
Políticas
Públicas de Educação Simon Schwartzman
Comentário aos textos de Divonzir Artur Gusso, "Apreciação
de Políticas Públicas: Uma Experiência no Âmbito Governamental", e José
Amaral Sobrinho, "Políticas Públicas de Educação Básica: Algumas Reflexões",
apresentado ao "Seminário Interinstitucional para a Avaliação de Políticas
Públicas de Educação - Estudos e Metodologias", Belo Horizonte, Fundação
João Pinheiro, 20 a 23 de novembro de 1990.
A leitura dos textos de Divonzir Gusso e José Amaral Sobrinho deixa a impressão
de que evoluímos de um tempo em que políticas públicas eram formuladas e
acompanhadas de forma explícita, e havia otimismo sobre o que governos podiam
fazer, para a situação atual, em que as políticas são muito mais difusas
ou mesmo inexistentes. Hoje sabemos muito mais sobre a natureza e os limites
da administração pública, em termos gerais e no Brasil em particular, assim
como sobre suas relações complexas com o sistema político e a cultura do
país. O resultado desta maior sabedoria, no entanto, não tem sido melhorar
a capacidade governamental em formular políticas e levá-las à cabo, mas
um grande ceticismo a respeito do que o possa ser feito; ceticismo reforçado
pelas experiências frustrantes do governo Sarney, às quais se somam os ataques
generalizados ao Estado que fazem parte da ideologia dominante destes últimos
anos.
Esta impressão geral deve ser vista à luz de três fatos importantes: primeiro,
as políticas educacionais do período mais "otimista" (que foi o período
do milagre econômico, do autoritarismo e da centralização político-administrativa
do país) eram no melhor dos casos ingênuas em sua onipotência, e, em geral,
não foram bem sucedidas, ainda que faltem padrões claros para sua avaliação
(o Mobral talvez seja o maior exemplo de um projeto ambicioso que se frustrou).
A esta observação deve-se acrescentar uma segunda, que é a que fracassos
em política educacional ocorrem mesmo em situações de abundância financeira,
como parece estar ocorrendo hoje na periferia das grandes cidades dos Estados
Unidos. Estas duas constatações poderiam nos levar à conclusão de que políticas
educacionais são impossíveis, e deixar-nos sem nada nas mãos, não fosse
um terceiro fato importante: é que muitos países conseguiram resolver de
forma bastante satisfatória seus problemas de educação básica, mesmo em
condições econômicas piores do que as nossas. Isto significa que, mesmo
que não saibamos como, é possível ter uma política educacional razoável,
e que dê resultados satisfatórios. A grande questão é: o que é que explica
a diferença?
Eu gostaria de sugerir que a variável básica que explica o sucesso ou fracasso
das políticas educacionais é a motivação das pessoas. Em algumas sociedades,
em algumas épocas históricas, as pessoas se convencem de que educar-se é
uma coisa importante, boa para elas e para seus filhos, e é em cima desta
matéria prima que os sistemas educacionais se constroem. A importância da
motivação fica clara quando nos lembramos de algumas teorias que buscavam
explicar as dificuldades da educação básica brasileira pelas diferenças
lingüísticas entre os professores de classe média e alunos das camadas sociais
menos favorecidas. Dificilmente haveriam barreiras lingüísticas mais fortes
do que as que afetam os filhos de imigrantes japoneses, por exemplo, cuja
motivação em estudar e aprender é no entanto conhecida, e que normalmente
apresentam excelente desempenho escolar.
Em muitas sociedades, a busca da educação faz parte de tradições culturais
e mesmo religiosas de suas populações. A educação religiosa judáica, por
exemplo, requer a leitura da Bíblia na língua original, o que elimina de
saída o analfabetismo, e levou inclusive ao uso de caracteres hebraicos
para o registro de idiomas ocidentais como o ídiche e o ladino, como alternativas
à falta de acesso às línguas cultas locais. Esta tradição de leitura foi
incorporada pelas religiões protestantes da Europa Ocidental, aonde se somaram
aos movimentos de identidade cultural e nacional, que freqüentemente se
expressavam em termos da defesa dos direitos de preservação e cultivo da
língua materna. As questões educacionais sempre estiveram associadas aos
conflitos étnicos e religiosos no continente europeu, e os sistemas nacionais
de educação que se estabeleceram na maioria daqueles países ao longo do
século XIX, tiveram sempre que negociar e administrar as pressões e demandas
por educação que vinham de baixo para cima. O professorado, nestes países,
surgia quase sempre dos quadros religiosos, um fenômeno que ainda hoje observamos
entre a população negra nos Estados Unidos. Quando olhamos a história desta
perspectiva, percebemos como é falsa a idéia de que a educação universal
tenha se desenvolvido em função das necessidades do capitalismo. Ao contrário,
o que parece ter ocorrido é que o capitalismo moderno só teve condições
de se desenvolver efetivamente em sociedades previamente educadas.
