A Redescoberta da Cultura
A Força Do Novo
Simon Schwartzman
Publicado em Peter Wagner, Carol H. Weiss, Björn Wittrock,
Hellmut Wollman, eds., Social Science in Societal
Contexts: The Policy Orientation and Beyond, Cambridge
University Press, 1993; e originalmente como "A Força do
Novo - por uma sociologia dos conhecimentos modernos no Brasil",
Revista Brasileira de Ciências Sociais,
5, 2, 1987, 47-66. Republicado em A Redescoberta
da Cultura, EDUSP, 1997. Sou grato aos comentários e sugestões
de Martin S. Trow, Robert A. Packenham, Elisa Pereira Reis e
Lúcia Lippi de Oliveira às primeiras versões deste texto.
Sumário:
A força do novo
O iluminismo científico no Brasil
Os planos dos engenheiros
Os médicos: "melhor prevenir do que remediar"
Os bacharéis de direito
Os cientistas sociais: o país legal e o país real
Os ideólogos
Os economistas e o planejamento
As novas profissões sociais
O entrincheiramento dos intelectuais e a modernização brasileira
Notas
A força do Novo
Intelectuais sempre procuraram exercer influência sobre as sociedades
de que fazem parte. Sacerdotes, letrados e advogados disputaram durante
séculos com guerreiros, príncipes e nobres as posições de prestígio, autoridade
e decisão. Também lutaram uns contra os outros. Os arranjos resultantes
destas disputas descrevem, em linhas gerais, os conteúdos e orientações
valorativas de civilizações passadas e presentes(1). A época moderna trouxe para esta arena um novo
tipo de intelectual, que afirma ser detentor da credencial máxima para
suas aspirações de prestígio e de poder: os novos conhecimentos, amparados
pelas certezas da ciência. Na Europa ocidental, os novos intelectuais
faziam parte de amplos movimentos sociais que puzeram fim à ordem tradicional
e fizeram surgir o mundo moderno. Graças a esta associação histórica,
os valores do conhecimento empírico, do uso da razão, da liberdade individual,
da justiça social e da conquista da natureza davam a impressão de ser
uma coisa só: tudo era moderno e progressista(2).
Os proponentes da fé racionalista tiveram que enfrentar os intelectuais
de velho tipo na disputa pela supremacia de sua novas idéias em relação
às antigas, e provar aos detentores de poder, assim como aos novos grupos
sociais em ascensão, como a ciência lhes poderia ser útil. A defesa do
pensamento moderno se baseou, desde o início, em duas linhas de argumentação.
A primeira se liga à corrente de pensamento da economia e do liberalismo
político, geralmente associados à tradição inglesa. Toda a ênfase é posta
na liberdade de pensamento e de pesquisa individual, assim como na eliminação
das barreiras institucionais e morais ao livre pensar individual. A racionalidade
científica individual teria como resultado uma sociedade racional e eficiente,
da mesma forma em que a racionalidade econômica individual teria como
resultado uma economia rica e próspera. Nesta perspectiva, a economia
torna-se a ciência social por excelência, ao demonstrar como a racionalidade
individual, e o egoísmo, proporcionam a verdadeira base do bem estar coletivo,
e fornecendo, com isto, os fundamentos lógicos para os valores econômicos,
sociais e políticos do liberalismo.
A segunda perspectiva é decididamente francesa. Liberté não
existe sem Egalité e, mais especificamente, Fraternité.
Não se pode esperar que a solidariedade fraternal e a justiça social fluam
naturalmente do auto-interesse individual; para isto é necessário um Estado
ativo e intervencionista, administrado de acordo com os princípios da
ciência moderna. O positivismo de Augusto Comte leva essa noção a sua
conclusão natural: os poderes da ciência não se limitam à compreensão
e domínio da natureza, devendo ser estendidos à organização da sociedade.
Seu objetivo é produzir um plano geral para a organização da sociedade,
ao qual os indivíduos devem acatar. A sociologia, ciência da sociedade,
fica reservado o papel de ciência das ciências. Na versão de Durkheim,
os fatos sociais existem por si mesmos, e o comportamento dos indivíduos
é determinado por eles; liberdade de decisão e julgamento são meras ilusões.
Os positivistas eram evolucionistas, e para eles a sociedade ainda tinha
que ser elevada a níveis mais altos de racionalidade. Isto seria obtido
através da descoberta de leis, mecanismos e procedimentos técnicos que
viessem a desvendar um mundo pré-ordenado pelo processo evolutivo(3).
Nesse sentido específico, o positivismo evolucionista incorpora a história.
Na perspectiva positivista, a política aparece como um conflito entre
luz e trevas, ciência e ignorância. A vida política não é entendida como
uma inter-relação entre grupos distintos com valores e preferências diferentes
mas direitos igualmente legítimos. Não há espaço para "regras do
jogo" aceitas de comum acordo. Não há jogo para ser jogado com lisura
só uma guerra contra as trevas a ser ganha.
A tradição francesa reserva um lugar para os intelectuais na vida política
que na outra tradição quase não existe. Talvez seja por isto que essa
versão do iluminismo tenha se disseminado com muito mais facilidade do
que a versão inglesa, que requer um Estado muito menos visível. E, a despeito
de Comte, não foi a sociologia, mas as primeiras profissões modernas a
engenharia e a medicina de base experimental que primeiro personificaram
os projetos de reforma social científica em muitas sociedades. Foi este
o caso, sem dúvida, do Brasil, e outros países seguramente seguiram caminhos
semelhantes.
Os historiadores, com razão, tendem a tratar da introdução dos ideais
e valores da ciência, da tecnologia e da modernidade na América Latina
como um capítulo da expansão mundial da cultura européia. Como as diferenças
de contexto são tão grandes, sabe-se que os significados atrelados às
novas idéias, e sobretudo suas implicações políticas e sociais, tendem
a ser completamente distintos. O que tem faltado até agora é um exame
mais aprofundado e sistemático destas diferenças. Nesta passagem, expressões
como "intelectuais", "modernização", "conservadorismo"
e outras semelhantes tendem a perder ou alterar profundamente suas conotações
usuais. Pessoas educadas desempenham papéis sociais diferentes em épocas
e lugares distintos, e convém estar atento para não transportarmos conotações
indevidas de sentido de um a outro contexto. Assim, a palavra "intelectual",
num sentido mais amplo, refere-se a pessoas que receberam um volume substancial
de educação formal; em um sentido mais restrito, porém, tem sentido idêntico
ao de "intelligentsia", e refere-se a um papel especial desempenhado
por estas pessoas em algumas circunstâncias, qual seja o de tentar formular
e difundir amplas interpretações, visões de mundo de seus tempos e sociedades.
