A QUALIDADE NO ESPAÇO UNIVERSITÁRIO: CONCEITOS, MODELOS E SITUAÇÃO ATUAL

Simon Schwartzman

Trabalho preparado para o I Congresso Internacional "Qualidade e Excelência na Educação", Universidade Gama Filho, Rio de janeiro, 25 a 29 de outubro de 1993.

Em 1910, o educador americano Abraham Flexner fez uma avaliação do ensino médico nos Estados Unidos e Canadá, e concluiu que, das 155 faculdades de medicina existentes, 120 apresentavam condições péssimas de funcionamento. Os alunos eram admitidos sem nenhum preparo, não existiam laboratórios, não havia relação entre a formação científica e o trabalho clínico, e os professores não tinham controle sobre os hospitais universitários. O relatório de Flexner, Medical Education in the United States and Canada, teve o efeito de um terremoto, e nos anos seguintes a quase totalidade das instituições por ele criticadas fechou suas portas.

O relatório Flexner ficou na história como um exemplo da importância da avaliação e do controle de qualidade, e sua história vem muitas vezes à tona quando pensamos nas condições precárias da maioria de nossas instituições de ensino superior. Que falta nos faz um Flexner, pensamos, e sobretudo que falta nos faz a existência de mecanismos que façam desaparecer as instituições que não cumpram com os critérios mínimos e aceitáveis de qualidade!

Alguns anos mais tarde, Flexner escreveria um livro comparando as universidades americanas, inglesas e alemãs, aonde pregaria a superioridade do modelo da universidade humboldtiana, alemã, sobre o dos demais países(1). As universidades modernas, pensava Flexner, devem ser instituições dedicadas à cultura, à ciência e às profissões cultas - tudo aquilo que a expressão alemã Wissenschaft significava. Elas devem ser as guardiãs da tradição, e o centro das formas mais avançadas de reflexão e conhecimento. Elas devem evitar a especialização excessiva, e não abrir espaço para a educação secundária, técnica, popular, ou meramente profissional. Nesta perspectiva, o ensino superior nos Estados Unidos parecia especialmente lamentável. O título de "universidade" era dado para instituições de qualquer tipo, não existia nenhuma noção sobre as diferenças entre a verdadeira cultura e a mera educação continuada ou a formação técnica e profissionalizante, e a venda de serviços educacionais de todo tipo, a quem quisesse pagar, por instituições de renome como a Universidade de Columbia, lhe parecia um verdadeiro escândalo. Era necessário, propunha, fazer com a Universidade americana como um todo o que já tinha sido feito com o ensino médico.

O conceito de qualidade utilizado por Flexner no início do século presidiu a legislação da reforma universitária brasileira. O artigo primeiro da lei 5.540, de 1968, reza que "o ensino superior tem por objetivo a pesquisa, o desenvolvimento das ciências, letras e artes e a formação de profissionais de nível universitário". O artigo 2@ diz que "o ensino superior, indissociável da pesquisa, será ministrados em universidades e, excepcionalmente, em estabelecimentos isolados". Nesta época, no entanto, o mundo já não era o mesmo. A Universidade alemã, demasiado amarrada ao Estado, não soube resistir à ascensão do nazismo, e perdeu, com ele, muito do brilho e do prestígio de que gozava até então. Não houve uma nova reforma Flexner para o ensino superior americano, mas, nos últimos 50 anos, os Estados Unidos desenvolveram o sistema de educação superior de maior porte, abrangência e qualidade de todo o mundo, e que é hoje copiado pela maioria dos países. Aonde Flexner errou? Aonde erramos nós?

Em 1968, no ano da Reforma Universitária brasileira e do movimentos estudantis na Europa e nos Estados Unidos, o livro de Flexner foi republicado com um prefácio de Clark Kerr, então presidente da Universidade da California. Neste prefácio, Kerr, ao mesmo tempo em que expressa sua admiração por Flexner, mostra com clareza aonde ele se equivocou, e o que significa uma universidade moderna e de qualidade nos dias atuais. Da análise de Kerr, dois aspectos nos interessam particularmente.

O primeiro equívoco de Flexner foi o de pensar na universidade como um todo integrado e orgânico, unido pelos valores comuns da ciência, das artes e da cultura. A aparente unidade das universidades tradicionais residia mais em seu tamanho reduzido, e na origem aristocrática de seus professores e alunos, do que em uma efetiva integração do conhecimento e da educação. As universidades modernas são gigantescas, juntam pessoas de todas as origens sociais e com maneiras muito diferentes de entender o que é a pesquisa, a educação, a cultura e as artes. Elas são, na expressão cunhada por Kerr, muito mais "multiversidades" do que universidades no sentido tradicional.

