Entrevista à jornalista Ciça Guedes, de O Globo, sobre o livro As Causas da Pobreza (Rio de Janeiro, FGV, 2004)

Este é o texto integral da entrevista concedida ao jornal O Globo e publicada, com cortes, na edição de 21 de março de 2004

Ciça Gueges - O senhor afirma que a pobreza e a exclusão social tornaram-se temas dominantes das ciências sociais. Até o fim do século passado, os temas dominantes referiam-se ao desenvolvimento econômico, à modernização etc. O que podemos esperar então, para os próximos 20 anos, da produção científica que virá daí? Que a questão ao menos perca sua face moral e até religiosa?

Simon Schwartzman - Na verdade, os temas da pobreza e da exclusão eram muito importantes nas ciencias sociais no final do século XIX, mas acabaram ficando em segundo plano ante a noção de que, com o desenvolvimento econômico e a modernização, eles desapareceriam naturalmente. Isto não aconteceu, e agora eles voltam à tona, envolvidos, como sempre ocorre com estas questões, por fortes conotações morais e religiosas, constituindo o que hoje se denomina a "agenda dos direitos humanos". Este é um desenvolvimento importante, mas é necessário voltar a conectar a temática dos direitos com a temática da constituição de uma ordem econômica, política e social adequada, e é isto que as ciencias sociais devem buscar. Em outras palavras, é importante se preocupar com os problemas da pobreza e da exclusao, mas não basta se indignar com eles, é preciso também entender porque eles ocorrem, e que instituições podem ser criadas e desenvolvidas para enfrentá-los.

Ciça Gueges - O senhor afirma que a mudança não é somente conceitual, mas influencia inclusive o direcionamento de verbas para pesquisas de organismos nacionais e internacionais. Isso não representa um risco para o pensamento científico na área de Humanas? Não haveria uma excessiva concentração de pesquisas nesses temas?

Simon Schwartzman - O problema é a separação das duas coisas. No passado, havia uma tendencia a pensar na pesquisa como uma atividade pura, solta no ar, separada de suas aplicações e resultados. Isto provocou uma reação igualmente negativa, que foi a de considerar a pesquisa de alto nível como inútil, e concentrar os recursos e a atenção em atividades de aplicação mais imediata, que pudesse obter resultados imediatos. Isto tambem não funciona, porque não basta ter boas intenções, é necessário também ter conhecimentos e competência. O Brasil precisa fortalecer, e muito, sua pesquisa de alto nível em temas como educação, saúde pública, pobreza, violência, vida urbana, família, vida comunitária, sem falar, naturalmente, na economia e suas instituições. Só conseguiremos enfrentar estes problemas se tivermos os conhecimentos necessários para isto, que incluem, necessariamente, a familiaridade com o que está acontecendo e sendo feito em outras partes do mundo.


Ciça Gueges - O que é mito e o que é verdade quando se relaciona a pobreza às questões como a racial e a educacional?

Simon Schwartzman - As correlações entre cor, baixa educação e pobreza são muito claras e indiscutíveis. Os menos educados ganham muito menos do que os mais educados, os níveis educacionais da população preta e parda (para usar a classificação do IBGE) são muito mais baixos do que o da população branca, e, quando a educação é semelhante, a situação dos pretos e pardos é pior. O que é menos claro é como lidar com isto. Em relação à educação, me parece que problema fundamental é fazer com que as escolas sejam capazes de suprir e compensar as deficiencias culturais e educacionais e os alunos de baixa renda, brancos ou pretos, carregam. Isto se faz ensinando os professores a ensinar e a lidar com alunos de diferentes condições sociais, melhorando a qualidade dos materiais pedagógicos, e apoiando as famílias de baixa renda que necessitam de apoio. Em relação à questão racial, existem certamente problemas de discriminação que tornam a situação mais difícil do que ela é, mas não acredito que a condição de desvantagem da população negra e parda se deva exclusivamente, ou principalmente, à discriminação. Em outras palavras, é importante desenvolver ações específicas em favor da população mais pobre, seja qual for a cor da pele, e lidar com problemas de discriminação quando eles sejam identificados.

