
América Latina: Universidades em Transição
Simon Schwartzman
Publicado em castelhano como América Latina: Universidades
en Transición. Washington, Organización de los Estados Americanos, Colección
INTERAMER, nº 6, 1996
Capítulo 1: Universidades em transição (*)
O ensino superior é muito diferente hoje, em todo o mundo, do que era apenas
vinte ou trinta anos atrás(1). Tudo é muito maior,
mais complexo, mais caro, mais contraditório. Além disto, existem diferenças
profundas entre culturas e sociedades. Uma palavra, no entanto - Universidade
- parece permanecer constante no espaço e no tempo. A universalidade das instituições
universitárias se explica, em parte pelo menos, pelo fato de que elas desempenham
papéis similares em todas sociedades, relacionados com a existência de instituições
e pessoas dedicadas à criação, manutenção e transmissão da cultura escrita e
sistematizada. É esta universalidade, por sua vez, que explica e justifica o
interesse intelectual e a profundidade da chamada "questão universitária".
O objetivo deste texto é tratar de identificar quais são estes elementos em
comum, a partir de uma visão a respeito dos papéis mais permanentes e originais
das instituições de ensino superior no mundo moderno, e de sua evolução e transformação
no mundo de hoje. Ele busca mostrar que existem coisas comuns a todos os sistemas
de ensino superior, tanto do ponto de vista de suas funções quanto de suas eventuais
tensões e dificuldades; e que as diferenças profundas que também existem são
inteligíveis a partir de um marco conceitual comum. De fato, o que diferencia
uma sociedade de outra, deste ponto de vista, é a forma pela qual estas tensões
e dificuldades foram enfrentadas e processadas. Existe um momento crucial na
história dos países em que suas instituições mais importantes devem ser modernizadas
e transformadas, e a maneira pela qual esta transição é feita vai ter importantes
conseqüências no destino futuro do país. É clássica, e bastante conhecida, a
tese de Barrington Moore sobre os efeitos da modernização da agricultura, ou
seu fracasso, sobre a formação dos Estados contemporâneos. O texto sugere que
algo semelhante pode ser dito dos sistemas de ensino, e do ensino superior em
particular.
Caciques e Pajés.
Todas as sociedades apresentam um potencial de disputa entre lideranças políticas,
estabelecidas pela via da ação militar, ou do poder pátrio, e lideranças de
tipo intelectual ou moral, estabelecidas pelo acesso privilegiado ao conhecimento,
seja ele de origem religiosa, mágica, medicinal, ou outro(2).
Esta disputa milenar entre caciques e pajés não é, no entanto, uma disputa à
morte. Freqüentemente, no passado, lideranças políticas, intelectuais e espirituais
atuaram unidas e inseparáveis. Em estados teocráticos, como no Egito antigo
ou no Tibet, o líder político é a própria encarnação da divindade, e a organização
eclesiástica não se distingue da administração da coisa pública. Sociedades
puramente teocráticas, no entanto, foram raras mesmo na antiguidade.
O surgimento de tradições religiosas e procedimentos administrativos escritos
tende a fazer do acesso ao conhecimento uma especialidade, à qual se associa
um estilo de vida próprio, freqüentemente ascético e exemplar, que serve para
justificar as pretensões à autoridade moral e ao exercício do poder dos sacerdotes
e escribas sobre a sociedade como um todo. Esta pretensão à liderança se confronta,
desde início, com as lideranças de tipo carismático ou mágico, que pretendem
ter um acesso direto e imediato às verdades mais profundas pela via da revelação
ou dos dons inatos, sem passar pelo crivo da educação e do aprendizado. Ela
se confronta, também, com o poder que se estabelece por outras vias - a conquista
militar, o acúmulo de riquezas pelo comércio - mas aos quais faltam os princípios
de legitimidade moral e intelectual. Se estas tendências muitas vezes conflitam,
muito freqüentemente, também, elas se aliam - a Igreja se associa ao Estado,
os religiosos educam os filhos dos reis e dos nobres, e ambos cooperam para
manter a sociedade como um todo estável e respeitoso em relação às autoridades
temporais e espirituais. Têm razão, pois, os que vêm nas organizações, instituições
e pessoas dedicadas à administração do conhecimento aliados freqüentes dos que
detêm o poder temporal - mas se enganam os que acham que esta é uma aliança
simples, automática e inquebrantável.
Assim como o conhecimento é uma forma de poder e controle social, ele também
funciona como uma via de mobilidade social, rebeldia e revolução. A história
está cheia de exemplos de sistemas de dominação estabelecidos que se vêm desafiados
por novos grupos que trazem consigo idéias, conhecimentos e interpretações do
mundo das coisas e dos homens que se confrontam com aqueles do poder. Seria
simplista, evidentemente, interpretar estes movimentos somente como disputas
por idéias, já que, junto a elas, vêm geralmente todo um conjunto de atividades
de tipo econômico, militar e social que buscam sua legitimação. O exemplo clássico
moderno é o da reforma protestante, que se desenvolve no ímpeto da revolução
capitalista e burguesa; outro exemplo atual é a associação entre o islamismo
fundamentalista e o nacionalismo árabe, assim como o revivalismo ortodoxo judáico.
As instituições mais antigas.
As universidades modernas têm muito em comum com todos estes fenômenos de abrangência
histórica tão universal. Dizem que universidades e igrejas são as instituições
mais antigas que existem, e isto não pode ser simples coincidência. De fato,
universidades e igrejas compartem algumas características importantes: ambas
proclamam ser o repositório das formas mais elevadas do conhecimento, cultivado
zelosamente pelos iniciados, que são por isto admirados, respeitados e invejados
pelos demais. O conhecimento que proclamam ter não é somente prático e útil
(ainda que a ciência, o milagre e a mágica tenham certamente sua utilidade),
mas principalmente, pretende dar acesso às verdades consideradas mais profundas
e fundamentais, qualquer que seja o sentido que se atribua, em cada sociedade
e em cada era, a estas palavras. É um tipo de certeza em um mundo incerto e
inseguro, que só pode ser vislumbrado de longe pelos que estão fora.
Pertencer ao este círculo fechado onde a Verdade é codificada e transmitida
pode significar prestígio, autoridade, e muitas vezes poder e riqueza. Nem todos
conseguem chegar lá. Universidades e igrejas conseguem combinar as formas mais
extremas de universalismo e seletividade. Todos podem participar, todos são
chamados - mas desde que tenham as qualidades necessárias. O valor de cada um
deve ser estabelecido por atos e palavras, e quando os atos não existem, ou
são difíceis de precisar, as palavras - e, principalmente, os rituais - devem
estabelecer a ponte entre o eleito de hoje e as tradições que remontam a certezas
inquestionáveis do passado, tanto mais inquestionáveis quanto mais antigas.
Rituais de passagem marcam a entrada e a saída dos eleitos no mundo do conhecimento;
rituais diários de leitura e estudo, e o uso apropriado de certas expressões
e palavras que os leigos não entendem assinalam a socialização bem feita dos
jovens ao círculo fechado dos velhos e sábios. Os rituais servem, também, para
proteger as universidades e igrejas da intervenção externa; e sua pretensão
ao conhecimento supremo faz com que estas instituições tendam ao monopólio intelectual,
e não aceitem com facilidade os ideais de uma epistemologia pluralista.
