PERSPECTIVAS
POLÍTICAS PARA O BRASIL: PLANEJAMENTO E RESPONSABILIDADE Simon
Schwartzman
Trabalho apresentado no Simpósio sobre 'Perspectivas
Políticas do Brasil Contemporâneo" na XXVII Reunião Anual da Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência, Belo Horizonte, Julho de 1975.
1. É possível - e necessário - prever o futuro?
Prever o futuro é tarefa difícil, tanto para as ciências sociais quanto
para qualquer outra área do conhecimento humano. As dificuldades que temos
para saber como o sistema político brasileiro será dentro de 2 ou 5 anos
não são maiores do que as do serviço de meteorologia em prever se choverá
na semana que vem, ou dos centros de sismologia em saber quando e se ocorrerá
o terremoto que destruirá São Francisco. Normalmente, previsões só são possíveis
em sistemas estáveis e de mecanismos mais ou menos conhecidos - o movimento
dos astros, os ciclos biológicos - ou quando condições de ceteribus
paribus são criadas e mantidas artificialmente. Fora isto, a predição
só é possível quando existe um profundo conhecimento de séries históricas
ou relações estatísticas dotadas de estabilidade comprovada - como na área
da demografia, ou do comportamento político eleitoral nos Estados Unidos
- ou então quando o preditor, ou previsor, tem um "faro" ou uma
"intuição" que derivam não de um conhecimento sistemático das
coisas, mas antes de uma familiaridade e intimidade tal com o fenômeno que
o permite conhecê-lo antes mesmo de conceituá-lo.
É claro que entre a previsão segura do eclipse, a previsão probabilística
do comportamento eleitoral e a previsão política intuitiva do "insider"
existem graus diversos de acerto e mesmo de conhecimento antecipado da probabilidade
de erro. Mas todas estas formas de predição são certamente superiores à
dos que contam somente com conceitos e teorias sobre relações entre coisas,
mas não necessariamente sobre o dia a dia dos acontecimentos. Não é por
acaso, por exemplo, que um exercício de tipo "Delphi" sobre o
futuro político brasileiro, realizado em 1972, mostrou que os jornalistas
e comentaristas políticos foram muito mais capazes de antever os desenvolvimentos
da política brasileira nos anos posteriores que os cientistas políticos
mais acadêmicos.(1)
Seria sem dúvida muito útil se essa capacidade intuitiva e vivificada do
comentarista em antever o futuro fosse traduzida em um conjunto de dados,
conceitos, relações, e modelos que permitissem a outra pessoa, percorrendo
o mesmo caminho, chegar às mesmas conclusões. É esta, na realidade, a diferença
entre a intuição e o conhecimento explícito, entre a atividade ensaística
e a atividade dita "científica": a intersubjetividade, e possibilidade
de qualquer pessoa repetir, passo a passo, os mesmos caminhos do outro.
Mas incorreria em erro sério quem pensasse que o papel do analista político,
seja ele mais ou menos "científico", seja simplesmente o de antever
o futuro. Esta é uma parte da história, e nem sempre a mais importante.
O mais importante é mostrar como este futuro faz parte de um universo de
possibilidades, de um conjunto de alternativas possíveis, cada qual com
suas implicações para a vida das pessoas que podem, hoje, influenciar no
que acontecerá amanhã. Muitas das "previsões" que hoje abundam
na literatura especializada são, na realidade, possíveis cenários cujas
chances de ocorrerem são alteradas, muitas vezes, pela própria existência
da "previsão". Talvez o exemplo mais notório destes últimos anos
seja o trabalho do Clube de Roma, Os Limites do Crescimento, que
encontra nos esforços generalizados para negar suas projeções catastróficas
a melhor justificação para sua existência.
É claro que é possível, dentro de certos limites, arriscar previsões sobre
como será o sistema político brasileiro dentro de 2 ou 5 anos - se o regime
federativo será ou não eliminado, se os municípios ganharão mais força e
autonomia local, se o papel do estado aumentara ou diminuirá, se o próximo
presidente será civil ou militar, se haverá ou não uma nova Constituição.
