POR UM MARCO
ANALÍTICO PARA O ESTUDO DOS INTELECTUAIS NA AMÉRICA LATINA Simon
Schwartzman
Trabalho preparado em função da Conferência sobre
Intelectuais na América Latina, Woodrow Wilson Center, Washington, D.C.,
22-23 de março, 1987.
Estudos sobre intelectuais, independentemente da definição que se dê a este
termo, tendem a trabalhar mais ou menos simultaneamente sobre dois planos,
o do condicionamento social e o do conteúdo específico do produto do trabalho
intelectual. A melhor tradição da sociologia do conhecimento consiste, efetivamente,
em tratar de entender o condicionamento social em que a produção intelectual
se dá, para, em um segundo momento, examinar em que medida este condicionamento
explica/condiciona/ determina/influencia o conhecimento ou produto que emerge.
Um marco analítico para o estudo dos intelectuais requer, assim, uma conceituação
mínima a respeito destas três coisas: quem são os intelectuais, quais seus
condicionamentos sociais, e que coisas produzem. Ainda que este exercício
classificatório já tenha sido feito incontáveis vezes, vale a pena tentá-lo
novamente, no contexto de uma perspectiva comparada para o estudo de intelectuais
na América Latina.
1. Quem são
No contexto de um projeto como este, talvez valha e pena reservar o termo
"intelectual" para pessoas que se dedicam à elaboração de produtos que transcendem
o âmbito de trabalho em que estes produtos são elaborados. é um conceito
mais restrito do que a noção de que intelectuais são todos os que trabalham
com o intelecto; mas, como os exemplos abaixo sugerem, pode ainda não ser
suficiente.
Existem algumas ocupações, como por exemplo a de escritor, artista ou jornalista,
que quase por definição supõem que o que é produzido não se restringe ao
ambiente de trabalho do produtor, mas se orienta a um público mais amplo.
Existem, no entanto, variações. Um jornalista esportivo ou de crime dificilmente
atua e é percebido como um intelectual, enquanto que o comentarista político
de um jornal freqüentemente o é. Chico Buarque de Holanda é considerado
mais intelectual que Elza Soares. Alguns escritores tratam de produzir e
vender suas obras como quem vende cachorro quente (ou mesmo filé mignon),
e não entram na definição corrente de "intelectual".
A diferença parece estar no conteúdo ideológico (geralmente político, mas
eventualmente mais amplo) que possa vir ou não associado ao trabalho relacionado
com o grande público. Um cantor basta escrever canções de protesto, ou simplesmente
aproveitar sua imagem pública para dar suas opiniões sobre questões de política
cultural, ou política em geral, para que já entre na categoria de intelectual.
Para um engenheiro é mais difícil, mas em algumas circunstâncias existe
a idéia de que a competência específica que deriva de seu trabalho lhe permite
ir mais além e falar, por exemplo, dos problemas econômicos ou morais da
sociedade em que vive.
Creio que isto nos dá elementos para uma definição mais apropriada, para
nossos propósitos, do que sejam intelectuais: são pessoas dotadas de uma
competência intelectual reconhecida, e que procuram transmitir um conteúdo
transcendente (político, ideológico, ético, religioso), cuja validade tende
a ser legitimada por seu conhecimento especializado. Este conhecimento especializado
pode ou não corresponder à temática intelectual. O escritor pode propor
uma "visão de mundo" alternativa a partir de sua obra, e um cantor/compositor
pode recuperar, ou iniciar, uma tradição nova do uso do som e do ritmo;
mas o escritor pode também dar palpite em economia, o cantor pode falar
de política, a artista de teatro de autonomia tecnológica, etc. São todas
atividades intelectuais de eventual repercussão em toda a sociedade.
