A Redescoberta da Cultura
Educação e Modernidade
Simon Schwartzman
Revista Estudos Avançados, Universidade de São Paulo,
número 13. Versão revista de palestra preparada originalmente
para o "Seminário Nacional de Literatura, Educação e Pós-Modernidade,"
organizado pelo Centro de Pesquisas Literárias do Curso de Pós-Graduação
em Linguística e Letras da Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul, 1988). Incluído em A Redescoberta
da Cultura, São Paulo, EDUSP, 1997.
A modernidade morreu; viva a pós-modernidade! É esta a palavra
de ordem que ecoa no Brasil, oriunda principalmente dos círculos literários,
e invade com força as ciências sociais, a historiografia, e agora a educação.
Na perspectiva pós-moderna, o mundo já teria superado os tempos do iluminismo,
e com eles a crença no poder da razão, nas promessas do futuro e na valorização
da ética do trabalho e do desempenho. A razão, desenvolvida nas ciências
e transmitida pelos sistemas escolares, ter-se-ia revelado uma forma disfarçada
de exercício do poder, e, além de tudo, incapaz de apreender a verdadeira
natureza das coisas; a tecnologia, sua filha bastarda, estaria destruindo
o meio ambiente, prostituindo a mente pelos "mass-mídia" e ameaçando
de destruição a própria humanidade. O futuro, que o iluminismo apresentava
como inteligível em suas leis e conquistável pelo trabalho, agora se apresentaria
como incerto e sombrio. Não só o capitalismo agonizaria, mas também seu
alter-ego, o socialismo. Se a razão aliena e o futuro inexiste, e se Deus
já foi há muito declarado morto, tampouco faria sentido fixar metas na
vida, postergar desejos, perseverar.
Partindo destas premissas, é natural que o pós-modernismo
não se constitua como uma visão coerente e organizada do mundo. Sua preeminência
nos meios literários não é fortuita: rechaçando o conhecimento racional
e abstrato, ele tende a se apoiar, sobretudo, na intuição e na capacidade
de expressão simbólica dos artistas. Não que faltem, evidentemente, seus
teóricos, responsáveis pelo desenvolvimento de críticas profundas e muito
pertinentes à crise de sentido e de valores que perpassa as sociedades
modernas. Mas, uma vez terminada a tarefa crítica e iconoclasta, e destruída
a legitimidade da atividade racional(1),
o espaço se abre para autores geralmente obscuros em suas linguagem, pródigos
de formulações categóricas e de difícil compreensão, fundando, freqüentemente,
movimentos e "escolas" nos quais só se penetra pela via da iniciação.
É uma tarefa inglória, por isto, tentar descrever o que seja o pós-modernismo,
e que alternativas propõe para o mundo da modernidade(2).
É possível, no entanto, tentar o caminho inverso, ou seja, tratar de examinar
em que medida a modernidade, como vertente contemporânea do iluminismo,
ainda se mantém como valor e como caracterização da época contemporânea,
e mais especificamente, como a questão da modernidade se coloca no Brasil
de hoje, e particularmente no que nos interessa mais de perto no momento,
que é o da educação básica nacional.
O conceito de "modernização" foi introduzido pelas ciências
sociais no período de pós-guerra para caracterizar os processos de transição
que os países e nações "atrasados", ou "sub-desenvolvidos"
deveriam, esperava-se, passar para alcançar os níveis de renda, educação
e produtividade tecnológica característicos dos países industrializados.
A modernização dos países industrializados ter-se-ia dado antes, pelo
desenvolvimento da produção industrial, pela substituição das formas de
conhecimento tradicionais pela ciência e a tecnologia de base experimental,
pela organização de um estado burocrático e pela introdução de novas formas
de relacionamento social baseadas no contrato e na reciprocidade de interesses,
e não mais na tradição ou no carisma - tudo, em uma palavra, que Max Weber
descreveria com o termo "racionalização". Autores mais conservadores
viam nos processos de modernização um caminho harmônico de superação progressiva
de etapas, enquanto que outros, mais radicais, preferiam o evolucionismo
histórico conflitivo e dialético do marxismo.