Algumas destas questões são mais fáceis de prever que outras, e em cada
uma delas será possível utilizar razões mais ou menos claras e explícitas
que justifiquem as previsões. Este tipo de atividade intelectual é também
necessário - é importante saber, mesmo imprecisamente, quais coisas têm
maior ou menor chance de ocorrerem, para sabermos se precisamos nos preocupar
mais ou menos com elas. Mas, antes de mais nada, é necessário saber quais
as perguntas a serem feitas, qual o conjunto relevante e significativo de
alternativas com as quais devemos elaborar nossas previsões e preocupações.
É a isto que o resto deste texto se refere.
2. Os dois modelos de organização política e sua crítica
Existem muitas maneiras de pensar e listar as formas possíveis de organização
política que um país pode assumir, e não há dúvida que qualquer dicotomia
opera uma simplificação bastante forte do universo de possibilidades. No
entanto, pensar em polaridades ajuda a distinguir o importante do secundário,
e ver com mais clareza as alternativas principais, a partir das quais as
outras características possíveis do sistema de organização política são
acrescentadas . Eu diria, pois, que os problemas políticos que o Brasil
enfrenta hoje têm a ver com um problema de definição entre dois modelos
alternativos básicos de organização político-social, que não são peculiares
ao Brasil mas compartidos por todas as sociedades políticas organizadas
contemporâneas.
O primeiro destes modelos corresponde ao do sistema político representativo.
Ele supõe uma sociedade formada por agentes livres, que se organizam conforme
seus interesses, e que escolhem o regime político de sua preferência, que
realiza os objetivos de seus eleitores. O segundo modelo, em contraposição,
supõe uma sociedade organizada como um grande organismo, cada parte desempenhando
sua função, sob o comando de um Estado que corporifica o interesse coletivo,
e define o lugar de cada um. O resultado final de cada um destes modelos
ideais é uma sociedade harmônica, feliz, em que cada qual está contente
com o lugar que lhe cabe, e em que o governo atua no interesse geral. Na
prática, cada um tem críticas severas ao outro, no nível conceitual e no
nível histórico.
A crítica do segundo modelo ao primeiro consiste, essencialmente, em mostrar
como a democracia direta é impossível e como a delegação do poder termina,
na prática, ou em transmitir poder e influencia à elite dirigente, que nunca
os devolve, ou, na sua falta, em um estado de caos e desorganização social
em que nenhuma consideração organizada pelo bem comum é possível - o homem
é o lobo do homem. Na realidade os sistemas políticos representativos não
passariam de fachadas baseadas em um igualitarismo político formal que ocultaria
diferenças reais e irredutíveis de riqueza e poder, aliadas a uma incapacidade
congênita do poder central em agir de forma ordenada em defesa dos interesses
sociais mais amplos.
A crítica do primeiro modelo ao segundo é a crítica ao totalitarismo. As
pessoas devem ter liberdade de escolher sua posição na sociedade, que não
é um organismo no qual o destino de cada célula , ou parte, já venha previamente
definido. O Estado não tem como se arrogar o direito de falar em nome da
sociedade sem um mandato expresso e revogável. Na realidade os sistemas
políticos baseados neste modelo encobririam de fato formas drásticas e muitas
vezes brutais de dominação de uns grupos sobre outros, e as ideologias de
bem comum e do interesse geral não passariam de justificações ou racionalizações
de situações de dominação.
3. Planejamento Econômico e Regime Político
Este debate aparece, hoje em dia, principalmente ao redor do tema da planificação.
Por muitos anos, até certamente o "New Deal" norte-americano dos
anos 30, o planejamento da atividade econômica e social era visto como distintivo
dos países socialistas ou fascistas, enquanto que os regimes democráticos
ocidentais ostentavam uma organização social que atribuía um alto valor
à ação expontânea dos diversos setores e grupos sociais, à livre competição
entre interesses - enfim, ao ideal do laissez-faire e aos salutares mecanismos
da livre competição de interesses.