Porque se trata de muita gente, e de gente freqüentemente muito distinta,
pode ser importante tratar, analisar e comparar intelectuais dentro de determinadas
categorias. Por exemplo, aqueles que trabalham diretamente com os "mídia";
ou os que se organizam em "movimentos" literários ou culturais, freqüentemente
ao redor de uma revista; os que pertencem a um tipo determinado de instituição,
como as universidades; ou os que pertencem a um determinado "campo" intelectual
ou disciplinar: escritores, ou sociólogos, ou médicos, ou físicos, ou músicos.
2. Que pensam, ou dizem, os intelectuais.
Eu sugeriria que existem duas posturas opostas e equivocadas no tratamento
das questões de conteúdo, e uma terceira postura intermediária que me parece,
naturalmente, a mais adequada.
O primeiro - e mais tradicional - equívoco consiste em tratar de discutir
a produção intelectual em seus próprios méritos, e tomar partido. Se os
brasileiros discutem a "realidade brasileira". ou se alguém sugere que a
"verdadeira" cultura nacional vem do Nordeste, o erro consiste em tratar
de entrar no debate, e tratar de demonstrar que determinada posição ou proposta
é certa ou errada. é muito difícil não fazer isto, já que somos todos intelectuais
e temos freqüentemente opiniões formadas sobre estas coisas. Mas é importante
dar um passo atrás, e tratar de evitar que um estudo sobre
intelectuais se transforme em mais uma querela entre intelectuais.
O que não significa, evidentemente, que tal estudo não possa vir a ter conseqüências
político/ideológicas definidas.
O segundo equívoco consiste em deixar de lado completamente as questões
de conteúdo, e tratá-las como meros subprodutos de outras realidades e motivações
mais profundas - interesses de classe, luta pelo poder, etc. O resultado
desta postura é a visão do "intelectual sem idéias", que reflete muito freqüentemente,
acima de tudo, a escassez de idéias de quem os estuda.
Eu defenderia como mais adequada uma postura de corte weberiano. Idéias
são para serem tomadas a sério, porque permitem compreender o que move as
pessoas e para onde podem ir as sociedades; e isto requer tanto sua explicitação
quando o estudo de seus condicionamentos e conseqüências.
O trabalho de explicitação equivale, para não sair de Weber, à elaboração
de tipos ideais, entendidos como "modelos" ou arquétipos. Mais especificamente,
caberia ver o que pensam e propõem os intelectuais sobre coisas tais como:
- o Estado nacional, e sua relação com a sociedade
- a idéia de Nação, e suas características
- relevância, delimitação, fundamentos, etc.
- a cultura em que vivem, em relação com seu passado histórico, com outras
culturas dentro ou fora de suas fronteiras nacionais;
- a sociedade em que vivem, suas virtudes e dificuldades, suas tensões
e mecanismos de integração, suas classes e segmentos;
- alguns valores e normas mais significativos
- atitudes em relação à violência, à pobreza, à ciência moderna, ao casamento,
ao lugar das mulheres e dos homens, ao sexo, à educação.
- como se vêm a si mesmos, que papel social crêem que desempenham ou deveriam
desempenhar.
Para cada um destes tópicos - e provavelmente para vários outros - devem
existir visões e modelos alternativos, que necessitam ser elaborados e explicitados.
Depois - ou ao mesmo tempo - haveria que ver se não é possível colocar estas
idéias ou visões de mundo dentro de um marco interpretativo mais amplo.
Um exemplo seria a dicotomia sociológica tradicional entre "solidariedade
orgânica" vs. "mecânica", ou comunidade vs. sociedade. é possível que polaridades
menos genéricas sejam mais nítidas - individualismo vs. coletivismo, estabilidade
vs, mudança, autonomia (individual, societal, grupal) vs. dependência ou
interdependência, etc. (Eu evitaria os termos esquerda vs. direita, conservador
vs. liberal, etc., porque estes são freqüentemente os termos do debate intelectual,
e se trata de ver o que há por detrás deles).
