Raízes Históricas
da Relação entre Universidade e Setor Produtivo no Brasil Simon
Schwartzman
Ciclo de Palestras sobre Administração de Tecnologia
na Universidade e na Empresa, Universidade Federal de São Carlos, 9 de outubro
de 1991.Publicado em Claudio Shyinti Kiminami e outros (organizadores),
Universidade e Indústria - Depoimentos, São Carlos, Editora da UFSCar,
1997, pp. 31-38. a José Albertino Rodrigues(1)
O relacionamento estreito entre Universidades, a pesquisa científica e o
setor produtivo é um dos fatos mais marcantes das economias modernas neste
fim de século, e é natural que a Universidade Federal de São Carlos, que
tem um feito um esforço importante no estabelecimento de pontes com o setor
produtivo, se preocupe em saber como este relacionamento se deu, ou deixou
de se dar, na história de nosso país. O meu conhecimento a respeito deste
tema é limitado. Coordenei, há alguns anos atrás, um estudo sobre o desenvolvimento
da comunidade científica no Brasil, no qual o tema da pesquisa básica e
da pesquisa aplicada, da pesquisa universitária e da pesquisa dos institutos
de pesquisa governamentais, ocupou naturalmente uma posição central(2)
. No entanto, aquele estudo se voltou, principalmente, para as ciências
básicas, e não tivemos ocasião de nos aprofundar no conhecimento das experiências
de trabalho de desenvolvimento tecnológico de nossas principais escolas
de engenharia, a Politécnica do Rio de Janeiro e a Politécnica de São Paulo,
ambas habitadas, desde o século passado, por engenheiros ilustres que combinavam
o ensino de sua profissão com intenso trabalho na construção de estradas,
na modernização das cidades, na construção de barragens, e assim por diante.
Não resta muita dúvida, no entanto, que as nossas escolas de engenharia
não se notabilizaram pelas atividades de pesquisa e desenvolvimento tecnológico,
que, quando ocorriam, se davam de forma isolada, como no Laboratório de
Ensaios de Materiais da Escola Politécnica de São Paulo, criado nos anos
20, que deu origem ao Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo,
ou em institutos especializados, como o próprio IPT e o Instituto Nacional
de Tecnologia, no Rio de Janeiro(3). As atividades
tecnológicas de nossos engenheiros consistia, principalmente, na transmissão
de habilidades práticas adquiridas na vida profissional, nos livros ou em
eventuais estágios no exterior. É possível traçar uma boa parte da história
de nossa tecnologia a técnicos e professores oriundos dos países europeus,
principalmente da França, Suiça e Alemanha, e também à presença de alguns
empreendimentos de engenharia de maior porte, dentre os quais se destacam
a implantação das ferrovias, que acompanharam a expansão da lavoura do café
a partir da segunda metade do século XIX, os sistemas de eletrificação,
e a renovação urbana do Rio de Janeiro no princípio do século.
Apesar de conhecer pouco desta história, eu me atreveria a tentar algumas
generalizações a respeito de nossa experiência passada, pelo menos como
estímulo à discussão, na forma de algumas proposições.
Minha primeira proposição é que o grau de desenvolvimento da atividade tecnológica
do país coloca limites ao que as universidades e os centros de pesquisa
podem fazer em termos de trabalho aplicado. A história brasileira está cheia
de exemplos disto. Por volta de 1870 D. João VI decidiu estabelecer em Minas
Gerais uma Escola de Minas, dirigida por um francês, que pudesse formar
pessoas competentes explorar as riquezas minerais do Estado de Minas. Em
muitos aspectos, a Escola de Minas foi um sucesso, e por ela passou toda
uma geração de engenheiros e técnicos que tiveram presença importante na
vida do Estado e do país. O que ela não fez, no entanto, foi desenvolver
a atividade mineralógica do Estado, que se manteve estacionada pela simples
razão de que não haviam condições econômicas que viabilizassem sua exploração
mais intensiva. O segundo exemplo foi o trabalho de F. W. Daffert, botânico
austríaco que dirigiu o Instituto Agronômico de Campinas por volta de 1890,
cujas pesquisas experimentais com plantações de café acabaram por provocar
sua demissão, por serem consideradas demasiado teóricas, e de pouco interesse
para os cafeicultores paulistas, cuja atividade se desenvolvia pelo uso
extensivo da terra e de mão de obra barata e pouco qualificada. O terceiro
exemplo é o de uma série de cursos de química industrial que foram criados
em várias partes do país na década de 20, baseados em um grupo de professores
alemães, como Alfred Shaeffer, Otto Rothe, E. Schrim e von Burgher, em cursos
vinculados às escolas de engenharia em Belo Horizonte, Ouro Preto, Porto
Alegre, São Paulo, Salvador e Recife. Todos estes cursos tiveram vida curta,
e nenhum deles deixou traços, seja no desenvolvimento da atividade industrial,
seja na formação de competência de trabalhos de pesquisa e desenvolvimento
em química industrial. A razão é que não havia, simplesmente indústria no
Brasil que absorvesse os conhecimentos destes professores, cuja competência
não estava em questão.
