BASES DO AUTORITARISMO
BRASILEIRO
Simon Schwartzman. Rio de Janeiro, Campus, 163 pp. 850.00
José Guilerme Merquior, "Raízes
da Tradição Autoritária", publicado no Jornal
do Brasil, 20 de fevereiro de 1982
Às vezes, na
deriva de leituras deliciosamente heterogênas, a gente depara com autênticas jóias
do espírito brasileiro. Neste começo de ano, li e reli três delas: as traduções
do "Purgatório", da Divina Comédia, (São Paulo, 1969)
por Henriqueta Lisboa, verdadeiro triunfo da mais fina e segura inteligência poética;
a introdução de Sérgio Buarque de Holanda ao volume Ranke (coleção Grandes Cientistas
Sociais, ed. Ática), a meu conhecimento, uma das mais lúcidas e cultas discussões
do historismo, em qualquer lingua; e finalmente, Bases do Autoritarismo Brasileiro
(Editora Campus, 1982), de Simon Schwartzman.
Falemos um pouco desse livro de Schwartzman, que indica, entre outras coisas,
a maturidade atingida pela ciência social hoje agrupada (sem o menor espartilho
de escola) no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro IUPERJ).
É do IUPERJ que nos vêm alguns dos produtos de luxo de nossa politologia:
os trabalhos de um Wanderley Guilherme dos Santos sobre o liberalismo ou
a crise de 1964, o estudo das relações autoritarismo/modernização de Guilherme
O'Donnell e a despreconceituosa sociologia militar de Edmundo Campos Coelho
e Alexandre Barros - para só ficar nuns poucos.
O que confere um "estilo" à ciência politica do IUPERJ é a recusa,
por parte desses autores, de chavões ideológicos na maneira de focalizar
poder e sociedade no Brasil. Como a sabedoria convencional das nossas ciências
sociais é ostensivaniente de tipo radical e marxizante, essa recusa adquire,
naturalmente, a forma de um diálogo critico com categorias marxistas - o
que já lhes valeu serem classificados de ideológos burgueses por dois ou
três amáveis patrulheiros de plantão (o fato de que nenhum desses iuperjianos
se tenha jamais erigido em apologeta do regime não foi considerado relevante).
Mas o importante é que essa corajosa independência intelectual está dando
frutos de crescente valor para a compreensão do nosso passado e presente,
outra marca registrada do IUPERJ, sendo o senso histórico de seus estudos.
Schwartzman parte de um dado irrefutável: a evolução social brasileira não
levou à formação de grupos de interesses autônomos, a uma sociedade civil
robusta e altiva frente ao poder do estado. Daí a impossibilidade de analisar
o poder politico dissolvendo-o em realidades de classe, como se o nível
governamental fosse mera superestrutura da base social. Essa perspectiva
classista é de fato incapaz de lidar satisfatoriamente com aspectos estratégicos
- e multo bem documentados - de nossa história. Um deles, a circunstância
de que, ao contrário do que se pensa, a classe dirigente da República Velha
não representou de maneira direta os interesses da grande propriedade
rural. Aliás, nota Schwartzman, em toda a América Latina, nunca existiram
partidos políticos autodefinidos como "agrários", "o que
tem certamente a ver com o fato de que as elites de base rural nunca se
viram como um grupo de interesse distinto e diferenciado do centro de poder
nacional". Outro aspecto significativo: nenhum dos nossos períodos
de mais intensiva industrialização, do fim do Estado Novo à presidência
Kubitschek e ao regime atual, conheceu governos dominados por uma "burguesia
industrial".
