BASES DO AUTORITARISMO BRASILEIRO, Simon Schwartzman. Rio de Janeiro, Campus, 163 pp. 850.00

"Retrato de um Fantasma, editorial do Jornal do Brasil, 24 de janeiro de 1982

O fantasma do autoritarismo continua a assombrar a vida institucional brasileira, a influir em nossos costumes políticos e não políticos. Trata-se de assombração tão presente e tão robusta que já foi possível, nos últimos tempos, fotografá-la várias vezes de pequena distância. A última tentativa bem sucedida é a de Simon Schwartzman - Bases do Autoritarismo Brasileiro - por onde se vê que pesquisar as nossas raízes autoritárias equivale a rescrever a história do Brasil.

"Historicamente" - diz este ensaio recém lançado - "a sociedade civil brasileira tem sido incapaz de criar um sistema político em condições de se contrapor efetivamente ao peso avassalador do poder central."

Sabe-se que o Império começou a elaborar o seu sistema de representação política, apoiado num cálculo de patrimônio individual que correspondia ao espírito da época. Estava-se longe do "sufrágio universal"; mas havia, de qualquer forma, a preocupação de elaborar um sistema representativo.

A República desinteressou-se dessas especulações, sob a forte influência do positivismo, de que o castilhismo gaúcho era uma versão virulenta. O bem público, para Castilhos, confundia-se com a imposição; por parte do "governante esclarecido", de um Governo moralizante, que fortalecesse o Estado em detrimento dos interesses individuais egoísta., e que velasse pela educação cívica dos cidadãos, origem de toda moral social.

É fácil imaginar como essa visão de mundo, intensamente combatida na República Velha até chegar ao Poder em 1930, satisfazia à tradição castrense também viva no Sul, em conseqüência de ser o Rio Grande a nossa "fronteira viva", sempre em armas contra uma hipotética invasão. Daí o feliz casamento entre positivismo e militarismo - e a presença do Rio Grande do Sul na política brasileira, desproporcional à sua importância econômica ou geográfica.

Para a realidade avassaladora do Estado, entretanto, também cooperou a própria "sociedade civil" - e as circunstâncias da formação econômica do Brasil moderno. Simon Schwartzman utiliza como exemplo típico o da política cafeeira. "O cultivo do café requer crédito, pois necessita de quatro anos de investimento inicial até que os cafeeiros recém plantados frutifiquem. A fonte inicial de crédito provinha de intermediários no Rio, que se encarregavam da comercialização do produto e que retinham os empréstimos, seus juros e lucros. Quando veio a decadência (no Estado do Rio), a dependência dos agricultores em relação a esses intermediários aumentou, e em 1850 Banco do Brasil começou a financiar diretamente os cafeicultores em dificuldade".

É um exemplo antigo de "hospital público". "O cafeicultor parecia confiar em sua influência política, seus títulos de nobreza e relações pessoais para evitar a pressão de seu credor oficial. " Daí, talvez, a frase famosa de que no Segundo Império "dançava-se sobre hipotecas". E segundo um observador da época, "em nenhum lugar do mundo se proporciona aos agricultores tantas garantias legais para permitir-lhes cultivarem suas terras em paz como no Brasil". "O apoio financeiro aos agricultores" – completa Schwartzman - "foi concedido durante certo tempo contra qualquer lógica econômica". Assim se assiste à gênese do "Estado protetor."

Em São Paulo, uma política de atração de imigrantes europeus e de relações de trabalho modernas permitia o arranque do Estado em relação a seus concorrentes e ao país como um todo. Mas com a virada do século também os cafeicultores paulistas ouvem o canto de sereia do intervencionismo. O Acordo de Taubaté, assinado em 1906 pelos Governos de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, é "um esforço sistemático para o controle da oferta e para influenciar os preços do café no mercado internacional". "Havia" - sublinha Schwartzman - "um esforço sistemático e constante de transferir ao Governo federal a responsabilidade pela condução da política cafeeira do país - e evidentemente a absorção de seus custos".

Inicialmente, a busca de apoio oficial para a defesa de seus interesses era vista pelos cafeicultores como uma medida temporária para compensar uma situação adversa no mercado internacional. Mais tarde, como revela uma outra análise (de Elisa Pereira Reis), "sob o impacto de crises recorrentes do mercado, as preferências pela ação do Estado em relação a esforços cooperativos os levaram a renovar suas demandas por mais intervenção estatal. Depois de três instâncias de "intervenção temporária", os fazendeiros passaram a fazer campanha pela ação permanente do Estado no mercado do café, o que finalmente conseguiram na década de 20". Do que resultou o que a mesma autora chama de "superposição significativa entre as ordens pública e privada".

Este é o país antigo que a Revolução de 30 veio transformar. A grande arrancada castilhista que chegou ao Rio em 1930 apoiou-se tanto no descontentamento com a ordem vigente como, sobretudo, na ânsia modernizadora que, penetrando a jovem oficialidade, era também em boa parte a de outros setores da consciência nacional (algo de parecido ao que aconteceria em 1964).

Aos arroubos idealistas do castilhismo puro, Vargas contrapõe um fino pragmatismo, apoiado no conhecimento do homem em geral e do homem brasileiro em particular. O Estado paternalista é lado bondoso do Estado autoritário. O Estado, que chegou ao Brasil antes que aqui houvesse uma nação, antecipa-se às necessidades e aspirações práticas das massas. Teremos direito trabalhista antes de ter proletariado industrial.