O termo "modernização" começou a entrar em desgraça quando
ficou claro que nem todos os países e sociedades seguiam os mesmos passos
através da história, e quando as esperanças de uma progresso contínuo
das ex-colônias e países periféricos aos níveis e padrões de desenvolvimento
dos países mais ricos começaram a se desfazer. "Modernidade"
surge então como um termo muito mais geral e amplo. Ele não traz as conotações
evolucionistas e de convergência do anterior, mas sugere que todas as
sociedades, hoje, compartem um destino e uma condição similar, descrita
como uma grande proximidade com as novas tecnologias e, ao mesmo tempo,
uma grande incerteza, instabilidade e "desencantamento" com
um mundo onde, na frase de Marx recuperada por Berman, "tudo que
é sólido desmancha no ar"(3).
A criação de instituições capazes de produzir conhecimentos científicos
e produtos tecnológicos, e a difusão desta competência em toda a sociedade,
é certamente um privilégio daquelas sociedades que já conseguiram se modernizar
e racionalizar de forma mais abrangente, no sentido weberiano do termo.
No entanto, o uso de produtos tecnológicos altamente sofisticados, como
automóveis e vídeo-cassetes; a adoção de alguns tipos de indústrias modernas
baseadas em equipamentos sofisticados dotados de um grande componente
tecnológico "desencarnado", e manejado por uma mão de obra pouco
qualificada; o uso de armas modernas e sofisticadas; a adoção de estruturas
administrativas e gerenciais capazes de operar com bastante eficiência
os meios de comunicação de massas, de coleta e de organização de informações,
parecem estar hoje totalmente generalizados. O que caracteriza a modernidade,
nesta perspectiva, não é o conhecimento e o comando destas tecnologias,
que é privilégio de poucos, mas a convivência e a exposição a elas, dos
quais ninguém escapa. A estas características, que poderíamos chamar de
estruturais, se somam outras de tipo valorativo, ou normativo: existe
a expectativa de que as sociedades modernas sejam democráticas, que garantam
as liberdades individuais, e que proporcionem a seus cidadãos segurança,
educação e bem estar.
O otimismo ingênuo do iluminismo e do modernismo, em suas diferentes
versões, tem sido atacado desde seus primórdios tanto pelo pensamento
conservador quanto pelas formas mais radicais de crítica, do marxismo
à psicoanálise, assim como pelo assalto da literatura das artes, de Baudelaire
a Charles Chaplin. E no entanto, os dilemas trazidos pela condição de
modernidade estão cada vez mais presentes e são cada vez mais fundamentais
no mundo de hoje, substituindo, possivelmente, a polarização de classes
explicitada por Marx e que, segundo Sartre teria dito um dia, definiria
a condição existencial central do mundo contemporâneo. Ser moderno, no
mundo de hoje, é poder conviver de forma adequada com os instrumentos
da racionalidade em todos seus aspectos - na produção econômica, na organização
política, na organização do espaço físico, na previsibilidade da vida
e no planejamento do futuro. "Conviver de forma adequada" significa
incorporar estes instrumentos, colocá-los a serviço do bem estar de todos,
e não se deixar seduzir, dominar e destruir por eles. Se isto faz algum
sentido, então os Estados Unidos não seriam tão modernos quanto a Europa
ou o Japão, por exemplo; mas a China seria infinitamente mais moderna
do que a India. A pergunta importante para as ciências sociais de hoje
é a das condições de emergência desta nova modernidade, das estruturas
e visões de mundo que a obstaculizam, e das que a viabilizam. É possível
que, na busca de respostas a esta pergunta central, possamos chegar à
visão global de uma nova modernidade, livre dos pressupostos evolucionistas
e cientificistas do passado, e capaz, inclusive, de recuperar a tradição
humanística que as ciências sociais mais "duras" foram deixando
de lado. Nada impede que esta "nova" abordagem se denomine,
por exemplo, de "pós-moderna"(4);
mas o discurso da "pós-modernidade" que hoje predomina é, quase
sempre, uma tentativa de evadir estas questões, e por isto não me parece
aceitável.
A redescoberta da questão educacional
Recolocar em primeiro plano a questão da modernidade significa, em grande
parte, trazer a questão educacional para o centro das preocupações. A
redescoberta e revalorização da questão educacional é hoje um tema candente,
e uma das tarefas mais centrais das ciências sociais contemporâneas. No
passado não muito distante, temas como o da escola pública vs. escola
particular, a educação religiosa, ou direito à educação em língua materna
mobilizavam sociedades inteiras, enchiam os jornais e decidiam os resultados
de eleições. A educação pública, universal e gratuita foi uma das grandes
bandeiras do pensamento republicano a partir da Revolução Francesa, e
a defesa do ensino privado e de base familiar, sustentada pelas autoridades
e pensadores católicos, marcou e marca até hoje os debates do tema. Na
sociologia de Émile Durkheim a educação era vista não somente como uma
necessidade instrumental das sociedades modernas, mas como o único cimento
que poderia efetivamente mantê-la integrada e solidária. O tema da renovação
educacional fascinava os intelectuais russos nos primeiros anos da Revolução
de Outubro, e seria retomado nas preocupações de Gramsci.