Com a necessidade de implantação de políticas governamentais anti-cíclicas,
antes da segunda guerra, e mais tarde com o surgimento da preocupação com
o desenvolvimento econômico dos países subdesenvolvidos, o planejamento
passou a ser utilizado também no ocidente , ainda que com muita cautela
e resistências. Enquanto que, na linguagem das Nações Unidas, os países
socialistas passaram a ser conhecidos como "países de economia centralmente
planificada", no ocidente entraram em voga formas mais atenuadas de
planificação - planejamento indicativo, supletivo, corretivo, sempre que
possível à margem ou em auxílio da iniciativa privada e da lógica do mercado,
aparentemente dominante. São típicas desta época, por exemplo, as análises
de Albert Hirschman sobre "reformongering", um processo complicado
e custoso de implantação de sistemas de planejamento através de um jogo
de coalizões cambiantes entre diversos grupos de interesse (o exemplo brasileiro
é a criação da SUDENE, na época do governo Kubitschek).
É somente no final da década de 50 e nos anos 60, com o fracasso político
de um grande número de democracias liberais em países do terceiro mundo,
que o planejamento centralizado começa a ser assumido e adotado de forma
plena em países fora da órbita socialista. No Brasil, é criado o Ministério
do Planejamento, mais tarde Secretaria, e nenhum governo que se preze pode
deixar de ter seu plano trienal , qüinqüenal ou decenal de desenvolvimento.
A existência de um Ministério e de uma ideologia de planeja mento centralizado
não significa, evidentemente, que exista um processo efetivo e bem sucedido
de planejamento. Existem dificuldades de toda ordem, de tipo econômico,
técnico e político pelas quais há sempre uma distância, mais ou menos significativa,
entre o que os planos anunciam e o que eles efetivamente realizam, ou entre
intenções explicitas e ações concretas e não explicitadas. Mas o importante
é que a ideologia do planejamento centralizado e abrangente - "comprehensive"
- parece ser universal, dando assim legitimação, aparentemente, ao segundo
modelo de organização político-social a que nos referíamos mais acima.
É possível discutir longamente sobre a factibilidade ou não do planejamento
centralizado em países como o Brasil, uma discussão importante e que, na
realidade, já vem sendo feita com bastante propriedade(2).
Por exemplo, parece haver uma grande dificuldade em estabelecer sistemas
de planejamento em situações onde a inexistência de mecanismos redundantes
de execução e implementação de decisões governamentais torna qualquer atividade
organizada e planejada a longo prazo altamente sujeita a falhas e soluções
de continuidade.
Pobreza, escassez, incerteza, falta de uma base adequada de informações,
falta de quadros técnicos competentes, são todos fatores que aumentam as
dificuldades do planejamento abrangente em países pobres, e que tendem a
se tornar ainda mais agudos quando recursos escassos são dirigidos à criação
de sistemas complexos, caros e geralmente ineficientes de planejamento centralizado.
Desta forma ,dizem os críticos , a implantação de um sistema de planejamento
abrangente deixa de ser a solução para o problema, para transformar-se em
mais um dos problemas do subdesenvolvimento.
Talvez o principal defeito de generalizações tão amplas quanto estas, sugeridas
por Wildawski e Caiden, é que, apesar de basicamente corretas, elas não
tomam em conta as possibilidades de variação do fenômeno. Excluídos os países
desenvolvidos, aonde o planejamento é mais fácil , menos urgente e menos
arriscado do que nos países subdesenvolvidos; excluídos os países do bloco
socialista, de controle total da Economia e da sociedade pelo Estado todos
os demais países surgem como reunidos no mesmo bolo: Argentina, Ceilão,
Chile, Filipinas, Ghana, Brasil, índia, Peru... Não há dúvida que, em todos
eles, os resultados do planejamento tendem a ficar aquém das promessas e
propósitos de seus propositores; más também existem diferenças que são importantes
para quem, apesar de tudo, prefere a racionalidade à irracionalidade na
condução da coisa pública.
