A Pesquisa Científica no Brasil: Matrizes Culturais e Institucionais

Simon Schwartzman

Publicado em Ernesto de Lima Gonçalves, editor, Pesquisa Médica, vol. 1. São Paulo, Editora Pedagógica Universitária; Brasília, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, 1982, p. 137-160.

Sumário

A experiência colonial

Ciência e Universidade no Império: A influência francesa e alemã.

Ciência na Primeira República: Os Sucessos da Ciência Aplicada

A crise de ciência aplicada: Rio de Janeiro, São Paulo e as condições para o desenvolvimento do trabalho científico.

Um Marco na Evolução Cultural: a USP

O Modelo da Nova Universidade

Notas


A cultura de um povo é, em grande parte, sedimentação de sua história. É verdade que a cultura brasileira nunca foi tão receptiva à atividade cientifica quanto aquela de alguns outros países. Isto não se deve, no entanto, a características pouco definidas de uma "cultura" ou "caráter nacional" supostamente estáveis e imutáveis, mas sim à maneira pela qual nossa experiência no passado deu ou não lugar a uma atividade científica significativa, por razões históricas possíveis de serem identificadas e, quem sabe, alteradas daqui para frente. A única forma ce entendermos, portanto, o contexto cultural de nossa pesquisa cientifica é entendermos melhor esta história.

A atividade científica no Brasil até o inicio da República pode ser caracterizada por sua extrema precariedade, oscilando entre a instabilidade das iniciativas realizadas pelo favor imperial e as limitações das escolas profissionais, burocratizadas, sem autonomia e totalmente utilitaristas em seus objetivos.

Esta precariedade pode ser melhor entendida se observarmos que não existiam no Brasil setores sociais significativos que atribuíssem à atividade científica um valor e uma importância que justificassem seu interesse e seu investimento. Por comparação, mesmo deixando de lado a Europa, é importante lembrar que o Japão, desde a Restauração Meiji em 1868, vinha trabalhando em um esforço sistemático de absorver a tecnologia e a ciência ocidentais. Em 1900 a Universidade Imperial de Tóquio já oferecia cursos avançados em física, tecnologia e ciências biológicas, ensinadas nas línguas ocidentais, e enviava estudantes para os principais centros científicos da Europa e Estados Unidos que mais tarde assumiriam o ensino das ciências em japonês. Esta iniciativa governamental contou com a participação de um grupo social bem definido, os samurais, uma classe de tradição guerreira que, com o fim do período de descentralização feudal do país, foi deslocada de suas antigas funções e proporcionou os quadros necessários para a revolução científica e tecnológica empreendida pelo seu pais.(1)

Ainda que diferente em muitos aspectos, a Índia também revela, já no século XIX, um padrão muito maior de envolvimento com a cultura ocidental da época. Os ingleses trazem para o subcontinente seu modelo de ensino, dão acesso a suas principais universidades e iniciam um processo de ocidentalização da cultura hindu que leva inclusive à adoção do inglês co mo língua oficial da colônia. A elite culta da Índia, formada pela casta dos brâmanes, ocupa as novas escolas e universidades, absorve a cultura inglesa com afinco e trata, assim, de se manter na liderança social e cultural de sua região dentro das condições permitidas pela situação colonial. Na realidade, havia muito de conservador nesta adaptação da elite brâmane à situação de dominação colonial, e estudiosos da experiência histórica da Índia tendem a assinalar a esterilidade relativa deste processo, pelo menos no sentido do estabelecimento de uma mentalidade científica e tecnológica efetivamente dinâmica e própria.(2)

De qualquer forma, os exemplos de Japão e Índia no século XIX ajudam a colocar em perspectiva a timidez dos projetos educacionais e científicos do Império brasileiro e, particularmente, a total ausência de um setor social que tivesse maior interesse nestes projetos. A educação despertava algum interesse, já que ela permitia acesso à burocracia, mas para isto o mérito intelectual não era o principal trunfo. Quanto à ciência, era obra de alguns europeus que para aqui vinham atraídos pelas condições oferecidas pelo imperador, e que conseguiam, algumas vezes, cativar a atenção e a colaboração de alguns elementos locais. Sem um apoio político mais decidido e sem uma base social definida, a ciência e a educação superior vegetavam no Brasil.

A experiência colonial

O século XVII marca o início da institucionalização da ciência europeia, simbolizada pela Royal Society na Inglaterra e pela Académie des Sciences na França. Ela culmina com a síntese newtoniana, que estabelece um modelo intelectual a ser seguido, um paradigma que permite distinguir com clareza o que deve ou não ser entendido como ciência. Outros paradigmas seriam buscados para as demais áreas de conhecimento, com sucesso relativo. O século XVIII é o tempo dos trabalhos dos naturalistas, que descrevem e desenvolvem sistemas de classificação de plantas, animais e fenômenos geológicos. São lançadas as bases iniciais das teorias evolucionistas, e Lavoisier dá inicio à química moderna. Avança o estudo da matéria, da eletricidade, do magnetismo e dos fenômenos de calor e energia.

A princípio, esta ciência se dá principalmente fora das universidades tradicionais. Pouco a pouco, elas vão penetrando os sistemas de ensino, e já no final do século XVIII pareceria que os antigos centros de cultura clássica que eram as universidades cederiam lugar a novas formas de escolas profissionais e técnicas. De fato, o que resulta são formas de convivência entre as formas antigas e as novas, que variam de país a país. Na Prússia, já no início do século XIX, surge pela primeira vez um sistema universitário que inclui a pesquisa científica como atividade central e que passará a influenciar o resto do mundo.

Portugal, no entanto, permanece à margem da ciência moderna, isolado pelo jugo clerical da Contra-Reforma e da Inquisição. A Reforma Pombalina iria romper este isolamento, mas não daria condições para a formação de uma comunidade científica com as características de autonomia e liberdade de espírito que existiam em outros países.

Durante o período colonial não existia ensino superior no Brasil, salvo para as carreiras eclesiásticas. As primeiras escolas desse tipo seriam criadas com a mudança da Corte. Nos dez anos iniciais que se seguiram ao evento, estruturaram-se no Brasil cursos superiores de engenharia e medicina, bem como outros dedicados a formação de diversos tipos de profissionais. A instauração de uma universidade somente seria cogitada no período final desse ciclo, quando a reforma da monarquia e, logo depois, a independência pareciam ter absorvido todas as energias. À iniciativa vincula-se o nome de José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), saído da universidade pombalina nas últimas décadas do século XVIII.

José Bonifácio era filho de família abastada, radicada em Santos, de ascendência portuguesa recente. Mandado estudar em Coimbra no começo dos anos 80, concluiu a Faculdade de Filosofia em 1787 e, no ano seguinte, a Faculdade de Leis. Preferiu a carreira de naturalista ao invés da magistratura, sendo admitido como sócio livre da Academia de Ciências de Lisboa em 1789. No ano seguinte já submetia à entidade memoria dedicada à pesca da baleia e à extração de seu azeite. Em 1790 foi mandado pelo governo português a empreender uma missão cientifica pela Europa, objetivando, em especial, a aquisição de novos conhecimentos de mineralogia.(3)

Durante parte de 1790 e no ano seguinte estudou química e mineralogia em Paris, passando, em 1792, ao laboratório de Werner (1750-1817), em Freiberg, que se considera como o fundador da mineralogia sistemática, desde que a separou da química geral, tornando-se disciplina independente. Permaneceu em Freiberg até 1794. Nos anos seguintes, dedicou-se à pesquisa mineral em vários países europeus. Tais atividades granjearam-lhe a admissão em varias instituições científicas européias, como a Sociedade Geológica de Londres, a Sociedade Mineralógica de Iena e as congêneres de Paris, Berlim e Edimburgo. Regressou a Portugal em fins de 1800.

Ao longo de três decênios transcorridos desde sua formatura em Coimbra, José Bonifácio manteve-se fiel ao entendimento da ciência vigente na universidade resultante da Reforma Pombalina, isto é, como aquela disciplina que se esgota na aplicação.(4) Escrevendo em 1813, numa memoria sobre minas de carvão e fundições de ferro, teria oportunidade de afirmar:
"Se o país é estéril em produtos agriculturais, como a maior parte de nossas serrarias e charnecas; se as fábricas têm obstáculos quase invencíveis para se porem em concorrencia com os estrangeiros, como entre nós sucede; que outro modo mais natural e seguro terá uma nação para não empobrecer e despovoar-se, do que a lavra em grande de seus minerais com que a Providência a quis dotar? Se a Rússia, a Prússia e a França se enriqueceram de novo tanto, com lavra das suas minas, quem proíbe a Portugal enriquecer-se do mesmo modo? Pão, pólvora e metais são quem sustenta e defende as nações; e sem eles de próprio fundo, é precária a existência e liberdade de qualquer Estado."(5)
A ciência acha-se a serviço da efetivação de semelhantes propósitos de enriquecimento nacional. Mais ainda: os êxitos somente serão assegurados mediante a interpenetração do conhecimento científico e da atividade produtiva. Nos primórdios de sua carreira, na primeira memoria submetida à Academia, antes referida, escreve que
"os homens comuns assentam consigo que as coisas comuns não entram na repartição das ciências; e assim a arte de fazer fornalhas parece-lhe coisa vulgar, e de qualquer estúpido pedreiro; mas, contudo, bastante conhecimentos físicos requer. Em Santa Catarina, onde se acha fundada a maior armação do Brasil, há pelo menos vinte caldeiras com outras tantas fornalhas respectivas; mas, se os primeiros construtores alguma coisa soubessem mais da física e química do fogo, todas elas estariam reduzidas a cinco, quando muito".(6)
Na memória sobre minas de carvão, de 1813, bem como na que dedicou à necessidade de plantio de novos bosques em Portugal, é idêntica a acepção de ciência. Nesta última memória, de 1815, encerra um dos tópicos com esta exortação:
"Para aumentar este capitulo cumpre-me pedir aos lavradores ativos, patriotas e justamente estudiosos, que se empenhem seriamente em combinar, para bem da nossa lavoura, as regras e preceitos que nos deixaram um Collumella e um Plínio com os da nova Cultura Inglesa, aperfeiçoada grandemente pelas ciências naturais e por longa experiência. Só assim chegaremos a ter um corpo de verdadeira doutrina agronômica, com que prospere e se aumente a nossa atrasada agricultura"(7)
José Bonifácio regressou ao Brasil, ao que se supõe, atendendo a convite de D. João VI para assumir a reitoria do Instituto Acadêmico, espécie de universidade que se cogitava fundar no Rio de Janeiro. Não se sabe que razões teriam determinado a postergação da providência. O certo é que, tendo ido residir em Santos, decorrido pouco mais de um ano estava envolvido nos acontecimentos de que iriam resultar o regresso do monarca a Portugal e a proclamação da independência do país. Tendo-lhe cabido redigir, em 1821, as instruções aos deputados paulistas que faziam parte da representação nacional junto às recém-convocadas Cortes de Lisboa, retoma a idéia da universidade brasileira. E o faz inspirando-se amplamente no modelo pombalino.