Esta descrição é um tipo-ideal(3), ou caricatura,
de instituições que parecem existir em todas as sociedades de linguagem escrita
e conhecimentos codificados. No mundo real, evidentemente, existem universidades
e religiões as mais variadas e as características que desenvolvem para assegurar
sua estabilidade e longevidade - o culto da tradição, a luta pela autonomia
e auto-regulação, o monopólio da Verdade, a organização burocrática, o comportamento
ritualizado - nem sempre alcançam seus objetivos. Universidades, tanto quanto
as igrejas, estão sujeitas a conflitos e tensões, com mudanças em seus objetivos
e em seus membros, e disputas sobre a validade de suas tradições passadas e
a legitimidade de seus representantes atuais.
Tipos ideais são úteis porque ajudam a identificar as questões que motivam
as pessoas e levam ao conflito e às transformações; no nosso caso, ele nos ajuda
a entender o fascínio que sempre esteve presente no estudo das religiões e das
instituições de ensino superior. Para os intelectuais, o estudo destas instituições
é inseparável de sua própria busca de identidade e reconhecimento social. Instituições
que lidam com os valores e os conhecimentos mais elevados lidam também, acredita-se
muitas vezes, com o próprio destino de suas sociedades: como as pessoas devem
ou podem lidar com a natureza e com seus semelhantes, como devem lidar com o
desconhecido, que tipo de autoridade devem aceitar ou rejeitar, que hierarquias
sociais são legítimas ou não. Seria ingênuo acreditar que tudo o que ocorre
no mundo encantado das igrejas e das universidades ocorre também no mundo real;
mas seria também ingênuo pensar que universidades e igrejas não seriam senão
a sombra, ou reflexos, de outras realidades.
Universidades e Igrejas: proximidade e conflito.
O fato de universidades e igrejas cumprirem funções similares explica muito
de sua proximidade e de seus conflitos. Na Idade Média, assim como nos impérios
espanhol e português nos séculos XVI e XVII, a Igreja dominava completamente,
e as universidades não passavam de instituições de ensino a seu serviço, e por
isto mesmo intelectualmente pouco interessantes.
Mesmo nestas condições, no entanto, surgem conflitos sobre pretensões alternativas
de autoridade em matéria religiosa, burocrática e acadêmica, disputas estas
que freqüentemente buscam apoio fora dos muros da academia. A própria existência
de um sistema educacional à parte da organização eclesiástica faz supor que
os conhecimentos desenvolvidos e transmitidos pela corporação religiosa tenham
se tornado insuficientes para alguns setores da sociedade. Estabelecidas na
transição da época medieval para o período renascentista, as primeiras universidades
européias eram, em essência, corporações de estudantes e professores que buscavam
conseguir, muitas vezes a duras penas, o direito ao trabalho intelectual independente,
a autonomia administrativa e mesmo o direito a foro especial para seus membros,
em relação às autoridades eclesiásticas e políticas de então. As primeiras universidades
se dedicavam ao ensino das profissões liberais da época (teologia, direito canônico,
medicina) que era precedido pelas chamadas disciplinas propedêuticas, o trivium
(gramática, retórica e lógica) e o quadrivium (geometria, aritmética,
música e astronomia), que em conjunto formavam as sete artes liberais, reunidas,
como em Paris, em uma Faculdade Inferior. Na prática, no entanto, as artes liberais
assumiam freqüentemente mais importância dentro das universidades do que o ensino
profissional, propiciando um desenvolvimento cultural e intelectual no interior
das universidades que nem sempre se acomodava com facilidade ao dogma da identidade
entre a verdade conhecida pela via racional e a verdade religiosa, que era o
fundamento legitimador da coexistência entre as universidades e a Igreja.
Em outras palavras, as universidades européias cristalizaram o surgimento e
a diferenciação de uma nova forma de organização para o conhecimento, de tipo
secular, de base racional, produzido por uma comunidade freqüentemente cosmopolita,
ciosa de sua independência em relação aos poderes locais, assim como de seus
direitos e autonomia. Ao valorizar acima de tudo o uso da razão e a competência
intelectual, as universidades inevitavelmente se chocam com a autoridade da
Igreja que se baseia, sobretudo, na autoridade constituída segundo a tradição
e o dogma. Por isto, as universidades sempre foram terreno fértil para heresias
e secessões, e serviram de terreno para os conflitos entre Estado e Igreja que
marcaram o desenvolvimento dos estados nacionais contemporâneos.
As universidades nos países ocidentais evoluíram, de pequenos apêndices da
Igreja, para se constituírem na principal instituição para o processamento do
conhecimento do mundo moderno. A separação, e eventual supremacia, das universidades
em relação à Igreja, foi um processo difícil, que se deu de forma diferente
de uma sociedade para outra, e que produziu resultados também distintos. A Igreja
Católica lutou longa e bravamente por sua supremacia, e ainda não desistiu.
O Vaticano mantém sua própria Academia de Ciências, e universidades católicas
existem em todo o mundo. As religiões protestantes, de uma maneira geral, aceitaram
a supremacia do conhecimento leigo em matérias deste mundo, e tendem a se limitar
às questões da fé individual, moralidade pessoal e das verdades de foro íntimo.
O renascimento do fundamentalismo religioso, no entanto, principalmente nos
Estados Unidos, e as disputas legais sobre o ensino do evolucionismo e do creacionismo
nas escolas públicas, mostra que esta aceitação está começando a ser revista
por muitos.
A história das universidades européias dos últimos duzentos anos gira ao redor
de alguns conflitos e tensões básicas. Por uma parte, é a tensão entre as tendências
a transformá-las em simples mecanismos de formação profissional, segundo critérios
definidos externamente a elas, e as aspirações freqüentemente mais altas dos
que passam pelas novas formas de estudo propedêutico e ou aí ficam, muitas vezes,
como sacerdotes de um novo tipo de conhecimento. Depois, é o conflito que se
estabelece entre as formas mais tradicionais e estabelecidas de cultura, baseadas
no conhecimento das artes liberais e no acesso aos clássicos gregos e latinos,
e as novas formas de conhecimento que ganham força junto ao desenvolvimento
da ciência experimental e da crença no valor da convicção subjetiva e íntima,
em contraposição ao predomínio da autoridade. Estes conflitos ressurgem em roupagens
modernas no confronto entre o desejo de fazer das universidades centros de reflexão
e pesquisa científica autônomos e independentes, e a tentativa de transformá-las
em centros de formação especializada para atender, tão eficientemente quanto
possível, às demandas de profissionais especializados para a gestão econômica,
política e administrativa das sociedades modernas.
A generalização da chamada "educação de terceiro grau" nos dias de
hoje faz com que os conceitos mais clássicos de universidade se diluam, aparentemente,
em um sistema educacional muito mais amplo e complexo do que jamais tenha existido.
Na América Latina, fala-se hoje de "sistema universitário" para se
referir a todas estas instituições. Ainda que exista formalmente uma distinção
entre universidades e estabelecimentos de ensino isolados, na prática esta é
uma questão meramente burocrática, e não há diferença legal ou social entre
títulos emitidos por um outro tipo de instituição. Diante de fatos como este,
não seriam as universidades tradicionais fenômenos passados e ultrapassados?
Em que medida pensar sobre as universidades medievais, a universidade alemã
no século XIX, ou mesmo sobre os ideais que presidiram a formação da Universidade
de São Paulo na década de 30, nos ajuda a entender e a propor algo que faça
sentido para os problemas da educação superior no mundo atual?
A razão pela qual o passado nos ajuda a entender o presente é que os sistemas
educacionais contemporâneos estão sujeitos aos mesmos fenômenos de disputa entre
os princípios de liderança política e os princípios de liderança intelectual,
moral e espiritual que caracterizavam as sociedades do passado. A principal
diferença é que, nas sociedades modernas, o processo de racionalização avançou
muito mais, levando à criação de novos papéis e fontes de solidariedade e liderança.