O segundo equívoco foi supor que esta diversidade de funções e valores não poderiam conviver sem se destruir mutuamente. Foi não entender que qualidade e quantidade poderiam combinar-se e se entender. Que não havia incompatibilidade entre prestar serviços à comunidade, dar cursos de verão, manter equipes de futebol e realizar pesquisas de alta qualidade. Foi tudo isto, precisamente, o que fizeram as grandes universidades americanas, e que as ajudaram a chegar na posição de prestígio e reconhecimento que têm hoje.

É claro que o fracasso das universidades alemãs, o sucesso das universidades americanas, e a posição intermediária ocupada pelas universidades inglesas, refletem em grande parte a posição relativa de cada um destes países a partir da segunda guerra mundial. Um sistema universitário, nos lembra Kerr, não pode ser separado do desempenho da sociedade que o apóia, não é uma coisa isolada. Isto, no entanto, não explica tudo. Ao se adaptar para a posição de liderança que assumiu na segunda metade deste século, o ensino superior americano desenvolveu algumas características que hoje são centrais para qualquer sistema de ensino superior que pretenda se ajustar ao mundo contemporâneo, e que por isto necessitam ser examinadas e entendidas com cuidado.

A principal característica deste sistema, assinalada por Kerr, é o pluralismo e a diversidade. Novos ricos, sem as tradições da aristocracia, os americanos criaram uma infinidade de formatos institucionais e de áreas de estudo, que iam desde as tentativas de reproduzir as melhores tradições inglesas e alemãs até o Departamento de Economia Doméstica da Universidade de Chicago, que aprovava, para horror de Flexner, teses de mestrado sobre "uma comparação de tempos e movimentos de quatro métodos de lavar pratos", ou sobre "a compra de roupa de mulheres pelo correio". A diversidade permitiu que o ensino superior norte-americano fosse o primeiro no mundo a se massificar, a ponto de que, hoje, cerca de metade dos jovens naquele país entrem em alguma instituição de ensino pós-secundário. É certo que, em boa parte, esta educação superior de massas acaba por compensar um ensino secundário de má qualidade, e proporciona qualificações que não mereceriam o título de "universitárias" em outras partes do mundo. Mas a tendência à massificação do ensino superior é um fenômeno mundial, que leva a um número cada vez maior de jovens e adultos a buscar educação em instituições de nível superior, que não podem, simplesmente, voltar as costas a esta demanda e a estas aspirações. Ao desenvolver um amplo sistema de educação superior de massas, apoiado em milhares de "colleges" e um grande número de universidades públicas e privadas de todo o tipo e qualidade, os Estados Unidos acabaram por criar um grande mercado de trabalho para professores, para a educação dos quais se implantaram, de início, os programas de pós-graduação e de pesquisa científica acadêmica.

A diversidade permitiu também que, ao lado da educação massificada, algumas universidades e profissões estabelecessem padrões extremamente exigentes de desempenho e qualidade, como foi o caso da educação médica. A pesquisa científica e a pós-graduação, que é onde o sistema norte-americano possivelmente mais se sobressai, se desenvolveram pela combinação de pelo menos três fatores. Primeiro foi a maciça incorporação dos talentos que acompanharam as grandes migrações européias desde o século XIX, e continuaram no período de pré- e pós guerra, recriando nos Estados Unidos as tradições de trabalho e os padrões de excelência típicos das universidades européias de elite. Mas, segundo, por mais importantes e influentes que estes imigrantes tivessem sido, eles não impediram que continuassem a existir as centenas de "land grant colleges", escolas técnicas, institutos de engenharia e outras instituições que trabalhavam em íntima associação com a indústria e a agricultura, e davam à pesquisa acadêmica uma ponte natural e direta com o setor empresarial, que retribuía apoiando e financiando as instituições universitárias. E terceiro, a ausência de tradições acadêmicas mais consolidadas levou a uma inovação importante que foram as escolas de formação de pesquisadores e cientistas, os "graduate colleges", que fizeram da capacitação para a pesquisa não um simples credenciamento acadêmico, como na tradição européia, mas um tipo novo de formação profissional e especializada.

A diversidade se manifesta também na pluralidade de formatos organizacionais e institucionais. Não existe um ministério da educação, e ninguém se preocupa em dar uma definição oficial do que seja uma "universidade". Cada estado tem suas instituições, exitem muitas instituições privadas, dedicadas à pesquisa, à formação de professores, ao ensino profissional, à formação intelectual e acadêmica, à reciclagem de adultos, à formação religiosa e à obtenção de lucros.