É típico da intelligentsia buscar difundir sua palavra por toda a sociedade,
e suas idéias são armas no confronto político para grupos sociais mobilizados
e em ascensão. Em outras circunstâncias, porém, os intelectuais mantém-se
próximos das elites, tentam influir na educação dos poderosos, e emprestam
sua competência aos governantes. Modernamente, este tipo de intelectual
é chamado de "tecnocrata". Em outras circunstâncias os intelectuais
se colocam relativamente à margem, tentando encontrar um lugar na sociedade
onde possam trabalhar e viver de acordo com seus próprios padrões e valores,
sem necessariamente tratar de conduzir ou liderar a outros. Este é, tipicamente,
o papel "profissional", que muitas vezes assume as características
das profissões liberais grupos profissionais independentes e auto-regulados,
e sem vínculos empregatícios com seus clientes. Por fim, pessoas educadas
podem também ocupar posições assalariadas, mal remuneradas e relativamente
pouco valorizadas; nestas circunstâncias, eles muitas vezes se intitulam
de "trabalhadores intelectuais", ou, simplesmente, colarinhos
brancos.
Os diferentes papéis desempenhados pelos portadores dos novos conhecimentos
podem ter pelo menos duas implicações amplas e distintas para suas sociedades,
uma política, outra mais epistemológica. Análises sobre as implicações
políticas têm estado muito em voga ultimamente nas ciências sociais, levando
ao questionamento da associação normalmente aceita entre conhecimentos
modernos, liberdade social e política, e iluminismo. Em lugar de ser um
instrumento para o progresso da humanidade, o conhecimento moderno e suas
instituições correlatas a educação formal, a pesquisa científica, as modernas
tecnologias são apresentados agora como simplesmente mais um instrumento
de opressão e controle social. O que o texto que se segue procura mostrar,
no entanto, é que o mesmo tipo de conhecimento pode ser utilizado para
objetivos sociais diferentes, e muitas vezes contraditórios. Em nome do
"progresso", podem surgir arranjos políticos extremamente tecnocráticos
e autoritários; segundo este mesmo critério, mobilizações populares de
cunho cultural, étnico ou educacional podem estar associados, às vezes,
a arranjos políticos extremamente conservadores. Continua sendo válido,
no entanto, examinar que condições favorecem o desenvolvimento de competências
intelectuais e técnicas efetivas, e quais as que levam ao simples uso
de idéias modernas como instrumento na luta pelo poder. Em determinadas
condições, por exemplo, engenheiros podem desempenhar diversas funções
sociais, como intelectuais, tecnocratas ou profissionais; além disto,
também podem ser engenheiros competentes ou incompetentes. As duas questões
são independentes, exigem explicações separadas e podem ter implicações
sociais profundamente diversas em suas diferentes combinações.
Se estas noções gerais fazem sentido, elas devem permitir uma interpretação
nova do papel histórico dos conhecimentos modernos no Brasil. O objetivo
do texto que se segue é sugerir, ainda que a vôo de pássaro, alguns temas
e linhas gerais para esta interpretação(4).
O Iluminismo Científico
no Brasil
O conhecimento técnico e científico surgiu na Europa como parte da ideologia
de grupos sociais emergentes, como parte da tendência geral à ampliação
das liberdades e da participação política, tanto em sua vertente inglesa
quanto na continental. Na América Latina, no entanto, estes conhecimentos
foram importados por grupos extremamente restritos, freqüentemente de
elite, que os utilizavam na competição com as elites mais tradicionais.
Assim, não é surpreendente que os conceitos usuais de "progressivismo"
e "conservadorismo" não se apliquem com facilidade. Exemplo
disto foi José Bonifácio de Andrada, figura central do movimento brasileiro
pela independência e inteiramente a par dos valores pragmáticos da Europa
de seu tempo. Não há dúvida que Andrada pode ser qualificado de progressista
por seus projetos de organizar um Estado moderno, por fim à escravidão
e criar uma universidade moderna no Brasil. Estes objetivos, porém, eram
incompatíveis com sistema político aberto que, deixado a si mesmo, tenderia
quase certamente a não inovar. Confrontado com as realidades da vida política,
Bonifácio de Andrada acabaria se aliando a grupos que não compartilhavam
sua visão do social e do econômico, sendo finalmente expelido de suas
posições de poder e de influência(5). Seu
drama antecipa o destino de uma longa sucessão de intelectuais que nunca
conseguiram compatibilizar sua visão de mundo com as realidades políticas
em que viveram.
Quando circunstâncias forçaram a corte portuguesa a vir para o Brasil
no início do século XVIII, e conceder à antiga colônia sua virtual independência,
os portugueses não tardaram em criar uma escola de engenharia militar
no Rio de Janeiro. Também criaram duas escolas de medicina, uma no Rio
de Janeiro e outra na velha capital colonial, Salvador, além de autorizar
a abertura de duas escolas de direito, em São Paulo e no Recife(6).
Pouco se sabe sobre as razões que nortearam estas decisões de especialidades
e lugar, mas até certo ponto é possível especular. Nos longos séculos
de domínio colonial os portugueses jamais permitiram a criação, no Brasil,
de uma universidade de orientação católica do tipo das que foram criadas
em tantas partes do Império espanhol. As relações do Estado português
com a Igreja sempre foram simbióticas mas conflitantes, como ficou claro
quando da expulsão dos Jesuítas no século XVIII, tendo como principal
resultado a interrupção do controle que exerciam sobre a Universidade
de Coimbra. Jamais houve um cisma aberto entre o Estado português e a
fé e ortodoxia católica, como se observou em muitos outros países da Europa
ocidental através dos movimentos da Reforma. Todos eram (e, no Brasil
de hoje, ainda são) oficialmente católicos, e a Igreja desempenhava um
papel central e insubstituível na educação dos jovens, nos rituais de
passagem e enquanto única fonte de código moral válido, mesmo que raramente
seguido. Uma carreira sacerdotal, porém, dificilmente era vista como desejável;
em vez disto, era uma opção menor para os bastardos, os de sangue mestiço
e outros excluídos, o que reforçava seu status relativamente baixo. A
elite preferia mandar seus filhos para as escolas de direito, e a organização
extremamente complexa da burocracia patrimonial portuguesa parecia garantir
emprego para todos os bem nascidos.
