América Latina: Universidades em Transição

Simon Schwartzman

Publicado em castelhano como América Latina: Universidades en Transición. Washington, Organización de los Estados Americanos, Colección INTERAMER, nº 6, 1996


Capítulo 6: Estudantes, professores, funcionários.

Quem são, hoje, os estudantes e professores das universidades latinoamericanas? O que é feito do jovem acadêmico, as vezes poeta, muitas vezes político radical, quase sempre boêmio, que marcava sua presença nas principais cidades da região? O que resta dos antigos professores, que davam aulas solenes, se vestiam com formalidade, e impressionavam seus concidadãos pelo prestígio de uma cátedra universitária? Se eles não existem mais, ou estão desaparecendo, quem está em seu lugar, na versão de fim de século da universidade latinoamericana?

Os estudantes e a política

Deste os movimentos da Reforma do início do século, mas na verdade desde muito antes, a politização estudantil era a marca mais visível das universidades latinoamericanas. Cultos, filhos de famílias abastadas, e sem muitas responsabilidades, os estudantes ensaiavam, desde a escola, os diferentes papéis que pretendiam jogar quando formados, na política, na vida intelectual e na vida profissional. Enquanto não concluiam seus estudos, recebiam da sociedade um sursis que os livravam das obrigações e responsabilidades da vida adulta que a quase totalidade dos jovens não universitários assumiam ao final da adolescência, e lhes permitiam experimentar por alguns anos com a cultura, a política, as artes, a literatura, as idéias generosas, a crítica contundente, e a liberdade de costumes e comportamentos. Brunner observa que a principal característica destes estudantes talvez fosse, no passado, sua própria raridade e exclusividade, como membros de um pequeno grupo de eleitos, uma situação que iria se alterando profundamente nas décadas mais recentes:
El estudiante de los años 20, el de Córdoba y el del Primer Congreso Internacional de Estudiantes (México, 1921), podía autoidentificarse todavía con facilidad como miembro de una reducida élite. Sus iguales eran los demás jóvenes universitarios, los intelectuales y profesionales progresistas y, en todas las partes del mundo, los hombres y mujeres que estaban dispuestos a luchar "por el advenimiento de una nueva humanidad". Ya hacia los años 60, el movimiento estudiantil había perdido esta distinción que proviene del mero hecho de detentar entre unos pocos el monopolio sobre unas oportunidades de vida que son caracteristicas de un estilo admirado de vida. Ahora (...), la condición social de universitario o de estudiante se ha vuelto más acesible y se han multiplicado enormemente las oportunidades de aceso a este estamento valorado antaño por su forma de vivir y del expresar el sueño de nuestras sociedades. Pués, efectivamente, el estudiante universitario representó por muchas décadas el modelo de ascenso y transformación de grandes sectores de la sociedad en América Latina(1).
Não se sabe a profundidade que as idéias e perspectivas destas lideranças tinham em relação ao conjunto de estudantes, e tampouco conhecemos muito de outras atitudes e posicionamentos - mais conservadores, mais profissionais, mais orientados para as artes e estilos de vida alternativos - que coexistiam com as formas mais vocais e visíveis de mobilização estudantil, como intelectualidade de esquerda. O monopólio de representação exercido pelas organizações estudantis, como a União Nacional de Estudantes do Brasil(2), davam uma aparência de unanimidade pouco convincente para quem conhece algo do conservadorismo das elites tradicionais da região É provável que a variedade fosse maior do que se presume, e a profundidade, menor. A grande maioria dos estudantes nas universidades tradicionais se preparavam para ocupar os postos de elite e de prestígio nas suas sociedades, e as eventuais veleidades políticas ou literárias da juventude ficavam restritas a pequenos grupos, e não deixavam muitos traços na vida adulta.