Last but not least, existe a dimensão histórica. Quais
são os grandes temas de uma época? Em um país, no mundo? Como estes temas
chegam/afetam aos grupos que nos interessam? Como variam, com a História
de cada um, categorias como a de Nação, classe social, pátria, Deus, família,
povo?
3. Quem são? O contexto.
Seria importante também evitar que a análise dos condicionantes sociais
da produção intelectual ficasse restrita às já veneráveis discussões sobre
classes, infraestrutura, intelectuais orgânicos e inorgânicos, etc. Todos
sabemos que classes sociais, seja como as definamos, são importantíssimas;
e sabemos também que idéias podem (e freqüentemente estão) a serviço de
alguém ou algo, ou pelo menos contribuem para determinados fins, imaginados
ou não. Mas os conceitos de classe social são demasiado genéricos para o
que nos interessa; e seria importante que a análise dos condicionantes/determinantes
fosse analiticamente separada da avaliação das conseqüências.
Uma lista incompleta de condicionantes sociais é a seguinte:
- localização institucional dos intelectuais e as características
desta instituição (universidades? clubes? Igrejas? São permanentes? "Totais",
no sentido de Goffman?)
- base profissional-cognitiva. Qual a área de conhecimento ou atuação?
Especializada ou múltipla? Dentro de que tradição intelectual e cultural?
Quem foram os fundadores? Quais as influências, modelos, paradigmas?
- estrutura interna: indivíduos, grupos, grandes grupos? Qual é a dinâmica
interna? Padrões democráticos, participativos, ou "gurus" e lideranças
carismáticas? Como se entra, e como se sai? Como se sobe?
- Com quem se compete? Com a velha geração? Com correntes similares na
mesma faixa? Com o "estrangeiro", ou o gringo? Com o Sul (ou o norte?)
Com o atraso?
- Papéis sociais e suas transformações: intelligentsia, tecnocracia, profissões
liberais e técnicas especializadas, sindicalização e massificação; sua
relação com ascensão e queda de prestígio social;
- base de sustentação financeira: o Estado, o sistema educacional, a indústria
do livro, os mass-mídia.
- a quem se dirige: ao "povo"? à classe? à elite? à Nação?
4. Conseqüências.
É aqui que a coisa se torna mais difícil, e também mais interessante. A
dificuldade é que, normalmente, ideologias e valores tratam de conduzir
a sociedade a alguma parte - mas, por definição, ainda não se chegou lá,
e por isto avaliações objetivas são impossíveis.
Mas é também pela análise das conseqüências (muito mais do que das intenções,
já que presume-se que todos são honestos e trabalham pelo bem comum) que
podemos nos aproximar de uma efetiva avaliação dos conteúdos, coisa a respeito
da qual advertimos no ítem 2 acima. Creio que é aqui que cabe ao intelectual
que estuda intelectuais retomar sua condição de parte do objeto estudado,
e apresentar-sua própria utopia ou contra-utopia, e criticar as dos demais.
A vantagem de fazer isto agora, e não no começo do processo, é que já existirá,
presumivelmente, uma análise que permita, primeiro, entender melhor o ponto
de vista do outro; e depois, ver como cada qual se insere em uma época e
um contexto social; e, finalmente, poder colocar as propostas/sugestões/ideologias
em um marco mais amplo, comparativo e analítico, a partir do qual o que
à primeira vista aparece como único e irrepetível termina incorporado a
uma experiência histórica mais ampla, de qual alguns ensinamentos é sempre
possível extrair.
A análise das conseqüências é, em resumo, a etapa mais especificamente normativa
da análise. Ao proporem suas visões de mundo, ao convencerem governos e
populações inteiras de que a realidade é como dizem e que os caminhos que
apontam são os mais corretos, os intelectuais assumem uma enorme responsabilidade
ante a sociedade a que pertencem. Uma sociologia dos intelectuais que se
furtasse a avaliar este papel não passaria de um exercício fútil, que não
vale a pena ser feito.
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