A universidade cogitada por José Bonifácio constituía-se de três faculdades: Filosofia, Jurisprudência e Medicina. Suprimiam-se as Faculdades de Cânones e Teologia, mantidas pela Reforma Pombalina, o que parece indicativo do avanço da mentalidade laica no período transcorrido.

A Faculdade de Filosofia subdividia-se em três seções: ciências naturais; filosofia racional e moral; ciências matemáticas. Semelhante estrutura equivale a avaliar negativamente a constituição de modo autônomo da Faculdade de Matemática, ocorrida na Reforma de 1772. Em contrapartida, a acepção de filosofia permaneceria inalterada. O curso deveria ter como núcleo as cadeiras de história natural, química, física e mineralogia, devendo esta última ser ministrada em toda a sua extensão. Esperançoso nas possibilidades minerais do país, em vista sobretudo da vastidão do território, cuidava de encaminhar o ensino no sentido da formação preferencial de homens habilitados a promover sua exploração. Este projeto, no entanto, jamais adquiriria realidade.

Ciência e Universidade no Império: A influencia francesa e alemã.

A obra da administração imperial na área da ciência e da educação superior é bem conhecida. Do ponto de vista educacional, deu-se inicio à educação superior nas disciplinas tradicionais, o Direito, a Medicina e a Engenharia, esta a princípio essencialmente militar. Ao mesmo tempo, uma serie de iniciativas, a princípio totalmente pragmáticas, permitiram a criação de centros de estudos que terminaram gozando de grande autonomia e independência de trabalho, graças à liderança estabelecida de profissionais europeus: o Museu Nacional, o Observatório, o Museu Goeldi, entre outros.

No segundo reinado, D. Pedro II era reconhecido pelo seu patronato à ciência e a cultura, ainda que de forma freqüentemente criticada. De qualquer forma, as últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX foram conhecidas como o período da "Ilustração Brasileira", no dizer de Roque Spencer Maciel de Barros.(8) É um período em que o contato com a Europa, particularmente com a França, é intenso, e de lá vêm as idéias de evolução, o darwinismo biológico e social, o positivismo e o materialismo filosófico e político. Estas idéias encontram eco nas elites políticas, culturais e intelectuais do país, cada qual escolhendo os aspectos que mais lhe são próximos. O positivismo reina no meio militar, e o próprio imperador é entusiasta e propagandista das novas tecnologias.

O alcance e sentido da influência europeia na história intelectual, institucional e política do Brasil é um dos temas centrais da historiografia brasileira, que não caberia apreciar aqui. No que se refere especificamente à área cientifica e intelectual, haveria que examinar, além do papel do positivismo e a influência do ambiente intelectual e universitário francês, a influência alemã. É da França e da Alemanha que chegam, muitas vezes com atraso e distorcidos, os modelos intelectuais e institucionais que são adotados no Brasil . É nestes países, particularmente no primeiro, que vão estudar nossas elites intelectuais. É destes países, particularmente do segundo, que vem um grande contingente de cientistas e pesquisadores assumir a liderança de muitas de nossas instituições de pesquisa. Neste quadro, chama atenção a pouca influência cultural inglesa, apesar da óbvia importância da Inglaterra como centro universitário e potência econômica e política da época.(9)

Seria certamente ingênuo, nesta apreciação, contrapor a ciência européia a uma possível ciência nacional. A Europa era o centro de ciência da época, e as possibilidades de sucesso ou fracasso no estabelecimento de uma tradição cientifica no Brasil dependiam, essencialmente, de condições adequadas para transplantar e permitir que se desenvolvessem em nosso meio mudas da árvore principal. Daí a existência de fracassos, de alguns sucessos em condições de estufa e de outras experiências que, pelas condições locais, foram se modificando e diferenciando em relação aos modelos originais.

O positivismo, ao dar valor à ciência e combater a visão especulativa e contemplativa da realidade, abria o país para as novas técnicas e os novos conhecimentos que já há tanto tempo dominavam o panorama intelectual da Europa. Mas, ao fazê-lo, trazia como que de contrabando uma visão das coisas que pouco tinha a ver com a nossa realidade e que se opunha à forma pela qual a atividade científica realmente se desenvolvia naqueles países.

De fato, nos meios acadêmicos franceses, o positivismo foi aceito apenas por certa parte dos filósofos sociais evolucionistas, não tendo maior aceitação por parte dos cientistas naturais. Do ponto de vista das ciências sociais, o positivismo se deparava com as outras tendências e teorias que então surgiam, como o marxismo, o evolucionismo de Spencer e a tendência expressa por Quételet da aplicação de métodos estatísticos aos estudos sociais; do ponto de vista das ciências físicas, chocava-se diretamente com a linha teórica que a física iria seguir a partir da demonstração, realizada nos fins do século XVIII por Volta e Galvani, da existência de forças não-newtonianas, resultando na introdução do conceito de campo como representação física por Faraday em 1831 e, posteriormente, na introdução do conceito de campo como realidade física por Maxwell (1864 a 1873); do ponto de vista das ciências matemáticas, da mesma forma, chocava-se diretamente com a linha que a matemática iria seguir a partir dos trabalhos de geometria não-euclidiana de Gauss no fim do século XVIII . Tanto o conceito de campo como os conceitos que derivam das análises não--euclidianas eram considerados por Comte e seus seguidores como abstrações provenientes do estágio metafísico da mente humana, que deveriam ser erradicadas do sistema de ensino. Marginalizado pela comunidade acadêmica em sua quase totalidade, Comte passou a apregoar a necessidade de se ensinar a ciência positiva ao povo (que em sua concepção seria o único grupo não comprometido com o poder ainda baseado nas premissas do estado metafísico), daí decorrendo a vertente religiosa do positivismo, expressa por Émile Littré.

Ninguém melhor que Benjamim Constant, o grande positivista da República, para expressar este ponto de vista . Em carta à esposa, enviada do teatro de operações da Guerra do Paraguai, dizia Benjamim Constant:
"O positivismo é uma religião nova, porém a mais racional, a mais filosófica e a única que emana das leis que regem a natureza humana. Não podia ser a primeira, porque ela depende do conhecimento de todas as leis da natureza, é uma conseqüência espontânea desse conhecimento e, portanto, não podia aparecer na infância da razão humana, e mesmo quando as diversas ciências estavam em embrião; não teria ainda aparecido se ao gênio admirável de Augusto Comte não fosse dado, pela vastidão de sua inteligência, transpor os séculos que hão de vir, surpreendendo por sua sábia previsão as ciências em seu termo e dando-nos na sua Religião cientifica a religião definitiva da Humanidade"(10)
A ciência está dada, o conhecimento do mundo está feito. Não há mais lugar para a indagação, para a dúvida, para a experimentação. O que existe são certezas dos que conhecem a verdade. A estes, cabe a ação prática e o proselitismo dos incrédulos. Como incluir, nesta perspectiva, a idéia de um laboratório, um centro de pesquisas, uma universidade que tivesse, entre seus objetivos, desenvolver os conhecimentos, trabalhar na fronteira do desconhecido?

A reação intelectual ao positivismo dar-se-ia através de um grupo de discípulos de Otto de Alencar na Escola Politécnica, liderados por Amoroso Costa. São matemáticos brilhantes, que se dedicam à astronomia e a mecânica racional, e conseguem absorver e tentar recriar, no Brasil, oque havia de mais vivo e atuante no ambiente intelectual francês da época. No entanto, este era um grupo relativamente marginal...

O início do século XX traz a grande revolução da física, que dominaria o ambiente científico mundial até a década de 30, atingindo o ápice tecnológico com a bomba atômica. Em 1890, Roentgen descobre os raios X; logo a seguir, Becherel descobre a radioatividade, sendo seguido pelos estudos dos Curie sobre o rádio; em 1900, Max Planck formula a teoria dos quanta, que servirá de base para o átomo de Bohr-Rutherford. Em 1905, Albert Einstein publica a teoria especial da relatividade. No que tange às aplicações, o estudo da eletricidade permite, a partir da descoberta da válvula, a radiotelefonia, que na década de 20 já se consolida com os sistemas de radiodifusão. É a época do desenvolvimento da produção em série de automóveis e do início da utilização do "mais pesado do que o ar", dos irmãos Wright e de Santos Dumont.

A história das ciências mostra, assim, que as ciências físicas modernas, neste século, não passariam pela França e sim pela Inglaterra, com Rutherford e Thompson, e pela Alemanha, com os trabalhos de Einstein e Heisenberg. A grande contribuição francesa à física contemporânea é feita a partir dos trabalhos de Pierre e Marie Curie, numa tradição de trabalho mais experimental, vinculado à química, que não dominava as grandes écoles e que não chegou ao Brasil.

Essencialmente livresca e professoral, mesmo na sua melhor parte, a física francesa que aqui chegava não trazia o clima de pesquisa e experimentação empírica que dominava a outra grande influência francesa que o Brasil recebia, a da pesquisa em microbiologia e bacteriologia de Pasteur. A ciência francesa estava fora da universidade e, embora a França mantivesse sua posição de grande centro cultural e intelectual, já não tinha a liderança da ciência européia.

Na área biológica, as conquistas da época são muito significativas. Ainda no século XIX, Pasteur havia inaugurado a microbiologia, com profundas implicações no campo da medicina. Na última década do século, Mendel é redescoberto, e os estudos de genética adquirem um impulso cada vez mais forte a partir dos estudos de Morgan sobre a hereditariedade das drosófilas. A bioquímica começa a se desenvolver, com a utilização das enzimas na condução das reações, e mais tarde com a descoberta da fotossíntese por Wilistater; Pavlov lança a teoria dos reflexos condicionados, enquanto Sigmund Freud publica a Interpretação dos Sonhos.

Mas, na realidade, o grande modelo era a Alemanha. Era ali que havia sido criado um sistema universitário que unia o ensino a pesquisa, simbolizado pela química, como grande atividade científica, universitária e industrial daquele país. O Brasil tentou recriar aqui o sistema universitário alemão, bem como sua química, ainda que de forma separada e desconexa. Nos dois casos, os resultados foram negativos.