Nas últimas décadas, no entanto, a questão educacional como que desapareceu
como tema intelectual, transformado-se em assunto "meramente"
técnico ou administrativo. Esta desqualificação teve como conseqüência
que os temas relativos à educação saíssem do foco dos grandes debates
e discussões, ficando como que "relegados" aos especialistas,
e entregues ao conflito localizado de interesses das partes mais diretamente
envolvidas com as instituições educacionais: pais, professores, secretarias
e ministérios de educação, livreiros, funcionários. A relativa decadência
do tema da educação básica se explica, em parte, pela progressiva expansão
das universidades e do ensino superior nas últimas décadas, atraindo para
si os melhores talentos e as principais atenções, e relegando o ensino
básico para setores sociais menos privilegiados e menos capazes, conseqüentemente,
de trazer seus temas e interesses para o foco das atenções. A isto se
somou a difusão da idéia de que, como fenômeno superestrutural, a educação
em si pouco podia fazer para alterar as condições de vida ou o sistema
de poder de uma sociedade, cujas molas mestras estariam na política e
na economia(5). Esta desqualificação da
tarefa educacional tornou-se ainda mais acentuada a partir da difusão
dos trabalhos de Bourdieu e Passeron, que procuravam demonstrar como os
sistemas educacionais simplesmente reproduziam as estruturas de dominação
existentes na sociedade mais ampla. Uma vez introduzidas entre os educadores,
estas idéias se somaram às suas frustrações com a falta de apoio, prestígio
e reconhecimento de que eram vítimas, levando ao abandono quase definitivo
das preocupações de natureza pedagógica, substituídas seja pela militância
política, seja pela apatia pura e simples.
A redescoberta da educação se relaciona com a constatação de que, longe
de serem neutras, as instituições educacionais têm um impacto bastante
significativo, ainda que controverso, sobre as sociedades contemporâneas.
Por um lado, análises econômicas complexas se somam à observação quotidiana
na demonstração de como a educação, como "capital humano", tem
uma contribuição decisiva para a criação da riqueza e para o desenvolvimento
econômico. É cada vez mais claro, por exemplo, o papel central que a educação
jogou na ascensão do Japão como potência econômica de primeira grandeza
nas últimas décadas, que parece estar se repetindo com igual força em
outros países asiáticos de industrialização recente, como a Coréia do
Sul e Taiwan; é também bastante clara, e dramática, a limitação que a
ausência de uma população educada coloca para um país como o Brasil, no
momento em que o desenvolvimento da automação industrial coloca em risco
uma de suas principais "vantagens" comparativas internacionais,
que era a existência de mão de obra abundante, desqualificada e barata.
Por outro lado, estudos sobre o impacto dos sistemas educacionais sobre
a estratificação social mostram que, ao contrário das expectativas otimistas
do passado, estes sistemas tendem freqüentemente a consolidar e acentuar
a desigualdade social; esta perspectiva tem sido especialmente salientada
após a frustração das esperanças depositadas, nos Estados Unidos, nos
programas de "ação afirmativa" nas escolas como forma de reduzir
as desigualdades raciais que afetam a população negra naquele país. A
conciliação destes dois pontos de vista, em si mesmo verdadeiros, requer
uma visão mais complexa a respeito do relacionamento entre instituições
educacionais e as de tipo econômico e social. Assim, quando uma sociedade
se expande, a educação parece funcionar como instrumento poderoso de mobilidade
social de novos grupos, e de incorporação de novas tecnologias e conhecimentos
à sociedade; quando as sociedades estão estagnadas, a educação parece
funcionar, sobretudo, como elemento de seleção e discriminação social.
Sozinha, ela pode menos do que se acreditava no passado; em conjunto com
outros processos de natureza social, política e econômica, a educação
pode marcar a diferença entre o sucesso e o fracasso.