Brunner assinala que nos anos 60 a universidade latinoamericana havia perdido muito de sua exclusividade das décadas anteriores, mas as atitudes e comportamentos dos estudantes eram muito distintos do que são hoje. Este período coincide com o auge da politização estudantil em quase todo o continente, com um grau de radicalização e militância revolucionária que iam muito além da retórica acadêmica e das tiradas literárias dos anos da Reforma. A revolução cubana havia mostrado o que um punhado de estudantes podia conseguir, mobilizando as universidades e justificando a repressão. No início dos anos 60, no Brasil, Francisco Julião ameaçava transformar suas Ligas Camponesas em focos insurrecionais, usando uma linguagem mais próxima do Evangelho do que do Manifesto Comunista, e encontrava forte ressonância entre a juventude estudantil, mobilizada pelo clero militante e por pequenos grupos de esquerda que haviam desistido do velho Partido Comunista por sua falta de combatividade. Em todo o continente, movimentos revolucionários de esquerda, com nomes reverenciando datas sagradas e figuras míticas do passado, organizavam os estudantes, tratavam de fazer alianças com movimentos camponeses e sindicatos urbanos, e buscavam emular a Cuba. A Cordilheira dos Andes, dizia Ernesto "Che" Guevara, será a Sierra Maestra da América Latina. A reação seria violenta. No Brasil, a liderança estudantil brasileira começou a ser presa em 1964, e foi praticamente aniquilada no início dos anos 70. Na Argentina, o governo militar de 1966 começa com a "noche de los bastones largos" em que a Faculdade de Ciências Exatas é invadida. A partir daí grande parte da Universidade de Buenos Aires é desmantelada, iniciando um longo período de desaparecimentos e mortes violentas de estudantes, professores e intelectuais. Na "noche triste"de 2 de outubro de 1968 centenas de estudantes são massacrados em uma manifestação na Cidade do México, e, na Venezuela, em 1969, três universidades autônomas são ocupadas militarmente. No Chile, os estudantes sobrem com o resto da sociedade a repressão do governo Pinochet à oposição de esquerda a partir de 1973.

Estes foram apenas alguns dos episódios mais conhecidos(3) de um período terrível de 10 a 15 anos de movimento estudantil revolucionário, que terminaria com seu fracasso, esvaziamento e exaustão nas décadas seguintes. Este esvaziamento poderia ser explicado, simplesmente, pelo sucesso dos governos militares, que dominaram a maior parte dos países latinoamericanos desta época, em reprimir e sufocar os movimentos estudantis. Mas a repressão, sozinha, é impotente para impedir a expressão de idéias e manifestações da sensibilidade, que muitas vezes florescem e se alastram alimentadas precisamente pela força da resistência e da indignação. O movimento estudantil na América Latina, a partir dos anos 60, perdeu não somente sua força política, mas sobretudo sua capacidade de formulação e expressão da "utopia da nova humanidade" a que se referia Brunner para o período anterior, e não recuperaria, com o fim dos governos militares, a importância que tivera no passado.

Os pesquisadores que procuram entender o que ocorreu nos anos 60 associam a radicalização do movimento estudantil à expansão da educação superior havida em todos os países, com um duplo efeito. Por um lado, um número cada vez maior de estudantes vem agora de estratos sociais médios e baixos, sem os vínculos de elite e a cultura literária de grande parte da geração anterior. Mas, por causa mesmo desta expansão e diferenciação, as possibilidades de aproveitamento efetivo desta massa de estudantes em atividades relevantes na sociedade se reduz. Analisando o período 1978-1984 na Venezuela, Germán Campos constata uma contração relativa do mercado de trabalho que afeta com mais intensidade os jovens de nível superior, que aumentaram sua presença em 97.5% entre estes anos, para um aumento das ocupações em nível equivalente de somente 81.4%. Estes dados mostrariam a distância entre a proposição de "participar dos destinos do país", que é apresentada aos jovens universitários, e a frustração que muitas vezes a acompanha. Na falta de maiores informações sobre as ocupações existentes, é difícil aprofundar mais este diagnóstico. Mas é provável que muitas das ocupações de nível superior disponíveis não proporcionassem o mesmo prestígio e renda das de antes, ou consistissem, simplesmente, em empregos públicos gerados pelas próprias universidades e burocracias governamentais(4). Análises semelhantes poderiam ser feitas para todos os demais países.

Não só o mercado de trabalho não acompanha os números de jovens universitários, mas pode-se presumir que a qualidade do ensino superior tampouco acompanha as necessidades dos estudantes. Antes, a debilidade intelectual e técnica de muitos cursos superiores era compensada pelo ambiente de elite de onde vinham os estudantes, e por um mercado de trabalho que dependia mais de condições de status social do que de conhecimentos técnicos e profissionais específicos. Agora, justamente quando um número cada vez maior de estudantes se origina de ambientes populares, a expansão acelerada do sistema baixa ainda mais a qualidade. O resultado é o que os Michelena chamam de "extrañamiento" e que na literatura sociológica mais convencional se denomina alienação. Retirados de sua cultura e ambiente originais por intensos processos de transformação social, transportados para o interior de sistemas educacionais despreparados para recebê-los, e com perspectivas incertas de trabalho e futuro profissional, os estudantes são presa fácil da vulgata marxista em suas variantes mais radicais, que prescindem de estudos mais aprofundados e levam à ação imediata. Este imediatismo explica, em boa parte, a rejeição que os partidos comunistas tradicionais encontravam entre os estudantes. Os velhos comunistas tinham história demais, experiência demais, e, nos anos 60, demasiada cautela para acompanhar de bom grado as aventuras guerrilheiras dos movimentos revolucionários estudantis. Com a derrota militar destes movimentos, sua frágil sustentação intelectual e ideológica também se esvai. Dez anos antes da queda do muro de Berlim, a esquerda estudantil latinoamericana já havia praticamente perdido sua ideologia.