O sistema universitário alemão, combinando de forma tão bem sucedida a pesquisa acadêmica, a pesquisa industrial e a formação profissional, havia dominado de forma indiscutível todo o cenário intelectual do século XIX. O crescimento da física, no entanto, começava a dar mostras de gigantismo, e já no início do século os alemães falavam de Grosse Wissenschaft, a big science que haveria de ressurgir como idéia recorrente após a Segunda Guerra Mundial. Cara e altamente especializada, a física moderna não tinha mais como ser acomodada na universidade, de forma integrada ao ensino profissional . Daí a criação de institutos universitários de pesquisa e, a partir de 1911, do Kaiser Wilhelm Gesellschaft (hoje Institutos Max Planck) como instituto dedicado exclusivamente à pesquisa científica. Na Inglaterra, a existência de umas poucas universidades de elite dotadas de estrutura departamental permitiu que a ciência fosse melhor acomodada em seu seio, ao tempo em que instituições de pesquisa fora da universidade eram criadas com apoio governamental. Como assinala Ben David, "os ingleses nunca se comprometeram, tal como os alemães, com a idéia de que a universidade fosse a principal base para a pesquisa fundamental mais avançada. Considerava-se como evidente que existiam algumas áreas de pesquisa, incluindo alguns tipos de pesquisa fundamental, que não poderiam ser reconciliadas com as funções educacionais das universidades."(11) Os Estados Unidos, que compartiam com os ingleses a mesma filosofia, tiveram ainda mais condições de manter a pesquisa no ambiente universitário, graças à criação das graduate schools como unidades de ensino separadas e independentes dos cursos de formação profissional. Na França, a necessidade de desenvolver a pesquisa na universidade levou à criação, em 1868., da École Pratique des Hautes Études, que funcionava como centro de convergência para as atividades de pesquisa de professores das diversas escolas profissionais. As atividades científicas eram desenvolvidas também nas grandes écoles e em 1939 foi criado o Centre National de la Recherche Scientifique, como unidade de pesquisa desligada do ensino.

Em síntese, é possível afirmar que a expansão da atividade científica no inicio do século colocou em questão a idéia germânica, até então indiscutível, da unidade do ensino e da pesquisa, o que levou à criação de novas instituições e novas formas de organização da própria atividade universitária .

No Brasil, uma percepção difusa do sistema universitário alemão, mesclada ao ideário positivista e adaptada ao clima político das tendências descentralizantes que já começavam a se manifestar a partir do manifesto republicano de 1870, levou a uma transformação profunda do sistema de educação superior, através da Reforma Leôncio de Carvalho, feita no período do gabinete liberal de Sinimbu. Esta reforma instituiu a freqüência livre, o ensino livre (com a introdução de uma versão brasileira do privatdozent alemão) e os cursos livres. Seu efeito mais imediato foi a desorganização completa do pouco que havia do regime de educação centralizada, substituído pelo sistema de exames finais, cuja seriedade dependia da qualidade variável dos professores.(12) Ao mesmo tempo, a reforma - que duraria até 1895 - teve como principal efeito a criação de estabelecimentos de ensino superior por todo o país, a começar, naturalmente, por São Paulo.

Se algo da forma do sistema universitário alemão foi copiado sem o conteúdo - dado pela tradição educacional, pela comunidade científica e por uma filosofia social de valorização da ciência e do trabalho universitário -, buscou-se trazer a química alemã como conteúdo sem as respectivas formas. Químicos que para aqui vieram se dirigiram para institutos e escolas de engenharia, tentando reproduzir os resultados práticos que a excelência da química alemã poderia fazer esperar. Sem um contexto universitário no qual pudesse se desenvolver e sem um parque industrial que pudesse absorver seus produtos, a química não chegou a ter raízes mais profundas. Contribuiu ainda mais para as dificuldades da química o fato de ela ter começado a perder, na própria Alemanha da passagem do século, sua posição de ciência de vanguarda, restringindo-se cada vez mais à tecnologia e cedendo lugar para a física.

Este quadro não poderia ser exaustivo e serve tão-somente de ilustração para o clima de efervescência e descoberta que varria a Europa e começava a atingir os Estados Unidos, em função dos quase cinqüenta anos de paz que, de 1870 a 1914 , ficaram conhecidos como a belle époque.

Deste clima, algo chegava até nós. Em história natural, o interesse pelas grandes sínteses propostas e debatidas durante todo o século XIX, como o evolucionismo, transferiu se para a esfera política e social, colocando em segundo plano o trabalho descritivo e classificatório dos naturalistas. Em física, a ausência de uma tradição matemática e experimental moderna só permitia que chegassem ao país os resultados mais palpáveis das novas descobertas, como a telefonia, o rádio e o automóvel. Finalmente, a idéia de uma vinculação íntima entre ensino e pesquisa, que começava a ser parcialmente abandonada na Europa, só ganhou força entre nós na década de 20.

Por tudo isto, a ciência que se institucionalizaria no Brasil no inicio do século XX teria algumas características peculiares, que vale a pena resumir.

Primeiro, os temas desta "ciência brasileira" seriam, essencialmente, os da ciência européia do século XIX: a história natural taxonômica, a astronomia anterior à astrofisica, a medicina bacteriana, as geociências de tipo exploratório e descritivo, a química tradicional. Isto não significa, de nenhuma forma, que estas não tenham sido atividades cientificamente válidas e importantes. Significa, isto sim, que a ciência que se fazia, quando de qualidade, era ciência de tipo "normal", de consolidação, em função de cânones de trabalho já bem estabelecidos, e não uma ciência "de ponta", de abertura de novas fronteiras do conhecimento.

Segundo, as diversas tradições científicas do país dependeriam da presença de pesquisadores estrangeiros que aqui se radicavam ou, em menor grau, de brasileiros formados no exterior. Deve ser lembrado que essa era a época de migrações maciças de europeus para as Américas, e São Paulo foi, depois de Buenos Aires, o principal pólo de atração desta população ao sul do Rio Grande, cabendo também ao Rio um contingente substancial de europeus. Seria necessário um estudo mais aprofundado, que ainda não foi feito, para entender quem eram esses estrangeiros mais educados que para aqui vinham, como chegavam e que laços mantinham com seus países de origem. Não há dúvida, porém, de que deixaram seus frutos, e isto permite que falemos de uma ciência no Brasil ainda que não, evidentemente, de uma ciência brasileira.

Terceiro, esta ciência se firmaria fora do sistema de educação superior, que não tinha nem lugar para a pesquisa cientifica nem escolas onde futuros cientistas pudessem ser formados. Os lugares em que a atividade de pesquisa científica podia se desenvolver - o Observatório Nacional, o Instituto Agronômico, o próprio Instituto de Manguinhos - eram instituições voltadas para a prática e, no máximo, toleravam o trabalho "interminável", "exigente" e "ininteligível" dos cientistas.

O que mais chama a atenção na passagem do período imperial para o período republicano é a grande mudança de ênfase da pesquisa mais acadêmica para a pesquisa mais aplicada. As instituições imperiais foram criadas dentro de uma perspectiva extremamente pragmática, tanto no que se refere às escolas superiores quanto a instituições como o Museu Nacional ou o Jardim Botânico ou, mais tarde, a Escola de Minas. Com o tempo, no entanto, muitas destas instituições foram se academicizando, para o que contribuiu a influencia pessoal de Pedro II e a presença de cientistas identificados com o ambiente intelectual europeu. A República surge com novas prioridades, novos pólos de crescimento - São Paulo, principalmente - e novas preocupações - a agricultura, a saúde pública, os recursos minerais .

A nova orientação produziria um resultado cientifico importante, que foi o Instituto Oswaldo Cruz. No entanto, pareceria que a transformação do Instituto em um centro de pesquisa de alto nível não se explica inteiramente pelos sucessos práticos do Instituto, e sim pela preocupação de seus líderes em aproveitar os recursos e o apoio de que dispunham para criar uma instituição que não estava, de nenhuma forma, nas intenções dos setores sociais e governamentais que aplaudiam seus sucessos. Na área da Escola Politécnica, a introdução da matemática moderna se faz em oposição à tradição mais pragmática representada pelo positivismo e graças à manutenção de vínculos estreitos com o ambiente científico francês, mantida através do grupo ligado ao Observatório Nacional - Morize, principalmente, e mais tarde Otto de Alencar e Amoroso Costa. O sucesso científico de Manguinhos e o brilho dos matemáticos da Politécnica não devem obscurecer os relativos fracassos: nas geociências, na química, na pesquisa agrícola, nos demais centros de pesquisa biológica.

Em síntese, as adaptações e transformações que vieram com a República não permitiriam um equacionamento satisfatório do problema da implantação da ciência moderna no Brasil, apesar de alguns sucessos notáveis e varias sementes lançadas.

Ciência na Primeira República: Os Sucessos da Ciência Aplicada

Na virada do século havia no Brasil, segundo Fernando de Azevedo, apenas seis instituições em que se podia falar de um espírito científico e do gosto pela experimentação, e destas apenas uma poderia ser considerada diretamente pertencente ao âmbito universitário. Esta exceção, segundo ele, era a Escola de Medicina da Bahia, onde Nina Rodrigues, entre 1891 e 1905, liderou um esforço sistemático de pesquisas e atividades experimentais na sua cadeira de medicina legal. No caso, os estudos iam muito além, entrando nos domínios da antropologia, sociologia e psicologia. Os outros centros de trabalho científico eram instituições extra-escolares, dedicadas a trabalhos mais ou menos aplicados. Eram o Museu Paraense, o Instituto Agronômico de Campinas, o Museu Paulista, o Jardim Botânico na gestão de João Barbosa Rodrigues, de 1889 a 1909, e o Instituto de Manguinhos.(13)

Em quase todos estes casos, prevalecia a forte dependência de uma liderança pessoal carismática, como fica claro na explicitação dos nomes que tornaram suas instituições famosas: Nina Rodrigues, Emílio Goeldi, Dafert, Hermann von Ihering, Barbosa Rodrigues. Aparentemente, o Instituto de Manguinhos e o Agronômico foram os únicos que, apesar de também deverem sua fama inicial a um único homem, conseguiram rotinizar o carisma de modo mais convincente. Os outros certamente tiveram alunos; mas não continuidade institucional. Como bem observou Fernando de Azevedo, estes "deviam seu êxito, no campo das ciências naturais, ao esforço pessoal de individualidades determinadas, tanto que o afastamento de um Dafert, de um Goeldi ou de um Von Ihering bastou para provocar um desvio na linha de sua evolução ou uma queda brusca no ritmo de seus trabalhos".(14)

A existência de uma comunidade científica ainda tão débil contrastava fortemente com todo um movimento da sociedade brasileira na busca de educação e formação técnica, a partir do início da República. Neste período inicial foram fundadas a Escola Politécnica de São Paulo (1893), a Escola de Engenharia do Mackenzie College (1896), a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (1901), a Escola de Comércio do Mackenzie College (1902), a Escola de Comércio Álvares Penteado (1902), a Faculdade de Medicina de São Paulo (1913), du as escolas técnico-profissionais, uma feminina, outra masculina, também em São Paulo (1911), etc.(15) Esses dados são tanto mais significativos se lembramos que até o ano de 1876 a única escola a formar engenheiros era a Escola Central, posteriormente Escola Politécnica, o que não significava que não continuassem sendo criadas escolas de direito em proporção muito maior. Em 1940, para dez escolas de engenharia, onze de medicina, catorze de farmácia e odontologia, cinco de agronomia e veterinária, contavam-se vinte escolas de direito, oficiais ou fiscalizadas.