Minha segunda proposição é que atividades de pesquisa que se definem, desde
o início, com um forte componente acadêmico, acabam podem maior chance de
sucesso do que aquelas que se definem como aplicadas e práticas. O Brasil
só começou a desenvolver alguma competência na área de pesquisa química
com a Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, que se definiu
deste o início como instituição essencialmente acadêmica. O sucesso do Instituto
Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro, nas primeiras décadas deste século, não
derivou de sua participação nas campanhas sanitárias que se realizaram no
país desde o final do século passado, e que tiveram início no Instituto
Vacinogênico de São Paulo, mas sim dos trabalhos de pesquisa básica de Carlos
Chagas, Arthur Neiva, Cardoso Fontes, Ezequiel Dias e tantos outros. O que
esta pesquisa básica proporcionou foi o desenvolvimento de ambiente de trabalho
de alto nível, controlado pelos padrões de qualidade mais exigentes da época,
a partir do qual todas as demais atividades puderam se desenvolver.
Esta proposição requer um esclarecimento a respeito da distinção entre "pesquisa
acadêmica", "pesquisa básica", e pesquisa aplicada, ou tecnológica. A idéia
de que existe uma divisão clara entre o momento da "descoberta" científica
e o de sua "aplicação" é muito discutível, principalmente na área tecnológica,
como a das ciências de materiais. No entanto, existe uma grande diferença
entre a pesquisa feita e avaliada segundo suas possibilidades de aplicação
prática, e aquela que é avaliada pela sua qualidade e sua contribuição ao
ensino, à educação e ao conhecimento de uma maneira geral. A diferença não
está tanto no conteúdo do que é feito, mas principãlmente nos objetivos
que norteiam o financiamento e o apoio da pesquisa, e a apropriação de seus
resultados. A pesquisa universitária é geralmente "básica" ou "acadêmica",
porque se desenvolve segundo os interesses e as motivações dos pesquisadores,
segundo sua capacidade empresarial de conseguir recursos e apoio, e leva
a publicações; a pesquisa na empresa tende a ser "aplicada", porque tende
a ser avaliada por critérios mais estritos de custo-benefício, e tende a
ser apropriada na forma de patentes ou segredos industriais. Não se trata
de uma distinção absoluta muitos departamentos universitários fazem desenvolvimento
tecnológico, e muitas empresas, principalmente no exterior, mantêm laboratórios
de pesquisa trabalhando em pesquisa básica e sem aplicações imediatas mas
a distinção entre as duas modalidades de trabalho é importante, e tem consequências
sobre as motivações e o envolvimento dos cientistas e pesquisadores com
seu trabalho, e a qualidade e relevância dos resultados obtidos.
Minha terceira proposição é que pesquisa aplicada pode abrir espaço para
a pesquisa básica, e a pesquisa básica para a pesquisa aplicada, mas nem
sempre isto ocorre, e é uma relação não trivial. O sucesso das campanhas
sanitárias deu condições para que o grupo de Oswaldo Cruz pudesse estabelecer
suas linhas de trabalho de pesquisa independente, mas este foi um processo
difícil e doloroso, que provocou tensões e dissensões dentro do grupo, e
dificuldades sucessivas no relacionamento entre o Instituto e o governo
central, até bem perto de nossos dias. Algo parecido ocorreu no Instituto
Biológico de São Paulo, cujas vinculações com o Instituto Oswaldo Cruz sempre
foram, aliás, bastante intensas.