A partir dos anos 70 e 80, os estudantes universitários passam a ser descritos menos em função de seus conhecimentos, aspirações e possibilidades de ingresso no mercado de trabalho, e mais como parte de uma cultura específica, a cultura jovem dos tempos atuais. Duas características desta cultura costumam ser assinaladas. Primeiro, a extensão do tempo de juventude. Antes, ela terminava para todos os efeitos aos 18 ou vinte anos, quando as jovens mulheres já deveriam estar casadas, e os homens, trabalhando, ou claramente encaminhados a uma profissão, carreira ou emprego estável, Hoje, os casamentos se dão muito mais tarde, quando ocorrem, a vida estudantil continua facilmente até os 30 anos, e a estabilidade profissional é mais tardia ainda, também quando ocorre. A segunda característica da juventude é sua grande exposição e incorporação da cultura "pop", que vai desde a predileção pela música de rock e por determinados esportes(5) até a adoção de vestimentas e estilos de vida consagrados pelos meios de comunicação de massas. Esta difusão entre os jovens da cultura "pop" se explica, em parte, pela facilidade de entendimento e incorporação de seus conteúdos; depois, pelo seu caráter democrático, já que quase todos têm acesso à música, ao vestuário e outros símbolos que marcam esta cultura; e terceiro, e talvez mais importante, pelo caráter hedonista desta cultura do consumo aqui e agora, da sensação imediata, e da falta de compromissos ou perspectivas de futuro.

A cultura de juventude é bastante real, e se explica, em grande parte, pelos desajustes entre o sistema educacional e o mercado de trabalho, ou, mais amplamente para os dias de hoje, pelas dificuldades de incorporação das novas gerações aos mercados de trabalho em todo o mundo. Mas há que olhar esta questão com certa cautela. Se para o estudante tradicional que aspira a um emprego prestigiado ou a uma profissão liberal as perspectivas profissionais são mais difíceis hoje do que no passado, um número crescente de estudantes de novo tipo entra no ensino superior já trabalhando e fazendo seus cursos à noite, sobretudo em instituições privadas, levando à extraordinária expansão dos cursos de administração, contabilidade e processamento de dados havidos nos últimos anos por toda a região. Estes jovens já não aspiram a ser "doutores" no sentido tradicional, mas a ter, pelo menos, um conjunto básico de habilidades que lhes permitam ganhar a vida nos novos mercados de trabalho.

Sabemos pouco sobre estes estudantes, além de que trabalham, vêm de famílias de classe média e média baixa, e entram nas universidades com mais idade do que os jovens que seguem a seqüência tradicional, da escola secundária à universidade e depois ao mercado de trabalho(6). Em que medida eles participam, também, desta "cultura da juventude", se ela se explica, pelo menos em parte, pela profissionalização tardia? O fato de os estudantes combinarem o estudo com o trabalho indica uma insatisfação com a atividade profissional, e uma aspiração a melhores alternativas de carreira. As dificuldades econômicas vividas por estes estudantes sugerem um quadro muito distinto da imagem convencional dos jovens estudantes ociosos e sustentados pelas famílias. A "cultura da juventude" desta população estudantil talvez se associe, sobretudo, à precariedade de sua inserção no mercado de trabalho, e à esperança, sem muita convicção, de que o investimento educacional possa alterar este quadro. Estes estudantes são mais propensos a se mobilizar para a defesa de interesses concretos, como o acesso a restaurantes subsidiados ou pelo controle governamental das mensalidades escolares, do que a grandes causas de interesse nacional. Em sua pesquisa sobre o movimento estudantil, Guillón de Albuquerque chama a atenção para a "ação societal" que caracterizava o movimento no seu período áureo, significando com isto que as lideranças estudantis se estruturavam como "intelectuais orgânicos" de organizações políticas, e tratavam de estabelecer vínculos ativos com outros partidos políticos e movimentos sociais(7). Nos anos 80 e 90, esta ação societal perdeu lugar para a ação individual que, no máximo, chega a manifestações coletivas de insatisfação e frustração, mas nunca à poliitização articulada do passado.