A revolução burguesa consagra um novo tipo de liderança, baseada exclusivamente
em posições conquistadas no mercado de trocas, que são as lideranças de cunho
econômico enquanto tal; e a revolução política que a acompanha gera novas hierarquias,
que se estabelecem dentro dos sistemas partidários e eleitorais, e se firmam
como um componente central das novas formas de dominação política de base racional-legal.
A separação iniciada pelas universidades tradicionais entre o conhecimento religioso,
sagrado e revelado, e o conhecimento de base racional, é levado ao extremo pelo
desenvolvimento das ciências naturais de base experimental, que tratam de se
instituir como uma nova filosofia natural, legitimadora e instrumentadora do
individualismo, do racionalismo, da ordem democrática e da revolução industrial
burguesa. Além disto, as sociedades modernas propiciam o desenvolvimento de
sistemas organizacionais cada vez mais complexos, de tipo governamental ou privado,
que exercem um controle de tipo "técnico", ou "administrativo"
(na realidade, tecnocrático) sobre grupos sociais cada vez maiores. Estas novas
formas de liderança, dominação e participação social não eliminam, no entanto,
as antigas: a Igreja continua a existir e a desempenhar seu papel em suas diversas
formas; o poder político de base militar não se subordina com facilidade às
instituições políticas de base racional-legal; e os antigos mecanismos de liderança
e dominação baseados na nobreza, na língua, na nacionalidade e na raça não se
desfazem com tranqüilidade, mostrando, na realidade, surpreendente vitalidade
ante o assédio sistemático dos processos de racionalização das sociedades modernas.
As maneiras pelas quais a educação superior é organizada hoje - o tamanho relativo
do setor público, a autonomia que as universidades possuem ou não, a distância
que elas mantém, ou não, das igrejas, partidos políticos e outras instituições
- tudo isto tem a ver com a forma pela qual estes antigos conflitos foram encaminhados.
Conhecimentos últimos vs. conhecimentos práticos.
O resultado dos conflitos entre universidade e igreja nas sociedades ocidentais
foi uma divisão kantiana de trabalho: as universidades cuidariam do conhecimento
empírico valorativamente neutro, enquanto que a Igreja cuidaria dos valores
e das verdades mais profundas e substantivas.
Esta divisão do trabalho explica muito do extraordinário sucesso das universidades
ocidentais desde, pelo menos, o início do século XIX. Livres de dogmas inquestionáveis
e controles externos, as universidades tradicionais abriram gradualmente seus
muros para o conhecimento científico e técnico, que lhes proporcionou um terreno
fértil para crescer e se desenvolver. Racionalismo, evolucionismo, e empirismo
foram idéias poderosas na formação das universidades modernas, e se constituíam
em autênticas alternativas filosóficas às verdades consagradas pelos dogmas
religiosos. Igrejas e movimentos religiosos jamais abdicaram de seu desejo de
estar presentes e influenciar a vida quotidiana das instituições universitárias,
e, quando isto se tornou de todo impossível, criaram suas próprias instituições.
A situação contemporânea, evidentemente, é muito mais complexa, porque existem
muito mais participantes. O conhecimento científico, tecnológico e social é
produzido hoje em muitas outras instituições além de igrejas e universidades,
e os mercados para sua difusão e decantação são também outros - sociedades
científicas, revistas especializadas, mercados de tecnologia, firmas de consultoria,
escritórios de registro de patentes. Em algumas situações mais extremas, as
instituições contemporâneas de ensino superior se transformam em simples mecanismos
administrativos para dar às pessoas as habilidades e informações básicas de
que necessitam para ganhar acesso a outras instituições onde os conhecimentos
são efetivamente produzidos e processados. Nestes casos, as universidades perdem
suas funções clássicas de geração e codificação do conhecimento, e a "questão
universitária" se reduz a um problema estritamente técnico e operacional:
como formar um número adequado de pessoas, com as habilidades requeridas, e
a um custo razoável para a sociedade.
As instituições contemporâneas de ensino superior têm um interesse mais do
que técnico, no entanto, porque elas dificilmente se deixam reduzir a este papel
instrumental, por razões semelhantes às quais as universidades antigas se rebelavam
contra a Igreja: as universidades recrutam talento, e pessoas acostumadas a
valorizar o talento não aceitam com facilidade outras formas de autoridade.
Uma boa parte da pesquisa científica e tecnológica mais avançada ainda ocorre
hoje dentro de instituições universitárias, e esta é uma tendência que parece
estar aumentando, e não diminuindo. O apelo que a educação superior tem como
algo desejável em si mesmo, como parte do ciclo de vida das novas gerações,
também parece tender a aumentar, muito além, e independentemente do que seria
previsível em termos de análises dos eventuais ganhos pecuniários da educação
superior em relação a outras alternativas de carreira.
Monopólio, meritocracia e hierarquia
No passado, as instituições educacionais controladas pela Igreja eram a única
forma pela qual uma pessoa poderia ter acesso aos conhecimentos codificados
de sua sociedade e, assim, aos privilégios e prestígio social a eles associados.
Este monopólio era mantido, paradoxalmente, por mecanismos meritocráticos e,
pelo menos em princípio, igualitários. Se todos querem atingir os mesmos objetivos,
e concordam com a validade dos mecanismos de acesso a estes objetivos, esta
é a melhor maneira de validar o prestígio e a autoridade dos que conseguiram
chegar ao topo. Assim, o princípio democrático da meritocracia não somente fortalecia
o monopólio, como também contribuía para a manutenção da hierarquia.
O controle monopolístico do conhecimento e da educação não servia somente para
garantir vantagens e privilégios para alguns, mas funcionava também como mecanismo
de manutenção da solidariedade social e de seu controle. Estas funções não teriam
como se manter com a divisão kantiana que gerou a educação laica e aparentemente
separada do mundo dos valores. Não é por acaso que o surgimento das sociedades
modernas foi acompanhado por todo um pensamento de tipo conservador que buscava
e pregava a volta a um passado medieval mítico onde o poder espiritual e o poder
temporal se mantinham indissolúveis sob a tutela moral da Igreja, à qual se
subordinavam a atividade econômica, o sistema educacional, a vida política e
as instituições militares. Menos radicais, os sociólogos da chamada linha funcionalista,
de Émile Durkheim a Talcott Parsons, dedicaram sua obra à busca dos princípios
unificadores que pudessem manter a coerência e garantir a estabilidade social
dentro da multiplicidade e da diferenciação. Para Durkheim, era exatamente ao
sistema educacional que caberia este papel integrador, pela transmissão de valores
de coesão e integração social em uma sociedade moderna e laicizada. Para Parsons,
o sistema social tenderia ao equilíbrio graças aos valores básicos transmitidos
pelos sistemas integrativos da sociedade -- de novo a educação.
É curioso como, em certo sentido, os ideais de Durkheim e Parsons se materializaram.
De fato, os sistemas universitários nas sociedades industriais e pós-industriais
de hoje ainda mantém grande parte de sua estrutura hierarquizada e de sua pretensão
ao controle monopolístico da cultura superior. O Estado da California, os Estados
Unidos, talvez seja um exemplo extremo. Por uma parte, o ensino superior naquele
estado é totalmente aberto e, de fato, ao alcance de quem quiser. Por outra
parte, as instituições de ensino superior da California são estritamente hierarquizadas
em termos de prestígio, autonomia, volume de recursos e qualidade dos alunos,
com a Universidade da Califórnia no topo e os "community colleges"
na base. Anos de críticas, às vezes radicais, contra as conseqüências socialmente
regressivas desta estratificação não tiveram o menor efeito; continua a haver
um forte consenso a respeito de em que mãos o controle das formas mais elevadas
de produção e transmissão do conhecimento devem estar. Na Califórnia (como no
Japão, outro sistema fortemente hierárquico de ensino superior), o monopólio
é mantido pelo princípio meritocrático que coloca a culpa do fracasso nos indivíduos,
antes que no sistema social que os exclui.