Uma das variáveis que certamente explicam diferenças se refere ao nível
de recursos econômicos, institucionais e humanos dos países. No entanto,
é sem dúvida paradoxal que países latino-americanos relativamente mais ricos,
como a Argentina, o Chile e o Uruguai, tenham fracassado em suas tentativas
de implantar uma economia racional e planificada. Talvez importe menos a
riqueza relativa do que a absoluta, o que explicaria o relativo sucesso
do planejamento em países como Brasil e México; mas como explicar a Índia,
a Indonésia e o Paquistão?
É óbvio que é indispensável, aqui, tomar em consideração variáveis de tipo
especificamente políticas, que tem a ver com os dois modelos indicados mais
acima. A opção por um dos dois modelos de organização política em um país
não é simples função de preferências subjetivas das pessoas, e nem tem a
ver com "culturas políticas" ou "estilos nacionais"
mais ou menos autoritários, mais ou menos individualistas, etc., dos diversos
países. Na realidade, ela tem a ver com características estruturais bastante
específicas referidas à forma em que a sociedade nacional está organizada
para exploração de recursos econômicos e para a administração do poder nacional.
Esta estrutura se estabelece de forma historicamente discernível, e tem
a ver com fatores tais como o vínculo do pais com o sistema econômico internacional,
seu padrão de colonização, que por sua vez determina sua herança colonial,
e as principais divisões sociais, econômicas, étnicas e territoriais herdadas
historicamente e que se projetam no presente e no futuro. São a combinação
destes fatores, e as formas pelas quais o pais veio resolvendo ou deixando
de resolver os conflitos e dilemas políticos e sociais de sua história,
que determinam, em última analise, às opções políticas contemporâneas e
sua opção pelo primeiro, pelo segundo ou, mais freqüentemente, por alguma
forma especial de combinação dos dois modelos de organização política indicados
acima.
A importância e atualidade desta discussão é que ela se refere diretamente
ao tema da abertura, ou distensão política, que tem sido objeto de intensa
especulação e discussão por todos os que se preocupam com o sistema político
brasileiro. Pareceria haver uma antinomia entre distensão, que implica maior
participação de grupos e setores sociais no processo político, e planejamento
centralizado, que encontraria na "política", ou pelo menos na
política concebida em moldes mais tradicionais, um obstáculo para sua efetivação.
O pano de fundo histórico é indispensável, e o que se segue é um breve resumo
destes antecedentes, que estão desenvolvidos em maior detalhe em outra parte.(3)
4. As origens históricas: um sumário
Talvez o mais notável da história antiga do Brasil tenha sido sua capacidade
de se manter como uma unidade política cobrindo mais de oito milhões de
quilômetros quadrados, enquanto que o Império Espanhol se desintegrava em
duas dezenas de repúblicas independentes. A experiência colonial, no entanto,
de 1500 a 1822, não foi sempre a de uma administração totalmente centralizada
e unificada(4). Em 1534 o país foi dividido
em 12 capitanias hereditárias, sobre as quais um Governo Geral foi mais
tarde estabelecido. De 1621 a 1774 o país estava dividido em dois Estados,
o do Maranhão e o do Brasil. Das 11 capitanias do Estado do Brasil, cinco
ainda tinham um donatário privado ou Capitão, em 1640, enquanto que as demais
tinham sido readquiridas pela Coroa portuguesa. Por razões geográficas o
Norte e Nordeste Brasileiros estavam muito mais próximos da África e mesmo
da Europa do que do Sul. Com o surgimento da economia açucareira no Nordeste,
o Sul foi por muito tempo abandonado a si mesmo, com a exclusão de alguns
estabelecimentos militares destinados a manter à distância outras potências
marítimas da época. Apesar disto, um núcleo de colonização próspero e bastante
independente se estabelece na área que é hoje São Paulo, de onde partiam
expedições para o interior na busca de ouro e escravos. Um estabelecimento
militar é criado no extremo sul, à beira do Rio de Prata e em frente a Buenos
Aires: é a Colônia de Sacramento. Finalmente, já adentrado o século XVIII,
a descoberta do ouro em Minas Gerais consegue atrair o centro de gravidade
do país para o Sul, com o estabelecimento da administração colonial centralizada
no Rio de Janeiro.