Ciça Gueges - E com relação ao planejamento familiar? O senhor acredita que o Brasil deva implementar essa política para reduzir as extremas desigualdades? Ou, posto da forma inversa, seria possível reduzir as desigualdades sem uma política de planejamento familiar consistente?

Simon Schwartzman - não me parece que este problema seja relevante. Todos os dados mostram uma dramática redução das taxas de natalidade em todos os grupos sociais do país nos últimos anos. As familias, e particularmente as mulheres, precisam ter seus direitos reprodutivos assegurados e protegidos, e poder decidir quantos filhos querem ter, mas não existe um problema social derivado de natalidade excessiva, como muitos pensavam até algum tempo atrás.


Ciça Gueges - O livro tem um capítulo dedicado à questão das estatísticas. No início do governo Lula ganhou destaque a discussão entre o número de famintos apontado pelo Ipea e o do IBGE. Se a questão já é complexa em se tratando de um país, como os organismos internacionais estão trabalhando para definir financiamentos a pesquisas e à implementação de ações, se não há estatísticas, se não confiáveis, pelo menos padronizadas?

Simon Schwartzman - As estatísticas sociais brasileiras sao de excelente quallidade, mas existem muitas maneiras diferentes de estabelecer as chamadas "linhas de pobreza", o que é sempre uma decisão política, e não meramente técnica. Alguns economistas que se dedicam ao tema têm defendido a necessidade de definir uma linha oficial de pobreza para Brasil, que teria que optar por uma das diferentes metodologias que tem sido propostas, e que tem levado à grande variação do número de "famintos" e "indigentes" a que voce se refere. A principal vantagem seria que, com isto, o governo poderia estabelecer metas, e depois verificar se conseguiu cumprir ou não as metas. Eu tenho dito várias vezes que não concordo com isto. A pobreza varia de lugar para lugar, é diferente no campo e na cidade, entre jovens e entre velhos, no Nordeste e no Sudeste, e não me parece que ajudaria estabeler um critério arbitrário para definir quem fica abaixo ou por cima de uma medida estatística qualquer, por mais bem elaborada que seja, como critério para políticas de governo. É uma situação semelhante à das estatísticas de emprego, em que o IBGE e a Fundação SEADE há anos publicam números diferentes, resultado de diferentes conceitos e metodologias. Seria muito bom poder unificar estas duas pesquisas, evitar superposição e não continuar confundindo os não especialistas. Mas o que precisamos não é um número único, e sim entender que, por de trás das palavras "emprego" ou "desemprego", existem muitas realidades diferentes que precisam ser entendidas - trabalho regular, trabalho informal, trabalho precário, trabalho intermitente, desalento, e assim por diante

Ciça Gueges - A que o senhor atribui o desempenho aquém do esperado do Fome Zero, que foi apresentado pelo governo Lula, no início, como a principal ação na área social e não decolou?

Simon Schwartzman - Examinando os documentos iniciais do programa, voce vai ver que ele era ambicioso demais, já que tinha a pretensao de ser quase que um governo dentro do governo, cuidando não só da distribuição de alimentos, mas tambem de subsídios à agricultura, políticas de importação, exportação e comercialização de produtos agrícolas, da educação dos hábitos alimentares, das políticas de abastecimento, e muitas coisas mais, alem de um grande projeto de mobiização da sociedade para este trabalho. É dificil imaginar que semelhante projeto de governo paralelo, com sua base própria de sustentação, pudesse frutificar. Além do mais, faltou um diagnósitco adequado da situação, e um conhecimento dos meios mais adequados para enfrentá-la. O Brasil tem problemas de pobreza e, quase certamente, de carencias alimentares específicas, mas não temos um problema de fome em grande escala. Nosso problema é de falta de dinheiro, educação e emprego, e não de falta de comida.