Aos poucos, entretanto, começava a ficar claro, se não o abandono total da formação acadêmica bacharelesca, pelo menos um aumento na busca de áreas de aplicação prática, o que se revelava também na escolha da carreira pelos estudantes brasileiros no exterior. No caso dos que iam à Bélgica, os estudantes de engenharia e medicina excediam em numero, de longe, qualquer outra categoria profissional, ainda que a probabilidade de êxito em obter o diploma fosse muito menor nas carreiras mais técnicas. É interessante observar, aliás, que a Bélgica tinha optado por um sistema de escolas politécnicas à francesa, mas sem o cunho militar e elitista daquelas e com uma ênfase maior sobre as aplicações que facilitassem aos egressos o acesso ao mercado de trabalho.(16)

Esta ênfase crescente na busca de educação técnico-profissional, de tipo aplicado, combinava com a inspiração original das antigas escolas Militar, de Engenharia e de Medicina, e além disto era justificada pela ideologia positivista que predominava nos setores mais modernos do país.

Dois outros fatores propiciavam esta tendência à educação técnica aplicada. Primeiro, o surto de industrialização e desenvolvimento do país, que repercutiu, por um lado, na abertura de estradas, em sua grande maioria ferrovias, e, por outro, na expansão de novas culturas agrícolas. Em segundo lugar, o fato de a própria ciência européia haver alcançado um momento extremamente propício e raro. Segundo Ben-David, era um momento de grande potencialidade de aplicação da ciência básica, que se dava fundamentalmente nos vários ramos da ciência biológica; não uma ciência pura que em determinado momento de sua evolução começou a frutificar em termos de utilidade prática, mas uma área de pesquisa básica - a microbiologia - que se atrelou a posteriori a uma área de aplicação tradicional - a medicina -, dando à biologia uma dimensão de efetividade e eficiência fora do comum, que lhe garantia uma visibilidade e uma legitimidade muito além das outras ciências de caráter mais desengajado.(17)

Na medida em que a economia avançava, começavam a surgir obstáculos imprevistos a sua expansão e consolidação: as pragas agrícolas; as doenças do gado; as endemias que reduziam a capacidade produtiva da população e fechavam os portos à navegação; a falta de uma rede eficiente de estradas, portos e ferrovias; as deficiências energéticas, etc. Fenômenos como a peste nos portos do Rio e Santos, pragas como a broca do café, a malária dizimando os trabalhadores que abriam estradas, todas estas coisas estavam na ordem do dia e não podiam escapar a um esforço de eliminação.

Não se pode negar, aliás, que estes problemas foram enfrentados muito mais eficientemente do que era de esperar da precária administração pública herdada do Império. Na cidade de São Paulo conseguiu-se reduzir quase à metade a mortalidade da população, num período de cinco anos, e isto numa época de intenso crescimento demográfico.(18) O caso do Instituto de Manguinhos dispensa outros comentários quanto à efetividade de sua atuação. É preciso, somente, qualificá-la. Oswaldo Cruz muito se beneficiou da sua dupla posição de diretor do Instituto e de Saúde Pública. O corpo técnico do Instituto conseguiu dar um excelente apoio às campanhas sanitárias, tanto no que diz respeito às tarefas de rotina (identificação de epidemias, controle de qualidade, produção de vacinas, etc.), quanto ao trabalho científico propriamente dito. Havia, no grupo de cientistas que faziam parte do Instituto nos primeiros anos de sua existência, a consciência de que o trabalho de saneamento e de saúde pública oferecia uma excelente oportunidade para a exploração e a pesquisa científica. Mas a exploração e a pesquisa científica não haviam perdido ainda seu aspecto de atividade razoavelmente secundária (as vezes até marginal: a incumbência de Chagas em Lassance era exclusivamente cuidar da malária). Nem tinham deixado de ser algo que se assemelhasse a um divertimento sério de uns poucos gênios, talvez um tanto excêntricos e individualistas.

Já no fim da década de 20 é preciso ainda ressaltar a institucionalização da ciência no caso do Instituto Biológico de São Paulo, que ate os anos 40 manteve uma posição de destaque como centro de produção científica de primeira ordem, no contexto geral da época, sem prejuízo evidentemente de suas atividades principais de prestação de serviços relacionados com as atividades agrícolas e veterinárias.(19)

Em relação a pesquisa agrícola, parece ter havido, historicamente, uma clara divisão entre os trabalhos relacionados à agricultura de exportação (café, algodão, cana) e a agricultura para o mercado interno brasileiro (arroz, feijão, milho). Resumindo o resultado da avaliação do impacto da pesquisa agrícola sobre o setor econômico, José Pastore observa que os ganhos de produtividade em produtos agrícolas estão associados, no Brasil, com a estabilidade e a continuidade dos grupos de pesquisa, que, por sua vez, estão altamente relacionados com a orientação do produto para exportação ou para o mercado interno. Pesquisadores relacionados com o café, cana e açúcar teriam "sempre gozado do privilegio de ter apoio financeiro adequado para seus experimentos, com continuidade através do tempo, recrutando e promovendo os melhores talentos, e expondo seus trabalhos a crítica da comunidade transnacional". A pesquisa orientada para produtos de consumo domestico, no entanto, "era sistematicamente a primeira a ser afetada por todo tipo de problemas financeiros ou organizacionais das instituições de pesquisa. Feijão e arroz, apesar de serem os alimentos básicos do brasileiro, nunca receberam alta prioridade em termos de pesquisa".(20) As principais instituições envolvidas são o Instituto Agronômico e o Instituto Biológico de São Paulo.

A Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, desde o inicio (1901), destinava-se mais à formação de administradores de fazenda e técnicos agrícolas do que à produção de ciência, que só ganhou maior importância a partir da criação da primeira cadeira especial de genética, em 1935, que ficou a cargo do geneticista alemão Brieger. O Instituto Agronômico de Campinas, após um período inicial produtivo, só veio a se recuperar a partir do final da década de 20. A Escola Superior de Agricultura e Veterinária do Rio de Janeiro, apesar de criada em 1910, não teve relevância científica senão a partir da década de 40. A de Viçosa, que é de 1917, também não teve produção científica de importância nesse período. Foi o Biológico de São Paulo, cuja criação se deveu exatamente à praga da broca no café em fins da década de 20, que, junto com o Agronômico e o Butantã, representou o primeiro êxito real e de repercussão econômica da pesquisa na agricultura.

Em resumo, na expansão da educação técnica, nos sucessos alcançados na área de saúde pública, por alguns feitos expressivos na área da agricultura e pecuária, a ciência aplicada brasileira parece ter atingido seu auge nas primeiras décadas deste século.

A Crise de Ciência Aplicada: Rio de Janeiro, São Paulo e as Condições para o Desenvolvimento do Trabalho Científico.

A crise da pesquisa aplicada deriva em boa parte de seu próprio sucesso. Se para os naturalistas, físicos e matemáticos havia certo lugar para um ideal de ciência pura, desinteressada e despreocupada de resultados práticos imediatos, esta não era a visão de mundo dos pesquisadores em medicina sanitária ou em agricultura, nem dos homens preocupados com a promessa de riqueza dos produtos minerais. Dafert, no primeiro relatório do Instituto Agronômico de Campinas, fez questão de afirmar que "quem quer que seja, nos encontrará prontos a auxiliá-lo em qualquer questão relativa à nossa ciência, e não receamos os estudos penosos, contanto que sejam exigidos em interesse da lavoura do país".(21)A própria química alemã da época, em cuja escola Dafert se formara, era fortemente orientada para a atividade prática. No entanto, esta disposição não foi suficiente para que seu trabalho deixasse de ser considerado pouco prático e acabasse por ser interrompido .

Por que o apoio lhe foi retirado? É possível supor que, diante da expansão formidável da lavoura cafeeira, baseada na utilização extensiva do solo, as pesquisas práticas de Dafert fossem vistas como exercícios acadêmicos que jamais poderiam ter uma significação econômica maior. Tal não era o caso, evidentemente, do trabalho dos institutos bacteriológicos, como não foi o caso em relação à broca do café. Mas, ainda aqui, uma vez terminadas as campanhas bem-sucedidas de saneamento, as instituições de pesquisa começaram a sofrer da falta de compreensão e de apoio social e político. A atividade científica aplicada conseguiu apoio em vista de resultados espetaculares, mas o preço deste apoio foi uma imagem difícil de manter: a de que a ciência e o cientista tudo resolvem, e por isso merecem todo o apoio. Esta imagem é impossível de ser conciliada com a noção de uma atividade científica que se desenvolve a longo prazo, realizando trabalhos de cuja importância só os cientistas podem dizer e cujos resultados só esporadicamente são transformados em produtos de aplicabilidade social e econômica mais óbvia.

Passado o impacto dos primeiros anos, o Instituto de Manguinhos conseguiu, ainda por muito tempo, manter-se como instituição de alto prestígio, graças à qualidade de seu quadro, aos contatos que estabeleceu com a comunidade científica internacional da época e também à autonomia administrativa e financeira garantida pelos estatutos e pela produção rotineira de vacinas. Mas, a partir do impulso inicial, já não houve mais crescimento nem renovação, e o Instituto não conseguiu manter o mesmo padrão de atividades.