Algo resta do movimento estudantil na América Latina, mas pouco. No Brasil, a União Nacional dos Estudantes, que teve presença central na política nacional até os anos 60, hoje dedica todo seu esforço à negociação do preço das mensalidades escolares e a conquistas de espaço nos meios de comunicação. Nas universidades, os estudantes se organizam para defender seus interesses especiais - restaurantes subsidiados, facilidades esportivas, resistência, gratuidade do ensino - mas sua capacidade de mobilização política e ideológica é mínima. Em compensação, outras formas de organização e participação estudantil começam a surgir. Em muitas universidades brasileiras, os estudantes se organizam como "empresas júnior" para a prestação de serviços técnicos especializados sob a orientação de professores, que funcionam como fonte de renda e mecanismo antecipado de profissionalização. Outros se envolvem em atividades de solidariedade e extensão social, buscando levar apoio e serviços a populações carentes. As orientações políticas ainda são, predominantemente, de esquerda, mas as ideologias se transformaram naquilo que Brunner chama, muito apropriadamente, de "sensibilidades", e as polarizações do passado já não mostram as mesmas arestas.

Os novos profissionais universitários

A expansão no número de estudantes desde os anos 60 e 70 teria que se refletir em uma expansão similar do número de professores. Os dados do México mostram que, nesta corrida, não foi possível preservar as mesmas proporções dos tempos das universidades de elite. O gráfico 1 abaixo mostra a evolução havida no México, que passou de uma proporção de 7.2 estudantes por professor em 1960 para 9.66 em 1992. O notável é que a proporção não tenha sido menor, dada a extraordinária velocidade da expansão das matrículas. O resultado desta expansão foi a criação de uma profissão que ainda não existia na América Latina, a do professor universitário. No passado, o ensino universitário era feito normalmente por profissionais cuja principal fonte de renda, e principal identidade social, era a atividade em seus escritórios, consultórios e firmas. Os novos professores universitários têm na atividade de ensino sua principal ocupação, e muitas vezes não chegam a exercer atividades profissionais fora do mundo acadêmico. Persistem grandes diferenças entre as áreas de atividade.. O gráfico 2 mostra a evolução havida nas universidades federais brasileiras, com o crescimento progressivo do número de professores dedicados exclusivamente ao trabalho na Universidade. A medicina, odontologia, o direito e as profissões orientadas para a atividade empresarial ainda ocupam grande parte do tempo dos professores; já as áreas científicas e as letras, ciências sociais e humanidades, tendem a ser desenvolvidas com exclusividade nas universidade, como pode ser visto no quadro 1.




Quadro 1. Brasil, Chile e México: Responsabilidades de trabalho dos professores fora da Universidade, por área de conhecimento (percentagens)
Áreas do Conhecimento Em tempo integral em tempo parcial nenhum trabalho fora da universidade # casos
medicina e odontologia 48,9 22,3 28,8 184
profissões administrativas e sociais aplicadas 34,9 31,3 33,8 195
artes 21,3 19,7 59,0 61
cursos técnicos 20,3 40,5 39,2 79
engenharias 18,9 32,3 48,9 403
outros 18,2 27,3 54,5 176
ciências sociais 18,0 22,0 60,0 200
profissões da área de saúde 17,9 20,5 61,6 268
humanidades 9,8 18,0 72,1 122
letras 8,7 8,7 82,6 46
educação 8,3 18,6 73,1 156
ciências agrícolas 7,9 19,0 73,0 63
ciências biológicas 6,1 13,3 80,6 180
ciências exatas 6,0 8,4 85,6 298
Total 18,2 22,2 59,6 100
# de casos 442,0 539,0 1450,0 2431
Fonte: Carnegie Foundation, Estudo Comparativo Internacional sobre a Profissão Acadêmica.