A distribuição das novas instituições educacionais pelo território brasileiro
no século XIX deixa entrever o modo como as prioridades estavam se alterando.
A transferência da Coroa portuguesa para o Brasil sob proteção inglesa
e perseguição francesa foi o ponto mais baixo da história de Portugal
desde os anos gloriosos das descobertas, e sua total debilidade militar
explica, certamente, a prioridade que se deu a escolas militares no Rio
de Janeiro. A segunda prioridade era medicina e cirurgia, tanto por razões
militares como devido às condições sanitárias lamentáveis que prevaleciam
na época. Nada mais adequado do que sediar em Salvador, a maior cidade
do país, e a mais importante depois da capital, a segunda escola de medicina.
Como os cursos de direito eram considerados como a melhor garantia de
um bom emprego para os filhos da pequena nobreza local na decadente Recife
e na estagnada São Paulo, estas cidades obtiveram as escolas direito que
desejavam.
Tudo indica, assim, que a Coroa colocou junto a si o que lhe parecia
mais importante, os cursos militares, de engenharia e medicina, e deixou
às elites locais seus cursos de direito. Se era essa de fato a ordem de
prioridade daquele tempo, o modelo não permaneceu inalterado ou inqüestionado
nos anos que se seguiram. As escolas de direito de Recife e de São Paulo
afastaram-se do domínio da lei canônica e dos códigos tradicionais portugueses
e começaram a receber o influxo de diversas correntes do pensamento liberal;
as academias militares evoluíram para escolas de engenharia, que constituíam
terreno fértil para os valores cientísticos do positivismo; e a profissão
médica, estimulada por suas descobertas e resultados no combate às moléstias
tropicais na virada do século, desenvolveu suas próprias aspirações messiânicas.
Estes desenvolvimentos não foram, certamente, exclusivos de Portugal
e Brasil. A Espanha também expulsara os jesuítas de seu Império durante
o século XVIII e fizera um esforço de aggiornamento que atingiria
as colônias e continuaria exercendo sua influência depois dos anos da
independência(7).
Os planos dos engenheiros
A noção de que a sociedade poderia ser planejada e gerida por engenheiros
estava bem de acordo com a tradição francesa, e teria grande impacto no
Brasil. Enquanto na tradição inglesa a engenharia sempre fora uma ocupação
menor e sem foros de nobreza, a École Polytechnique foi, desde
o início, o lugar onde a elite administrativa francesa era educada. Lá,
a educação militar era ministrada juntamente com o treinamento da mente
em matemática e física; pensava-se que esta combinação prepararia as melhores
mentes cartesianas, prontas para construir pontes, comandar exércitos
e dirigir a economia. Esta descrição, e as diferenças entre as tradições
anglo-americana e francesa, ainda hoje são válidas.
O modo como a antiga escola militar do Rio de Janeiro mudou de nome e
objetivos durante o século XIX é uma boa indicação sobre os papéis que
lhe eram atribuídos. Quando foi fundada, em 1810, como Real Academia Militar,
esperava-se que oferecesse um "curso completo de ciências matemáticas,
de ciências de observação, quais a física, química, mineralogia, metalurgia
e história natural, que compreenderá o reino vegetal e animal e das ciências
militares em toda sua extensão, como a de tática como de fortificação
e artilharia"(8). A profissão militar
nunca desfrutou de muito prestígio no Brasil, exceto talvez no sul do
país, e os aspectos civis sempre prevaleceram na Escola. Em 1858 a Academia
Militar mudou de nome, passando a chamar-se Escola Central, e finalmente
em 1974 adotou a denominação francesa de Escola Politécnica.
O fato de que a engenharia civil predominasse não significava que a Escola
fosse particularmente competente enquanto local para a formação especializada
nas técnicas mecânicas ou de construção, ou para o estímulo da competência
nas ciências físicas e naturais. Adotavam-se livros-texto ultrapassados,
quase não havia aulas práticas nem experimentais, o trabalho de pesquisa
era praticamente inexistente. Provavelmente tudo isto não fazia muita
diferença diante das limitadas necessidades tecnológicas da sociedade
brasileira naquela época. A Escola de Minas de Ouro Preto, criada sob
supervisão francesa em, 1875, não teve um desempenho especializado muito
melhor ao longo do tempo, apesar de ter iniciado suas atividades dentro
de padrões acadêmicos muito mais estritos. O solo de Minas era rico, mas
durante não houve condições econômicas para o desenvolvimento de uma indústria
de mineração que fizesse uso dos talentos especializados que a velha Escola
de Minas deveria formar(9). Somente em São Paulo, onde a Escola Politécnica
local foi criada em 1814 para acompanhar de perto a expansão do sistema
ferroviário para o interior do território cafeeiro, atingiu-se um nível
mais técnico e especializado de ensino.
O que deu sentido à Escola Politécnica do Rio de Janeiro (bem como à
Escola de Minas e, em certa medida à Politécnica de São Paulo) foi o papel
que desempenhou na criação de uma nova linhagem de intelectuais de elite,
capazes de por em cheque a cultura estabelecida dos bacharéis e da Igreja,
em nome da ciência moderna. A doutrina positivista deu aos engenheiros
a certeza de que tinham o direito e a competência de gerir a sociedade,
que se tornaria melhor e mais civilizada se o poder estivesse em suas
mãos. Os positivistas se mobilizaram contra a monarquia, defenderam a
educação para todos e melhores salários para a classe trabalhadora, fizeram
oposição à Igreja e a todas as formas de organização corporativa da sociedade
(e se opuzeram, por isto, à criação de universidades), combateram a vacina
obrigatória, e, antes de mais nada, organizaram-se em sociedades secretas
e conspiraram para a tomada do poder. A marca de sua vitória, Ordem e
Progresso, está até hoje registrada na bandeira do país.
O positivismo foi apenas a primeira e mais evidente manifestação da tendência
dos que estavam ligados à tecnologia e às ciências exatas a concluir que
tinham a competência requerida, e por isto o direito, de liderar as sociedade.
