Atualidade de Raymundo Faoro

Simon Schwartzman

DADOS - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 46, n. 2, 2003, pp. 207 a 213.

Raymundo Faoro não foi o primeiro, no Brasil, a fazer uso dos conceitos de Max Weber, mas a publicação de Os Donos do Poder, pela Editora Globo, de Porto Alegre, em 1958, teve uma influência que seus antecessores não tiveram. Antes dele, Sérgio Buarque de Holanda, que havia estudado na Alemanha, fez uso do conceito de patrimonialismo em Raízes do Brasil, publicado em 1936, para caracterizar o "homem cordial" brasileiro, que, na vida pública, não distinguia o interesse privado do interesse coletivo. Apesar de tantas intuições brilhantes e de dezenas de reedições, foi uma tentativa de definir a personalidade ou o caráter do "homem brasileiro", um tipo de sociologia estéril que ele mesmo abandonaria mais tarde, como mostra Evaldo Cabral de Melo no posfácio à edição da Companhia das Letras de 1995 (Holanda, 1995). Nos anos 40, Economia e Sociedade, de Weber, foi traduzido ao castelhano por José Medina Echavarría (Weber, 1944) e, a partir dessa edição, a análise clássica weberiana sobre a burocracia racional legal seria apresentada ao leitor brasileiro por Alberto Guerreiro Ramos, em artigo na revista do Departamento Administrativo do Serviço Púbico -  DASP, Revista do Serviço Público, como um texto de teoria administrativa (Ramos, 1946), e não teria major repercussão.

A primeira edição de Os Donos do Poder também passaria quase despercebida, talvez, diria Faoro depois, pela "perplexidade que alguns leitores da primeira edição demonstraram, ante uma terminologia aparentemente bizarra", que a segunda edição buscaria atenuar (Faoro, 1975, "Prefácio à segunda edição"). Neste prefácio, Faoro advertia que

"E... este livro não segue, apesar de seu próximo parentesco, a linha de pensamento de Max Weber. Não raro, as sugestões weberianas seguem outro rumo, com novo conteúdo e diverso colorido. De outro lado, o ensaio se afasta do marxismo ortodoxo, sobretudo ao sustentar a autonomia de uma camada de poder, não diluída numa infra-estrutura esquemática, que daria conteúdo econômico a fatores de outra índole" (ibidem).

0 que tomou o livro obscuro dos anos 50 uma referência obrigatória a partir dos anos 70 foi que ele ajudou a questionar o marxismo convencionai que, sobretudo a partir dos trabalhos do famoso grupo de leitura de O Capital da Universidade de São Paulo dos anos 50, e dos trabalhos de Caio Prado Jr., dominou as ciências sociais brasileiras nos anos seguintes (Sorj, 2001, cap. 11:13-29). Simplificando, segundo a versão marxista, o Brasil havia sido, em sua origem, uma sociedade rural, “semifeudal”, que ainda não havia conseguido criar uma burguesia nacional capaz de desenvolver a economia do país, criando um capitalismo moderno que trouxesse consigo uma classe operária também moderna, que eventualmente implantasse no país o socialismo. Na luta entre o latifúndio tradicional e a burguesia moderna, no contexto da Guerra Fria, o latifúndio seria um aliado do imperialismo, mantendo o país dominado e subdesenvolvido, incapaz de ser superado por uma burguesia nacional que não se assumia, um proletariado incipiente e um campesinato subjugado. Tudo deveria acontecer e se explicar pela luta de classes, e o Estado não seria mais do que o executor e defensor dos interesses das classes dominantes. O problema, no Brasil, era que as classes nunca se organizavam nem agiam como deveriam...

Faoro colocou em xeque essa interpretação em dois pontos fundamentais. Não é verdade, mostrou ele, que o Brasil tenha tido um passado feudal, ou semifeudal, com o predomínio do campo sobre as cidades; ao contrário, o que sempre predominou foi a força do poder central. Não há dúvida que as grandes distâncias, o isolamento das propriedades rurais, os recursos produzidos pela posse da terra e pelas plantations de açúcar, tudo isto levava ao fortalecimento do poder local. Estes eram, no entanto,

"Efeitos inevitáveis, decorrentes do isolamento geográfico, da extensão da costa, capazes de gerar núcleos de autoridade social, sem que a administração real permitisse a consolidação da autonomia política. Tudo está longe do feudalismo, da aristocracia territorial, dos monarcas latifundiários. Olhos vigilantes, desconfiados cuidavam para que o mundo americano não esquecesse o cordão umbilical, que lhe transmitia a força de trabalho e lhe absorvia a riqueza. 0 rei estava atento ao seu negócio" (Faoro, 1975, vol. 1:133).

Essa é a situação criada desde o início com as capitanias hereditárias, e que continuaria pelo período imperial, com uma forte presença dos centros urbanos, onde se instalava o poder do Estado, de cujo beneplácito o poder dos donos da terra dependia.