Ítens de uma agenda
Além destas análises de tipo global, esta redescoberta tem sido acompanhada
de uma grande ampliação no escopo do que tradicionalmente se considerava
como o campo da pedagogia, que hoje inclui desde considerações institucionais
e organizacionais até análises lingüísticas, culturais e motivacionais.
Esta ampliação está levando a uma nova agenda de questões, algumas das
quais vale a pena ressaltar aqui.
Hoje se constata, por toda parte, o fracasso das tentativas de se valer
da educação formal como mero mecanismo de transmissão de ideologias convencionais,
tal como se tentou, no Brasil, com a tristemente famosa "Educação
Moral e Cívica"; ao mesmo tempo, no entanto, as experiências de associar
a educação com a motivação política e social, reintroduzidas pela chamada
"pedagogia do oprimido" de Paulo Freire, não só mostraram que
a educação retém seu potencial político e ideológico, como que a existência
de um componente motivacional forte joga um papel fundamental na própria
transmissão dos conteúdos educacionais mais tradicionais, a capacidade
de ler, escrever e contar. Esta aparente contradição se explica pelo fato
de que a educação não é um mero procedimento técnico e neutro, capaz de
transmitir igualmente bem qualquer tipo de conteúdo. Se ela responder
a uma motivação e a um interesse do educado, e se esta motivação e interesse
forem estimulados, ela será bem aceita; caso contrário, ela será, inevitavelmente,
rechaçada.(6)
A redescoberta da motivação como elemento fundamental nos processos educativos
coloca em segundo plano certos temas, e faz ressaltar outros. Ela permite
questionar, por exemplo, as tentativas de explicar os fracassos educacionais
de crianças de famílias deprivadas por fatores lingüísticos ou culturais.
Filhos de imigrantes não são menos capazes de apreender os conteúdos lingüísticos
e culturais dos países de adoção de suas famílias, e o fazem, muitas vezes,
bem melhor do que os nativos. A proposta de associar o ensino básico a
variações lingüísticas regionais e sub-regionais, além de equivocada como
forma de compensar eventuais problemas de motivação, se choca com a globalização
dos padrões de linguagem promovidos pelos meios de comunicação de massas,
e resultaria, se fosse bem sucedida, na acentuação do isolamento e marginalidade
social dos grupos sociais menos privilegiados. Perdem saliência, também,
as antigas querelas pedagógicas que opunham diferentes técnicas de ensino
da leitura ou maneiras de introduzir conceitos numéricos. Ainda que estas
questões continuem sendo importantes (pensemos, por exemplo, no desastre
pedagógico que tem sido a introdução da "nova matemática" ou
da substituição da história e da geografia pelos chamados "estudos
sociais" nas escolas secundárias), uma criança motivada em um ambiente
estimulante adquirirá seus conhecimentos básicos por qualquer método,
mesmo os mais tradicionais e arcaicos, ou os mais moderninhos e avançados.
O mesmo raciocínio se aplica aos entusiasmos, hoje bem mais reduzidos,
com as chamadas "novas tecnologias" educacionais, das calculadoras
de mão à televisão e ao computador. Utilizados de forma competente e por
professores experimentados e motivados, estes instrumentos podem tornar
as aulas mais interessantes e sugestivas; pouco podem, no entanto, como
substitutos eventuais dos professores e de instalações escolares adequadas.
Também caiu rapidamente em descrédito a noção de que, ao aprender a programar
um micro-computador, o jovem estudante estaria sendo introduzido a uma
forma radicalmente nova de conhecimento, inacessível à geração de seus
pais, educada se tanto no cuspe e no giz. Hoje se sabe que o ensino de
linguagens de programação pouco acrescenta a não ser aos especialistas,
e a principal contribuição dos computadores é a de expandir e consolidar
as habilidades básicas adquiridas na educação convencional, ou seja, a
escrita, pelos processadores de texto, o cálculo, aprendido com a aritmética
e desenvolvido posteriormente com a matemática e as ciências exatas, e
a capacidade de recuperar e organizar informações, própria dos processos
de incorporação de qualquer corpo de conhecimento.
Mas em que consiste, afinal, esta tal "motivação"? Como identificá-la,
e como fazê-la surgir onde ainda não existe? Como fazê-la aflorar entre
estudantes cujo ambiente familiar não a estimula, por professores mal-pagos,
eles mesmo pouco educados e trabalhando em condições freqüentemente precárias,
e desprovidos dos recursos pedagógicos mais básicos?