O melhor exemplo da passagem da pesquisa básica para a aplicada, em nossa
história, talvez tenha sido o projeto de desenvolvimento de sonares para
os navios brasileiros na Segunda Guerra Mundial, pelos físicos da Universidade
de São Paulo. Este projeto foi possível graças à competência técnica que
os físicos haviam desenvolvido para suas experiências em física de altas
energias, que se tornaram subitamente de grande utilidade prática quando
o contexto da guerra trouxe novas necessidades e exigências.
Estes dois exemplos se sobressaem, no entanto, em um mar de contraexemplos
de instituições de pesquisa aplicada que se burocratizaram e pouco produziram
de importância, seja em ciência, seja em tecnologia; e de centros de pesquisa
básica, dentro e fora das universidades, que jamais conseguiram colocar
seus conhecimentos a serviço de atividades produtivas significativas.
A pergunta que se coloca, naturalmente, é sobre as condições que permitem
que esta transferência de conhecimentos entre a atividade aplicada e a atividade
mais acadêmica se dê. Eu diria que existem três condições fundamentais para
isto, duas ligadas ao mundo acadêmico, universitário, e a outra ao sistema
produtivo. Cada uma destas condições é necessária, mas não suficiente; é
possível, no entanto, que as três, se combinadas, sejam necessárias e suficientes
para que as relações entre a universidade e o setor produtivo se tornem
mais efetivas e adequadas, e possasm se refletir no desenvolvimento científico
e tecnológico do país.
A primeira condição é que os centros de pesquisa, e particularmente as universidades,
não tentem desenvolver, sozinhas, a capacidade tecnológica que o país não
possui, e acabem por renunciar ao trabalho educacional e científico de qualidade,
que é sua função principal. O papel principal de uma universidade, e principalmente
das universidades com um forte componente de pesquisa, é o de formar pessoas
capazes de entender em profundidade sua área de conhecimento, e desenvolver
trabalhos de pesquisa que garantam que seus professores e alunos de pós-graduação
estejam em contato com as fronteiras da ciência e da técnica em todo o mundo.
Isto pode parecer trivial, mas deve ser dito com bastante ênfase, para se
contrapor à idéia, que encontramos com frequência, de que as universidades
só deveriam formar pessoas que o mercado de trabalho demandasse, e só pesquisar
aquilo que tenha relevância econômica e produtiva de curto prazo. Como o
mercado de trabalho brasileiro ainda demanda pouco, e como a maior parte
de nossa tecnologia industrial é licenciada ou copiada do exterior, esta
atitude aparentemente pragmática e realista termina por condenar as instituições
de ensino à indigência intelectual e técnica.
A segunda condição é que o sistema educacional produza uma gama variada
de pessoas e competências, que possam atender às necessidades diferenciadas
do setor produtivo e da atividade profissional. Uma sociedade moderna não
pode funcionar sem pesquisadores de alto nível, trabalhando em tempo integral
em suas pesquisas e na formação de novos cientistas. Mas o setor produtivo
requer, além disto, técnicos especializados, profissionais generalistas
e prestadores de serviços de rotina. Os sistemas educacionais modernos não
se caracterizam por dar a todos a formação de pesquisadores, mas de produzir
pesquisadores, técnicos, generalistas, através de cursos de graduação, pós-graduação,
especialização, educação continuada, extensão, e assim por diante.
A terceira condição, complementar às duas primeiras, é que existam políticas
de desenvolvimento científico e tecnológico de longo e médio alcance, que
possam fazer uso efetivo da competência que as universidades devem manter
e aperfeiçoar. Dizer isto soa extremamente antigo e ultrapassado, nestes
anos de glorificação do mercado e profundas suspeitas quanto à capacidade
dos governos em desenvolverem qualquer política coerente a qualquer prazo.
Mas é preciso examinar melhor o que se deve entender por política de desenvolvimento
científico e tecnológico, e o que se deve entender por "mercado".
Poucos imaginam hoje que o governo brasileiro possa, sentado em Brasília,
decidir em que áreas o país deveria desenvolver sua pesquisa e sua tecnologia,
e colocar os recursos necessários para que isto se dê. Não só faltam dinheiro
e capacidade de gerenciamento, mas a atividade de pesquisa e desenvolvimento
tecnológico não se amolda com facilidade a este tipo de programação e planejamento.