Este resultado traz, evidentemente, tensões, e outras sociedades resolveram
o problema de outra maneira, ou simplesmente não conseguiram resolvê-lo. Homens
de negócios, políticos e militares em todas as sociedades sempre resistiram
às pretensões hegemônicas dos intelectuais do mundo acadêmico, e desenvolveram
sistemas alternativos de valores e verdades últimas, baseados em virtudes como
o patriotismo, a força pessoal, o espírito prático e empreendedor, o sentido
comum, a coragem e a esperteza. O antiintelectualismo, quando pode, trata de
impor seus valores às instituições de ensino superior, seja pela imposição de
certos conteúdos (como foi o caso, no Brasil, dos cursos de "Educação Moral
e Cívica", introduzidos pelos governos militares após 1964 em todo o sistema
educacional), seja pela implantação de sistemas educacionais alternativos, de
cunho "prático" e aplicado, seja, finalmente, pelo ataque direto aos
princípios meritocráticos das universidades. A criação de quotas positivas ou
negativas para determinados grupos raciais e econômicos, os ataques generalizados
aos sistemas de seleção e avaliação de estudantes e professores, são outras
tantas formas de assédio às pretensões hegemônicas das universidades.
Somente sociedades pequenas e ricas, como as dos países do norte da Europa,
têm conseguido combinar de forma mais adequada os princípios do mérito com a
igualdade social efetiva. Em outras sociedades, a tentativa de juntar estas
duas coisas leva ao prejuízo de ambas. As universidades latinoamericanas são
todas iguais perante a lei, e em muitos países os princípios meritocráticos
foram totalmente abolidos e substituídos por sistemas de livre matrícula e pela
baixa geral de padrões para a aprovação de alunos nos cursos e outorga de diplomas.
Em muitos casos o princípio do mérito não é efetivamente abolido, mas transferido
para outros lugares e instituições -- cursos de pós-graduação, instituições
privadas, ou, seguindo o modelo francês, para escolas especializadas e colocadas
estrategicamente fora do alcance do sistema de ensino superior massificado.
Em alguns casos extremos, como na Revolução Cultural chinesa e em alguns dos
países muçulmanos mais radicais de hoje, todos os valores associados ao conhecimento
codificado e ao valor da educação são substituídos outros princípios e valores
de cunho religioso ou político. Quando isto ocorre, os sistemas universitários
são, na prática, destruídos.
O fato de que, nas modernas sociedades, conhecimentos sejam constantemente
produzidos e reproduzidos fora das universidades, e até mesmo fora dos sistemas
de educação e pesquisa científica formalmente estabelecidos, poderia levar à
conclusão de que pouco resta, nas universidades de hoje, das antigas pretensões
ao monopólio ou hegemonia em relação às formas mais elevadas de conhecimento.
No entanto, estes desenvolvimentos paralelos raramente levam a questionar o
papel desempenhado pelas universidades nas sociedades modernas, e as demandas
por educação superior e pesquisa universitária parecem aumentar continuamente.
Neste sentido, a hegemonia das universidades em relação às formas superiores
de conhecimento parece ser maior hoje do que nunca.
Acesso
O princípio meritocrático nunca significou que o acesso estivesse, de fato,
aberto a todos. Restrições formais e informais sempre existiram de um modo ou
outro - numerus clausus, restrições religiosas, raciais e nacionais,
taxas, dotes, patronagem. Poder competir bem em sistemas meritocráticos dependeu
sempre de um nível prévio adequado de educação formal ou informal, o que é,
por sua vez, função do ambiente familiar e de um investimento prévio em educação.
Estes aspectos "perversos", ou regressivos, da educação, tem sido
objeto de estudos e demonstrações detalhadas que ganharam grande popularidade
nas últimas décadas.
O que tem sido menos analisado é como que esta nova percepção da educação,
como mais um instrumento de estratificação social e desigualdade, surgiu após
um longo período em que a educação era entendida exatamente como seu oposto,
ou seja, como um instrumento de progresso social, democracia e igualdade. Teria
sido esta uma simples ilusão, agora desmascarada pelos pesquisadores contemporâneos?
Na realidade, a expansão da educação moderna de fato coincidiu com a expansão
da mobilidade social em todas as partes. Muitos autores interpretaram isto como
significando que a educação criava, por ela mesma, novos produtos e novas oportunidades
de trabalho. Para eles, a educação passou a ser vista como um investimento econômico
de grande rentabilidade, e possível de ser medido pelas suas "taxas de
retorno", ou seja, estimativas de renda gerada pela educação em relação
a seus custos. Esta visão da educação como "capital humano" é fartamente
comprovada por evidência originada das nações industrializadas, mas leva a resultados
estranhos e paradoxais quando transferida para contextos como a India, Africa
ou América Latina, onde as instituições educacionais se expandiram com grande
rapidez e de forma independente de uma expansão correspondente do setor industrial.
Nestas sociedades é ainda possível detectar benefícios econômicos para o investimento
individual em educação, que de fato são freqüentemente maiores do que nos países
industrializados. Mas, nelas, o acesso à educação é muito mais restritivo e
dependente de recursos sociais e econômicos prévios, e a soma dos benefícios
individuais não se traduz em benefícios para a sociedade como um todo. Para
estas sociedades a visão cética da educação, desenvolvida por autores como Randall
Collins, Pierre Bourdieu e Raymond Boudon(4),
parece a mais apropriada: o que a educação formal proporciona é, principalmente,
status, credenciais e oportunidades para monopólios profissionais e sinecuras.
Houve quem tentasse esclarecer esta questão distinguindo entre a educação como
"investimento produtivo" (como por exemplo em engenharia) e a educação
como "consumo" (como por exemplo em literatura, dança ou ciências
sociais). A maioria dos produtos da educação, no entanto, só pode ser vendida
ou utilizada por outros como serviços, e se determinado serviço (como a administração
profissionalizada, um projeto arquitetônico bem feito, o atendimento legal ou
médico, o turismo bem organizado, a boa música ou a publicidade) é considerado
ou não como algo de valor é uma questão totalmente subjetiva e dependente de
cada cultura. O que é inquestionável é que por muitos anos os produtos da educação
foram considerados como coisas boas e valiosas, e por isto mesmo geraram benefícios
que todos apreciavam. É fácil imaginar como esta situação pode se reverter:
pode haver gente demais oferecendo serviços e mercadorias por preços demasiado
altos, gozando de privilégios e monopólios injustificáveis, injustos e sem relação
definida com a qualidade dos produtos que oferecem. Tudo isto é subjetivo e
dependente de valores, tradições, e do marketing dos provedores de
bens e serviços; suas conseqüências, no entanto, em termos da maneira pela qual
as instituições educacionais e os setores educados funcionam em determinada
sociedade, são muito reais, e afetam diretamente a capacidade de autonomia e
auto-regulação de que as universidades podem dispor.
Autonomia e integração.