A segunda tese de Faoro, associada a esta, é que o poder político não era exercido nem para atender aos interesses das classes agrárias, ou latifundiárias, nem àqueles das classes burguesas, que mal se haviam constituído como tal. O poder político era exercido em causa própria, por um grupo social cuja característica era, exatamente, a de dominar a máquina política e administrativa do país, através da qual fazia derivar seus benefícios de poder, prestígio e riqueza. Era, em termos de Weber, um “estamento burocrático”, que tinha se originado na formação do Estado português dos tempos dos descobrimentos, senão antes, e que se reencarnaria depois naquilo que ele chamaria de o “patronato político brasileiro”. 0 estamento burocrático tinha tido sua origem no que Weber denominava de “patrimonialismo”, uma forma de dominação política tradicional típica de sistemas centralizados que, na ausência de um contrapeso de descentralização política, evoluiria para formas modernas de patrimonialismo burocráti­co-autoritário, em contraposição às formas de dominação racional-legal que predominaram nos paises capitalistas da Europa Ocidental. A contribuição de Faoro aqui vai além da utilização dos conceitos weberianos e da interpretação que deu do sistema político brasileiro: ela consiste, fundamentalmente, em chamar a atenção sobre a necessidade de examinar o sistema político nele mesmo, e não como simples manifestação dos interesses de classe, como no marxismo.

Assim, Faoro foi o precursor do uso da abordagem weberiana para entender o Brasil, que se tomou cada vez mais importante, na medida em que as limitações das explicações marxistas foram se tomando óbvias. É curioso no entanto que, apesar do grande uso que fazia da his­tória, Faoro tivesse uma visão totalmente a-histórica do fenômeno que estudava, e talvez seja nisto que ele se afastava, como ele mesmo dizia, do que seria uma interpretação propriamente weberiana da história política brasileira. "De D. João I a Getúlio Vargas, numa viagem de seis séculos, uma estrutura político-social resistiu a todas as transformações fundamentais, aos desafios mais profundos, à travessa do oceano largo", diz ele no capítulo final de sua obra (idem, vol. 2:733). Ao longo dos séculos, o país transformou-se, novas tecnologias surgiram, o mundo mudou, mas o estamento burocrático se manteve imutável: "Sobre a sociedade, acima das classes, o aparelhamento político - uma camada social, comunitária embora nem sempre articulada, amorfa muitas vezes - impera, rege e governa, em nome próprio, num círculo impermeável de comando” (idem:737). "Deitou-se remendo de pano novo em vestido velho, vinho novo em odres velhos, sem que o vestido se rompesse nem o odre rebentasse" (idem:748).

Para Faoro, portanto, a história servia para entender a gênese de uma enteléquia que resiste a tudo, uma essência que jamais se apaga. Para Weber, ao contrário, estudar a história não servia somente para identificar a origem de determinados conceitos, mas sobretudo para entender como diferentes sociedades e grupos humanos buscam seus caminhos, resolvendo dilemas e tensões, e optando por distintas formas e estilos de vida no âmbito de um conjunto relativamente restrito de alternativas. Na experiência brasileira, as análises de Faoro sobre o papel histórico da tradição patrimonial-burocrática portuguesa e seus prolongamentos no pais abrem caminhos importantes de pesquisa, em termos de suas transformações, choques e conflitos com outras tendências também presentes, como as do capitalismo moderno e as derivadas da política de massas (Schwartzman, 1988).

Se existem alternativas, cabe ao pesquisador, como cidadão, identificar as diversas tendências e tratar de ajudar a abrir os caminhos que estejam de acordo com seus valores. Na vida política, diria Weber, há uma ética da responsabilidade, em que não valem somente as intenções, mas também a capacidade do indivíduo de entender o mundo em sua complexidade e de assumir a responsabilidade pelas conseqüências dos seus próprios atos. Por outro lado, se a realidade é imutável, só existem duas opções, o conformismo ou a postura ética de princípios, de oposição ao que seja percebido como o mal, independentemente do sucesso que se possa ter. A segunda edição de Os Donos do Poder veio à luz em pleno período de dominação política autoritária no Brasil, em que as duas éticas se confundiam. Deste então, e até o fim de seus dias, Raymundo Faoro assumiu e manteve a ética de princípios, ao combater o autoritarismo em todas as suas formas, evidentes ou ocultas, mesmo acreditando, como acreditava, que não ha­veria como mudar cinco séculos de história.

Os problemas do Brasil de hoje não são mais, no entanto, os do poder absoluto do estamento burocrático, mas sim, em boa parte pelo menos, decorrentes da incapacidade de o Estado exercer o poder que lhe é delegado, democraticamente, para governar em beneficio de todos. O estamento burocrático continua existindo, mas não é o mesmo dos tempos de D. João VI, D. Pedro II, Getúlio Vargas, Ernesto Geisel e José Sarney. Nesse sentido, a cruzada de Faoro contra o autoritarismo perdeu muito de seu apelo e de sua atualidade. Mas ele teve, sem dúvida, seu momento e seu papel.

(Recebido para publicação em maio de 2003)


REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

FAORO, Raymundo. (1958), Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro. Rio de Janeiro / Porto Alegre / São Paulo, Editora Globo.

-----------  (1975), Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro (2ª ed. revista e aumentada). Porto Alegre / São Paulo, Editora Globo / Editora da Universidade de São Paulo.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. (1995), Raízes do Brasil. Rio de Janeiro, Companhia das Letras.

RAMOS, Alberto Guerreiro. (1946), "A Sociologia de Max Weber - sua Importância para a Teoria e a Prática da Administração". Revista do Serviço Público, nº 3, pp. 129-139.

SCHWARTZMAN, Simon. (1988), Bases do Autoritarismo Brasileiro. Rio de Janeiro, Editora Campus

SORJ, Bernardo. (2001), A Construção Intelectual do Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro, Zahar Editor.

WEBER, Max. (1944), Economia y Sociedad (Traduzido por José Medina Echavarría, J. Roura-Parella, E. Garcia Máynez, E. Imaz e J. Ferráter Mora). México, Fondo de Cultura Económica. <