Os militares, que ao longo de sua história permaneceram como uma espécie
de carreira de engenharia de segunda classe, foram os que se ativeram
mais fortemente, e por mais tempo, a esta ideologia; faziam-no, sobretudo,
no âmbito do Exército, que sempre teve um componente menos técnico do
que a Marinha ou, mais recentemente, a Aeronáutica. Isto não significa,
evidentemente, que estas corporações não fossem também politizadas, e
até mais; mas é no Exército que se desenvolveu uma visão articulada do
papel messiânico das forças armadas, consubstanciada na doutrina de segurança
nacional(10).
Também o marxismo, no Brasil, resultou em grande medida das tradições
militares e de engenharia. Traduzido do francês, distanciado de movimentos
operários organizados e despido de sua inspiração hegeliana, o marxismo
tendia a ser visto simplesmente como apenas mais uma variante do evolucionismo
positivista. No começo do século XX, imigrantes italianos, espanhóis e
da Europa Central trouxeram para o Brasil os ideais da organização e ação
política das classes trabalhadoras. Entre eles prevalecia o anarquismo,
e alguns aderiram aos princípios do socialismo científico do internacionalismo
comunista. A velha guarda comunista do país seria inteiramente suplantada,
no entanto, pelo grupo militar liderado pelo capitão Luís Carlos Prestes.
Se a insurreição de 1935 foi um fiasco como movimento político, ela teve
como resultado, no entanto, que Prestes e seu grupo de jovens tenentes
permanecessem à frente do Partido Comunista no Brasil até meados da década
de 70, impedindo, desta forma, a emergência de uma liderança marxista
alternativa, fosse ela sindical ou intelectual, com as notáveis exceções
de praxe.
Os engenheiros também trataram de assumir uma posição mais direta de
comando, através do controle do habitat humano as cidades. A criação de
Belo Horizonte como nova capital para o antigo Estado de Minas Gerais,
que deveria renascer com o advento da República, manteve-se como símbolo
que ressurgiria quando um ex-prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitscheck,
resolveu dar nova partida à história brasileira com a construção de Brasília.
No início do século XX o Brasil passou por sua experiência mais significativa
de renovação urbana, pela transformação do Rio de Janeiro numa cidade
ao estilo francês, durante a gestão de Pereira Passos. Só agora os historiadores
e sociólogos começam a estudar como se deram estas experiências, quais
eram seus pressupostos e como as pessoas se encaixariam ou não nos planos
que saiam das pranchetas dos engenheiros e arquitetos. As três experiências
tiveram em comum pelo menos uma característica, ou seja, a noção de que
havia um plano a ser seguido, linhas retas a serem transferidas para o
mundo real, e que as pessoas deveriam ser levadas convencidas, educadas,
ou simplesmente obrigadas a aceitá-los. Em Belo Horizonte, construída
numa região montanhosa, as elevações de terreno não aderiram de muito
bom grado aos triângulos e quadrados do arquiteto Aarão Reis, não por
acaso um positivista que estudara na Escola Politécnica do Rio de Janeiro.
Os mineiros aprenderam a lição, e construíram Brasília em um planalto.
No Rio de Janeiro, a velha cidade portuguesa, suja e apinhada, foi posta
abaixo, e as pessoas obrigadas a abandonar suas casas, expulsas para subúrbios
distantes, em um processo que voltaria a se repetir já nos anos 60. No
Rio, como em muitas outras partes, a modernização urbana tornou-se sinônimo
de autoritarismo e violência social(11).
Brasília recorda que em nenhum outro lugar foi tão evidente a existência
de laços paradoxais entre o iluminismo dos engenheiros e o autoritarismo
político quanto na moderna arquitetura brasileira. O país entrou no mundo
da arquitetura moderna nos anos mais negros do Estado Novo, quando se
experimentavam idéias de poder totalitário que pareciam prevalecer na
Europa. Para os tenentes que acompanharam Vargas à tomada do poder em
1930, os regimes soviético, alemão e italiano eram igualmente fascinantes,
e não muito diversos uns dos outros. Depois do levante de 1935, só os
exemplos fascistas continuaram aceitáveis. Um país em construção, poderoso
e moderno, precisava de grandes obras, e Le Corbusier disputou palmo a
palmo com o italiano Marcelo Piacentini pelo privilégio de construir o
grande sonho do Ministro Capanema, a Cidade Universitária do Rio de Janeiro(12).
Le Corbusier e seus seguidores brasileiros, liderados por Lúcio Costa,
saíram derrotados mas tiveram a oportunidade, mais tarde, de construir
a sede do Ministério da Educação no Rio de Janeiro. Esta disputa, que
pode ser vista como um simples confronto entre grupos profissionais e
estilos arquitetônicos, desenvolveu-se num âmbito muito mais amplo, no
qual o conflito entre os jardins e rodovias suspensas de Le Corbusier
e as colunas romanas de Piacentini aparece como a encarnação do conflito
entre fascismo e socialismo.
A construção do edifício do Ministério da Educação contribuiria para
dar ao regime Vargas, e especialmente ao seu Ministro da Educação, uma
aura progressista que nunca tiveram nem pretenderam ter. Escrevendo em
1945 sobre este edifício, Lúcio Costa o descreve como "linda e pura
flor do espírito, prenúncio certo de que o mundo para o qual caminhamos
inelutavelmente poderá vir a ser, apesar das previsões agourentas do saudosismo
reacionário, não somente mais humano e mais justo, senão, também, mais
belo"(13). Enquanto no Rio discutiam-se
os grandes projetos, o prefeito de Belo Horizonte encarregava Oscar Niemeyer
e Cândido Portinari de projetar e decorar as edificações que iriam circundar
a lagoa da Pampulha. Mais tarde, Lúcio Costa assinaria o plano mestre
de Brasília, Niemeyer projetaria os edifícios e todos jurariam mais uma
vez, pelo menos por algum tempo, que a arquitetura moderna na cidade nova
seria um novo início de uma nova era para o Brasil.
A Politécnica também produziu empresários. O capitalismo brasileiro em
São Paulo deriva principalmente da combinação do dinheiro das plantações
de café com o impulso trazido pelos imigrantes europeus. O engenheiro
oriundo da Politécnica do Rio de Janeiro vinha de uma outra linhagem.
Tinha competência para saber onde encontrar as riquezas minerais do país,
ou que tipos de grandes projetos o governo poderia se interessar em empreender.
