A EDUCAÇÃO NA TRANSFORMAÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA

Simon Schwartzman

Conferência dada no Ciclo de Extensão III/87 da Escola Superior de Guerra, 13 de Outubro de 1987.

1. As duas faces da Educação

2. Estrutura e dinâmica do ensino no Brasil

3. Algumas propostas gerais sobre a problemática do ensino


1. As duas faces da educação.

1.1 - A educação formal como fator de progresso e mobilidade social.

Durante muito tempo se pensou que a educação formal, ou escolarização, seria um instrumento fundamental para o desenvolvimento social, cultural e econômico de um país. As grandes polêmicas do passado sobre escola pública ou privada, ensino leigo ou religioso, educação técnica ou humanística, partiam do suposto de que o que se estava decidindo era o próprio futuro do país.

Esta visão otimista do papel da educação coincidiu com os anos de grande expansão e modernização da sociedade brasileira, pela formação de grandes centros urbanos, o desenvolvimento da indústria e dos serviços e a expansão do setor público. Neste quadro de expansão e crescimento, ir à escola e obter as qualificações formais equivalia a adquirir o direito de acesso às novas oportunidades.

1.2 - A Educação formal como elemento de estagnação social e retrocesso.

Esta visão otimista da educação formal é hoje muito discutida, e existem muitos que acham que, na realidade, as escolas trazem muito mais malefícios do que benefícios à sociedade. Os críticos da educação formal se utilizam, principalmente, dos seguintes argumentos: O surgimento da visão pessimista da educação formal coincide com o esgotamento do processo de expansão e modernização acelerados da sociedade brasileira. Ao final da década de 80, o Brasil é um país predominantemente urbano, a industrialização pela substituição fácil de importações já chegou a seus limites, as burocracias governamentais incharam tanto quanto podiam, e os empregos de classe média já não se expandem de forma a absorver o número crescente de pessoas que saem das escolas.

1.3 O lugar efetivo da educação nas sociedades modernas.

Os adeptos mais fervorosos da visão pessimista da educação chegam ao extremo de propor o fim da escola formal, e sua substituição por uma grande variedade de mecanismos informais, espontâneos e não hierárquicos de transmissão de conhecimentos e desenvolvimento da criatividade e competência. No entanto, da mesma forma que a Escola formal não pode, sozinha, promover o progresso social e eliminar as desigualdades, sua eliminação tampouco poderia produzir estes efeitos, e o mais provável é que aumentasse, ainda mais, os problemas com que hoje nos defrontamos.

A realidade é que o Brasil de hoje precisa, mais do que nunca, de um sistema educacional moderno, adequado, que possa preparar nossa população para um mundo onde o manejo adequado da língua falada e escrita, do raciocínio formal e abstrato e da informação são cada vez mais importantes. Mas esta necessidade, para se transformar em realidade, não pode ser atingida com a ingenuidade dos que achavam, trinta ou quarenta anos atrás, que educar era, simplesmente, construir escolas.

Apesar de nunca termos atingido o nível de investimentos em educação de outros países mais adiantados, e de nunca termos dado à educação a prioridade que ela recebe em outros tempos e lugares, o fato é que já acumulamos um volume suficientemente grande de problemas, equívocos e dificuldades que não recomendam a pura e simples injeção de mais dinheiro em nosso sistema educacional, sem, ao mesmo tempo, examinarmos em profundidade seus problemas, e tratarmos de procurar suas soluções.

2. Estrutura e dinâmica do ensino no Brasil.

Algumas das características mais centrais do sistema educacional brasileiro são as seguintes:

2.1 - Características Gerais do sistema educacional (quadro 1)

Quadro 1. Alguns números relevantes sobre Educaçao no Brasil.
    Total crescimento 1970/80
Matrícula: Pré-Escolar 1.700.000  
  1º grau 24.500.000 3.6%
2º grau 3.500.000 11,4%
Superior 1.421.000 11,6%
Pós Graduação 40.000 30,9%
População   2,5%
Alfabetizados: 74.5% 7.9
Oferta e Demanda: Pré-Escolar: oferta praticamente inexistente, face à clientela potencial.
  1º grau: Cerca de 82% de atendimento, faltam mais de 7,5 milhões de vagas
2º grau: cobre menos de 15% da população entre 15 e 18 anos; metade desse ensino é particular.
Superior: Quase 70% das vagas estão no ensino privado. Há cerca de 420 mil vagas por ano.
Fonte: adaptado de João Batista Araújo e Oliveira, Bases para Novas Diretrizes em Educação (pronunciamento para a sessão conjunta das Comissões de Educação e Cultura do Senado Federal e da Câmara de Deputados), 1984.
Quadro 4 - Distribuição de Renda e Matrícula em Escolas, para crianças de 7 anos e mais em escolas.
pre-escola 1º grau 2º grau superior Total
até 1 salário mínimo 11.6 15.3 3.4 1.1
1 a 2 17.9 24.6 10.2 4.5
2 a 5 31.2 38.5 38.0 18.0
5 a 10 37.5 15.3 31.0 26.1
mais de 10       48.3
IBGE, Anuário Estatístico do Brasil, 1983, 245-247.