Esta emergente profissão acadêmica, pois, está longe de se constituir em um grupo homogêneo, ou de tender para um padrão único de organização, atitudes e comportamento profissional. A massificação do ensino superior fez com que se acrescentasse, ao professor tradicional das escolas profissionais, pelo menos três tipos diferentes de profissionais(8). O primeiro, minoritário mas encarnando o ideal de uma universidade reformada e progressista, era o professor pesquisador e cientista, intelectualmente bem formado, gerador de conhecimentos novos, e capacitado para transmitir aos estudantes o segredo do conhecimento criativo, independente e crítico. Para este grupo, a identidade profissional passa por suas áreas de competência e especialização, mas sobretudo pela identificação com uma ética de trabalho baseada na competência individual e na liberdade de escolha de seus temas de ensino, pesquisa e reflexão, um estilo que ficou conhecido, precisamente, como "acadêmico". Ainda que trabalhando em grandes organizações universitárias, e dependendo de recursos públicos para suas atividades, o acadêmico é individualista, só reconhece as hierarquias do saber, e procura criar um espaço em que esta liberdade e individualidade se preservem(9). O individualismo do acadêmico não pode ser confundido com egocentrismo, ou falta de preocupação com a sociedade e seus semelhantes. Ainda que isto dependa, evidentemente, do tempo e da personalidade de cada um, o acadêmico tem, freqüentemente, um sentido profundo de missão, que se manifesta no trabalho institucional, na militância política, no trabalho de escritor, ou no envolvimento em grandes causas de interesse social. Mas ele não é, quase nunca, o "intelectual orgânico", disciplinado e dominado pela inércia das instituições e organizações das quais participa.

O outro extremo é formado por uma nova variedade do antigo professor da escola secundária. No sistemas europeus que a maioria dos países latinoamericanos procurou imitar, a escola secundária encarnava o momento da formação básica e humanística, da transmissão da língua, da cultura e das habilidades da inteligência, com o que os jovens depois se dirigiriam para a formação prática e profissional das escolas superiores. A profissão de professor vinha muitas vezes imbuída destes valores educacionais e culturais, que estiveram presentes nos principais colégios públicos e religiosos até os anos 50 e 60, e que ainda sobrevivem em algumas partes. Ao expandirem e aumentarem de prestígio, no entanto, as universidades retiraram do ensino secundário seus melhores talentos, deixando nele a velha geração, que não fez a transição para o novo sistema, ou pessoas que ficaram à sua margem. A expansão do ensino básico e secundário trouxe às escolas novas gerações de estudantes, menos predispostos à cultura da educação tradicional do que os filhos das elites de anos atrás, e entregues a professores menos qualificados e motivados. É este professor pouco valorizado e motivado, obrigado a multiplicar suas aulas para garantir um salário ao final do mês, ou fazendo do ensino um "bico" sem maior relevância, que vai ocupar aos poucos a periferia do ensino superior em expansão, as escolas isoladas e privadas, na maioria noturnas, sobretudo nas áreas de administração e ciências sociais, e muitas delas resultado de transformações e expansões de antigas escolas secundárias. É difícil falar neste professorado como fazendo parte de uma "profissão", a não ser no sentido estatístico do termo. Não existem padrões profissionais definidos, identidades sociais construídas para dentro e para fora, conhecimentos específicos e estilos de trabalho próprios.

O terceiro grupo, intermediário, é formado pelo professor universitário que consegue um lugar estável e de tempo integral em uma universidade pública, mas não tem as condições de formação e desempenho profissional do primeiro grupo. É possível imaginar que seus valores, e sua ideologia de trabalho, sejam os acadêmicos; sua prática, inevitavelmente, será diferente. Ainda que detentor de um diploma universitário, sua subsistência e sua identidade profissional não passa pelo trabalho em sua área de especialização, nem pela atuação como intelectual ou pesquisador individual e autônomo, mas sim como membro da instituição ou categoria a que pertence, do grupo de iguais com quem convive no dia a dia, e com os quais comparte os problemas, os sucessos, e sobretudo a rotina de cada dia. É neste grupo intermediário que se coloca, de maneira mais clara, os dilemas e problemas centrais dos processos de profissionalização: as tensões entre os ideais do sindicato de ofício e das profissões liberais, a busca da autonomia como afirmação de valores e o entrincheiramento, e, sobretudo, os espaços abertos ou fechados para o crescimento intelectual, o desenvolvimento da competência e o fortalecimento do sentido de missão.