A França talvez seja o único exemplo, na Europa, de um sistema educacional
que se desenvolveu de cima para baixo, através de uma administração centralizada,
e de um projeto educacional que se identificava com o projeto de construção
de uma cidadania. Mais tarde o exemplo francês foi mais ou menos copiado
por muitos outros países, como na América Latina onde, em geral, fracassou
ou nos países socialistas, onde parece ter apresentado resultados mais interessantes.
De fato, se os regimes socialistas foram um fracasso econômico e político,
eles certamente sucederam no campo da educação. Com raras exceções, os países
socialistas conseguiram pouco em termos de pesquisa científica e tecnológica,
e suas universidades são sofríveis; mas a educação secundária tende a ser
geral, e de uma qualidade que não fica a dever, e muitas vezes supera, a
dos países ocidentais. Como explicar este desempenho?
Creio que existem dois fatores. O primeiro é que, nos seus melhores dias,
os regimes socialistas foram capazes de mobilizar e galvanizar o apoio de
suas populações, e desta forma infundir a motivação pela educação, sem a
qual os projetos educacionais fracassam. A segunda que vale também para
a França foi a criação de um corpo de professores leigos prestigiado e motivado,
que fazia da função educativa uma tarefa importante e valorizada. Existe
ainda um terceiro fator, naturalmente, que foi a decisão política de investir
recursos importantes para a educação, mas este fator pode pouco sem os demais.
Se esta análise é correta (e não há dúvida que ela representa uma grande
simplificação de uma história muito mais complexa), o que ela nos ensina
a respeito das possibilidades e limites da política educacional brasileira?
A primeira questão é saber se existe entre nós motivação para a educação.
No pior extremo, o Brasil possui um grande hard-core de
pessoas altamente resistentes à educação, e que dificilmente responderão
a uma política oficial de desenvolvimento educacional, seja ela qual for.
São os analfabetos das regiões mais atrasadas do país, pessoas que nasceram
ou foram jogadas desde cedo na marginalidade urbana, que não possuem uma
estrutura familiar constituída. Em muitos aspectos, elas se assemelham ao
hard-core não educável dos Estados Unidos, só que em proporção
muito maior. Estas pessoas necessitam menos de educação formal do que de
um trabalho complexo e difícil para trazê-las para dentro de uma sociedade
que, por razões conhecidas ou não, tende a excluí-las. É um trabalho que
requer o envolvimento de grupos sociais organizados, movimentos religiosos,
associações locais, partidos políticos de base popular. A melhor política
educacional para estes grupos parece ser a de apoiar estes movimentos de
baixo para cima, facilitando seu trabalho, dando incentivos, e não pretendendo
controlá-los ou regulá-los de cima para baixo. Não se pode esperar resultados
espetaculares - a erradicação do analfabetismo, no Brasil, é um projeto
de muitas décadas mas pode haver progresso.
Mas, ao mesmo tempo, os dados do PNAD que têm sido analisados por Sérgio
Costa Ribeiro mostram um quadro radicalmente distinto. 95% das pessoas passam
hoje pelo sistema educacional, e ficam em média 8,5 anos na escola, ainda
que só consigam cursar, também em média, até a 5 série. O que não sabemos
com certeza é a natureza exata desta tenacidade. A educação formal é hoje
uma atividade em grande parte burocrática, um ritual que quando cumprido
cria a expectativa de certos direitos e benefícios, que independem do conteúdo
aprendido. A atitude ritualista não é só de parte dos estudantes, mas freqüentemente
também de parte dos professores e demais autoridades escolares, para os
quais "cumprir o programa" é muitas vezes o único sentido de sua atividade
pedagógica.
O problema central da educação brasileira hoje é como transformar esta motivação
em um esforço educativo real e de qualidade. Isto significa, essencialmente,
devolver a iniciativa para o nível em que esta motivação se dá, o que significa
a escola, o professorado e as famílias dos estudantes.