Talvez o caso de Manguinhos seja o mais dramático exemplo do que se passava em grau maior ou menor nos outros institutos, justamente porque aí se misturam e confundem fatores específicos do Instituto com problemas mais amplos. A Lei da Desacumulação, por exemplo, fez com que três de seus principais colaboradores - Carneiro Felipe, Costa Lima e Olympio da Fonseca - se afastassem do Instituto, optando pela Universidade do Rio de Janeiro, em uma situação precária, em que havia, para cada especialidade, praticamente um único especialista.

Havia ainda a questão da perda da autonomia financeira do Instituto, que tinha nos rendimentos da vacina da manqueira uma de sua principais bases. (A produção desta vacina foi suspensa na época do Estado Novo). Finalmente, o isolamento e a auto-suficiência de Manguinhos contribuíram, aparentemente, para que o Instituto não acompanhasse as transformações que a quimioterapia traria, na década de 30, ao tratamento das epidemias, tornando, em pouco tempo, secundária a grande tradição sanitarista na qual o Instituto de Manguinhos florescera.

Esta é, por outra parte, a época em que São Paulo vai se firmando como principal centro econômico do país. Criando novas instituições de pesquisa aplicada, ou consolidando as já existentes, São Paulo acabou por atrair grande numero dos principais talentos que o Rio de Janeiro - inclusive Manguinhos - já não conseguia reter. Vale citar, entre outros, Otto Bier, José Reis e A. M. Penha - recrutados para o Biológico por Artur Neiva e Rocha Lima, também cariocas -, e, um pouco mais tarde, Maurício Rocha e Silva, que se recorda bem da situação na capital:
"O Rio de Janeiro estava mais ou menos parado, em 34-35, quando me formei. (...) Era dificílimo alguém começar uma carreira científica. A única possibilidade era ir para Manguinhos, com um salário de fome (quando tinha salário), ou ficar estagiando gratuitamente. Os ricos podiam fazer isto e ficavam. Provavelmente houve uma liderança de gente mais bem situada na vida que conseguia sobreviver em Manguinhos"(22)
Ou, ainda, na lembrança de Otto Bier:
"O preenchimento das vagas de bacteriologistas e imunologistas do Instituto Biológico foi feito através de uma consulta ao Instituto Oswaldo Cruz, do qual sairiam os cientistas (...). que viriam a preencher os lugares iniciais do instituto congênere de São Paulo. A resposta do Instituto Oswaldo Cruz consistiu na indicação dos alunos que se tinham classificado em primeira chave nos últimos tres anos no curso de aperfeiçoamento do Instituto. E foi assim que Adolfo Martins Penha, José Reis e eu fomos indicados para estas vagas de bacteriologista e imunologista do Instituto Biológico de São Paulo".(23)
Este fato, inclusive, revela a incapacidade de Manguinhos de absorver os novos talentos, mesmo os melhores, já naquela época. O próprio Afrânio do Amaral, que não vinha de São Paulo mas sim do Norte do país, dizia: "Para o Instituto Butantã, fui buscar cerca de onze elementos no estrangeiro, principalmente na Europa central, além de elementos trazidos do Instituto Oswaldo Cruz, que ali já não encontravam meios de se desenvolver."(24)

Em sua entrevista, José Ribeiro do Valle cita ainda Thales Martins e Paulo Galvão como membros de uma primeira geração que veio do Rio para São Paulo, realizando aí a maior parte de sua carreira científica. O sistema acadêmico de São Paulo, entretanto, não permitia o padrão de excelência relativa que o Rio, apesar de tudo, mantinha e que lhe garantia a posição de liderança incontestável como celeiro de jovens e promissores talentos. Para tal, o curso de aperfeiçoamento de Manguinhos tinha especial importância.

Em São Paulo, só havia a Faculdade de Medicina, criada em 1913 e que, desde o início, contava com a ajuda de vários professores estrangeiros, entre eles um parasitologista famoso, Brumpt, e o anatomista italiano Bovero. A opção de buscar professores no exterior, e que seria repetida com maior ênfase na criação da USP, deveu-se fundamentalmente à visão de Arnaldo Vieira de Carvalho, seu fundador e primeiro diretor até 1920, quando faleceu. De família ilustre, formado em 1889 pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1897, aos 30 anos, passa a dirigir o corpo clínico da Santa Casa da Misericórdia, em substituição ao conceituado positivista Luís Pereira Barreto. Desde muito antes, Carvalho já gozava de grande prestigio e liderança, inclusive em função de suas atividades à frente do Instituto Vacinogênico a partir de sua criação, em 1892.

À Faculdade ele conseguiu imprimir um rigor acadêmico e um espírito experimental, inspirados em grande medida na experiência da Escola Politécnica, criada vinte anos antes, cujo ambiente se devia basicamente à ação de Paula Sousa. Esta afinidade entre as duas escolas explica em parte o apoio material dado pela Politécnica, em forma de salas e instalações. Mas isso não era suficiente para que São Paulo pudesse competir com o Rio quanto ao numero e à qualidade de futuros cientistas: "Eu escolhi a Faculdade de São Paulo, que era relativamente nova e pouco procurada pelo pessoal do interior.(.. .) Em geral, os futuros médicos procuravam o Rio de Janeiro (. . .) Mesmo o pessoal aqui de São Paulo. E de Minas, por exemplo, a leva era para o Rio de Janeiro, porque eram candidatos a alunos do grande Miguel Couto e daqueles nomes todos da grande medicina brasileira."(25)

Assim é possível falar de um certo paradoxo: de um lado, o Rio de Janeiro, com ambiente científico tradicional às vezes de bom nível, mas sem grandes oportunidades institucionais para um trabalho científico, mesmo aplicado. De outro lado, São Paulo, onde tal ambiente era incipiente e ainda sem prestígio, mas que, devido ao desenvolvimento econômico, concentrava nos institutos a maior parte da oferta de empregos para pesquisadores.

No Rio de Janeiro, o Museu Nacional, após a administração de Batista Lacerda (1915), entrou em declínio por razões que o próprio Lacerda já havia apontado: a falta de uma formação técnica experimental, a falta de vocação empírica dos jovens, a "avareza com que o governo remunera os trabalhos em ciência, reduzindo o cientista a uma condição pior do que a de um caixeiro-viajante de segunda categoria."(26) O outro centro, Manguinhos, também tinha-se fechado para fora e não absorvia gente nova, a não ser em situações extremamente precárias ou para trabalhar de graça: "Quando larguei o Jardim Botânico, voltei para Manguinhos, onde tive meu laboratório durante vinte anos (. . .) sem ser funcionário."(27) Isto significa que, a não ser um pequeno numero de eleitos, a maior parte dos que se mobilizavam para um trabalho científico no Rio o faziam paralelamente a um ou a vários outros empregos que não envolviam pesquisa, aproveitando-se de algumas poucas brechas institucionais, como a de Manguinhos, ou do espaço e dos instrumentos cedidos pela Faculdade de Medicina, por hospitais e clínicas, etc. Foi também por esta razão que a Lei da Desacumulação, em 1937, representou um golpe tão grande para a atividade científica no Rio de Janeiro.

Em resumo, o Rio de Janeiro não tinha as condições de São Paulo para o desenvolvimento ativo da pesquisa científica, e suas principais instituições entravam gradualmente em decadência, enquanto que as de São Paulo floresciam. Ao mesmo tempo, no entanto, o Rio assistia ao surgimento de uma ideologia de valorização da atividade científica, da universidade e da nova racionalidade do século XX, que se dava de forma independente e sem relação direta e necessária com o trabalho científico profissional propriamente dito. Era importante, neste ambiente intelectual, a presença do grupo de Manguinhos. Porém ainda mais importante era o grupo da Escola Politécnica, que serviu de base e impulso para o clima cultural e intelectual dos anos 20 e 30 em todo o país Foi dele que surgiu o grande movimento pela criação de uma verdadeira universidade no Brasil, em um projeto que, muito significativamente, só chegou a ser concretizado em São Paulo.

Em resumo, as primeiras décadas do século XX constituem, possivelmente, o período da história brasileira em que mais se sentiu a presença e o potencial da ciência aplicada. Na saúde pública, na agricultura, na engenharia, na geologia, conhecimentos técnicos são buscados e muitas vezes aplicados com sucesso. A isto se relacionam uma grande busca por educação especializada e a criação de uma série de instituições de tipo técnico

Isto se dá, no entanto, sem que tenha havido um equacionamento adequado para o problema da formação científica dentro do país. Este fato é claramente ilustrado pelo contraste entre São Paulo e Rio de Janeiro. Enquanto que naquele estado a riqueza do café cria uma demanda e dá recursos para o desenvolvimento da ciência aplicada, é principalmente no Rio de Janeiro, em Manguinhos e na Escola Politécnica, que se formam os pesquisadores de melhor nível, muitos dos quais terminariam sendo absorvidos por instituições paulistas.

A ciência paulista, eminentemente aplicada, conseguia se firmar em alguns centros de pesquisa biológica, mas sem possibilidades de crescimento. No Rio, instituições voltadas para problemas de grande relevância econômica, como o Departamento Nacional de Produção Mineral, podiam eventualmente dar condições para trabalhos de pesquisa, mas se viam limitadas pelas dificuldades de recrutamento de pessoal e abaladas pelas crises políticas que periodicamente lhes atingiam.

Minas Gerais, por circunstâncias muito peculiares, repete de certa maneira a experiência carioca, através de suas duas principais instituições, a Escola de Minas e o Instituto Ezequiel Dias, junto ao qual cresce sua Faculdade de Medicina. Estas, e mais a Escola de Engenharia de Itajubá e a Escola de Agronomia de Viçosa, marcariam por muito tempo a presença mineira no panorama técnico e científico nacional.