2.2 Gastos governamentais em educação: (quadro 2):

Quadro 2: Gastos governamentais com Educaçao no Brasil (1983)
 
1º grau 2º grau superior Total
Federal 38,2 8,9 52,7 29.5%
Estadual* 77.1 11.5 11.4% 55.7%
Municipal* 98.0 2 --- 14.8%
TOTAL 67.5 9.2 23.3 100%
*cerca de 20% dos recursos estaduais e municipais provêm de transferências do governo federal.
Fonte: Dados preliminares, compilados principalmente a partir de Alberto de Melo e Souza, "Despesas Governamentais em Educaçao no Brasil", mimeo, 1983.

A maioria dos gastos governamentais em educação são feitos a nível estadual e municipal, ainda que com transferências do governo federal. O Brasil gasta pouco em educação: cerca de 5% do PNB, e 13 a 15% do orçamento federal. Os estados e municípios pagam os salários dos professores de primeiro grau, e recebem repasses do Salário Educação, parte do qual é utilizado na forma de bolsas de estudo para o ensino particular. Os municípios gastam cerca de 30 a 40% de seus orçamentos em educação primária; o governo federal cuida, principalmente, do ensino superior.

2.3 Algumas características gerais do ensino básico: (quadro 3a.):

Quadro 3a) Características Gerais do Ensino Básico no Brasil, 1985.
  1ª série 4ª série 8ª série
alunos matriculados 6,7 milhões 40% 17%
setor rural 2,8 milhões 18% 0,012%
% de alunos em idade maior do !ue a recomendada 58% 66.2% 68%
taxa de repetência 24% 12% 15%
taxa de evasão imediata 14% 8.4% 11.2%
b) Características Gerais do professorado de primeiro grau:
Total de professores: 1.040.553
na área rural: 24%
com estudos até o primeiro grau 14%
com estudos completos de 2º grau 45%
com estudos superiores 41%
Fonte: Ministério da Educaçao, Sinopse Estatística do Primeiro Grau, 1985, Edição Preliminar.

O ensino básico é altamente deficiente, com grandes taxas de abandono e repetência, principalmente entre a primeira e quarta série. A ineficiência é especialmente alta nas zonas rurais, em que menos de um em cada cinco alunos de primeiro ano chegam ao 4º.

Existe uma grande ficção quanto ao sistema seriado e às idades consideradas "apropriadas" para os cursos:

- a primeira série, que deveria ser de alfabetização, leva normalmente dois anos para ser cumprida, e inclui um ano de "pré-escola" embutido e mal administrado, o que implica, em parte, as altas taxas de repetência; 2.4 - Algumas características do pessoal docente do ensino básico: (quadro 3b): 2.5 Algumas características gerais do ensino superior (quadro 5):

Quadro 5: Características Gerais do Sistema de Ensino Superior Brasileiro:
  Pós-Graduação Setor Público Setor Privado
Número de professores 14 mil 45 mil 60 mil
número de estudantes 40 mil 450 mil 950 mil
Qualificação docente doutorado e mestrado pós graduação e mestrado graduação
Salários bons a excelentes bons ruins
Regime de trabalho tempo integral tempo integral tempo parcial
custo dos estudos bolsa de estudos gratuito pago
localização Centro sul centro-sul e nordeste centro-sul (periferia)
3. Algumas propostas gerais sobre a problemática do ensino no Brasil.