Sabia francês, às vezes alemão e inglês, e era capaz de lidar com capitalistas
e governos estrangeiros. Além disto, estava equipado com os sobrenomes
que convinha, e tinha os contatos necessários para obter as licenças,
autorizações e concessões necessárias para seus projetos. Este tipo de
empresário era, decididamente, um defensor da iniciativa privada, mas
só tinha condições de se desenvolver à sombra do Estado. Esta associação
"neo-mercantilista" entre Estado e interesses privados não era,
naturalmente, nenhuma novidade na tradição brasileiro-portuguesa de administração
colonial. Mas não há dúvida que impõe certas conotações pouco comuns à
imagem convencional de um empresário capitalista(14).
Um último derivado da tradição da Politécnica foram as ciências exatas.
A matemática, a física e a astronomia surgem na antiga Politécnica, graças
a uns poucos indivíduos de talento que se beneficiavam de contatos estreitos
com a França, e tentaram inaugurar um espaço intelectual e institucional
para a pesquisa pura, que ao mesmo tempo estivesse livre dos aspectos
pragmáticos da engenharia e das restrições ideológicas do positivismo.
Estes intelectuais criticavam as limitações da educação profissionalizante,
escreviam artigos complexos demonstrando os erros científicos do positivismo,e
envolveram-se na organização das primeiras universidades do país, em São
Paulo no Rio de Janeiro. Para eles, a ciência moderna e a matemática eram
ingredientes necessários da cultura moderna, e queriam trazer este elemento
para o Brasil(15).
A II Guerra Mundial iria alterar tudo isto. A nova geração de jovens
físicos, iniciada pelos professores estrangeiros da Universidade de São
Paulo na década de 30 e 40, estava convencida de que tinha um papel muito
mais importante a desempenhar. Estes cientistas acompanhavam os avanços
da tecnologia nuclear, se entusiasmavam com o uso da racionalidade técnico-econômica
na transformação da União Soviética em grande potência, e consideravam
que seu papel era trazer para o Brasil as vantagens da energia nuclear
e os benefícios do planejamento racional. Para alguns, isto significou
militar em partidos políticos comunistas ou socialistas; para outros,
significou participar de projetos governamentais ambiciosos e quase sempre
frustrados na área de tecnologia avançada. Além disto, envidaram esforços
para transformar as universidades brasileiras em instituições de base
científica, abertas para todos, geridas democraticamente e altamente envolvidas
com a solução dos problemas urgentes do país(16).
Devido a sua identificação com a esquerda, diversos dos mais conhecidos
dentre esta geração de cientistas entrariam em conflito com os governos
militares instituídos depois de 1964, e tiveram que partir para o exílio.
Isto não impediu, no entanto, que muitos deles defendessem a orientação
nacionalista e estatizante que os militares também personificavam, e medidas
como a reserva de mercado para a informática, e já na Nova República,
a criação do Ministério da Ciência e Tecnologia, foram, para muitos, a
consagração de suas lutas.
Os médicos:
"melhor prevenir que remediar".
A idéia de que as ciências médicas não deveriam se limitar à função curativa,
mas desempenhar um papel mais social, preventivo, instalou-se solidamente
nos círculos médicos brasileiros no século XIX(17).
Antes disto, como depois, o médico lidava basicamente com indivíduos que
o procuravam em busca de ajuda, e que tinham condições de pagar por seus
serviços. As grandes epidemias peste, lepra, varíola, tuberculose, tifo,
doenças venéreas eram em geral da alçada das autoridades públicas e religiosas,
que isolavam os atingidos, confortavam os moribundos, enterravam os mortos
e exortavam os saudáveis a não viverem em promiscuidade. No início do
século, provavelmente pela primeira vez no Brasil, solicitou-se aos médicos
que tratassem de entender as causas das doenças que grassavam no Rio de
Janeiro, e que sugerissem medidas para curá-las. Os médicos encontraram
problemas no ar, na arquitetura, no fornecimento de alimentos à população,
na moral social... Suas recomendações eram sobretudo de cunho urbanístico,
legal e moral, antes que estritamente médicas, e requeriam a aprovação
e o empenho de autoridades mais altamente posicionadas. Nas décadas seguintes,
porém, os médicos tentariam desempenhar um papel mais importante.
Os autores de Danação da Norma citam uma tese apresentada à
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1839, denominada A medicina
contribui para o melhoramento da moral e manutenção dos bons costumes,
como indicativa na nova mentalidade de então(18).
"Para que se preserve a saúde de uma população", resumem os
autores, "há necessidade de implantação de uma sociedade onde não
se suscitem paixões, onde o caos foi desfeito, onde reina a ordem, onde
tudo funciona, onde não existem monstros, onde os costumes são doces.
A medicina, conhecendo o homem e as alterações de seu organismo provocadas
pela desordem, deve guiar o processo de estabelecimento e o funcionamento
desta sociedade, apontando sempre as causas de alteração e nelas intervindo.
Oferece o saber do corpo, que deve ser disseminado por toda a sociedade
fazendo com que cada um evite a paixão e a desordem e que deve ser a base
de funcionamento do corpo social. É ainda a formulação do sonho de uma
república dos médicos, república onde tudo é ordem, calma, luz; onde o
equilíbrio está instaurado. Temperança, continência, moderação nos costumes,
tranqüilidade da alma virtudes que se opõem à turbulência e desordem em
defesa da vida; virtudes cujo exercício é relacionado a uma sociedade
que o permite, que o funda. A medicina estuda a influência do estado social
sobre o homem, do modo de governo, da liberdade, da escravidão, das crenças
religiosas e a partir daí, percebendo as alterações funcionais que podem
decorrer desta influência, faz sua proposta de sociedade de equilíbrio"(19). A Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro,
criada em 1829, dedicar-se-ia persistentemente ao objetivo de colocar
a sociedade sob a supervisão científica da profissão médica e, ao mesmo
tempo, lutaria com todas as suas forças contra as formas não institucionalizadas
de trabalho médico, da homeopatia à medicina caseira e tradicional.
É justo, provavelmente, dizer-se que a profissão médica nunca teve, no
Brasil, a mesma força que tiveram os engenheiros na defesa de suas propostas
ambiciosas. Uma das explicações para este fato é que o mercado para a
prática privada da medicina sempre foi melhor do que o que cabia aos engenheiros,
e por isto os médicos tinham melhores condições de abraçar mais de perto
os cânones de uma profissão liberal. Só os médicos mais ligados a hospitais
gerais, os sanitaristas e os médicos militares, tentariam desempenhar
um papel mais abrangente. Suas maiores realizações deram-se no inicio
do século XX, quando os especialistas em medicina sanitária se uniram
aos engenheiros para a reorganização e saneamento do espaço urbano, mais
especificamente do Rio de Janeiro: a cidade foi rasgada por largas avenidas,
as casas invadidas em busca de águas estagnadas e a população obrigada
a vacinar-se em massa contra a varíola. Os tumultos que disto resultaram,
conhecidos como a "revolta da vacina", atestam da violência
a que a população foi submetida(20).