Existem razões positivas e negativas que explicam a manutenção da centralização
nacional apesar das dificuldades. Do ponto de vista positivo, José Murilo
de Carvalho demonstrou a existência de uma elite homogênea e fortemente
inter-relacionada, educada em Coimbra, que tomou a si a tarefa de organização
do novo Estado.(5) Do ponto de vista negativo,
parece certo que, na época da independência, nenhuma outra região ou província
era suficientemente próspera ou poderosa para competir com o Rio de Janeiro,
que vinha de se beneficiar de quase um século de administração do fluxo
do ouro entre as áreas de mineração no interior e à Europa. Além disto,
a independência brasileira é precedida pela vinda da família real e a administração
superior portuguesa em 1808, sob proteção britânica. Em 1822, quando D.
Pedro declara a independência, ele obtém, entre outras coisas, a adesão
da esquadra portuguesa estacionada no Brasil; e desta forma o país já começa
sua historia independente com uma organização política e militar relativamente
complexa, sem nenhum outro grupo ou setor capaz de ameaçar seu poder. É
curioso como, apesar da independência brasileira ter sido, essencialmente,
um golpe de estado que assegurava o predomínio de setores portugueses sobre
o país, a única resistência partiu de alguns núcleos portugueses na Bahia;
uma disputa "em família" pelo controle que se resolveu sem maiores
problemas. É só mais adiante que surgem conflitos com grupos mais radicados
no Brasil, levando à abdicação de D. Pedro (que mais tarde viria a ser Rei
em Portugal) e aos conflitos da regência, aonde se sobressai a Revolução
Farroupilha, talvez a tentativa mais seria de secessão pela qual o país
tenha passado. Com a maioridade, no entanto, a consolidação territorial
do país já estava assegurada.
Que conclusões podemos extrair desta história? Primeiro, que a integração
política nacional não é o resultado da federação de regiões independentes
mas, ao contrário, a conseqüência da imposição de uma administração centralizada
sobre regiões muitas vezes dotadas de veleidades separatistas. Segundo,
que a tentativa mais séria de independência regional se origina no Sul,
a região que estabeleceu uma tradição militar autônoma ao longo de intermináveis
conflitos com a América Espanhola. Esta tradição militar se prolonga no
século XIX com a guerra contra Rosas e a do Paraguai, mantendo acesa a tradição
militar do Rio Grande. A autonomia e mesmo insubordinação do Rio Grande
em relação ao poder central foi sempre grande, só sendo reduzida quando,
com a República, o Sul passa a ter um papel central na política nacional,
tornando-se assim um fator adicional importante para a integração regional
e centralização política do país.(6)
Já temos pelo menos dois componentes importantes que contribuíram, historicamente,
para a centralização política nacional, a administração civil e a Marinha
portugueses e o exército, formado principalmente nas guerras sulinas. Um
terceiro componente foi a decadência econômica das elites no Norte e centro
do país, que tratavam de sobreviver as crises da economia do açúcar e do
ouro através de um processo de subordinação progressiva a administração
central.(7)
O que, ou quem, poderia confrontar esta convergência de fatores e interesses?
Somente um centro econômico ativo e autônomo que se desenvolvesse em uma
área relativamente marginal ao sistema político administrativo nacional.