Um Marco na Evolução Cultural: a USP

Todo este quadro sofreria radical transformação com a criação da Universidade de São Paulo, em 1934. Embora já no início do século XIX se falasse numa universidade para São Paulo, não se pode dizer que as origens da que foi fundada a 25 de janeiro de 1934 sejam tão remotas. A Universidade de São Paulo, enquanto marco histórico para a ciência no Brasil, nasceu da efervescência cultural e ideológica da década de 20 e se nutriu do esforço de renovação pedagógica em que se empenharam pessoas como Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira, Lourenço Filho, Casassanta e muitos outros; de associações como a ABC e a ABE; da imprensa, como O Estado de S. Paulo; e até do poder público de alguns estados, com suas reformas educacionais. Segundo Fernando de Azevedo,
"com Armando de Salles no poder e Júlio de Mesquita Filho na direção de O Estado de S. Paulo, pareceu-nos ter chegado, afinal, a oportunidade de criar a Universidade de São Paulo e a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que seria integrada no sistema. Júlio de Mesquita e eu lutávamos por isso desde 1923: foi entre esse ano e o de 1926 que escrevi em O Estado artigos e estudos a respeito e promovi nesse jornal, em 1925, um largo inquérito, que durou meses, sobre a instrução pública em São Paulo e em que novamente levantava e discutia o problema do ensino superior e universitário em nosso estado (...). Pois realmente na encruzilhada encontrava-se, na época, a educação em São Paulo, e o caminho em que nos lançamos foi o de reformas radicais, da base à cúpula, com a renovação do ensino superior e a criação de uma universidade, com sua Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras".(28)
A idéia foi crescendo, em São Paulo, na medida em que ia chegando o fim da década. Já não era mais propriedade exclusiva dos grupos intelectuais. Havia discussões acaloradas no Rotary Club sobre a questão do ensino superior. Desta organização faziam parte pessoas como Paula Souza, Teodoro Ramos, Fonseca Teles, Souza Campos, Plínio Barreto, Vítor Freire e outros, todos representantes do mundo acadêmico e intelectual paulistano e uma ponte entre este meio e o mundo dos negócios. Nessas discussões, que se desenrolaram entre julho e fins de setembro de 1929, se polarizam duas posições quanto à universidade. Uma, defendida pelo professor Ernesto de Souza Campos, representava de certa maneira a posição da própria comunidade intelectual e acadêmica, posição que prevalecera na institucionalização da USP. A outra, defendida pelo professor Vítor da Silva Freire, tomava partido radical de uma concepção utilitarista estreita, a favor dos interesses industriais .

Segundo Souza Campos, para Vitor da Silva Freire "todo o problema universitário gira em torno da questão industrial. Quase todo o seu trabalho visa à organização das indústrias." Dentro desta visão "produtiva" da sociedade, caberia à universidade a formação de uma espécie de elite gerencial: "A capacidade essencial dos agentes inferiores é a capacidade profissional característica do agrupamento, ao passo que a capacidade essencial dos grandes chefes é a capacidade administrativa. A função da universidade é desenvolver nos indivíduos aptidões requeridas para o desempenho de funções superiores, das funções de 'chefe' ".(29) Essa maneira um tanto estranha de ver as coisas certamente tinha muita conexão com o surto industrial dos anos 20 por que passava o estado de São Paulo, e encontrava igualmente expressão nas tentativas de criar um Instituto de Organização Científica do Trabalho, promovidas pela Diretoria da Associação Comercial de São Paulo, que para isto convidou o professor suíço Leon Walter, especialista de renome internacional em psicologia do trabalho industrial.(30) Fracassado este primeiro esforço, não levou mais de dois anos (1931) pára que fosse criado o IDORT (Instituto de Organização Racional do Trabalho) por iniciativa de Aldo Azevedo e com o apoio decidido de Armando de Salles Oliveira, então presidente da Sociedade Anônima O Estado de S. Paulo, que seria o primeiro presidente dá recém-criada instituição.

A Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, criada em 1933, tinha algo deste espírito de tratar racionalmente os problemas relativos ao desenvolvimento e implantação da indústria, mas seu escopo, desde o início, foi muito mais amplo. Em maio de 1933 ela é lançada por um manifesto, publicado em todos os jornais paulistas, que propunha fazer dela "um centro de cultura político-social apto a inspirar interesse pelo bem coletivo, a estabelecer a ligação do homem com o meio, a incentivar pesquisas sobre as condições de existência e os problemas vitais de nossas populações, a formar personalidades capazes de colaborar eficaz e conscientemente na direção da vida social". Estas personalidades deveriam suprir o que o manifesto diagnosticava como "a falta de uma elite numerosa e organizada, instruída sob métodos científicos, a par das instituições e conquistas do mundo civilizado, capaz de compreender, antes de agir, o meio social em que vivemos", falta essa que era relacionada, finalmente, com o movimento de 1932:
"O povo sente-se mais ou menos às tontas e vacilante. Quer agir, tem vontade de promover algo de útil, cogita de uma renovação benéfica, mas não encontra a mola central de uma elite harmoniosa, que lhe ensine passos firmes e seguros. Esse mal não pode ser remediado às pressas nem admite paliativos desalentadores. Urge encará-lo de frente, com pensamento mais para o futuro do que para o presente". Os assinantes incluíam todos os diretores das Escolas Superiores de São Paulo, e uma grande lista de personalidades dá época.(31)
Ainda que menor em suas ambições, a Escola Paulista de Medicina, estabelecida também em 1933, através de manifesto lançado pela imprensa paulista, pretende trazer inovação radical ao ambiente universitário do país. Ela visa proporcionar ensino médico de qualidade, estabelecer uma linha de pesquisas biomédicas e, assim, superar as limitações de vagas da Faculdade de Medicina de São Paulo. De forma inédita no Brasil, ela angaria recursos privados e funciona como escola privada, atraindo para si os melhores talentos. Recebe apoio de orgãos governamentais do estado, como a Caixa Econômica, e, finalmente, da Fundação Rockefeller. Só mais tarde , no governo Dutra, ela seria federalizada, mantendo até hoje seus padrões de qualidade.(32)

A derrota de São Paulo na Revolução Constitucionalista de 1932 foi um catalisador fundamental para a retomada da idéia de uma universidade em terras paulistas. Em 1937 Júlio de Mesquita Filho assim descrevia a situação:
"Ao sairmos da Revolução de 32 tínhamos a impressão perfeitamente nítida de que o destino acabava de colocar São Paulo em posição idêntica àquela em que se achava, após Iena, a Alemanha, o Japão no dia seguinte ao do bombardeio dos seus portos pela esquadra norte-americana, e a França depois de Sedan. E, se atribuímos a série infinita de gravíssimos erros praticados, dentro das fronteiras do nosso estado, pela ditadura à mentalidade primária dos seus prepostos, não nos parecia menos evidente que só uma reforma radical do aparelhamento escolar do país e a instauração de uma vigorosa política educacional poderiam evitar a catástrofe final que os movimentos de 1922, de 24., de 30 e 32 nada mais faziam do que prenunciar. Para os males que nos acabrunhavam, a história daqueles países nos apontava o remédio. Sabíamos por experiência própria a que terríveis aventuras nos tinham arrastado, de um lado, a ignorância e a incapacidade dos homens que até 30 haviam discricionariamente disposto dos destinos tanto do nosso estado como da nação e, de outro, a fatuidade vazia dos escamoteadores da revolução de outubro. Quatro anos de estreito contato com os meios em que se moviam as figuras proeminentes de ambas ss facções em luta levaram-nos a convicção de que o problema brasileiro era, antes de mais nada, um problema de cultura . Daí a fundação da nossa universidade e, conseqüentemente, a criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras."(33)
Pela citação, fica claro que as preocupações básicas de Júlio de Mesquita Filho eram antes políticas do que propriamente educacionais.(34) Tratava-se de um projeto político em que a formação acelerada de uma elite cultural recebia alta prioridade. Se antes da revolução as preocupações educacionais andavam desconectadas ou, no máximo, corriam paralelas à ação política, após 32 as duas esferas passam a integrar-se mutuamente, sendo a primeira uma peça central da segunda. Nisto acompanha e repete de certo modo o processo de incorporação da educação no projeto político do governo central, efetivado com a Reforma Francisco Campos. O que, no entanto, difere é o conteúdo do projeto e, principalmente, a centralidade da educação superior no campo politico, que é bem menor no caso do poder central, talvez menos cioso de propiciar a formação de uma elite acadêmica e intelectual que pudesse vir a ser incômoda. É neste sentido que Othon Leonardos observa "Eu estou convencido, para ser franco, e de que a ditadura não queria intelectuais. Intelectual sempre foi contra qualquer governo absolutista."(35)

A ideia de fundar a Universidade de São Paulo, enquanto projeto político, transcendeu, em muito, as fronteiras do estado. Não se limitava a uma preocupação com uma eventual autonomia do estado, que, partindo do cultural, passasse pelo político para redundar no econômico. Não se restringia ao empenho na formação de uma elite altamente capaz e dinâmica que pudesse servir de antídoto poderoso contra as influências nefastas procedentes da esfera do governo central, contrárias aos interesses do estado. O que movia Júlio de Mesquita Filho, e em grau menor os outros, era uma aspiração de reconquista de hegemonia, seriamente afetada em 30 e definitivamente perdida em 32:
"Vencidos pelas armas, sabíamos perfeitamente que só pela ciência e pela perseverança no esforço voltaríamos a exercer a hegemonia que durante longas décadas desfrutáramos no seio da federação. Paulistas ate a medula, herdáramos da nossa ascendência bandeirante o gosto pelos planos arrojados e a paciência necessária à execução dos grandes empreendimentos. Ora, que maior monumento poderíamos erguer aos que haviam consentido no sacrifício supremo para preservar contra o vandalismo que acabava de aviltar a obra de nossos maiores, das Bandeiras a Independência e da Regência a República, do que a Universidade?"(36)
O papel da futura Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras seria o de formar essa elite nacional. Já em 1937, ao paraninfar a primeira turma de licenciados desta Faculdade, Júlio de Mesquita Filho dizia:
"A vossa escola surgiu, assim, como o molde indispensável onde se fundiriam os futuros modeladores da juventude nacional. Nela se formariam os espíritos em condições de criar e praticar uma doutrina educativa que tivesse em vista, acima de tudo, como queria o grande espirito francês, assegurar a seleção de capacidade, alevantar, no verdadeiro sentido da palavra, todos os espíritos, só pensar naquilo que moraliza, que não traduz lucro imediato, que leva o olhar a fixar-se alto e longe. Esperavam os seus fundadores que desse foco ardente de ambição desinteressada se irradiasse para todo o país uma concepção nova das coisas e que, combatendo sem desfalecimento a velha e desagregadora ideia do saber pelo saber, implantasse na consciência das gerações de amanha o sentimento do sacrifício pelo bem da comunidade. Procurando dar consistência material à ideia universitária, tinham em mente os que conceberam dotar o país de um cérebro poderoso e coordenado que, a coberto da transitoriedade dos governos, pudesse gerar os sentimentos, a vontade, a organização e a disciplina intelectual a que os povos verdadeiramente fortes devem as suas melhores vitórias. (...) E, assim, tendes por principal missão criar um ideal, uma consciência coletiva ou, para não faltar à linguagem da época, tendes por principal missão criar no espírito da juventude e instilar na alma da coletividade a mística nacional."(37)
Mas certamente o mais importante era que esta elite nacional estivesse imbuída de um novo espírito, que se originava e alimentava da história e da gente de São Paulo:
"Sois na quase totalidade nascidos em São Paulo e, se porventura alguns dentre vos não viram pela primeira vez a luz do Sol dentro de nossas fronteiras, aqui formaram o seu caráter e amadureceram para a vida do pensamento. Nessas condições basta que volvais o olhar para o passado, basta que vos apliqueis a penetrar o verdadeiro sentido da nossa história, para que não vos assalte a sombra de uma dúvida sobre a rota a indicar às gerações de amanha. Se a tanto vos dedicardes, vereis que ao paulista de hoje o destino cometeu uma única tarefa: a de completar a obra iniciada pelo paulista do ciclo da penetração. Porque, senhores, o Brasil nada mais é do que um problema posto pelas Bandeiras; e, ou nós paulistas de hoje e de amanhã o resolveremos, ou teremos irremediavelmente falido na missão que nos legaram os nossos antepassados. Quanto mais avançardes na meditação da realidade que nos rodeia, mais profundamente vos convencereis de que é na integração do problema brasileiro, tomado este vocábulo na sua acepção spenceriana, que devemos buscar o animo para enfrentar as vicissitudes que porventura nos queira ainda reservar a história. E que admirável mística: tirar essa imensa massa do seu estado atual, ainda quase amorfo, para dar-lhe consistência diferenciada e definida!"(38)
O desfecho desfavorável da Revolução de 32 para São Paulo, ao invés de desarticular definitivamente os planos em relação à Universidade, na verdade acelerou a formulação de um modelo que pudesse ser implantado logo que houvesse uma oportunidade para tal. É justamente no exílio que a futura Universidade começou a tomar corpo, nas articulações e discussões entre Júlio de Mesquita e Paulo Duarte. "Logo ao chegar ao Brasil, o Julinho tratou de organizar uma comissão para estudar o projeto desse sonho que ele há muito acalentava. Conversamos numerosas vezes no exílio sobre isso. E ele me pediu dados na França para estudos que fez em Lisboa. Dei muito palpite e sugestões, mas não tivemos a menor divergência sobre a organização leiga, liberta de qualquer influência religiosa ou confessional."(39)