O estabelecimento de metas de desenvolvimento científico e tecnológico requer
a identificação de espaços, nichos e oportunidades que só são perceptíveis
por pessoas que vivem o dia a dia da atividade de pesquisa e do desenvolvimento
industrial, e que quase por definição não ocupam as cadeiras onde as decisões
de política de ciência e tecnologia normalmente são tomadas. Estes nichos
e oportunidades devem ser, ao mesmo tempo, oportunidades de mercado, e oportunidades
de pesquisa e desenvolvimento, a partir da competência específica que o
país tenha conseguido no passado. Uma vez identificados, estes nichos devem
ser objeto de uma estruturação que vincule de maneira efetiva recursos e
competências, e que contemple todo o ciclo produtivo, da pesquisa ao desenvolvimento
tecnológico à comercialização. Não temos experiência em trabalhar desta
forma, e este aprendizado talvez seja o mais difícil dos que temos pela
frente, principalmente por requerer a cooperação e o entendimento entre
personagens tão distintos, como o pesquisador, o engenheiro, o homem de
negócios e o homem de governo.
Mas não será esta uma tarefa desnecessária? Porque não deixar que a Universidade
e a Indústria se entendam, e encontrem seus próprios espaços de cooperação
e desenvolvimento conjunto? Não resta dúvida de que existe muito espaço
para que estes entendimentos se estabeleçam, e cresçam livres da tutela
e da supervisão governamental. Mas é importante não nos iludirmos demasiado
quanto até onde isto pode ir. O mundo da indústria de base científica é
extremamente competitivo no mundo de hoje, uma competição que leva à formação
de grandes conglomerados de escala internacional, que trabalham freqüentemente
em íntima associação com os respectivos governos. Uma política científica
e tecnológica que não contempla o mercado, que é hoje inevitavelmente internacional,
não tem muito futuro; uma política que confia cegamente neste mercado tampouco
irá muito longe. É sob esta luz, me parece, que a experiência brasileira
de reserva de mercado deve ser analizada. Foi uma política de vários acertos
e muitos erros, entre os quais a inexistência de um programa de pesquisa
e desenvolvimento tecnológico efetivo que a acompanhasse. Mas o principal
erro parece ter sido sua orientação exclusiva para o mercado interno, e
a ausência de uma análise mais clara e realista a respeito da competição
internacional que deveria se instaurar mais cedo ou mais tarde, e das vantagens
comparativas que poderíamos ter, e que deveríamos ter desenvolvido.
* * *
Como conclusão, é possível dizer que a história brasileira mostra mais contra-exemplos,
ou exemplos negativos, do que exemplos positivos de relacionamento entre
universidades e o setor produtivo. Isto não chega a ser surpreendente, dadas
as próprias limitações do desenvolvimento científico e tecnológico do país.
Menos óbvia, talvez, seja a proposição de que uma opção demasiado intensa
pelo trabalho aplicado pode resultar danosa, principalmente se ela se estabelecer
à custa do desenvolvimento da capacidade educativa e de pesquisa básica
de qualidade das universidades. Minha última proposição talvez possa ser
resumida pela idéia de que não adianta, e não tem sentido, desenvolver uma
política tecnológica que ignore a realidade do mercado global em que vivemos;
mas que este mercado é um mercado aberto, com grande dinamismo, que se não
permite tudo, abre muitos espaços e possibilidades, que temos que aprender
a explorar. É este o sentido novo que uma política de C&T deveria assumir,
com a participação de todos os setores envolvidos, a começar pelo setor
produtivo e pelas universidades.
Notas
1. Esta apresentação foi enriquecida com os comentários
de José Albertino Rodrigues, que faleceria de forma trágica no dia seguinte,
e ao qual o autor gostaria de dedicar este texto, como pequena homenagem.
2. Cf. A Space for Science: The Development of the
Scientific Community in Brazil (versão revisada de Formação da
Comunidade Científica no Brasil, 1979), Pennsylvania State University
Press, 1991.
3. Para um panorama do desenvolvimento das atividades
de tecnologia no país, veja Milton Vargas, "A Tecnologia no Brasil", em
Mário Guimarães Ferri e Shozo Motoyama, História das Ciências no Brasil,
São Paulo, EPU/Edusp, 1979, vol. 1, p. 331-375.
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