É o caso de São Paulo, que se transforma, a partir dos fins do
século XIX, no centro da economia cafeeira, após mais de um século e meio
de estagnação e isolamento que decorreram do estabelecimento do controle
direto da Coroa Portuguesa sobre as áreas de mineração. São Paulo, por razões
econômicas e mesmo étnicas, se coloca muito mais próximo da Europa e da
economia internacional , do que do centro político brasileiro e através
deste estado, principalmente, o tema de autonomia vs. integração regional
aparece no debate político brasileiro como uma disputa entre federação vs.
centralização política. Muito tipicamente, o modelo federativo norte-americano
é adotado após a queda do Império, para entrar em recesso após a revolução
de 1930, ressurgir em 1945, e desaparecer novamente na Constituição de 1966,
constituindo-se agora em "República Federativa".
5.Implicações e perspectivas
Quais são os temas políticos contemporâneos que este quadro histórico deveria
ajudar a entender?
Em primeiro lugar, há a questão da representação política A representação
política supõe a existência de grupos autônomos, orientados em função de
interesses próprios e definidos internamente, seja qual for sua base de
identificação - econômica, étnica, lingüística, religiosa, etc. O que a
análise histórica sugere é que as elites regionais no Centro, Nordeste e,
em certa medida, no Sul do país, tendem historicamente a se preocupar menos
com a representação de seus interesses no centro político nacional do que
em seu acesso a posições de poder e prestígio em um regime político centralizado.(8)
Os esforços eventuais de autonomia local tendem geralmente a ser facilmente
cooptados pelo centro, ou suprimido pelas elites locais com o apoio do governo
central.
Isto leva a um segundo aspecto, relacionado ao primeiro, que é o da natureza
da atividade política. Um regime político baseado na centralização do poder
e cooptação de setores mais ativos tende à excessiva burocratização e a
política de distribuição de recursos entre clientelas eleitorais, enquanto
que uma política de tipo representativo tende a responder de forma mais
direta e explícita às demandas de seus constituintes e, por isto, a ser
mais clara na definição de objetivos e políticas governamentais.
É importante pensar nestas categorias não como entidades estanques, mas
como elementos de um processo. A política cartorial e clientelística deve
ser vista, assim, como uma resposta de uma administração centralizada de
base patrimonialista a uma demanda crescente de participação por parte de
grupos antes excluídos dos benefícios do poder. Ao cooptar, o centro se
enfraquece, mas ao mesmo tempo tira a autonomia e independência dos cooptados,
que de constituintes se transformam em clientes. A conseqüência é a formação
de um sistema político pesado, irracional em suas decisões e presa de uma
teia cada vez maior e mais complexa de compromissos e acomodações, até o
ponto de ruptura. O Estado patrimonialista, clientelista, acomodador, é
visto como uma reminiscência do passado, do tradicional, do conservador,
e necessidade de sua substituição por um novo tipo de ordenamento jurídico-político
se impõe.
É aqui que o dilema dos dois modelos de organização política volta a surgir,
e aqui também a visão de processo é essencial. Por um lado, o modelo representativista
aparece como ideologia anti-estatal: é o liberalismo à outrance,
que vê no Estado a fonte de todos os males, que propõe transformar definitivamente
os clientes em constituintes, em fontes de poder, e o Estado em simples
instrumento da vontade da maioria organizada. No Brasil, é a ideologia liberal
que ainda há pouco se fazia ouvir através do Partido Libertador, do udenismo
clássico e, mais fortemente, dos centros economicamente poderosos de São
Paulo. Por outro lado, e a tentativa de liberar o Estado de suas peias.
O mal não estaria em sua participação ativa na vida nacional, mas sim em
seus compromissos, seus clientes, sua sujeição, enfim, à política partidária
.