Esta pergunta tem uma resposta antiga, que tem sido hoje redescoberta
e revalorizada em todos os níveis da atividade humana, da política à economia,
da religião à educação: motivação, criatividade, iniciativa, capacidade
de aprendizagem, todas estas coisas ocorrem no nível dos indivíduos e
das comunidades de dimensões humanas nos quais eles vivem seu dia a dia.
Esta seria uma proposição extremamente conservadora 100 ou 200 anos atrás,
quando as comunidades locais iam sendo varridas pela criação de grandes
estados nacionais, ao passo que a industrialização massificava os indivíduos
e, pouco a pouco, pulverizava sua capacidade criativa na divisão em migalhas
da produção em série. O que dá nova vida a esta proposição é a combinação
de dois fenômenos concomitantes, o da crise generalizada dos grandes sistemas
hierárquicos e verticais de controle, administração e produção social
econômica, e a nova flexibilidade e diversificação trazida pelo avanço
das novas tecnologias de comunicação de massas, processamento da informação
e de produção. Em um primeiro momento, estas novas tecnologias pareciam
apontar no sentido da progressiva massificação das sociedades modernas,
com o longínquo ano de 1984 representando os olhos de "big brother"
no interior de cada casa, as mentes programadas e condicionadas, tudo
a serviço de um grande desígnio totalitário. Passada a data fatídica,
o que se observa nos países mais adiantados é a coexistência das grandes
cadeias nacionais de televisão por uma infinidade de alternativas locais,
que vão do acesso a programas internacionais às televisões locais e especializadas,
ou institucionais; a combinação dos grandes computadores com a difusão
e o barateamento dos computadores pessoais, com capacidade de acesso direto
aos grandes bancos de dados; a volta da pesquisa científica e tecnológica
dos laboratórios industriais e militares para as comunidades acadêmicas
e universitárias; e a substituição de muitos dos sistemas tradicionais
de produção industrial em série por novas formas de produção em equipe,
com forte recuperação dos conteúdos técnicos e cognitivos do trabalho.
O que presenciamos hoje, em síntese, não é o predomínio crescente e absoluto
das grandes estruturas de informação, administração e poder, nem sua substituição
por uma volta à comunidade perdida, mas a criação de um tipo de sociedade
extremamente complexa, onde os custos da comunicação e da informação se
aproximam cada vez mais a zero, e onde as distinções antigas entre o local,
o nacional e o internacional, o pequeno e o grande, o centralizado e o
descentralizado, tendem o tempo todo a se confundir, desaparecer. e reaparecer
sob novas formas.
De tudo isto, países como o Brasil ficaram, principalmente, com a carcassa
das burocracias centralizadas, que foram perdendo progressivamente sua
razão de ser e passaram, cada vez mais, a cuidar com exclusividade de
sua própria sobrevivência. Em nenhum setor esta realidade é mais dramática,
talvez, do que na área da educação básica, em que burocracias de dezenas
e até centenas de milhares de pessoas desempenham suas funções de forma
geralmente ritualística e rotinizada, sob o comando de administrações
centrais incapazes de saber e influenciar o que ocorre onde a relação
pedagógica realmente se dá, ou seja, nas salas de aula. Devolver a capacidade
de iniciativa e inovação às escolas, colocar as pessoas mais capazes e
motivadas em contato direto com os alunos, liberar as escolas para buscar
os recursos humanos, materiais e motivacionais nas comunidades que as
cercam, e recriar, assim, o ambiente de estímulo e motivação indispensável
para o trabalho educativo, eis a agenda fundamental de qualquer tentativa
de reintroduzir a modernidade em nossa educação básica.
É uma agenda sujeita a fáceis equívocos e confusões. Primeiro, em relação
à tradicional polêmica entre ensino público e ensino privado. Não se trata
de proclamar, também aqui, o fracasso da administração pública, e defender
por isto a privatização do ensino. A educação básica é responsabilidade
coletiva, e deve receber, em qualquer sociedade, uma parte substancial
dos recursos públicos. Público não quer dizer, porém, hierarquizado, uniforme.
monolítico e burocrático. A função do Estado, em todos os níveis, é a
de proporcionar recursos, fixar metas, acompanhar resultados, e corrigir
desigualdades e iniquidades. Isto se faz pelo estabelecimento de padrões
de desempenho, acompanhamento de resultados, estabelecimento de incentivos,
prestação de serviços de intercâmbio e assistência. A "perestroika"
educacional de que o Brasil necessita consiste em devolver às as escolas
a autoridade, a responsabilidade, os benefícios e os eventuais custos
de seu desempenho.