O quadro anterior mostra com clareza que, apesar de insuficiente e inadequado às necessidades do país, o sistema educacional brasileiro já apresenta uma série de características de rigidês e imobilidade, que podem deitar a perder grande parte dos recursos que a ele venham a ser destinados. Para que isto não aconteça, algumas mudanças importantes de perspectiva devem ser introduzidas. Os objetivos gerais a serem obtidos, em todos os níveis, devem ser: A título de sugestão, gostaria de mencionar algumas medidas bastante gerais que poderiam conduzir a estes objetivos:

3.1 - No ensino básico, a profissão de professor precisa ser revalorizada. Esta revalorização depende, em grande parte, de melhores salários; ela depende, também, de valorizar mais o ensino de primeiro ciclo em relação ao de segundo, invertendo o quadro que existe hoje.

3.2 - Deve haver um trabalho sistemático de desburocratização dos sistemas estaduais de ensino, com a transferência direta de recursos e autoridade para as escolas e para as salas de aula. A desburocratização deve levar também a automatizar os mecanismos de transferência de recursos federais para os estados e municípios.

3.3 - A introdução de ensino público de qualidade deve ser feita onde e quando for possível,e não pode esperar o atendimento quantitativo e horizontal sem qualidade, já que é o primeiro que proporciona competência e direção para o segundo. Experiências como a dos CIEPS no Rio de Janeiro, se acompanhadas de procedimentos pedagógicos e educacionais adequados, devem ser estimuladas e difundidas.

3.4 - Sistemas escolares para o atendimento de populações "defasadas" precisam ser criados e estimulados. Grande número de pessoas procuram escolas fora de sua idade "normal", em todos os níveis, e os programas convencionais são completamente inadaptados a suas necessidades, motivações e capacidade. Escolas para adolescentes sem curso primário, cursos superiores não convencionais para adultos que trabalham são os exemplos mais óbvios.

3.5 - Substituir, tanto quanto possível, as exigências de diplomas formais pela verificação de competência específica. No passado, a exigência de diplomas funcionava como um incentivo à escolarização. Hoje, ela funciona como elemento de burocratização do ensino, e da introdução de discriminações injustificadas no mercado de trabalho.

3.6 - Introduzir, em todos os níveis, mecanismos de avaliação do desempenho das instituições de ensino. Estas avaliações devem servir para sinalizar ao público quais cursos, e escolas, produzem melhores resultados; e para sinalizar aos governos e agências financiadoras onde os recursos estão públicos estão sendo melhor utilizados.

3.7 - Modernizar o Ministério da Educação e as Secretarias Estaduais. Esta modernização deve consistir em dar a estas instituições predominantemente funções de avaliação, acompanhamento e experimentação de novas metodologias, e não de controle e execução burocráticos, que devem ser transferidos tanto quanto possível às próprias escolas.

3.8 - Aumentar e incentivar os vínculos entre as instituições de ensino e as comunidades. O envolvimento de pais, associações de moradores, igrejas, empresas, sindicatos, e outras organizações comunitárias com os estabelecimentos de ensino é de grande importância para lhe dar maior contato com o mundo real, e inclusive lhe proporcionar, quando possível, recursos adicionais.

3.9 - Rever o papel do Estado em relação ao financiamento e ao controle do Ensino. O ensino de qualidade é caro, e, em todos os países em que ele existe, ele é de responsabilidade essencial do Estado. É socialmente injusto que, no Brasil, o Estado dê ensino superior gratuito aos filhos de classes altas e médias, e force os mais pobres a buscar o ensino privado e de má qualidade; seria também nefasto que o Estado se encarregasse somente do ensino de massas e de má qualidade, deixando ao setor privado o ensino de elite.

O papel do Estado em relação ao ensino poderia melhorar muito pela adoção, entre outras, das seguintes medidas:
a) introduzir, no setor privado, uma distinção clara entre "empresas de ensino", organizadas de forma privada e com fins lucrativos; e instituições de ensino comunitárias, e não lucrativas. As primeiras deveriam sem controles de preço e sem subsídios; as segundas, na medida em que comprovarem seu bom desempenho, poderiam receber auxílio público, na forma de verbas, professores e outros insumos.
b) introduzir, no setor público, sistemas graduais e efetivos de recuperação de custos, com os devidos cuidados para a proteção dos setores menos favorecidos. Isto aumentaria a disponibilidade financeira das instituições, e desestimularia o uso indevido dos recursos educacionais públicos por pessoas não adequadamente motivadas.
c) eliminação progressiva da idéia de que os sistemas educacionais podem ser efetivamente geridos por grandes burocracias centralizadas. As instituições de ensino deveriam, tanto quanto possível, ser transferidas para as comunidades em sua gestão quotidiana. Caberia ao Estado provê-las de recursos, mas, principalmente, de padrões, critérios, competência e estímulo.
<