A base de que se partiu para dar corpo à nova universidade era certamente o denominador comum a que as discussões da década anterior tinham legado: uma universidade que não seria simplesmente uma agregação de escolas profissionais superiores; cujo eixo central ou célula mater seria uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, onde seria promovida a pesquisa em tempo integral, contribuindo para um conhecimento universal, puro e desinteressado, ficando a aplicação da ciência para as escolas profissionais; que seria amplamente autônoma do ponto de vista administrativo e acadêmico; que formaria uma elite cultural dinâmica, capaz de assumir a liderança no processo de superação do estado de atraso em que se encontrava o país.

O Modelo da Nova Universidade

Esta definição era apenas um ponto de partida. Tanto por formação intelectual dos articuladores, quanto pela fixação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras como unidade central onde se geraria o nível mais elevado da produção intelectual que viria a nutrir a Universidade como um todo, no seu papel de liderança sócio-cultural do país, concentraram-se os interesses no modelo universitário francês:
"Nós elegemos - aí já fizemos de comum acordo - dois paradigmas, digamos assim, para a Universidade. Em primeiro lugar, tanto a formação do Julinho quanto a minha são formações francesas. Mas nos não quisemos nos restringir à nossa formação francesa. Escolhemos a Sorbonne, evidentemente, para estudar uma universidade cientificamente estruturada. E escolhemos, também, a universidade inglesa, através da de Cambridge. Mandamos buscar tudo quanto fosse informação dessas universidades. Mas, na realidade, a organização francesa era superior à inglesa. (...) E a nossa organização, pode-se dizer que em 80% seguiu o modelo francês (...) A universidade francesa tinha como célula mater a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Algumas eram mais adiantadas no ensino. Eles então separaram a Faculdade de Filosofia e Letras, de um lado, e a Faculdade de Ciências, do outro. A França já estava assim. Mas nos não tínhamos condição ainda de fazer duas faculdades: a de filosofia de um lado, e a de ciências de outro. Fizemos, então, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, tal qual era na França antigamente . Em torno desta faculdade giravam todas as outras. (...) A estrutura inglesa, não me lembro bem. Mas posso lembrar alguma coisa: parte da ciência já estava completamente fora da Faculdade de Filosofia, na Inglaterra. As ciências mais adiantadas, biologia por exemplo. Eles já tinham o Instituto de Biologia. Aliás, na França já tinham institutos também, fora da universidade. Eram apenas auxiliares da universidade."(40)
O interessante a ressaltar aqui é que esta preferência pela universidade francesa decorria do interesse pelo seu aspecto institucional, e não de uma avaliação dos níveis de excelência de sua produção científica, na área das ciências exatas, onde esta avaliação é menos controvertida. Uma das razões pode estar no fato de os dois, Duarte e Mesquita Filho, não serem cientistas Ambos tinham uma formação intelectual sólida, e Paulo Duarte tinha se dedicado por um breve período à pesquisa em antropologia criminal. Na verdade, eram antes de tudo intelectuais e ativistas políticos, Paulo Duarte enquanto "socialista democrático", como ele mesmo se classifica, e Júlio de Mesquita Filho, um conservador de tendências liberais.

Isto explicaria, de certa maneira, a ênfase inicial nas ciências humanas, nos aspectos filosóficos, na laicidade. Só posteriormente, em fins de 33, com a participação de Teodoro Ramos, Rocha Lima e outros cientistas na comissão de fundação da Universidade é que as ciências naturais receberam uma atenção maior. Isso também esclarece por que os professores das ciências sociais foram integralmente recrutados na França.

No quadro da cultura européia da época, com o fascismo em franca ascensão, a França representava para os articuladores da USP uma alternativa liberal e sintonizada com a tradição cultural francesa do país, em humanidades:
"Houve outro cuidado na escolha dos professores estrangeiros: o de aproveitar o melhor não de um só país adiantado, mas de todos os países mais adiantados. Assim, a Itália iria fornecer professores de matemática, de geologia, de física, de paleontologia, de estatística; a Alemanha daria elementos chegados à zoologia, à química e à botânica; a Inglaterra poderia fornecer elementos para algum outro ramo da história natural e a psicologia, talvez; quanto à França, a esta se reservariam as cadeiras de pensamento puro: sociologia, história, filosofia, etnologia, geografia e, ainda, a cadeira de física, possivelmente. Este esquema, entretanto, foi furado algumas vezes."(41)
Quanto a isso, Mesquita ainda foi mas enfático:
"Ora, éramos irredutivelmente liberais, tão convictamente liberais, que nos julgávamos na obrigação de tudo fazer para que o espírito que inspirasse a organização da Universidade se mantivesse exacerbadamente liberal. (. . . ) Essa nossa posição obrigava-se a evitar que as cátedras da Faculdade de Filosofia pudessem cair nas mãos de adeptos do credo italiano, sobretudo aquelas que mais aptas se mostravam a influir na formação moral da nossa juventude. Concorria para complicar o problema o fato de contar São Paulo com um numero elevado de filhos da Península, a maioria dos quais não escondia as suas propensões para aceitar as diretrizes da Roma fascista. Ameaça de monta e tanto mais digna de nossos cuidados quanto cada dia se mostrava mais impertinente a pressão que sobre o governo paulista exerciam a colônia e o governo italianos. Pretendiam impor a vinda de numerosos membros das universidades fascistas para integrar a nova congregação. Contornamos a dificuldade oferecendo à Itália algumas das cadeiras de ciência pura - análise matemática, geometria, estatística, geologia, mineralogia e língua e literatura italianas. Conservávamos para a França, líder da liberal-democracia, aquelas de que dependia diretamente a formação espiritual dos futuros alunos: filosofia, sociologia, economia política, política, geografia humana, letras clássicas e língua e literatura francesas. As demais - química e história natural - seriam preenchidas por alemães expulsos, ou em vésperas de o ser, de sua pátria pelo hitlerismo. Assim, evitava-se a quebra do sentido liberal da evolução brasileira. (...) As futuras 'elites' não seriam vitimas da deformação intelectual resultante da prédica, nas cátedras, de teorias esdrúxulas, que repugnavam à índole e às tendências inatas da nossa gente".(42)
* * *

Em síntese, apesar de suas dificuldades iniciais, a Universidade de São Paulo, e particularmente sua Faculdade de Filosofia, constitui a mais importante instituição científica criada no Brasil desde Manguinhos. Isto se deve, em boa parte, à própria riqueza do estado de São Paulo, que lhe tem dado condições para manter um sistema universitário estadual, quando os demais estados tiveram de buscar a federalização de suas universidades após a guerra. Mas seria ilusório pensar que se trata somente de uma questão de riqueza. A Universidade de São Paulo, em sua concepção inicial, não tem paralelo ou semelhança com as demais universidades brasileiras, exceto, talvez, a frustrada Universidade do Distrito Federal, onde Afrânio Peixoto, a exemplo de Teodoro Ramos, vai à Europa em busca de professores, convidando, entre outros, Henri Hauser, Eugene Albertine e o filósofo Émile Brehier. Além das vicissitudes políticas no Rio de Janeiro, no entanto, a UDF era bem mais tímida em sua inspiração, faltando-lhe a massa crítica de cientistas de alto nível criada através da missão Teodoro Ramos.

Além das reações das escolas tradicionais, a Faculdade de Filosofia não deixou de sofrer, após o governo de Armando de Salles, os efeitos das tendências centralizadoras que emanavam do Estado Novo. Não seria aqui o lugar para reconstruir estas vicissitudes. Basta assinalar que o impulso inicial provocado pela Faculdade de Filosofia não feneceria e marcaria de maneira fundamental todo o desenvolvimento da ciência brasileira. Este desenvolvimento trataria de compensar, de alguma forma, um dos principais vícios de origem da Faculdade de Filosofia, que foi a quase ausência de vínculo com a comunidade científica anglo-saxã, que desde antes da guerra já vinha assumindo a liderança na maioria das áreas de pesquisa científica de então. Com a guerra, os contatos se restringiram à Inglaterra e, principalmente, aos Estados Unidos, que passarão a ser a influência predominante sobre a atividade científica no Brasil a partir de então.