Segundo, em relação ao tema do relacionamento das escolas com suas comunidades.
É muito comum, nos meios educacionais brasileiros, a noção de que as escolas
públicas devem ser preservadas de interferências externas, como forma
de garantir sua independência e a universalidade de sua tarefa educativa.
A realidade, no entanto, é que, por mais que o Estado possa alimentar
a escola com recursos e materiais didáticos, nenhuma pode dispensar, sem
grandes perdas, o envolvimento da comunidade circundante em suas atividades
quotidianas. Este envolvimento vai desde a ajuda material concreta, na
forma de contribuições financeiras voluntárias, participação em trabalhos
de mutirão, doações e patrocínios de iniciativas educacionais, até o envolvimento
direto dos pais no processo quotidiano de educação de seus filhos. Esta
função de apoio familiar à atividade da escola é, sabe-se hoje, o fator
mais decisivo para garantir o sucesso da atividade pedagógica que a escola
desempenha. Quando, por razões sociais e econômicas, as famílias dos alunos
não lhes dá este apoio, a tarefa das escolas se amplia: não se trata mais,
agora, de simplesmente retirar a criança de um meio supostamente hostil
e substituí-lo por um outro ambiente mais adequado dentro da Escola, mas,
ao contrário, de desempenhar uma tarefa pedagógica que vá além da criança,
e envolva também a comunidade à qual ela pertence. Este tipo de trabalho
é, possivelmente, muito mais do que escolas públicas convencionais, ligadas
a secretarias de educação estaduais, poderiam pensar em desenvolver. Mas
ninguém disse que só podem haver escolas públicas deste tipo. Elas podem
também ser mantidas e geridas por sindicatos, associações de bairros,
comunidades religiosas, cooperativas agrícolas, partidos políticos, prefeituras,
escolas de samba, times de futebol, e quaisquer outras instituições que
existam para unir e congregar as pessoas em todas as partes.
Terceiro, em relação aos processos pedagógicos que presumivelmente facilitem
o desenvolvimento da motivação e do interesse pelo aprendizado. É preciso
não confundir a questão mais ampla do estímulo ao interesse e da motivação
pela atividade educativa, por parte de alunos, professores e familiares,
com determinadas teorias pedagógicas baseadas no princípios da espontaneidade,
do não direcionamento, e da criatividade e curiosidade naturais das crianças.
Estas teorias se desenvolveram, em grande parte, como respostas ao ritualismo,
burocratização e repressão que caracterizavam muitos sistemas educacionais
convencionais, que transformavam o processo educativo em um penoso ritual
de iniciação da criança à submissão à autoridade do adulto. Sem entrar
na discussão especializada que este tema requer, é necessário notar, no
entanto, que muitas vezes estas pedagogias liberais e anti-autoritárias
levaram ao completo abandono da atividade pedagógica enquanto tal, com
graves prejuízos para as crianças; enquanto isto, metodologias tradicionais,
quando aplicadas em ambientes preservados e motivados, podem conduzir
a resultados bastante satisfatórios. Este fato tem levado, inclusive,
a uma recente revalorização das pedagogias mais tradicionais e repressivas,
um tipo de conclusão que não é, de nenhuma forma, evidente. O que parece
ser certo é que, assim como existem muitas maneiras de tosquiar um carneiro,
existem também maneiras distintas, e igualmente satisfatórias de educar
uma criança.