Autonomia, ou auto-regulação, é uma característica constante de instituições
baseadas na produção e transmissão de conhecimento, e ela funciona melhor em
duas condições opostas. A primeira é quando esta autonomia é dada como óbvia,
e ocorre de forma natural e não questionada. Isto se dá quando as universidades
estão bem integradas com o resto da sociedade, ou seja, quando seus professores
são reconhecidamente competentes, seus produtos intelectuais reconhecidos como
importantes, seus formados apreciados por sua competência, e seus custos não
demasiadamente elevados. O fato de professores participarem diretamente da gestão
das universidades, como na Europa, ou de existir um corpo especializado de administradores
profissionais, como nos Estados Unidos, é relativamente secundário desde este
ponto de vista. A outra condição ocorre quando a sociedade é de tal maneira
segmentada que o mundo acadêmico dificilmente cruza seus caminhos com os de
outros grupos sociais, e, por isto, não entram em colisão.
A autonomia se transforma em problema quando a integração com a sociedade se
interrompe, ou quando a comunicação entre os diversos setores se intensifica.
A autonomia universitária em relação à sociedade mais ampla é hoje fortemente
questionada na Europa Ocidental, por exemplo, por razões de custo, e em nome
do princípio democrático da igualdade de oportunidades. Na medida em que mais
pessoas buscam as universidades, elas se tornam mais caras e dependentes do
apoio e da aprovação externa de contribuintes, estudantes, legisladores, ministros,
empregadores, planificadores. Cada um destes setores pressiona por melhores
produtos, melhor uso do dinheiro público, e melhor atendimento a seus objetivos
específicos, que freqüentemente não coincidem com os dos demais.
As universidades sempre lidaram com as pressões externas através da cooptação
de personalidades públicas e ilustres, que recebem títulos honorários e são
chamadas a tomar assento em comissões consultivas importantes (mas quase sempre
de pouca capacidade de decisão); pela criação de instituições intermediárias,
como o famoso University Grants Committee na Inglaterra, ou os conselhos de
ciência e educação em outras sociedades, incluindo, pelo menos em intenção,
o Conselho Federal de Educação no Brasil; e pela colocação de seus próprios
membros como conselheiros dos políticos e funcionários públicos, que são mais
ou menos facilmente convencidos de sua incompetência para decidir as questões
do ensino superior e da pesquisa. Estes mecanismos são geralmente suficientes
para proteger as universidades em tempos de relativa estabilidade e crescimento
limitado. Não há porque imaginarmos que se trata, tão e simplesmente, de manipulação.
Por estes meios, o público leigo e as autoridades terminam por conhecer mais
de perto as universidades, e estas, através de suas lideranças mais significativas,
encontram oportunidades de sentir melhor, e se ajustar gradualmente, às demandas
cambiantes de seu ambiente externo.
Interferências externas se tornam particularmente perigosas quando vão além
das tentativas de orientar as instituições educacionais e se transformam em
verdadeiros assaltos aos recursos e meios de que estas instituições dispõem.
Políticos de inclinação anti-intelectual podem decidir cortar recursos do ensino
e transferí-los para fins mais populares, ou supostamente mais produtivos; instituições
educacionais podem ser percebidas, e utilizadas, como mais uma fonte de empreguismo
e clientelismo político; companhias privadas, ou institutos governamentais,
podem roubar as universidades de seus cérebros, ou utilizar seus laboratórios
e centros de pesquisa de acordo com seus interesses de curto prazo. Estas práticas
dificilmente prosperam quando a legitimidade das instituições educacionais está
bem definida; em outras circunstâncias, no entanto, seus efeitos podem ser devastadores.
Pressões externas coincidem, freqüentemente, com conflitos internos. Dizem
que as primeiras universidades italianas eram totalmente controladas pelos estudantes,
que pagavam os professores e, por isto, os contratavam ou demitiam a seu bel-prazer.
Se isto de fato ocorreu, não deve ter durado muito. Os professores eram geralmente
mais velhos e mais sábios que os estudantes, e agiam com a autoridade da Igreja
e das famílias. Conflitos entre professores e estudantes, no entanto, são tão
antigos quanto as próprias universidades, e de alguma maneira fazem parte de
um fenômeno muito mais geral, que é o dos conflitos inter-geracionais.
Ensinar em uma universidade pode significar coisas muito distintas para pessoas
diferentes -- uma atividade de tempo parcial para um advogado ou médico, um
envolvimento integral com o ensino e a pesquisa para um cientista, um simples
emprego para um professor. Cada um destes profissionais tem sua própria maneira
de vivenciar e entender sua atividade, e a instituição na qual ela se desenvolve.
Nas universidades de pesquisa dos países anglo-saxões, o que predomina é o professor-pesquisador,
que define os padrões e os modelos para o resto; nas universidades latinoamericanas
mais tradicionais, o que predomina é o profissional liberal que ensina na em
tempo parcial; nos grandes sistemas de educação de massas das sociedades modernas,
o que predomina é o professor contratado em regime de tempo integral para dar
aulas, que não é nem um profissional liberal como os velhos catedráticos, nem
um cientista pesquisador. É curioso como a língua portuguesa não contempla a
distinção, que existe por exemplo em inglês, entre o "Professor" e
o "teacher" ou "lecturer", e nem mesmo o equivalente ao
"maestro" castelhano, termos que servem exatamente para acentuar as
distinções que estamos tratando de fazer.
Os estudantes são o segundo elemento importante nas disputas de poder dentro
das instituições acadêmicas. Sendo os destinatários mais óbvios dos serviços
acadêmicos, eles se sentem naturalmente no direito de fazer prevalecer suas
vontades(5). A questão importante, naturalmente, é saber em
que condições esta sensação difusa se traduz em ação efetiva. A experiência
de muitos países parece sugerir que a politização e participação estudantil
é mais alta quando os estudantes são oriundos da elite, mas suas oportunidades
de obter posições de prestígio e autoridade depois de formados são vistas como
limitadas. O oposto ocorre quando as perspectivas ocupacionais para os estudantes
de elite são promissoras, ou quando o recrutamento é ampliado para incluir estudantes
de origem social menos privilegiada. Nestes casos há uma sensação de realização
pessoal que em geral reduz a motivação que o estudante possa ter em se envolver
em atividades coletivas ligadas ao meio no qual ele se encontra a título temporário.
É possível especular, a partir destas constatações, a respeito dos prováveis
efeitos da massificação do ensino superior sobre a politização estudantil. Em
geral, na medida em que mais pessoas são trazidas para as instituições educacionais,
poderemos esperar que sua capacidade de mobilização diminua, e isto parece ter
acontecido em contextos tão diferentes quanto, por exemplo, A América Latina
e os Estados Unidos nos últimos 20 anos. Por outro lado, existe um novo tipo
de mobilização estudantil nas sociedades modernas que parece estar relacionado
com os fenômenos de "cultura de juventude" que estão ocorrendo nas
sociedades mais industrializadas. Um de seus componentes é o desemprego estrutural
dos jovens, e a extensão da faixa etária considerada como de "juventude"
até próximo dos 30 anos, o que gera todo um novo conjunto de conflitos inter-geracionais
que se utilizam das instituições de ensino superior como campo de batalha.
Um último participante das disputas de poder dentro das instituições de ensino
superior são os funcionários. A complexidade crescente destas instituições tem
levado, em muitas partes, ao desenvolvimento de uma nova profissão, a dos administradores
universitários e educacionais, que têm suas próprias idéias a respeito de seu
papel, e sua necessidade de reconhecimento, poder e autoridade. Mesmo quando
este tipo de desenvolvimento não ocorre, funcionários administrativos são cada
vez mais numerosos, se organizam em associações e sindicatos profissionais,
e clamam por sua fatia do poder.