Ciça Gueges - O historiador Boris Fausto disse que a proposta de uma espécie de CPMF mundial para combater a fome é ingênua e demagógica. O senhor acredita que exista alguma forma de atuar de forma coordenada em âmbito internacional contra a fome e a miséria?

Simon Schwartzman - Nas últimas décadas, os países mais ricos, a começar pelos Estados Unidos, diminuiram muito sua ajuda aos países mais pobres, e o pouco que resta nem sempre é utilizado da forma mais adequada. Outros países, como os da Escandinávia, mantiveram seus programas de ajuda, mas a escala é inevitavelmente menor. Existem muitas explicações para isto, uma delas sendo a percepção de que, quase sempre, o dinheiro para a ajuda externa acabava caindo em mãos de governos corruptos e oligárquicos, e nunca chegavam aos que mais necessitavam. Nós conhecemos bem isto, com mais de um século da indústria da seca. Uma das melhores maneiras de ajudar as populações mais carentes nos países mais pobres é através de organizações internacionais que, ao longo dos anos, desenvolveram grande experiencia neste trabalho, como por exemplo a UNICEF, a Cruz Vermelha Internacional, o Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados e a Organização Mundial para a Saude. O melhor caminho para revigorar os fluxos de ajuda internacional seria pelo fortalecimento destas agencias e do sistema das Nações Unidas como um todo, o que não é facil, dado o unilateralismo que é hoje a marca da política externa dos Estados Unidos e de vários outros países. A "CPMF mundial" é obviamente impraticavel neste momento, já que não existe nenhum mecanismo de acompanhamento e controle dos fluxos internacionais de capital, e significaria criar um inédito imposto internacional sobre firmas privadas. Eu entendo a proposta do governo brasileiro nesta linha como, simplesmente, uma forma de marcar posição.

Ciça Gueges - Gostaria apenas de incluir mais uma questão, porque está gerando um grande debate hoje no Brasil: a das cotas para estudantes. A UNb anunciou que vai decidir quem é negro ou não pela foto da ficha de inscrição. E virou (como tudo em nosso país) uma polêmica. O que o senhor ahca do sistema de cotas? Teria efeito na redução da pobreza a médio prazo?

Simon Schwartzman - Sobre cotas na universidade, existem duas questões. Primeiro, o problema da desigualdade não começa na universidade, e sim muito antes, na escola básica, que discrimina no dia a ida ao não educar de forma adequada as crianças de origem mais humilde, aonde estão a maioria dos afrodescendentes e dos descendentes das nações indígenas. Para abrir lugares nas universidades para pessoas que, por estas razões, não conseguiram adquirir uma boa educação média e não conseguem passar nos vestibulares, seria necessário desenvolver todo um trabalho de apoio e atendimento a estas pessoas, na forma de cursos adicionais, orientação pessoal, recursos financeiros, etc.,. Se não, elas terminam ficando pelo caminho, ou recebendo diplomas sem nenhum valor. Uma política de ação afirmativa que não venha acompanhada destas ações seria puramente demagógica. Segundo, a ação afirmativa deve se dirigir a pessoas carentes, líderes comunitários com potencial de desenvimento, pessoas em determinadas regiões, etc., ou a grupos raciais? Me parece um equívoco usar raça como critério, porque a população brasileira é uma grande mistura de pessoas de todas as origens, e a identidade cultural, racial, religiosa, e mesmo sexual as pessoas é uma decisao de cada um. Seria um grande retrocesso atribuir a autoridades de governo, ou a quem quer que seja, o direito de decidir quem é branco, pardo, índio ou negro, usando fotos, testes de DNA, ou o que for. O problema das desvantagens sociais da população de origem negra e indígena é real, mas a solução das cotas me parece completamente equivocada. Aliás, acredito que uma boa parte da população brasileira nas regiões Norte e Nordeste tem sangue indígena, e não entendo porque ninguem falou até agora em cota para este grupo, que não está em stiuacao melhor do que os de origem africana. <