Se os médicos, enquanto grupo organizado, nunca detiveram muito poder,
eles se aproximaram mais das ciências sociais do que os engenheiros, e
tiveram um importante papel na definição das ideologias sociais preponderantes
no país. A antropologia física surgiu, entre nós, como um ramo da medicina
legal. Nina Rodrigues, na Faculdade de Medicina da Bahia, trabalhava,
na virada do século, com teorias biológicas que buscavam ligações entre
formas físicas e comportamento criminoso. Essa literatura conduzia diretamente
a questões sobre as qualidades (e os defeitos!) raciais da população brasileira,
e aos problemas de miscigenação e degeneração racial. As explicações para
os problemas apresentados pelos brasileiros preguiça, luxúria, indisciplina
se transferiam das antigas teorias climáticas e ambientais para as novas
teorias biológicas, supostamente mais científicas(21).
Este diagnóstico teria que dar origem a um tratamento. A eugenia tornou-se
questão importante nos círculos médicos brasileiros, e em 1920 realizava-se
no Rio de Janeiro o primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, com participantes
de diversos países latinoamericanos, seguido pela criação, em 1931, da
Comissão Brasileira de Eugenia(22). Propunha-se
intervenções em muitas áreas, desde exames pré-nupciais, para controle
de doenças venéreas, até a esterilização dos alcoólatras, sifilíticos
e esquizofrênicos. Para alguns, o estoque racial brasileiro deveria eperfeiçoar-se
naturalmente com o tempo, graças à superioridade do sangue branco. Outros,
menos "otimistas", exigiam limitações estritas aos casamentos
inter-raciais. Todos queriam que os imigrantes asiáticos e outros pertencentes
a raças consideradas inferiores fossem isolados, e que se fizessem leis
favoráveis à imigração de europeus ocidentais(23).
Eugenia e raça deixaram de ser assuntos legítimos para a intelligentsia
brasileira depois da II Guerra Mundial. Os avanços extraordinários da
medicina curativa durante a guerra e nos anos que se seguiram, associados
ao próprio sucesso das campanhas sanitárias e epidemiológicas das décadas
anteriores, deixaram a profissão médica sem plataforma social e ideológica
própria. Esta situação começaria a mudar novamente nos anos setenta, com
dois processos simultâneos. O primeiro foi a progressiva erosão da medicina
enquanto profissão liberal, com o aumento do número de médicos e a elevação
do custo da medicina, processo que coincidiu com a ampliação da previdência
social como um grande sistema estatal de medicina curativa. O segundo
foi o reaparecimento, nos centros urbanos, de enfermidades contagiosas
que pareciam ter sido eliminadas nos anos anteriores. Com estas alterações,
as novas gerações de médicos brasileiros são muito diferentes das antigas.
Em sua maioria, os novos médicos são empregados dos serviços de saúde,
estão organizados em sindicatos, e recorrem à greve quando sentem que
necessitam; provavelmente não são tão bem treinados, em média, quanto
seus antecessores (nas melhores escolas, por outro lado, sua formação
é quase certamente melhor do que nunca); e têm uma percepção aguda de
que os problemas de saúde que enfrentam dia a dia nos ambulatórios da
Previdência não são fundamentalmente biológicos, mas sociais e econômicos.
Parece haver assim, em certo sentido, uma volta ao ponto de partida. A
despeito de sua politização renovada e evidente militância, parece improvável
que os médicos de hoje tentem, como no passado, desfraldar uma bandeira
própria de reformas sociais. Veem-se basicamente como trabalhadores intelectuais,
parte de um proletariado intelectual crescente, e tendem a agir de acordo
com isso.
Os bacharéis de direito
As profissões jurídicas não são propriamente portadoras de "conhecimento
novo", no mesmo sentido que engenharia ou a medicina. As faculdades
de direito, no entanto, sempre acompanharam de perto as inovações do direito
positivo de outros países, principalmente europeus, e neste sentido cumpriram
um papel modernizador significativo, com algumas características bastante
especiais(24).
No início, as ciências sociais não se distinguiam do Direito. Na tradição
administrativa portuguesa nunca houve separação clara entre os ramos executivo
e judiciário, e os corpos legislativos, quando existiam, tendiam a ser
débeis e subordinados ao governo central. Freqüentar uma faculdade de
direito e colar grau não significava adquirir uma profissão especializada
na assessoria ou advocacia jurídica, como tende a ser hoje. Os cursos
jurídicos funcionavam, basicamente, como processo de socialização das
novas gerações de elite, e sua preparação para ocupar as posições no governo
que pudessem ser obtidas através de laços políticos e familiares. Quando
não geriam a coisa pública diretamente, os advogados cuidavam da mediação
entre o Estado e os interesses privados. Carreiras jurídicas baseadas
predominantemente na competência profissional especializada tendiam a
ser raras, e só interessavam a uns poucos que não dispunham de outros
trunfos.
Uma das conseqüências dessa proximidade entre direito e governo foi o
desenvolvimento do direito administrativo como uma das mais significativas
disciplinas das escolas de direito do país. O direito administrativo implica
num "positivismo" jurídico que se recusa a ir além do texto
da norma, e neste sentido se choca com as doutrinas jusnaturalistas que
sempre foram o cerne das ideologias de justificação da profissão jurídica
no país(25). Ele tampouco abre espaço
para uma sociologia do direito. Esta esquizofrenia entre a prática e a
doutrina jurídicas talvez explique a dificuldade que os cursos de direito
até hoje encontram, no Brasil, em de fato se modernizar.
O direito administrativo é, em certo sentido, uma teoria legalista da
administração pública, em que a formalidade das leis escritas é o único
elemento da realidade levado em conta. Num sentido mais doutrinário, o
direito administrativo ocupa-se daquelas situações em que uma das partes
em um contrato legal o governo não só tem mais direitos do que a outra
o indivíduo como também controla partes substanciais do próprio sistema
legal responsável por dirimir eventuais conflitos de interesse. Neste
sentido, ele permite tanto a advocacia de interesses privados junto ao
Estado como uma tecnologia de montagem de instituições e procedimentos
governamentais.