A questão do modelo universitário adotado pela USP é curiosa e importante. A influência francesa é sem dúvida importante, mas não exclusiva. O modelo de Cambridge, a-pesar de mencionado por Paulo Duarte, não parece ter se materializado

Na França, o sistema de educação superior formado a partir do período napoleônico havia estabelecido uma divisão marcante entre as escolas de educação especializada para formação de uma elite técnica e administrativa - as grandes écoles - e estabelecimentos de ensino para formação de professores ou profissionais liberais as facultés, controladas e fiscalizadas pelo poder central, modelo que, sem dúvida, inspirou a estrutura oficial de educação superior no Brasil. Apesar de algumas notáveis exceções - a École Politechnique em seu período áureo, a École Normale Supérieure e a École Pratique des Hautes Études -, existe bastante consenso em que o resultado deste sistema, do ponto de vista do desenvolvimento científico da França, foi desastroso:
"O sistema napoleônico, em sua estrutura tão rígida, impediu o exercício de qualquer iniciativa e fez com que prevalecesse na ciência um espírito conservador, tal como ocorreu em vários outros aspectos da vida francesa. Uma busca através do tempo revelará alguns gênios científicos, como Claude Bernard, mas poucos empresários científicos, como Liebig na Alemanha, que criou importantes linhas de pesquisa, laboratórios e instituições de pesquisa e formação científica. Não houve, no sistema universitário francês, nada parecido com o Cavendish Laboratory na Inglaterra. Nem é possível evidenciar a existência de líderes educacionais similares aos presidentes de universidades norte-americanas que, no século passado, trouxeram da Alemanha seu sistema de treinamento e pesquisa científica."(43)
Somente no período do Front Populaire a atividade científica passaria a receber nova atenção na França, com a criação de uma subsecretaria de Estado para as atividades científicas, que deu origem, mais tarde, ao Centre National de la Recherche Scientifique. Este aspecto, no entanto, não pareceu preocupar os criadores da USP, como não lhes parece haver interessado os modelos das grandes écoles. Parece ter faltado uma visão mais abrangente das alternativas possíveis, combinada com uma vinculação demasiado estreita e unilateral à influencia francesa, naquilo que ela tinha de mais exterior e aparente, a Sorbonne.

Esta relativa indefinição permitiu que diversos participantes da experiência USP tratassem de desenvolver suas atividades segundo seus próprios modelos. Para os cientistas de origem a-lema, não havia dúvida de que o modelo a ser seguido era o de suas universidades de origem (apesar de que, como vimos, na própria Alemanha, grande parte da pesquisa universitária houvesse se transferido, desde a passagem do século, para institutos exclusivos de pesquisa). Para os educadores - Fernando de Azevedo à frente - , o modelo deveria ser o da École Normale francesa, e o objetivo, a formação de professores (não era outra coisa, aliás, que previam a legislação federal e era o objetivo explícito da Faculdade de Educação da UDF). As faculdades trazidas ao novo sistema universitário vinham com suas próprias estruturas e modelos. A Faculdade de Medicina , por exemplo, já havia incorporado o modelo norte-americano, graças ao apoio que vinha recebendo, de muito antes, da Fundação Rockefeller. A convivência de modelos e orientações tão distintas em uma mesma instituição tem sido, sem dúvida, uma das forças da USP, más também uma das causas importantes de sua pouca agilidade em se adaptar aos novos tempos que viriam com o pós-guerra.

Estas são, pois, em resumo, as principais matrizes culturais e institucionais da ciência brasileira: a tradição biomédica de Adolfo Lutz e Oswaldo Cruz, o sistema de escolas profissionais isoladas em medicina, direito e engenharia, e a experiência, para o Brasil revolucionária, da Universidade de São Paulo. São estas matrizes que vão condicionar os desenvolvimentos do após-guerra, que deram ao Brasil um sistema educacional, científico e tecnológico com dimensões até então desconhecidas e inesperadas.

Uma das características mais importantes do período do após guerra é o surgimento de instituições devotadas especificamente ao apoio à pesquisa científica, tais como o Conselho Nacional de Pesquisas e a Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo; outra é a presença da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, como instituição aglutinadora e organizadora da comunidade científica; outra é a criação e expansão de um sistema nacional de programas de pós-graduação em todas as áreas de conhecimento e, finalmente, a tentativa de estabelecer planos nacionais para o desenvolvimento científico e tecnológico do país. Não há dúvida que todos estes desenvolvimentos criam no país um clima bastante distinto para a atividade científica. Haveria que examinar com maior cuidado, no entanto, se este novo clima chega ao ponto de alterar de maneira decisiva tanto os aspectos positivos quanto os negativos da experiência acumulada até aqui.


Notas

1. K. Kaizumi, "The Emergence of Japan's First Physicists: 1868 - 1900", Historical Studies in the Physical Science; vol. 6, 1975; V. Hashimoto, "An Historical Synopsis of Education and Science in Japan from the Meiji Restauration to the Present Day", The Impact of Science in Society, 13, 1, 1963; Simon Schwartzman, Ciência, Universidade e Ideologia, A Política do Conhecimento, Zahar, Rio de Janeiro, 1981.

2. W. Morehause, Science in India: Institution Building and the Organizational System in Historical Perspective, Bombaim, College of índia and Popular Prakastan, 1971; A. Nahaan, "Scientists in India: the Impact of Economic Policies and Support in Historical Perspective", International Social Science Journal, 22, 1, 1970.

3. Edgard de Cerqueira Falcão, editor, Obras Científicas, Políticas e Sociais de José Bonifácio de Andrada e Silva, Sao Paulo, 1965.

4. Antônio Paim, O Conceito de Ciência na Obra de José Bonifácio (textos escolhidos), Rio, PUC, Departamento de Filosofia, 1971.

5. E. Falcão, op. cit., vol. l, p. 40.

6. E. Falcão, op. cit, vol.1, p.40.

7. Idem, p. 317.

8. Roque Spencer M. de Barros ,A Ilustração Brasileira e a Idéia de Universidade, São Paulo, USP, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, 1959.

9. Sobre a influência inglesa, ver Richard Graham, Britain and the Onset of Modernization in Brazil, 1850-1914, Cambridge, Cambridge University Press, 1968, e Alan K. Manchester, British Preeminence in Brazil, its Rise and Decline, Chapel Hill, Univ. of North Carolina Press, 1933.

10. Citado por Ivan M. de Barros Lins, História do Positivismo no Brasil, São Paulo, Cia. Editora Nacional, 2 ed, 1967, p. 39.

11. Joseph Ben-David, Centers of Learning: Britain, France, Germany, United States. Berkeley, The Carnegie Comission on Higher Education, 1977, p. 105.

12. A. Almeida J., Problemas do Ensino Superior, São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1956; Alberto Venâncio Filho, Das Arcadas ao Bacharelismo: 150 Anos de Ensino Jurídico no Brasil, São Paulo, Ed. Perspectiva, 1977; Roque Spencer M. de Barros, op. cit .

13. Fernando de Azevedo, As Ciências no Brasil, Rio de Janeiro, Edições Melhoramentos, 2 vols, 1955, p.625.

14. Idem, p. 625.

15. Fernando de Azevedo, A Cultura Brasileira, Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 4 ed, 1963, p. 634.

16. Eddy Stols, "Les Etudiants Brésiliens en Belgique (1817-1914)", Revista de História, v. 1, n. 100, Tomo II, ano XXV, 1974, p. 657.

17. Joseph Ben-David, The Scientist's Role in Society: a Comparative Study, Englewood, Nova Jersey, Prentice Hall, Inc., Foundations of Modern Sociology Series, 1971, p. 198.

18. Nancy Stepan, Beginings of Brazilian Science: Oswaldo Cruz Medical Research and Policy, New York, Science History Publications, 1975, p. 140.

19. José Reis, "Instituto Biológico de São Paulo", Ciência e Cultura , 28 (5), São Paulo, 1976.

20. José Pastore, Science and Technology in Brazilian Society ("Paper Prepared for the Symposium on the Envolving Role of Scientific and Technological Capabilities in Social and Economic Development"), mimeo, 1976, p.33 e 34.

21. Instituto Agronômico, Campinas, Instituto Agronômico: histórico, organização, atividades: 1887-1977 , São Paulo, Imprensa Oficial, 1977.

22. Entrevista com Maurício Rocha e Silva

23. Entrevista com Otto Bier

24. Entrevista com Afrânio do Amaral.

25. Entrevista com Ribeiro do Valle.

26. João Batista de Lacerda, Fatos do Museu Nacional do Rio de Janeiro (Recordações Históricas e Científicas fundadas em documentos autênticos e informações verídicas), Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1905, p.73.

27. Entrevista com Hugo Souza Lopes.

28. Fernando de Azevedo, História da Minha Vida, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1971, p. 119-120.

29. Idem, p.89.

30. A. C. Pacheco e Silva, Armando de Salles Oliveira, São Paulo, Martins Editora, 1966, p. 76.

31. Cyro Berlink; Alfonso Trujillo Ferrari, A Escola de Sociologia e Política de São Paulo, 1933-1958, São Paulo, Escola de Sociologia e Política, 1958.

32. Paulo Mangabeira Albernaz, A Escola Paulista de Medicina (Noticia Histórica dos Primeiros Vinte e Cinco Anos), São Paulo, Escola Paulista de Medicina, 1968; J. Ribeiro do Valle, A Escola Paulista de Medicina, São Paulo, Empresa Gráfica Revista dos Tribunais, 1977; Maria Valeria Pena, A Evolução da Pesquisa de Saúde no Brasil: uma Interpretação Preliminar, Rio de Janeiro, Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico (CET/SUP), mimeo, 1977.

33. Júlio de Mesquita Filho, Política e Cultura, São Paulo, Livraria Martins Editora S. A., 1969, p. 164.

34. Heládio César Gonçalves Antuinho, Universidade de São Paulo, Fundação e Reforma, São Paulo, Centro de Pesquisas Educacionais do Sudeste, série l (Estudos e Documentos, vol. 10), 1974, p.88.

35. Entrevista com Othon Leonardos.

36. J. de Mesquita Filho, op. cit., p. 199.

37. Idem, p.164-166.

38. Idem, p.166-167.

39. Paulo Duarte, Memórias Selva Obscura, São Paulo, Ed. Hucitec, vol. III, 1976, p.68.

40. Paulo Duarte, entrevista.

41. Paulo Duarte, op. cit., 1976, p. 70.

42. Júlio de Mesquita Filho, op. cit, p.192.

43. Robert Gilpin, France in the Age of the Scientific State, New Jersey, Princeton University, 1968, p.123. <