Em última análise, as tensões que ocorrem dentro dos sistemas de ensino superior,
e em sua relação com a sociedade mais ampla, dependem basicamente de se a sociedade
está expandindo ou não suas oportunidades ocupacionais, se ela está o não submetida
a pressões demográficas, e se o sistema educacional está funcionando como canal
efetivo de mobilidade social ou, ao contrário, de resistência contra novos grupos
sociais emergentes. Na Europa -- e provavelmente também no Japão -- a expansão
do ensino superior ao final do século XIX e início deste proporcionou um espaço
para grupos ascendentes que não tinham como ser absorvidos com facilidade pelo
setor industrial, mas puderam se engajar em um processo modernizador, ou "civilizatório",
que deu um destino socialmente significativo a suas energias. Como foi assinalado
no início, existe um claro paralelo entre a modernização das instituições de
ensino nestas sociedades e o processo que Barrington Moore(6)
descreveu em relação à modernização da agricultura no surgimento das democracias
modernas. Em muitas sociedades, não somente a agricultura não se modernizou,
como que seus sistemas educacionais também permaneceram fechados, levando, em
ambos os casos, a tensões potencialmente explosivas.
A politização tradicional das universidades latinoamericanas é um bom exemplo
desta condição. As sociedades latinoamericanas sempre foram muito segmentadas,
e suas instituições de ensino superior eram provavelmente adequadas, até o início
deste século, para dar a suas elites a quantidade limitada de educação formal
que elas desejavam. Tensões começaram a surgir, no entanto, quando novos grupos
sociais - filhos de imigrantes, ou de classes médias incipientes nas cidades
começaram a entrar no sistema educacional e perceber que estas instituições
estavam demasiadamente rigidificadas para expandir e assumir novos papéis.
Nas primeiras décadas deste século, muitos países latinoamericanos foram sacudidos
pelo que ficou conhecido como o "Movimento da Reforma", que se iniciou
na cidade de Córdoba, Argentina, em 1918. Ao lermos os documentos e proclamações
associados ao movimento, dois aspectos chamam logo a atenção. O primeiro é a
condenação veemente da qualidade do ensino, a denúncia de que as universidades
latinoamericanas haviam deixado de cumprir seu papel central de portadoras do
conhecimento, expressa em uma passagem muitas vezes citada:
Las universidades han sido hasta aquí el refugio secular de los mediocres,
la enta de los ignorantes, la hospitalización segura de los inválidos - y lo
que es peor aún - el lugar donde las formas de tiranizar y de insensibilizar
hallaron la cátedra que las dictara. Las universidades han llegado a ser así
el fiel reflejo de estas sociedades decadentes que se empeñan en ofrecer el
triste espectáculo de una inmovilidad senil. Por eso es que la ciencia, frente
a estas casa mudas y cerradas, pasa silenciosa o entra mutilada y grotesca al
servicio burocrático(7).
A segunda idéia era a de que só os estudantes poderiam mudar esta situação.
Na realidade, a Reforma não consagrou o governo das universidades pelos estudantes,
mas sim a divisão tripartite dos órgãos de governo entre estudantes, professores
e ex-alunos, os quais deveriam se inscrever junto às universidades para eleger
seus representantes (não há evidência de que os ex-alunos jamais tenham chegado
a desempenhar um papel muito significativo). Na conturbada história do Movimento
da Reforma, os conflitos entre estudantes, professores e autoridades governamentais
eram freqüentemente traduzidos em termos político-partidários, gerando muitas
vezes lideranças de grande projeção nacional e internacional, como Alfredo Palácios
na Argentina, Haya de la Torre no Peru, Raul Roa em Cuba, e Rómulo Becancour
na Venezuela. As demandas por autonomia resultaram no estabelecimento de uma
tradição de extraterritorialidade para as cidades universitárias em muitos países
latinoamericanos, dando aos estudantes e professores direitos e privilégios
com os quais os cidadãos comuns dificilmente sonhariam. Estes privilégios poderiam
ser interpretados como indicando o sucesso do Movimento, levando ao reconhecimento
e prestígio públicos das universidades. O mais provável, no entanto, é que eles
expressem simplesmente uma trégua temporária entre grupos antagônicos de elite,
muitas vezes rompida por confrontações violentas e derramamentos de sangue.
As universidades latinoamericanas parecem ter levado ao extremo um tipo específico
de auto-regulação e autonomia, baseado essencialmente na capacidade de mobilização
política, e não na ocupação efetiva de uma posição de centralidade entre as
instituições de geração e transmissão de conhecimento em suas sociedades. As
razões históricas para isto são muitas, e impossíveis de apresentar aqui. A
experiência histórica indica que a vitalidade das instituições universitárias,
como núcleo gerador de novas idéias, conhecimentos e valores tem estado e deve
estar intimamente relacionada com sua integração relativamente frouxa (ou, em
outros termos, com sua relativa independência) em relação às fontes de liderança
e dominação econômica, política e religiosa que existem em todas as sociedades.
A universidade "bem comportada", que funcionasse de maneira integrada
e sem tensões com outros setores da sociedade, seria quase certamente uma universidade
burocratizada, desmotivada, sem vida e, em última análise, sem maior relevância.
É importante também que, neste processo de competição com outros setores da
sociedade, as universidades não terminem vitoriosas e percam, sem sentir, sua
identidade própria. É próprio da universidade não ser a fonte de conhecimentos
sagrados ou ideológicos, nem do poder econômico, nem do poder político; ela
deixa de ser universidade quando se transforma em Igreja, empresa ou partido.
Encontrar seu espaço próprio, não se submeter nem se descaracterizar, é a chave
para sua permanência e relevância.
Finalmente, os sistemas universitários modernos têm em si o germe da universidade
clássica, mas também muitas outras coisas que têm pouco a ver com ela. Por isto
mesmo, eles são necessariamente instáveis e contraditórios, e sujeitos a um
processo constante de disputa e competição. Esta é uma situação inevitável,
que não pode ser corrigida sem que algumas das funções mais importantes dos
sistemas educacionais modernos sejam sacrificadas. O que é importante, aqui,
é aprendermos a conviver com a variedade, a diferenciação e a pluralidade de
objetivos e princípios que são inerentes aos sistemas sociais modernos. Com
o surgimento do ensino superior de massas, dramatizado pelas mobilizações estudantís
de 1968, a questão da reforma universitária voltou à ordem do dia em todo o
mundo. A experiência acumulada desde então parece sugerir que os sistemas de
ensino superior atuais são grandes demais, politizados demais para poder ser
alterados por grandes projetos reformadores, que, ou são bloqueados por interesses
afetados, ou se frustram em sua implementação(8).
Isto não significa, no entanto, que não exista espaço para mudança; mas ela
não pode se dar a partir de um amplo consenso a respeito de um "novo"
papel para o sistema universitário, e sim da diferenciação progressiva de suas
funções, e no atendimento particularizado a suas diferentes clientelas.
É a partir destas perspectivas que podemos pensar melhor a crise de legitimidade
que hoje atinge nossas instituições de ensino superior. Como elas se desenvolverão
nos próximos anos, que tipo de relações estabelecerão com outras instituições
produtoras e difusoras de conhecimento nas sociedades modernas, em que medida
permanecerão ou não como lugares privilegiados da geração e expansão da fronteira
intelectual e científica, de que forma poderão se ajustar às múltiplas demandas
que recebem sem perda de autonomia e responsabilidade - e, finalmente, em que
medida sua autonomia será fruto de seu prestígio, ou de sua alienação - são
estas as questões que deveremos observar, e que definirão o futuro desta instituição
milenar. A sina da universidade, se podemos utilizar esta figura, é estar sempre
descontente com suas limitações, sem perder, no entanto, sua identidade, forjada
na evolução das sociedades modernas nos últimos séculos. Na medida em que ela
possa se manter fiel a esta sina, ela será, ainda por muito tempo, um fator
de perturbação, discussão, eventualmente conflito -- mas também de esperança
para um mundo melhor.