Cada lado tem sua razão, e o quadro só começa a se definir com mais clareza
quando se toma em consideração um terceiro tipo de questão, que é a do papel
da administração central na promoção do desenvolvimento econômico e social
do país. O que podemos observar aqui é que, no Brasil, pelo menos desde
1937, o Estado tem sempre desempenhado um papel ativo e agressivo na implementação
de algum tipo de política de desenvolvimento econômico e social, embora
fustigado pela crítica liberal anti-intervencionista da elite paulista,
principalmente. É fácil ver como este tipo de crítica liberal não se limita
aos aspectos freqüentemente irracionais, ineficientes e corruptos da política,
mas se refere à própria noção da necessidade social de planejamento e coordenação
nacional de recursos. Desde este ponto de vista, a oposição ao estado centralizado
surge como uma versão retardada do liberalismo econômico do século XIX,
florescendo em um enclave mais privilegiado de um país subdesenvolvido,
dependente e organizado segundo moldes político-administrativos patrimoniais
.
Eis, assim, um aparente paradoxo, que ressurge hoje em toda a discussão
dos problemas de planejamento centralizado e distensão política: uma identificação
ente autoritarismo com racionalidade e eficiência, por uma parte, e entre
participação política, liberdade e ineficiência e manutenção de situações
de privilégio, por outra. Não será esta uma maneira equivocada de ver o
problema?
O fato é que o sistema político liberal pode ser tanto uma forma de garantir
a participação de setores cada vez maiores da sociedade na definição dos
objetivos nacionais quanto, ao contrário, uma forma de garantir a prevalência
de interesses estabelecidos em detrimento de setores sociais menos articulados.
Por outra parte, sistemas políticos centralizados podem tanto ser uma forma
de limitar a distribuição do produto social a um grupo restrito quanto,
ao contrário, garantir que a vontade geral prevaleça sobre interesses minoritários
mais articulados.
É possível pensar em duas maneiras de ver quadro político brasileiro,
que derivam destas duas perspectivas e suas bases sócio-econômicas. A primeira,
liberal e anti-estatal, pensa no estado como se legitimando através de um
sistema democrático de representação de interesses, e produzindo, essencialmente,
uma sociedade segura para o florescimento da iniciativa individual e a eficiência
do sistema capitalista competitivo. Ela critica, assim, a tendência oposta
como baseada no autoritarismo político, e tendo como produto a política
de clientelismo e favoritismo pessoal.
A segunda ideologia política é simétrica a esta. Ela é intervencionista
e centralizadora, e vê como fundamento de legitimação do governo a existência
de uma política orientada para a maximização de objetivos coletivos e nacionais.
Seu produto é um estado centralizado, eficiente, utilizando as técnicas
mais avançadas de planejamento econômico. Ela critica, assim, a política
representativa como a que defende interesses privados e particularistas,
e a livre iniciativa como a manutenção de desigualdades sociais e regionais.
O debate político entre as duas tendências se refere, assim, ao verdadeiro
sentido de cada face da moeda: É certo que a bandeira de representação política
não passa de uma camuflagem para a defesa de interesses e privilégios de
pequenos grupos? Todo o discurso político em termos de objetivos coletivos
e nacionais não seria, na realidade, senão uma racionalização para o autoritarismo
político? Os esforços de planejamento central e eficiência governamental
não seriam, na realidade, simples roupagem para as políticas patrimonialistas
e clientelísticas de sempre? O que é importante notar é que, não somente
as apreciações e avaliações diferem, mas que cada uma das versões capturam
um aspecto importante da realidade político-administrativa brasileira. É
verdade que o estado brasileiro tem sido, historicamente, o centro de onde
emana o clientelismo político e a ineficiência , mas é também certo que,
através da estrutura governamental, alguns objetivos importantes e a longo
prazo tem sido estabelecidos e alcançados. É verdade que a bandeira da representação
política e da descentralização tem sido historicamente relacionada com a
política de interesses privatistas - mas é também verdade que ela tem si
do útil para garantir a vigência de alguns valores básicos de liberdade
e pluralidade, e com isto aumentar cada vez mais o escopo dos beneficiários
presentes e futuros do desenvolvimento social.