O engano mais importante de Flexner pode ter sido a idéia de que semelhante agloomerado de instituições e papéis não teria como ser controlado, e tenderia cada vez mais ao deterioro e à desagregação. Na realidade, os Estados Unidoa desenvolveram um conjunto também diversificado, mas nem por isto menos efetivo, de controles de seu ensino superior. Em primeiro lugar, há o controle do mercado: instituições, mesmo públicas, que não conseguem bons alunos, alunos pagantes, doações filantrópicas e contratos de pesquisa com o governo ou com o setor privado, cedo ou tarde fecham suas portas. Existe um grande mercado de talentos, que atrai os professores mais qualificados para as universidades de mais prestígio, e forçam as demais a oferecer contratos competitivos. Existem instituições voluntárias de credenciamento que distribuem certificados para as instituições que qualificam, e que são verificados por estudantes, professores e financiadores na hora de escolher suas instituições. Firmas privadas oferecem testes padronizados de conhecimento que são utilizados por muitas universidades para a seleção de seus alunos. Em algumas áreas especializadas, como na área da medicina, existem corporações profissionais que zelam pela qualidade das instituições de ensino, garantindo, assim, os padrões de excelência definidos inicialmente pelo retório Flexner.

* * *

Ao adotar o modelo Flexner em 1968, o legislador brasileiro cometeu dois equívocos da maior gravidade. O primeiro foi ignorar as tendências à massificação do ensino superior que Kerr já assinalava com tanta clareza em sua introdução ao texto de Flexner. Em 1968 os estudantes já batiam às portas das universidades, e nos anos seguintes a demanda avassaladora por mais vagas e oportunidades educacionais levou a um sistema de ensino superior de grande porte que, embora diferenciado na prática, não abdicava de um modelo monolítico e centralizado, não incorporava a diferenciação como um valor, e terminava produzindo um ensino superior diluído e em grande parte desmoralizado por não ser aquilo que, no papel, estava dito que poderia ser.

O segundo erro dos legisladores foi pensar que o Brasil deveria procurar se pautar pelo modelo dos países europeus, quando somos, na realidade, muito mais parecidos com os Estados Unidos. Não é pela riqueza, evidentemente, já que em relação a esta somos profundamente distintos de ambos. Mas compartimos com os Estados Unidos, e não com a Europa, a vastidão territorial, o aglomerado das culturas, a mistura das raças, a incompetência da administração pública, a desigualdade social, e uma capacidade surpreendemente alta de iniciativa e inovação. O que ainda temos da Europa é o veso da centralização, da racionalidade formal e dos controles burocráticos, que estão latentes no modelo elitista e centralizado da reforma universitária de 1968. É bem verdade que, ao introduzir o sistema de crédito, a pós-graduação, o sistema departamental e o ciclo básico, a reforma de 1968 se inspirou na Universidade americana, e não na européia. Mas o legislador só olhou para o topo da pirâmide, para Harvard e Yale - aquilo que os Estados Unidos têm de Europa - e não para os milhares de colleges e outras instituições que formam o corpo e os braços da educação superior americana.

Os equívocos de Flexner não tornam suas idéias, e seu exemplo, obsoletos. O ensino superior moderno não pode existir sem a ciência, a pesquisa, a formação profissional de alto nível, a Wissenschaft. Mas, se no passado esta era a própria definição do que fosse uma universidade, hoje se trata, tão somente, de um dos componentes das modernas multiversidades, e sobretudo dos sistemas nacionais de educação superior. Ao lado destas funções clássicas e tradicionais, estão as funções do ensino continuado e da reciclagem, da formação de professores, da formação profissional e técnica, da prestação de serviços à comunidade, Cada uma destas atividades tem seu valor, sua cultura, seus públicos e sua maneira de se organizar e se financiar. O controle de qualidade é mais importante do que nunca, nestes tempos de custos crescentes e recursos escassos. Mas ele deve ser flexível, plural, descentralizado e desbucrocratizado. Ele deve se apoiar menos nas normas e nas burocracias, e mais nas avaliações dos pares, na reputação conquistada pelo desempenho, e no endosso do mercado.

Em síntese, o espaço universitário é hoje muito maior, muito mais complexo, e potencialmente muito mais rico, do que o imaginado por Flexner e por nossos legisladores dos anos 60. Sua potencialidade é grande, mas nos falta, ainda, conquistá-lo.


Nota

1. Abraham Flexner, Universities - American, English German, Oxford University Press, 1930, republicado em 1968 com prefácio de Clark Kerr. <