Que quer dizer Schwartzman com isso? Longe dele o propósito de "espiritualizar"
a esfera política, "deduzindo" a sociedade, à Hegel, do estado,
ou melhor, da idealização do estado.Bases do Autoritarismo Brasileiro
é livro nada afeito a esse politismo da teorização contemporânea que, a
pretexto de reconhecer a especificidade do político, acaba por privar a
análise histórico-política de seu indispensável gume sociológico. Nem há
traço, nesse estudo, de complacência com a superestimação do papel da "cultura
política" como variável independente, a exemplo da que se encontra
(com sobretons racistas) na obra de Oliveira Viana. Apenas, chama-se a atenção
para a diversidade dos contextos políticos que serviram de fundo às varias
formas de industrialização ou modernização. Por que é que duas "novas
nações", dois países de imigração, como a Argentina e a Austrália,
em tanta coisa tão semelhantes, não obstante experimentaram rumos políticos
tão divergentes, a partir do início do século, e resultados tão discrepantes
no que toca ao desempenho industrial? Porque o controle da máquina estatal
estava em mãos multo diferentes. Na Argentina, até mesmo os radicais e socialistas
eram contrários a uma industrialização conquistada por uma política protecionista
(que ameaçaria, com preços altos, o nível de vida das massas); e de qualquer
modo, o poder permaneceu basicamente controlado por um patriciado que operava
um sistema patrimonialista de governo e economia.
"Patrimonialismo" é o conceito-chave de Schwartzman, que vai buscá-lo
em Max Weber para enriquecê-lo com novas e perspicazes aplicações. O conceito
weberiano designa as formas de dominação política caracterizadas pela inexistência
de fronteiras bem nítidas entre a atividade pública e a órbita privada.
Nos sistemas tradicionais de poder patrimonial, não há praticamente diferença
entre a esfera política e a econômica. O feudalismo, impondo a fragmentação
da autoridade, minou o patrimonialismo no Ocidente e permitiu que as cidades
desenvolvessem uma vida fabril e mercantil autônoma, criando um vigoroso
arcabouço para a expansão do capitalismo, através da ampliação de mercados.
Mas essa linha evolutiva feudalismo- capitalismo, assim tão política quanto
econômica, não é, naturalmente a única. Outro tipo de evolução sócio-politica
levou à persistência do esquema patrimonialista. Se mantivermos em mente
o traço essencial da indivisão entre público e privado, política e economia,
poderemos considerar os regimes contemporâneos de tipo burocrático-autoritário
(quer socialistas, quer não) "neopatrimoniais". Pois muitos estados
passaram do patrimonialismo tradicional, de uma dominação monárquica de
caráter autocrático, isto é, sem maiores peias feudais (como o poder da
coroa na Espanha e em Portugal) ao estado moderno centralizado, sem os efeitos
a longo prazo liberal-democratizantes de uma "revolução burguesa".
Nesses estados, estruturas governamentais solidamente instaladas dificilmente
se prestam a servir de mero instrumento dos interesses econômicos de grupos
sociais. Muito mais freqüentemente, servem é de tábua de salvação, proporcionando
cargos e empregos públicos a indivíduos procedentes de vá rias camadas sociais.
Indivíduos que, em vez de se assenhorearem do Estado, são cooptados
por ele, assim que o incremento da mobilização social passa a pressionar
os padres tradicionais - e oligárquicos - de distribuição de renda, ocupação
e status.
O tema patrimonialista foi inaugurado, na nossa sociologia política, por
Raimundo Faoro (Os Donos do Poder, 1958), e, pouco depois , pelo
"brazilianist" Richard Morse. Schwartzman registra o mérito desses
pioneiros, mas discorda de Faoro num par de pontos importantes. Sobretudo,
acha o quadro do patrimonialismo brasileiro pintado pelo estudioso gaúcho
monolítico e estático. A realidade teria sido bem mais dualista e dinâmica.
Segundo Schwartzman, o palco social do nosso patrimonialismo é cada vez
mais dinamizado pela polarização entre poder central e economia paulista.
Não é por acaso que seu livro representa uma ampliação e aprofundamento
de um trabalho de paulística: São Paulo e o Estado Nacional (1975).