Educação de massas e qualidade
Os efeitos da massificação do ensino superior sobre sua "qualidade",
qualquer que seja o sentido associado a este termo, é objeto de preocupações
constantes e discussões interminávies, e em relação a isto vale a pena rever
um debate clássico desta questão no contexto norteamericano, com implicações
óbvias para o que vem ocorrendo na América Latina.
Em 1910, o educador americano Abraham Flexner fez uma avaliação do ensino médico
nos Estados Unidos e Canadá, e concluiu que, das 155 faculdades de medicina
existentes, 120 apresentavam condições péssimas de funcionamento. Os alunos
eram admitidos sem nenhum preparo, não existiam laboratórios, não havia relação
entre a formação científica e o trabalho clínico, e os professores não tinham
controle sobre os hospitais universitários. O relatório de Flexner, Medical
Education in the United States and Canada, teve o efeito de um terremoto,
e nos anos seguintes a quase totalidade das instituições por ele criticadas
fechou suas portas.
O relatório Flexner ficou na história como um exemplo da importância da avaliação
e do controle de qualidade, e sua história vem muitas vezes à tona quando pensamos
nas condições precárias da maioria de nossas instituições de ensino superior.
Que falta nos faz um Fletcher, pensamos, e sobretudo que falta nos faz a existência
de mecanismos que façam desaparecer as instituições que não cumpram com os critérios
mínimos e aceitáveis de qualidade!
Alguns anos mais tarde, Flexner escreveria um livro comparando as universidades
americanas, inglesas e alemãs, aonde pregaria a superioridade do modelo da universidade
humboldtiana, alemã, sobre o dos demais países. As universidades modernas, pensava
Flexner, devem ser instituições dedicadas à cultura, à ciência e às profissões
cultas - tudo aquilo que a expressão alemã Wissenschaft significava.
Elas devem ser as guardiãs da tradição, e o centro das formas mais avançadas
de reflexão e conhecimento. Elas devem evitar a especialização excessiva, e
não abrir espaço para a educação secundária, técnica, popular, ou meramente
profissional. Nesta perspectiva, o ensino superior nos Estados Unidos parecia
especialmente lamentável. O título de "universidade" era dado para
instituições de qualquer tipo, não existia nenhuma noção sobre as diferenças
entre a verdadeira cultura e a mera educação continuada ou a formação técnica
e profissionalizante, e a venda de serviços educacionais de todo tipo, a quem
quisesse pagar, por instituições de renome como a Universidade de Columbia,
lhe parecia um verdadeiro escândalo. Era necessário, propunha, fazer com a Universidade
americana como um todo o que já tinha sido feito com o ensino médico.
O conceito de qualidade utilizado por Flexner no início do século presidiu
a legislação da reforma universitária brasileira. O artigo primeiro da lei 5.540,
de 1968, reza que "o ensino superior tem por objetivo a pesquisa, o desenvolvimento
das ciências, letras e artes e a formação de profissionais de nível universitário".
O artigo 2 diz que "o ensino superior, indissociável da pesquisa, será
ministrados em universidades e, excepcionalmente, em estabelecimentos isolados".
Nesta época, no entanto, o mundo já não era o mesmo. A Universidade alemã, demasiado
amarrada ao Estado, não soube resistir à ascensão do nazismo, e perdeu, com
ele, muito do brilho e do prestígio de que gozava até então. Não houve uma nova
reforma Flexner para o ensino superior americano, mas, nos últimos 50 anos,
os Estados Unidos desenvolveram o sistema de educação superior de maior porte,
abrangência e qualidade de todo o mundo, e que é hoje copiado pela maioria dos
países. Aonde Flexner errou? Aonde erramos nós?
Em 1968, no ano da Reforma Universitária brasileira e do movimentos estudantis
na Europa e nos Estados Unidos, o livro de Flexner foi republicado com um prefácio
de Clark Kerr, então presidente da Universidade da California. Neste prefácio,
Kerr, ao mesmo tempo em que expressa sua admiração por Flexner, mostra com clareza
aonde ele se equivocou, e o que significa uma universidade moderna e de qualidade
nos dias atuais. Da análise de Kerr, dois aspectos nos interessam particularmente.
O primeiro equívoco de Flexner foi o de pensar na universidade como um todo
integrado e orgânico, unido pelos valores comuns da ciência, das artes e da
cultura. A aparente unidade das universidades tradicionais residia mais em seu
tamanho reduzido, e na origem aristocrática de seus professores e alunos, do
que em uma efetiva integração do conhecimento e da educação. As universidades
modernas são gigantescas, juntam pessoas de todas as origens sociais e com maneiras
muito diferentes de entender o que é a pesquisa, a educação, a cultura e as
artes. Elas são, na expressão cunhada por Kerr, muito mais "multiversidades"
do que universidades no sentido tradicional.
O segundo equívoco foi supor que esta diversidade de funções e valores não
poderiam conviver sem se destruir mutuamente. Foi não entender que qualidade
e quantidade poderiam se combinar e se complementar. Que não havia incompatibilidade
entre prestar serviços à comunidade, dar cursos de verão, manter equipes de
futebol e realizar pesquisas de alta qualidade. Foi tudo isto, precisamente,
o que fizeram as grandes universidades americanas, e que as ajudaram a chegar
na posição de prestígio e reconhecimento que têm hoje.
É claro que o fracasso das universidades alemãs, o sucesso das universidades
americanas, e a posição intermediária ocupada pelas universidades inglesas,
refletem em grande parte a posição relativa de cada um destes países a partir
da segunda guerra mundial. Um sistema universitário, nos lembra Kerr, não pode
ser separado do desempenho da sociedade que o apóia, não é uma coisa isolada.
Isto, no entanto, não explica tudo. Ao se adaptar para a posição de liderança
que assumiu na segunda metade deste século, o ensino superior americano desenvolveu
algumas características que hoje são centrais para qualquer sistema de ensino
superior que pretenda se ajustar ao mundo contemporâneo, e que por isto necessitam
ser examinadas e entendidas com cuidado.
A principal característica deste sistema, assinalada por Kerr, é o pluralismo
e a diversidade. Novos ricos, sem as tradições da aristocracia, os americanos
criaram uma infinidade de formatos institucionais e de áreas de estudo, que
íam desde as tentativas de reproduzir as melhores tradições inglesas e alemãs
até o Departamento de Economia Doméstica da Universidade de Chicago, que aprovava,
para horror de Flexner, teses de mestrado sobre "uma comparação de tempos
e movimentos de quatro métodos de lavar pratos", ou sobre "a compra
de roupa de mulheres pelo correio". A diversidade permitiu que o ensino
superior norte-americano fosse o primeiro no mundo a se massificar, a ponto
de que, hoje, cerca de metade dos jovens naquele país entrem em alguma instituição
de ensino pós-secundário. É certo que, em boa parte, esta educação superior
de massas acaba por compensar um ensino secundário de má qualidade, e proporciona
qualificações que não mereceriam o título de "universitárias" em outras
partes do mundo. Mas a tendência à massificação do ensino superior é um fenômeno
mundial, que leva a um número cada vez maior de jovens e adultos a buscar educação
em instituições de nível superior, que não podem, simplesmente, voltar as costas
a esta demanda e a estas aspirações. Ao desenvolver um amplo sistema de educação
superior de massas, apoiado em milhares de "colleges" e um grande
número de universidades públicas e privadas de todo o tipo e qualidade, os Estados
Unidos acabaram por criar um grande mercado de trabalho para professores, para
a educação dos quais se implantaram, de início, os programas de pós-graduação
e de pesquisa científica acadêmica.