O importante - e este é o problema político central que o pais confronta
- é unificar estas duas tendências no que elas têm de positivo. Este resultado
- um sistema político eficiente, moderno, de ampla base de sustentação social,
e buscando a realização de objetivos globais a longo prazo - só pode surgir
quando a representação política deixe de se identificar com o apoio e a
manutenção de interesses privados limitados, e, ao mesmo tempo, quando o
Estado deixe definitivamente de ser uma burocracia patrimonial preocupada
essencialmente com sua sobrevivência e se transforme em um agente efetivo
e responsável de interesses sociais coletivos.
Esta unificação deve ser efetivada inclusive no espaço, ou seja, quando
as duas tendências deixem de responder a clivagens políticas diferenciadas
geograficamente. Isto significaria dar uma base representativa adequada
ao processo de coordenação e planejamento nacional, de tal forma que este
processo seja adequadamente controlado para evitar a ineficiência e o autoritarismo,
e, ao mesmo tempo, fazer com que a política representativa seja de tal forma
relacionada com os interesses mais gerais da sociedade que estes prevaleçam
sobre a lógica dos interesses particulares de grupos privilegiados.
Existe assim um duplo trabalho a ser desenvolvido, o de transformar as estruturas
e atitudes políticas nos dois lados da divisão regional e ideológica do
país; desburocratizar, tornar menos autoritária e clientelística a ação
do Estado, e tornar menos privatista e conservadora a política representativa.
É difícil prever como este trabalho evoluirá, mas não há dúvida de que,
em sua essência, estes serão os termos do debate político que nos espera.
Notas
1. Wanderley G. dos Santos e Isabel R. O. Gómez de Souza,
Abertura Política: antecipações e estimativas (IUPERJ, mimeografado,
1972).
2. Veja a este respeito Naomi Caiden e Aaron Wildavsky,
Planning and Budgeting in Poor Countrles (New York: Wiley, 1974),
trabalho que é discutido e serve de ponto de referência para a discussão
da experiência mineira em Antônio Octávio Cintra e Luiz Aureliano Gama de
Andrade, Plnanning and Development: a note on the Minas Case (trabalho
apresentado ao Seminário Internacional de Análise de Políticas Públicas,
Fundação Getúlio Vargas, maio de 1975, mimeografado).
3. S. Schwartzman, São Paulo e o Estado Nacional
(São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1975
4. Para uma visão geral do processo de colonização portuguesa
no Brasil, especialmente nos séculos XVI e XVII, veja entre outros C.R.
Boxer, Salvador de Sá and the Struggle for Brazil and Angola (Univ.
of London: The Athlone Press, 1952).
5. José Murilo de Carvalho, Elite and State Building
in Imperial Brazil (Tese de doutorado, Stanford University, 1974).
6. Ver, sobre a experiência separatista do Rio Grande,
a análise de Joseph L. Love, Rio Grande do Sul and Brazilian Regionalism,
1882-1930 (Stanford: Stanford Univ. Press, 1971).
7. Para uma análise da política regional no Nordeste
Brasileiro , veja Aspásia Alcântara de Camargo, Brèsil Nord-Est: Mouvements
Paysans et Crise Populiste (Université de Paris, École Pratique dês
Haures Études Centre d'Études des Mouvements Soxiaux, 1973, mimeo). José
Murilo de Carvalho critica a noção de que a política mineira está relacionada
com a decadência econômica da região ("A Composição Social dos Partidos
Políticos Imperiais", Cadernos DCP 2, Dezembro de 1974).
8. Sobre as relações entre São Paulo e o centro político
nacional no período de expansão industrial, veja Warren Dean, A Industrialização
de São Paulo (Difusão Européia do Livro). Para as relações entre São
Paulo e a economia internacional, veja Joseph L. Love, "External Financing
and Domestic Politics: the Case of São Paulo, Brazil, 1889-1937", em
Robert E. Scott (ed) Latin American Modernization Problems (Univ.
of Illinois Press, 1973, pp. 236-259).
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