Uma versão mais grandiosa do direito administrativo, desenvolvida por
um pequeno grupo de eruditos, é o chamado "constitucionalismo",
que na tradição brasileira significa, não a competência em tratar dos
aspectos constitucionais das questões legais, mas na própria capacidade
de propor legislações abrangentes que afetam as definições legais básicas
da organização institucional do país. Neste sentido, o constitucionalismo
está para as ciências políticas como o direito administrativo está para
as ciências administrativas e organizacionais. O Brasil passou por alterações
constitucionais suficientes, ao longo de sua história, para manter sempre
ocupado um punhado de competentes constitucionalistas (1824, 1891, 1934,
1937, 1945, 1967, 1987, e diversas emendas e atos constitucionais entre
uma e outra data). Os constitucionalistas funcionam como assessores de
grupos políticos influentes em períodos de crise política, e dão forma
legal para o ajuste das transições. Até hoje não se fez um estudo aprofundado
deste tipo de tecnocrata e seu papel na política brasileira. Vale a pena
mencionar, porém, os mineiros Francisco Campos, responsável pela maior
parte da legislação autoritária brasileira desde a década de 30(26),
e Afonso Arinos de Melo Franco, ativo nas constituintes de 1934 a 1987,
como talvez os exemplos mais significativos desta pequena elite.
Os advogados foram, portanto, políticos, profissionais e tecnocratas
de alto nível, mas raramente uma intelligentsia no sentido mais clássico.
As faculdades de direito, porém, se tornaram famosas enquanto centros
de ativismo político estudantil, fenômeno antigo na América Latina que
prenuncia com grande antecipação processos semelhantes na Europa e nos
Estados Unidos. Os estudantes de direito lideraram as manifestações pela
entrada do Brasil na II Guerra Mundial, e contribuíram decisivamente para
o debilitamento e final derrocada do Estado Novo, e continuaram ativos
nos anos áureos da União Nacional dos Estudantes, até a década de 60.
A oposição mais ativa ao regime militar de 1964, no entanto, veio muito
mais dos advogados já formados do que propriamente de estudantes. A bandeira
dos direitos humanos permitiu às associações jurídicas reclamarem a si
um papel central na vida do país que os advogados vinham perdendo de forma
marcante. O que aconteceu com os estudantes de direito não foi muito distinto,
neste particular, do que ocorrera com as instituições de ensino superior
e seus estudantes como um todo. A mobilização política estudantil no Brasil
atingiu seu ápice nos anos sessenta, e desde então vem declinando constantemente,
depois de alguns anos de radicalização extrema no início dos anos setenta(27).
É difícil dizer se a desmobilização que houve desde então foi um resultado
da ação repressiva dos militares ou uma conseqüência de novas realidades.
A repressão aumentou muito, evidentemente, o custo da militância, mas
poderia também ter incentivado o desenvolvimento da resistência e da oposição.
Maior efeito pode ter tido, neste processo, a grande ampliação no acesso
ao ensino superior, que pela primeira vez abriu espaço para grupos sociais
de origem menos elitizada, cuja preocupação primordial era sua própria
mobilidade e os pequenos privilégios recém adquiridos, e neste sentido
profundamente diferentes das jovens elites contestatárias dos anos anteriores.
O fenômeno novo nas instituições de ensino superior brasileiras nos anos
setenta e oitenta é a mobilização dos professores e de algumas categorias
profissionais como a dos advogados e a dos médicos. Os profissionais de
agora são, em muitos casos, os estudantes de antes: entendem de política,
sabem como se organizar, como se exprimir politicamente. Além disto, encontram-se
em uma posição difícil, basicamente defensiva, do ponto de vista profissional
e intelectual, o que contribui para explicar algumas características do
ativismo político de hoje, onde os componentes corporativos predominam,
freqüentemente, sobre os demais.
O direito continua sendo uma profissão de prestígio, mas passou por transformações
importantes em épocas recentes. O diploma de advogado deixou de ser uma
condição prévia para a carreira política, e certamente não a garante.
Continua sendo verdade que, para quem tem as conexões e a origem social
apropriadas, o diploma de advogado continua a ter sua utilidade; mas,
na medida em que foi aumentando o número de detentores de diplomas, seu
valor de mercado tendeu a diminuir.
Mais seriamente, o Direito enquanto disciplina intelectual jamais conseguiu
trazer a si a imagem de um conhecimento novo. Houve algumas experiências
de modernização em lugares como a Fundação Getúlio Vargas e na Universidade
Católica do Rio de Janeiro, que deixaram sua marca. Desenvolvidos com
a cooperação de especialistas norte-americanos nos anos sessenta, estes
cursos tinham como principal objetivo a preparação de advogados capazes
de trabalhar com as questões legais típicas de um mercado capitalista
moderno, mas permaneceu como uma experiência isolada, freqüentemente referida
mas insuficiente para permitir o desenvolvimento de um campo novo de pesquisas
e estudos de pós-graduação semelhante aos que existem nas demais ciências
sociais(28).
Os
cientistas sociais: o país legal e o país real.
As ciências sociais surgiram no Brasil em uma contraposição entre o país
formal, definido por suas legislação, e suas duras realidades empíricas.
Exemplar, neste sentido, foi a oposição entre dois grandes nomes, Rui
Barbosa e Oliveira Viana. Rui Barbosa foi um escritor prolixo, sua erudição
parecia infinita, e em 1910 encabeçou a campanha civilista contra Hermes
da Fonseca, como representante dos valores civis e liberais. Perdidas
as eleições, com grandes denúncias de fraude, Rui Barbosa passou a personificar
o que de melhor o pensamento jurídico era capaz de produzir.