A análise schwartzmaniana soa convincente. Categorias patrimonialísticas
explicam multo do nosso passado político. Pense-se na curiosa desproporção,
no Império e na Primeira República, entre a notável presença de nortistas
ou mineiros na cúpula governamental e a decadência econômica de suas regiões
de origem. Ou na força do elemento castrense no estilo gaúcho de política
O autor insiste em que o papel político nacional do Rio Grande do Sul até
hoje ainda não reflete os aspectos modernos e europeizados de sua sociedade,
mas sim a sua longa tradição de província fronteiriça, militar por excelência
- e de província militar onde, tipicamente, o poder armado foi, por muito
tempo, "privatizado": detido por caudilhos cujo status militar
provinha de fontes independentes de riqueza e influência.
Já em São Paulo, tudo obedecia à lógica do econômico. O estado bandeirante
esteve subrepresentado na maioria dos ministérios da República Velha (Schwartzman
se alia aos revisionistas do mito do café-com-leite como eixo político do
período); do mesmo modo que la não teria densidade nenhum dos três grandes
partidos da fase liberal- populista de 1946-64 (nem o PSD, nem a UDN nem
o PTB). Mas sua política de mão-de-obra, tanto ou mais que a qualidade de
seu solo, levou São Paulo a superar espetacularmente as terrras fluminenses
no plantio do café; e atitudes análogas de economismo ilustrado o colocariam,
de longe, à frente da nossa industrialização.
O uso judicioso do conceito histórico de patrimonialismo se vê combinado
com uma grande atenção ao geográfico e seu impacto nas formas de riqueza
e poder (e a "redescoberta do espaço" está por trás de algumas
das mais provocadoras analises histórico-políticas dos últimos tempos, em
Stein Rokkan, Immanuel Wallerstein ou Guillermo O'Donnell). A única deficiência
de monta de Bases do Autoritarismo Brasileiro é o laconismo do
seu tratamento da evolução pós-1964 e do futuro da abertura Neste ponto,
fica-se de água ria boca - - tanto mais que o autor adverte contra as ilusões
daqueles que crêem que a estabilidade democrática deflui automaticamente
do desenvolvimento econômico. Mas essa falta, sem dúvida sanável em próximos
ensaios de Schwartzman, é afinal largamente compensada pela maturidade com
que ele encaminha a crítica da crítica do autoritarismo.
No Brasil, de fato, a oposição ao autoritarismo tende a confundir autonomia
da sociedade civil com liberalismo econômico absoluto. Conforme costumo
dizer, nossos neoliberais raciocinam como paleoliberais, saudosistas de
uma ordem sócio-econômica vitoriana, alheia ao principio moderno da economia
social do mercado e aos deveres do Estado num país em desenvolvimento. Por
isso é que, observa Schwartzman, entre nós, a ideologia liberal termina
restrita a grupos sociais multo limitados. Sua conclusão não poderia ser
mais sensata: a sociedade brasileira necessita de um Estado eficiente -
mas este precisa, ser, por sua vez, um Estado responsável. É imprescindível
chegarmos, cedo ou tarde - e quanto mais cedo, melhor - a um "novo
pacto""entre Estado e sociedade". Fora dele, a sociedade
se arrisca a ficar falando sozinha; e sem ele, nosso Estado ainda neopatrimoiíial
sofrerá sempre duas tentações. uma, tradicional, merece o nome de emboabismo:
a tentação de usurpar, entorpecendo-as, as iniciativas criadoras da sociedade,
expropriando seus agentes e ritualizando seus processos. Outra - mais moderna
- e o que, imitando a critica de Herzen ao autocratismo da Rússia imperial,
eu chamaria de petrograndismo: a busca de modernização e desenvolvimento
por meio de camisas de força autoritárias A crise do neopatrimonialismo
podem por fim à política de cooptação (a fase dinâmica do "Estado cartorial"
de Hélio Jaguaribe); e, numa economia robusta, uma genuína política de representação
poderá inviabilizar surtos emboabas e petrograndistas no Brasil de amanhã.
O grande mérito de Schwartzman está em exarar essa problemática fora de
todo romantismo, conservador ou libertário.
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