mais profundas podem,
eventualmente, se alterar, e passar de um estágio que consideramos negativo,
injusto e desagradável, para um estágio melhor. É possível dizer que Roberto
da Matta sucede brilhantemente na primeira tarefa, mas, apesar de tentá-lo,
falha na segunda.
O tema central do livro é o dilema entre os aspectos extremamente autoritários,
hierarquizados e violentos da sociedade brasileira e a busca de um mundo
harmônico, democrático e não conflitivo nesta mesma sociedade. Como todo
autêntico dilema, ele não comporta soluções, mas um estado de tensão contínua
entre polos conflitantes que conduzem a toda uma série de ritos e mitos
que, de forma sistematizada ou no quotidiano, dramatizam as principais alternativas.
O lado autoritário e hierarquizado da sociedade brasileira tem, para Roberto
da Matta (e esta é uma leitura pessoal do livro que faço), pelo menos três
dimensões distintas. Uma é a existência de uma ordem formal, baseada em
posições de status e prestígio social bem definidos, onde não existem
conflitos e onde "cada um sabe o seu lugar". A outra é a existência
de uma oposição sistemática entre o mundo das "pessoas", socialmente
reconhecidas em seus direitos e privilégios, e um universo igualitário dos
indivíduos, onde as leis impessoais funcionam como instrumentos de opressão
e de controle ("para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei").
A terceira é o mundo do sagrado, onde se opera uma suposta equalização da
sociedade, já que todos são filhos de Deus, mas ao mesmo tempo são mantidas
estruturas claramente hierárquicas de santidade.
Estes sistemas hierarquizados operam uma dissociação entre dois mundos ideais
na mitologia brasileira: o mundo da casa, onde as pessoas valem pelo que
são, onde reina a paz e a harmonia, e o mundo da rua, onde os indivíduos
"lutam pela vida" em uma batalha impiedosa e anônima. Nesta batalha,
as principais armas são, alternativamente, a afirmação dos privilégios de
status das pessoas das classes dominantes ("você sabe com
quem está falando?") e a redução dos indivíduos às leis impiedosas
do mercado e da burocracia.
Se as paradas, as procissões e o "você sabe com quem está falando?"
ritualizam e explicitam os aspectos hierárquicos e autoritários da sociedade
brasileira, o carnaval e os heróis populares dramatizariam o seu oposto.
O carnaval é essencialmente igualitário e, nos seus três dias, transpõe
para o mundo da "rua" os ideais das relações espontâneas, afetivas,
e essencialmente simétricas que são a contrapartida das paradas. A negação
que o carnaval faz das estruturas de poder e autoridade é corporificada
no malandro e seu paradigma, Pedro Malasartes, que não respeita nem crê
nos valores da autoridade e do poder, mas os conhece, e aproveita deles
em seu próprio benefício. O malandro, ao contrário do herói, não busca dominar
a estrutura do poder e a ela se sobrepor - e, nesse processo, terminar por
ser reabsorvido por ela. Ele vive nos interstícios do sistema, de seus absurdos
e de suas contradições. Se o herói sai das paradas e o malandro dos carnavais,
outro personagem - o místico renunciador - sai das procissões. Ele rejeita
o sistema como um todo, nem o aceita nem se aproveita dele, mas cria seu
próprio espaço de vida e seus próprios valores.
Este resumo não é totalmente fiel ao livro, porque Roberto da Matta não
chega a "fechar" completamente seu sistema - o homem da ordem,
por exemplo, o "caxias", não chega a ser analisado em maior profundidade,
e as relações entre o carnaval e os três sistemas de autoridade tampouco
são estudadas em todas suas possibilidades. Mas dois exemplos bastam para
mostrar a fecundidade desta maneira de vez as coisas.
O primeiro é a análise da organização das Escolas de Samba, que teriam,
segundo da Matta e os autores que cita, a estrutura de um "cometa".
Neste sistema, existiria um núcleo extremamente fechado e coeso de "donos"
da Escola, que criariam um segundo círculo de pessoas associadas, as quais,
por sua vez, abririam a Escola para o público mais amplo possível. Com isto,
as Escolas conseguem ser, ao mesmo tempo, profundamente autoritárias e amplamente
democráticas. Elas misturam ricos e pobres, pretos e brancos, fazem de todos
iguais perante o samba - mas é uma igualdade que não implica associação
de pessoas, participação em decisões de interesse geral, disputa por lideranças
efetivas. A Escola de Samba, assim, dramatiza e permite entender um aspecto
bastante generalizado e pouco entendido de nossa realidade, que é a existência
simultânea de formas de convivência igualitárias e não discriminatórias
em contextos extremamente autoritários e estratificados.
O segundo tem a ver com a questão do horror brasileiro ao conflito. A idéia
do "homem cordial", hoje sabemos com clareza, não é um simples
equívoco, nem corresponde à total realidade das coisas. De fato, a dissociação
que existe em nossa cultura entre o mundo das relações pessoais, baseadas
na qualidade das pessoas, e o mundo selvagem da "rua", faz com
que qualquer conflito aberto e manifesto seja percebido pelos participantes
como algo extremamente ameaçador. A conseqüência é que ser "agressivo"
é um dos defeitos sociais mais graves, e o "tudo bem", "numa
boa", pronunicados a cada instante, o seu oposto. Mas como a realidade
social é de conflitos e contradições, estes, quando se manifestam, tendem
a ser de fato violentos, desgarradores e irreparáveis, quando não camuflados
e sistematicamente negados, gerando assim a má fé e o cinismo institucionalizados.
O que Roberto da Matta não consegue sugerir de forma satisfatória são maneiras
pelas quais estas estruturas sociais mais profundas podem ser alteradas.
Ele desconfia das transformações e revoluções de tipo político, já que elas
teriam por objetivo, essencialmente, trocar a posição de alguns atores dentro
de estruturas basicamente imutáveis. A modernização capitalista não consegue
fazer do Brasil um país capitalista no sentido anglo-saxão, porque encontraria
em nosso meio raízes sociológicas e culturais imunes, ou quase, aos eventos
da história. Se isto é certo, seria o mesmo para o socialismo. No entanto,
ele parece crer que, em personagens tipificados por Augusto Madraga, que
rejeita o espaço social com suas alternativas predeterminadas para criar
seu próprio universo, existiria alguma forma de esperança.
É, sem dúvida, muito pouco, principalmente se lembramos que o místico, geralmente,
renuncia ao mundo da terra, e cria seu espaço novo no mundo dos céus, deixando
o daqui intocado. No entanto, não deixa de ser curiosa a coincidência entre
esta proposta pouco explicitada por da Matta e a tese central de Weber a
respeito do caráter extremamente dinâmico e revolucionário do carisma nos
processos de mudança social.
A falta de resposta à pergunta sobre o futuro pode significar, ainda, o
simples fato de que esta resposta não existe de maneira simples, e que algumas
estruturas da sociedade brasileira são muito mais profundas e difíceis de
mudar do que gostaríamos. Ter consciência delas, no entanto, já é um primeiro
passo, e neste sentido, de conhecimento e desmistificação, a contribuição
de Roberto da Matta é muito grande.
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