Ainda está por ser feito um estudo aprofundado das ideologias e culturas profissionais desenvolvidas por este grupo de professores universitários, que não é nem a cultura da pesquisa científica, nem da atividade profissional tradicional, e nem da simples venda de serviços educacionais. É inevitável buscar uma conexão, e mesmo uma continuidade, entre o professor universitário dos anos 80 e os jovens universitários dos anos 70. Não seria difícil mostrar como, em áreas como a educação, a história, a geografia, e os estudos sociais de uma maneira geral, o "projeto societal" do movimento estudantil das décadas anteriores se transforma em culturas acadêmicas que mantem a mesma visão crítica da sociedade, agora transposta para livros de textos e programas escolares, e conduzindo a novas formas mais atenuadas de ação coletiva. Agora são os professores, e não mais os estudantes, que associam suas perspectivas profissionais às condições gerais da sociedade em que vivem, e se mobilizam de forma organizada na defesa de seus interesses e na difusão de suas idéias. Esta ênfase nas condições gerais e institucionais da atividade profissional, em contraste com a postura mais individualista dos pesquisadores e dos profissionais liberais, repercute no próprio conteúdo dos cursos e disciplinas, que continuam, em muitos casos, a incorporar a vulgata marxista que predominava nos movimentos estudantis.

Uma indicação desta postura aparece na pesquisa da Carnegie Foundation sobre a profissão acadêmica (quadro 2). Quando perguntados sobre se a liberdade acadêmica é fortemente protegida em seu país, mais de 60% dos professores brasileiros afirmaram que não, contra cerca de 25% dos chilenos e mexicanos. O interessante desta questão é que ela foi formulada em uma época em que os três países gozavam de amplas liberdades políticas e de expressão. Ainda que possa ter havido alguma diferença na forma em que a pergunta foi feita ou entendida em cada país, os resultados expressam, de qualquer forma, uma profunda desconfiança dos professores brasileiros em relação às autoridades de suas instituições, em contraste com os do México e Chile.

Quadro 2: Percentagem (*) de professores que acreditam que a liberdade acadêmica não é adequadamente protegida em seu país (1992-3)
Áreas de conhecimento: Brasil Chile México
Ciências Biológicas 5,6 -0,4 -10
Negócios (**) -10 5,2 -3,1
Educação 19,5 3,5 -5,8
Tecnologia 1,1 -5,7 -1
Artes 7,4 7,2 -27,8
Medicina e Odontologia -5,3 0,1 -2,8
Profissões de saúde (***) -2,4 -0,8 -0,4
Letras 19 -6,4 -2,8
Humanidades -2,1 -1,4 3,2
Ciências Exatas -3,1 2,1 -6,5
Ciências Sociais -3,6 12,1 7,1
Ciências Agrárias -7,1 -6,6 3,8
Vocacionais (****) 7,2 -10 1,4
outras 6 -0,8 6,1
Total 61,6 25,4 27,8
(*) Diferenças percentuais em relação ao total de cada país; (**) inclui administração contabilidade e direito; (***) menos medicina e odontologia; (****) profissões técnicas especializadas, exceto engenharia.

Fonte: Carnegie Foundation, Pesquisa Internacional Comparada sobre a Profissão Acadêmica.

Além das grandes diferenças entre países, existem diferenças sistemáticas entre áreas de conhecimento, que apontam para culturas acadêmicas com sistemas valorativos bastante distintos. No Brasil, são precisamente as áreas mais ligadas à educação que mais se sentem sem liberdade; no Chile e México, são as ciências sociais. Os dados mostram ainda um quadro de atitudes muito mais homogêneas no Chile e México do que no Brasil.

Uma análise mais detalhada dos dados brasileiros mostram que "liberdade acadêmica" não foi entendida pelos entrevistados no sentido clássico do termo, como liberdade de expressão e manifestação de idéias, mas em termos bastante mais concretos, como liberdade de definir os programas dos cursos sem interferências de autoridades universitárias. O quadro 2 mostra como esta atitude varia profundamente conforme a área do conhecimento, e os dados brasileiros indicam variações consistentes conforme o nível acadêmico do professor, a instituição em que trabalha, e o gênero a que pertence (quadro 3). Na Universidade de São Paulo, a melhor do país, 42,8% se queixam de falta de liberdade, contra 80,7% dos professores de outras universidades estaduais, que são as de menor reputação do setor público.

Quadro 3: Brasil, Percentagem de professores que acreditam que não existe ampla proteção para a liberdade acadêmica no país, por gênero e tipo de instituição.
  Universidade de São Paulo Outras universidades estaduais Universidades Federais Universidades Privadas Total
Mulheres 52.1 90.0 65.3 75.8 69.8
Homens 37.8 71.9 47.3 69.6 56.2
Total 42.8 80.7 55.0 71.6 61.6

É bastante claro que estas variações, mais do que uma descrição da realidade, refletem o sentimento de determinados grupos acadêmicos em relação a sua vida profissional, que vão do extremo das mulheres em pequenas universidades estaduais, das quais 90% se consideram sem liberdade, a um terço deste número entre os homens da Universidade de São Paulo. As diferenças de gênero correspondem às diferenças efetivas que existem entre os padrões de carreira de homens e mulheres, com as mulheres se concentrando em áreas menos prestigiadas, e com menos probabilidade de atingir os níveis acadêmicos mais altos.