A diversidade permitiu também que, ao lado da educação massificada, algumas
universidades e profissões estabelecessem padrões extremamente exigentes de
desempenho e qualidade, como foi o caso da educação médica. A pesquisa científica
e a pós-graduação, que é onde o sistema norte-americano possivelmente mais se
sobressai, se desenvolveram pela combinação de pelo menos três fatores. Primeiro
foi a maciça incorporação dos talentos que acompanharam as grandes migrações
européias desde o século XIX, e continuaram no período de pré- e pós guerra,
recriando nos Estados Unidos as tradições de trabalho e os padrões de excelência
típicos das universidades européias de elite. Mas, segundo, por mais importantes
e influentes que estes imigrantes tivessem sido, eles não impediram que continuassem
a existir as centenas de "land grant colleges", escolas técnicas,
institutos de engenharia e outras instituições que trabalhavam em íntima associação
com a indústria e a agricultura, e davam à pesquisa acadêmica uma ponte natural
e direta com o setor empresarial, que retribuía apoiando e financiando as instituições
universitárias. E terceiro, a ausência de tradições acadêmicas mais consolidadas
levou a uma inovação importante que foram as escolas de formação de pesquisadores
e cientistas, os "graduate colleges", que fizeram da capacitação para
a pesquisa não um simples credenciamento acadêmico, como na tradição européia,
mas um tipo novo de formação profissional e especializada.
A diversidade se manifesta também na pluralidade de formatos organizacionais
e institucionais. Não existe um ministério da educação, e ninguém se preocupa
em dar uma definição oficial do que seja uma "universidade". Cada
estado tem suas instituições, existem muitas instituições privadas, dedicadas
à pesquisa, à formação de professores, ao ensino profissional, à formação intelectual
e acadêmica, à reciclagem de adultos, à formação religiosa e à obtenção de lucros.
O engano mais importante de Flexner pode ter sido a idéia de que semelhante
aglomerado de instituições e papéis não teria como ser controlado, e tenderia
cada vez mais ao deterioro e à desagregação. Na realidade, os Estados Unidos
desenvolveram um conjunto também diversificado, mas nem por isto menos efetivo,
de controles de seu ensino superior. Em primeiro lugar, há o controle do mercado:
instituições, mesmo públicas, que não conseguem bons alunos, alunos pagantes,
doações filantrópicas e contratos de pesquisa com o governo ou com o setor privado,
cedo ou tarde fecham suas portas. Existe um grande mercado de talentos, que
atrai os professores mais qualificados para as universidades de mais prestígio,
e forçam as demais a oferecer contratos competitivos. Existem instituições voluntárias
de credenciamento que distribuem certificados para as instituições que qualificam,
e que são verificados por estudantes, professores e financiadores na hora de
escolher suas instituições. Firmas privadas oferecem testes padronizados de
conhecimento que são utilizados por muitas universidades para a seleção de seus
alunos. Em algumas áreas especializadas, como na área da medicina, existem corporações
profissionais que zelam pela qualidade das instituições de ensino, garantindo,
assim, os padrões de excelência definidos inicialmente pelo relatório Flexner.
* * *
Ao adotar o modelo Flexner em 1968, o legislador brasileiro cometeu dois equívocos
da maior gravidade. O primeiro foi ignorar as tendências à massificação do ensino
superior que Kerr já assinalava com tanta clareza em sua introdução ao texto de
Flexner. Em 1968 os estudantes já batiam às portas das universidades, e nos anos
seguintes a demanda avassaladora por mais vagas e oportunidades educacionais levou
a um sistema de ensino superior de grande porte que, embora diferenciado na prática,
não abdicava de um modelo monolítico e centralizado, não incorporava a diferenciação
como um valor, e terminava produzindo um ensino superior diluído e em grande parte
desmoralizado por não ser aquilo que, no papel, estava dito que poderia ser.
O segundo erro dos legisladores foi pensar que o Brasil deveria procurar se
pautar pelo modelo dos países europeus, quando somos, na realidade, muito mais
parecidos com os Estados Unidos. Não é pela riqueza, evidentemente, já que em
relação a esta somos profundamente distintos de ambos. Mas compartimos com os
Estados Unidos, e não com a Europa, a vastidão territorial, o aglomerado das
culturas, a mistura das raças, a incompetência da administração pública, a desigualdade
social, e uma capacidade surpreendentemente alta de iniciativa e inovação. O
que ainda temos da Europa é o veso da centralização, da racionalidade formal
e dos controles burocráticos, que estão latentes no modelo elitista e centralizado
da reforma universitária de 1968. É bem verdade que, ao introduzir o sistema
de crédito, a pós-graduação, o sistema departamental e o ciclo básico, a reforma
de 1968 se inspirou na Universidade americana, e não na européia. Mas o legislador
só olhou para o topo da pirâmide, para Harvard e Yale - aquilo que os Estados
Unidos têm de Europa - e não para os milhares de colleges e outras instituições
que formam o corpo e os braços da educação superior americana.
Os equívocos de Flexner não tornam suas idéias, e seu exemplo, obsoletos. O ensino
superior moderno não pode existir sem a ciência, a pesquisa, a formação profissional
de alto nível, a Wissenschaft. Mas, se no passado esta era a própria
definição do que fosse uma universidade, hoje se trata, tão somente, de um dos
componentes das modernas multiversidades, e sobretudo dos sistemas nacionais de
educação superior. Ao lado destas funções clássicas e tradicionais, estão as funções
do ensino continuado e da reciclagem, da formação de professores, da formação
profissional e técnica, da prestação de serviços à comunidade, Cada uma destas
atividades tem seu valor, sua cultura, seus públicos e sua maneira de se organizar
e se financiar. O controle de qualidade é mais importante do que nunca, nestes
tempos de custos crescentes e recursos escassos. Mas ele deve ser flexível, plural,
descentralizado e desbucrocratizado. Ele deve se apoiar menos nas normas e nas
burocracias, e mais nas avaliações dos pares, na reputação conquistada pelo desempenho,
e no endosso do mercado. O espaço universitário é hoje muito maior, muito mais
complexo, e potencialmente muito mais rico, do que o imaginado por Flexner e por
nossos legisladores dos anos 60. Sua potencialidade é grande, mas nos falta, ainda,
conquistá-lo.
Notas
1.Este capítulo é uma versão revista de Schwartzman, 1989.
(veja a bibliografia em arquivo separado).
2. Estas idéias estão contidas, de forma muito mais elaborada
e complexa, nos textos clássicos de Max Weber, e sobretudo em Economia e
Sociedade, .
3. Um "tipo ideal", em linguagem sociológica,
é uma representação conceitual estilizada, onde as características mais marcantes
de um fenômeno social são acentuadas. "Ideal", aqui, se refere a idéia"
conceito, e não a ideal como modelo a ser buscado ou conseguido.
4. Collins, 1979; Boudon, 1981;; Bourdieu e Passeron, 1970.
5. Veja respeito Levy, 1981, e Altbach, 1984.
6. Moore, 1966.
7. H. Michelena e Sontag, 1984, p. 26-27; J. Michelena,
1986.
8. Cerych e Sabatier, 1986.