Todo o esforço de Vargas vai consistir em criar organismos onde as questões de alguma relevância passem a ser consideradas do ponto de vista técnico. "O Estado puramente político" - diz um de seus discursos - no sentido antigo do termo, podemos considerá-lo atualmente entidade amorfa, que aos poucos vai perdendo o valor e a significação" . E no decreto que disciplina a organização sindical varguista, Lindolfo Collor cita a bíblia do castilhismo – Augusto Comte: "Guiados por essa doutrina, nós saímos fatalmente do empirismo individualista, desordenado e estéril, que começou a bater em retirada há quase meio século, para ingressarmos no mundo da cooperação social, em que as classes interdependem uma das outras e em que a idéia de progresso está subordinada à noção fundamental da ordem."

Jano bifronte, Getúlio Vargas sabe encarnar ao mesmo tempo o passado e o futuro brasileiros. Promete a modernização – que realiza aqui e ali - ao mesmo tempo em que aperfeiçoa ainda mais o mecanismo por excelência da política brasileira: o da cooptação, "sistema de participação política débil, dependente, controlado hierarquicamente de cima para baixo" (Schwartzman). Por trás desse mecanismo, jaz a convicção inabalável de que a administração pública "é um bem em si mesmo, e a organização governamental tem as características de um patrimônio a ser explorado".

Se a Primeira República se desinteressara do debate sobre a representação, o varguismo liquida de vez o assunto, em nome da eficiência, da força administrativa, militar e econômica do Estado nacional. Fecha-se o Congresso; e os interventores, nos Estados, são representantes pessoais do ditador, mesmo se Getúlio, habilmente, mantém uma composição com as elites políticas regionais remanescentes do regime anterior. Há o interregno constitucional de 1934; e depois, o Estado Novo.

Chega-se então à reconstitucionalização de 1946 - para Schwartzman, uma experiência inédita, entre nós, de "democracia de massa". Por que não teve essa experiência vida mais longa? Porque à renovação constitucional não correspondeu uma renovação dos costumes nem das idéias - com algumas raras exceções.

"Terminado o Estado Novo, os interventores nos Estados e seus prefeitos nomeados se reuniram para dar forma ao Partido Social Democrático, enquanto os burocratas do sindicalismo e do sistema previdenciário oficiais formaram o Partido Trabalhista Brasileiro. Cada qual à sua maneira, estes foram Partidos de posições, Partidos de Governo, que funcionavam combinando recursos do poder com a capacidade de cooptar as lideranças locais e sindicais ascendentes (estas últimas pelo processo que se chamou de peleguismo). Em ambos os partidos, o poder eleitoral derivava do acesso a posições governamentais e centros de decisão. Geralmente os temas ideológicos ou de princípio eram secundários, e os interesses defendidos pelas lideranças se relacionavam com a distribuição de posições, sinecuras ou facilidades e privilégios de tipo político."

Assim se formavam as sementes para um novo ciclo intervencionista. A UDN, que vocalizara inicialmente a reação liberal contra o Estado Novo, passou a exprimir em seguida unia ânsia de modernização administrativa e purificação dos costumes que ativava germes latentes nas Forças Armadas em conseqüência do atavismo positivista.

O que se passou desde então está na memória de todos. A nova Revolução cumpriu seus primeiros desígnios modernizadores; deu passagem a uma elite técnica que se tornou indissociável dos grandes Estados modernos; mas logo começou - como era previsível - a ser corroída pela excessiva concentração de poder, pela falta de controle da sociedade sobre o seu ímpeto de planejamento; do que resultaram decisões ineptas, por vezes iníquas, corrupção crescente e descontentamento ainda maior.

Pois o preço da modernização - ou a sua conseqüência - é a aparição de uma sociedade nova que já não concorda com a sua permanente marginalização. Esta é a Nêmesis do autoritarismo, a desmentir um pouco a nota desconsolada que atravessa o belo ensaio de Simon Schwartzman O próprio Schwartzman encarrega-se de anotar as novas formas de organização da sociedade civil que são como que embriões de uma experiência democrática - e que são indispensáveis na medida em que o autoritarismo não é só um fenômeno de cúpula: terminou por penetrar em todos os desvios da vida nacional, da vida familiar aos debates políticos e ideológicos.

Resta mencionar a estranha presença de uma classe política que ainda não se definiu – e que assim deixa de exercer a liderança que poderia caber-lhe. A classe política aparece, excessivas vezes, como definitivamente cooptada - em episódios sinistros como o da hipótese da prorrogação de mandatos, supremo acinte à representação.

Esse arcaísmo político é tanto mais grave quanto a reorganização da sociedade terá de passar fatalmente por esse território. É supremamente ingênuo supor que comunidades da base e associações de bairro - ou associações profissionais como a OAB - possam suprir a inexistência de urna classe política - pois as portas do Estado, por definição, são muito estreitas para deixar passar os movimentos de massa. A classe política, entretanto, fugiu aos debates mais sérios que poderiam caber-lhe - como o da questão do voto distrital, crucial para uma redefinição do problema da representação. Na omissão ou na falta de visão da classe política estará o nó górdio da atual realidade brasileira - que nesse meio tempo continua a evoluir dentro dos limites traçados por um Poder que não se tornou menor apesar da inegável evolução política dos últimos anos. <