Finalmente, a questão dos conteúdos. A escola moderna deve ser, acima
de tudo, preparação para a vida em mundo em constante mudança, onde o
que conta mais é a capacidade de entender o que ocorre ao redor de si
e de crescer continuamente, e não a aquisição de uma habilidade técnica
qualquer que se torna obsoleta de uma hora para a outra. Em sociedades
integradas e globalizadas como as de hoje, não tem sentido transmitir,
pela via da escola, um conjunto compartimentalizado e enlatado de conhecimentos
que se chocam, ou não se relacionam, com a realidade que entra diariamente
pelos olhos e ouvidos das crianças, na televisão, no rádio, nas conversas
em casa, nos jornais. E no entanto, esta realidade quotidiana é fugidia,
não guarda sentido de história e tradição, e se alimenta da visibilidade
de eventos ocasionais e espetaculares, sem o entendimento de suas características
mais permanentes ou profundas. O desafio da educação formal é, sobretudo,
o de transmitir estes conteúdos mais permanentes, o conhecimento histórico
e a localização espacial e política de dá sentido e continuidade ao fluir
do dia a dia em uma sociedade de massas. O primeiro passo nesta tarefa,
naturalmente, é introduzir o estudante nos primeiros fundamentos das "duas
culturas" em que o conhecimento humano tem se dividido, a literária
- ler, escrever - e a matemática - contar. O leque que se abre, depois,
é imenso, e não pode ser resolvido com receitas prévias, currículos mínimos
ou livros didáticos. O que o aluno deve receber na escola são as informações,
os conhecimentos e as habilidades que fazem parte da tradição cultural
de seu meio, e que os professores, como parte viva de sua sociedade, devem
naturalmente portar.
Se os professores não portam estes conhecimentos e esta cultura viva,
tudo o que fizerem com seus alunos estará perdido. É possível que o próprio
conceito de "professor", como aquela pessoa formada pelas licenciaturas
universitárias, cursos de pedagogia e escolas normais, já esteja se tornando
tão obsoleto quanto o da professorinha normalista que ainda povoa muitas
de nossas fantasias pedagógicas. A artificialidade dos cursos de pedagogia
que são hoje requeridos pelos cursos de licenciatura, tanto quanto a falência
dos antigos cursos normais, são evidências claras disto. É provável que,
no futuro, a formação pedagógica de nível superior tenda a se concentrar
cada vez mais na formação do professor ou professora de jardim da infância
e das primeiras letras, que introduzem as crianças ao mundo do estudo
e da educação, deixando as disciplinas especializadas para outros tipos
de profissionais. É uma discussão urgente, que mal começou a ser feita
entre nós. De qualquer forma, não resta dúvida que devolver aos mestres
o sentido de missão, a vontade de ensinar, a capacidade de inovar, de
criar e de buscar seus caminhos, e o reconhecimento devido pelo seu papel,
eis, em uma frase, a grande agenda da modernidade para a educação básica,
que nos cabe instaurar.
Notas
1. A crítica aos supostos ingênuos do cientificismo,
principalmente nas ciências sociais e humanas, realizadas pela sociologia
do conhecimento nas últimas décadas, e que tem como principal referência
o texto clássico de Thomas Kuhn sobre as revoluções científicas, sugere
que as construções intelectuais, científicas e técnicas têm um caráter
muito mais complicado, contingente e precário do que a palavra "objetividade"
pretendia significar; mas isto não justifica, de forma alguma, sua substituição
pela intuição estética ou pelo irracionalismo puro e simples.
2. Para um sumário crítico dos efeitos das propostas
pós-modernistas no contexto brasileiro, veja Sérgio Paulo Rouanet, "A
verdade e a ilusão do pós-moderno", em As Razões do Iluminismo,
São Paulo, Companhia das Letras, 1987, pp. 229-277.
3. A expressão foi retirada do Manifesto Comunista.
Veja Marshall Berman, All That is Solid Melts Into Air - The Experience
of Modernity. New York, Simon and Schuster, 1982 (há tradução brasileira).
A frase de Marx antecipa em mais de um século a crítica pós-modernista
à crença ingênua nos benefícios da industrialização e da modernização.
4. As aspas se justificam porque, na realidade, as
ciências sociais nunca adotaram completamente os pressupostos cientificistas
e evolucionistas mais extremados, podendo ser, na realidade, interpretadas
principalmente como uma reação a eles. A principal evidência disto é a
centralidade de Max Weber nas ciências sociais contemporâneas, em uma
interpretação que dá ênfase à sua dimensão histórico-comparativa e "compreensiva",
no lugar da leitura formal e sistêmica difundida na literatura de língua
inglesa a partir das reinterpretações de Talcott Parsons.
5. Este processo ocorreu até mesmo no ensino superior,
onde o charme da pesquisa tecnológica acabou por ofuscar o prestígio de
tarefas consideradas menos nobres ou menos úteis, como o ensino profissional
e, com maior intensidade, a formação de professores para o ensino básico
e médio.
6. Um raciocínio semelhante se aplica à propaganda,
que encontra seus limites quando o produto" que busca vender se choca
ou contradiz as experiências, motivações e interesses de seu público.