A experiência internacional mostra que a educação dá certo quando as famílias
se envolvem com a educação dos filhos. Um requisito para isto, que quase
não existe nos setores mais pobres no Brasil, é que os pais, e principalmente
as mães, tenham sido educadas, e possam transmitir suas experiências e interesses
aos filhos. Quando isto não ocorre, ainda assim é importante tratar de envolver
as famílias nas atividades das escolas, fazendo com que elas se sintam parte
e responsáveis pelo que ocorre no dia a dia da vida de seus filhos. Esta
é uma tarefa difícil, e que se torna ainda mais grave entre nós porque o
ensino público brasileiro tem sido sempre refratário ao envolvimento das
escolas com as comunidades, para pedir ajuda, envolver os pais, fazer campanhas,
promover mutirões. Um dos argumentos contra o maior envolvimento das comunidades
com as escolas é que isto levaria a desigualdades, e acabaria gerando interferências
leigas e indesejáveis no processo educativo. Argumentos como estes poderiam
ser importantes, se a escola pública brasileira estivesse cumprindo o papel
que dela se esperaria.
O segundo foco de motivação são as próprias escolas, freqüentemente dotadas
de pessoas motivadas e interessadas no que fazem, e frustradas pela falta
de condições e pelos entraves burocráticos e administrativos ao seu trabalho.
A valorização e o apoio às lideranças das escolas requer uma forma de descentralização
que ainda não foi tentada no Brasil, que não é a de transferir a autoridade
educacional dos estados para os municípios, mas sim de transferir a autoridade
diretamente para as escolas. É claro que uma política destas traz grandes
riscos, mas eles não são maiores do que transferir a autoridade educacional
para os prefeitos. E estes riscos deixam de ser importantes se a efetiva
autonomização financeira e pedagógica das escolas vier associada a sistemas
bastante claros de prêmios, incentivos e punições ao desempenho, associados
a parâmetros pedagógicos bem definidos.
O terceiro aonde deve existir motivação é entre professores. É aqui, talvez,
onde se requeira a perspectiva mais radical. Talvez não seja mais possível
voltar aos tempos da professorinha que dedica a vida a seus alunos, ou ao
professor de geografia ou matemática que passa a vida lidando com alunos
adolescentes. A imprensa tem sido pródiga, recentemente, em notícias sobre
o gradual desaparecimento da profissão de professor. Na maioria dos casos,
e cada vez mais, as pessoas que permanecem nesta atividade o fazem por não
conseguir ir adiante em seus projetos de vida, e não têm como transmitir
aos jovens um envolvimento sincero e genuíno com os conteúdos de suas disciplinas.
Talvez tenha chegado o tempo de admitir que a atividade de ensino de primeiro
e segundo graus deve ser vista como um momento passageiro na vida das pessoas,
enquanto estudam nas universidades, ou enquanto fazem o serviço militar,
ou quem sabe quando se aposentam. A combinação de uma liderança profissional
altamente qualificada e motivada, e jovens estudantes e profissionais em
início de carreira que se dedicam ao ensino básico e secundário como primeira
etapa em suas vidas de trabalho talvez seja um cenário mais promissor do
que a esperança de devolver ao professorado o prestígio e a remuneração
que tinham quando o ensino secundário público era ainda elitizado, e as
universidades praticamente não existiam.
Um quarto lugar aonde deve, ou deveria, existir motivação é nas universidades.
Haviam em 1988 cerca de 122 mil alunos de pedagogia em todo o Brasil, a
quarta carreira mais procurada, depois de administração, direito e engenharia.
No entanto, é difícil afirmar que toda esta massa de estudantes vai efetivamente
se dedicar ao ensino. Na realidade o que estas pessoas aprendem são os aspectos
assessórios e externos da atividade educacional, que em muitos casos são
buscadas como forma de especialização para fugir das atividades menos valorizadas
do magistério. A dissociação entre os conteúdos educacionais e a formação
pedagógica é um problema da maior seriedade no sistema de ensino superior
brasileiro, que acaba fazendo com que as pessoas mais competentes e motivadas
voltem as costas às atividades do ensino. Deve ser possível, no entanto,
trazer de volta a educação básica para o centro de preocupação das universidades
brasileiras, não só nas faculdades de educação, mas sobretudo nos institutos
e departamentos de ciências e humanidades.
Eu resumiria meus comentários dizendo que a experiência brasileira, quando
posta em uma perspectiva comparada mais ampla, sugere que o único caminho
possível para uma política educacional para o país parece estar na descentralização
radical da execução das tarefas educativas, para os grupos e setores sociais
que possam ser motivados a assumir este trabalho, restando aos governos
centrais as tarefas imprescindíveis do estímulo, acompanhamento, financiamento,
definição de padrões e avaliação. A outra conclusão é que as profundas desigualdades
sociais e culturais que o Brasil apresenta não poderão ser corrigidas somente
pela educação, e que, enquanto estas desigualdades não se reduzirem, teremos
que continuar a conviver com um sistema educacional também estratificado,
onde o que cabe fazer é tratar de atender a cada qual naquilo quer tenha
condições de receber.
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