Mobilidade social e profissionalização

Uma referência à origem social do professorado permite concluir esta breve análise. O surgimento e institucionalização de profissões é geralmente ligado a processos de mobilidade e ascensão de determinados grupos na sociedade, e isto vale também para a profissão acadêmica. No Brasil, cerca de 40% dos professores são mulheres, um dado importante se pensamos que, até a década de 60, era pequeno o número de mulheres que seguiam cursos superiores. Um terço dos professores vêm de famílias cujos pais possuiam educação superior, mas os pais de outro terço chegaram no máximo ao 4 ano da antiga escola primária.

As diferenças por sexo correspondem, em parte, às diferenças de idade e de "status" - mais de 80% dos professores titulares, mais velhos, são homens, contra 60% dos adjuntos e associados, e 55% dos assistentes, mais jovens. As mulheres não somente são mais jovens do que os homens na amostra, como que iniciam sua atividade acadêmica quase dois anos mais cedo. Elas tendem a permanecer, preponderantemente, no nível do mestrado, enquanto que o doutorado tem forte predomínio de homens; dedicam-se proporcionalmente mais ao trabalho de tempo integral do que os homens; e ganham significativamente menos. Em termos de áreas de conhecimento, as mulheres se concentram fortemente na área de humanidades e de educação, enquanto que as engenharias são basicamente masculinas (quadro 4)(10) Todas estas indicações, e mais a predominância relativa de mulheres nas universidades federais e estaduais não-paulistas, sugerem a existência de um professorado feminino profissionalizado mas de qualificação média, concentrado nas humanidades e na educação, trabalhando em regime integral nas universidades públicas, relativamente ausentes tanto do extremo mais acadêmico (doutorados, posições funcionais de titular) quanto dos extremos menos profissionalizado (professores de tempo parcial, setor privado), e ganhando significativamente menos do que os homens.

Quadro 4: Mulheres professoras por área de conhecimento (diferenças percentuais em relação à média nacional)
  Brasil Chile México
Área de conhecimento
Ciências Biológicas 14,9 -6,8 11,1
Negócios -12 -0,4 -6,6
Educação 25,6 14,3 14,4
Tecnologia -17,4 -18 -18,4
Artes -10,4 9,8 31,1
Medicina e Odontologia -16,3 5,1 6,1
Profissões de saúde 22,5 21,1 20,8
Letras 38,4 15 52,5
Humanidades 5,7 2,6 6,1
Ciências Exatas 1,9 -6,7 -10,3
Ciências Sociais -7,5 -16,6 0,1
Ciências Agrárias -12,1 -7,8 -14,5
vocacionais -19,4 -21,2 -8,7
outras 12 8,1 4,9
Total 39,4 32,8 35,6

Os dados do México são bastante parecidos(11). Dos professores entrevistados pelo Survey da Carnegie Foundation, 42.3% tinham país, e 50.3% mães, com educação primária ou menos. Quase 50% dos pais dos professores das instituições privadas, e mais de 70% dos das instituições públicas, não têm país com educação superior. Em sua maioria, professores de origem social mais baixa são incorporados pelas universidades e institutos tecnológicos públicos, enquanto que os de escolaridade mais alta tendem a ser incorporados a instituições privadas. As instituições privadas se concentram em atividades áreas de negócios e tecnológicas, e não oferecem as mesmas condições de estabilidade profissional que as áreas públicas.

Funcionários

Além de estudantes e professores, existe um terceiro ator de importância crescente nas universidades latinoamericanas, que são os servidores administrativos. As universidades latinoamericanas não se organizam como nos Estados Unidos, com um forte corpo administrativo e gerencial com poderes superiores ao dos próprios professores, mas sim na tradição européia, em que todos os poderes são concentrados em órgãos acadêmicos colegiados. No passado, estes colegiados eram formados exclusivamente por professores titulares, ou catedráticos. O movimento da Reforma de Córdoba propôs o governo tri- partite, com poderes iguais para representantes de professores, alunos e ex-alunos no governo das universidades. Em geral, os ex-alunos não assumiram este papel, e foram sendo substituídos, nos anos mais recentes, por representantes dos funcionários administrativos, que, mesmo sem as funções mais especializadas das universidades norte americanas, começaram a aumentar em número nas últimas décadas nas universidades públicas de toda a região.

O crescimento do pessoal administrativo das universidades é em parte uma decorrência da ampliação e massificação do sistema como um todo, mas é também um resultado específico do crescimento das universidades públicas como setor das burocracias governamentais, com sua tendência ao crescimento desordenado. O quadro 5 mostra o número de servidores administrativos em relação ao número de docentes e de estudantes nas instituições de ensino superior brasileiras, e dramatiza o contraste entre os principais sistemas públicos, o federal e o estadual paulista, e as instituições privadas e municipais, com as demais instituições estaduais ocupando uma posição intermediária.

Quadro 5: Brasil, Proporção de servidores administrativos, alunos e professores nas instituições de ensino superior (*).
  Alunos por servidor servidores por professor alunos por professor
Instituições Estaduais Públicas (menos São Paulo) 19,37 1,36 11,58
Instituições Estaduais de São Paulo (**) 4,63 2,73 6,24
Instituições Federais 4,25 1,94 7,93
Instituições Municipais 46,11 0,55 17,57
Instituições Privadas 34,77 0,74 17,01
(*) Estabelecimentos de 100 ou mais estudantes matriculados. Médias ponderadas pelo número de alunos matriculados em cursos em cada estabelecimento. (**) Incluindo as escolas técnicas estaduais. Fonte: Elaborado a partir de dados do Serviço de Estatística da Educação e Cultura para 1993.

É impossível dizer, somente por estes números, se o número de funcionários administrativos das universidades públicas é excessivo. Os hospitais universitários, que prestam serviços â população como um todo, são o principal empregador de pessoal auxiliar e administrativo na maioria das instituições públicas brasileiras. De qualquer forma, os funcionários administrativos, organizados em sindicatos filiados â Central nica de Trabalhadores, são uma presença nova e importante nas universidades brasileiras. Em muitas delas, eles participam com um terço dos votos nos colegiados e em eleições para reitores, e têm sido decisivos em muitos casos. Várias universidades brasileiras já aceitam o principio de que o Reitor não precisa necessariamente ser um professor, e muito menos um professor qualificado, mas pode ser também um funcionário administrativo, ou até mesmo um aluno eleito por um processo de eleições diretas.

Um exame superficial do quadro 5 é suficiente para mostrar que as universidades públicas e privadas vivem realidades completamente distintas entre si, e profundamente diferentes,. também, do que era a situação vinte anos atrás. Se a qualidade do ensino deve ser melhorada, se os recursos públicos devem ser utilizados de forma mais eficiente, se os conteúdos devem ser atualizados e modernizados, tudo isto s pode ser feito tomando em conta esta nova realidade, e os atores que participam e são afetados por ela. O tema das políticas de reforma, na perspetiva deste final de século, é objeto do próximo capítulo.



Notas

1. Brunner, 1986, p. 279.

2. Este monopólio é bem caracterizado por Guillón de Albuquerque, 1977.

3. Citados por Michelena e Sontag, 1984, e retomados por J. Michelena, 1986, p. 291.

4. Germán Campos, 1986.

5. O futebol, como grande espetáculo, pelo menos no Brasil, é sobretudo um fenômeno de jovens de classe mais baixa, da mesma maneira que os bailes "funk". Já o vôlei, basquete e jogos de praia têm muito mais participação da juventude universitária.

6. O tema do grande número de estudantes universitários que trabalham já havia sido objeto da atenção do trabalho de Rabello em 1973, e foi retomado recentemente por Cardoso e Sampaio, 1994.

7. Albuquerque, 1977.

8. Esta tipologia é desenvolvida, com dados do estudo da Carnegie Foundation sobre a profissão acadêmica no Brasil, em Schwartzman e Balbachevsky, 1993. Para o México, ver Gil Antón, 1994.

9. Veja, para uma descrição extrema, "Portrait d'un biologiste en capitaliste sauvage", em Latour, 1993.

10. As ciências sociais são muito menos femininas do que geralmente se supõe. Isto se explica pelo fato de que, nestas tabulações, as ciências sociais estão definidas em sentido estrito (sociologia, ciência política, antropologia), com a história entrando na categoria de humanidades, e as demais áreas sociais tendo uma categorização à parte.

11. Os dados são de Antón Gil, 1994.