Oliveira Viana era sua nêmesis. Recusava-se a olhar o Brasil e os brasileiros
através da lente do direito, e, em lugar disto, tratava de ver a realidade
sociológica subjacente. Comparava a textura da sociedade brasileira às
das européias, e concluía que os brasileiros não tinham os ingredientes
essenciais para a construção de uma ordem democrática. Suas explicações
costumavam ser de fundo racial, na tradição inaugurada por Nina Rodrigues,
e insustentáveis em termos das modernas ciências sociais; sua análise
de como a sociedade brasileira se organiza em torno de clãs familiares
e políticos, e de como a organização social do país partia dessa realidade,
continua sendo um clássico das ciências sociais brasileiras(29). Nos anos trinta, Oliveira Viana defendia as
tendências centralizadoras e modernizantes do regime Vargas, contra o
pensamento liberal dos anos anteriores, que considerava parte da tradição
formal e legalista que Rui Barbosa simbolizava. "O erro destes espíritos
teorizadores (...) está na concepção, em que todos eles vivem, de que
uma reforma política só é possível por meios políticos. Eles não concebem
que haja outros meios capazes de modificar as condições da vida política
de uma sociedade senão a modificação de suas instituições de direito público"(30). Seria necessário, em lugar disto, trabalhar
diretamente sobre a realidade social. Como conselheiro do governo, foi
responsável por muitas inovações introduzidas na legislação social naqueles
anos, e opunha-se às formas mais extremadas de conservadorismo de direita
que com ele coexistiam(31). Oliveira Viana
foi apenas um entre diversos intelectuais, a maioria formados inicialmente
em direito, que nas décadas de 20 e 30 tratavam de entrar em contato com
o Brasil real(32). Além dos livros que
escreviam, também tentaram influenciar diretamente o curso dos acontecimentos,
e sentiam-se atraídos pelas áreas onde a sociedade poderia ser atingida
mais diretamente, como a educação.
A mobilização em torno das questões educacionais levou à formação de
um novo grupo de cientistas sociais que ficou conhecido como "os
educadores": Anísio Teixeira, Lourenço Filho e Fernando de Azevedo
foram os mais conhecidos. No início dos anos 30, o Manifesto dos Pioneiros
da Educação Nova provocou forte reação entre os intelectuais católicos;
apesar disto, nos anos seguintes os "pioneiros" engajaram-se
numa série de projetos educacionais desenvolvidos pelos governos de São
Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, e pelo governo federal. à medida em que
os educadores iam ocupando postos na burocracia educacional em expansão,
tentando fazer na prática, com as acomodações que se fizessem necessárias,
o que antes pregavam em livro, seus papéis de intelectuais foram sendo
substituídos pelos de tecnocratas.
É possível discutir eternamente quais concessões eram ou não admissíveis,
e quais significaram, na prática, uma traição aos ideais renovadores expressos
no Manifesto. o fato é que o sistema educacional brasileiro jamais preencheu
as expectativas dos educadores, por uma série de fatores políticos, culturais
e institucionais que ainda não estão completamente entendidos. Nos anos
cinqüenta, novamente sob a liderança de Anísio Teixeira, organizou-se
no Rio de Janeiro o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais. Seus
membros já não acreditavam que poderiam reformar o país pela educação,
e por isto dedicaram-se a um amplo programa de estudos sociais que, de
fato, tivesse condições de contribuir para a compreensão das condições
gerais da sociedade brasileira(33). Isto
foi bom para as ciências sociais, ainda que não tão bom para a educação,
que perdeu muito de sua legitimidade enquanto campo específico de reflexão
intelectual. à medida em que o sistema educacional brasileiro se expandia
durante as décadas de 60 e 70, criaram-se faculdades e programas de pós-graduação
em educação, e os educadores profissionais, que antes não passavam de
um punhado, tornaram-se legião. Com o risco inevitável de qualquer generalização,
é possível dizer que os educadores de hoje são bem organizados, seu mercado
de trabalho é protegido pela legislação, mas seus salários são baixos.
Lutam com firmeza por melhores condições de trabalho, e tendem a acreditar
que nada de muito importante pode ser realizado em prol do ensino brasileiro
enquanto as condições sociais e econômicas mais gerais do país não forem
radicalmente modificadas.
Dois novos tipos de ciências sociais também emergiram nos anos 30, ambos
em São Paulo. A Universidade de São Paulo, ou mais exatamente sua Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras, foi o espaço para uma delas. A USP fora
uma criação da elite do estado em uma época de intensa competição com
o governo federal; o objetivo era dotar São Paulo de um lugar aonde seus
filhos diletos pudessem estudar, e que os tornasse capazes de assumir,
a longo prazo, a liderança nacional a que o estado estava destinado, graças
seus recursos econômicos e empresariais. Considerado a uma distância de
meio século, este projeto parece ter alcançado uma dose considerável de
sucesso.
Uma série de professores franceses mais ou menos famosos foram trazidos
para os cursos de ciências sociais e humanidades da USP a partir de 1935,
incluindo nomes como Férdinand Braudel, Claude Lévy-Strauss e François
Perroux, e outros menos conhecidos, como Roger Bastide, Pierre Daffontaines
e Georges Dumas. A presença deste grupo parisiense criou uma grande excitação
nos círculos intelectuais paulistas, e a permanência e as pesquisas desenvolvidas
por alguns deles, como Roger Bastide, teriam um impacto duradouro.
Mais do que uma perspectiva sociológica coerente, os franceses trouxeram
padrões acadêmicos bastante claros, assim como supostos implícitos a respeito
da natureza do trabalho acadêmico, que foram sendo transmitidos nos contatos
do dia a dia com seus alunos. Seu estilo de trabalho tendia a ser monográfico,
baseado em trabalho de campo extensivo, e incorporando elementos intelectuais
da sociologia de Durkheim, do funcionalismo antropológico e das novas
contribuições da psicoanálise. Seus poucos discípulos brasileiros incorporaram
estes padrões de trabalho e se prepararam, talvez pela primeira vez na
história brasileira, para uma vida acadêmica.
Não caberia aqui reconstruir a história das ciências sociais da Universidade
de São Paulo, mas tão somente chamar a atenção para alguns de seus pontos
mais salientes: os trabalhos mais antigos e na tradição funcionalista
de Florestan Fernandes; os estudos monográficos sobre o Negro de Fernando
Henrique Cardoso e Octávio Ianni; o grupo de leitura de O Capital,
as diferentes formas de envolvimento político de cada um. Da sociologia
francesa ao marxismo, o grupo de São Paulo tratou de desenvolver um saber
acadêmico que fosse também socialmente relevante, e ajudou a difundir
a idéia de que as ciências sociais estavam destinadas a produzir um projeto
de redenção social, e que o cientista social tinha o dever de levar à
frente este projeto.
A maneira pela qual cada um levou à frente a passagem do acadêmico ao
político foi uma questão de biografia pessoal. De uma maneira geral, foi
possível para cada um incorporar a dimensão política sem perder a identidade
acadêmica, e fazer desenvolver uma imagem pública de intelligentsia de
esquerda sem perder os vínculos naturais com as elites, já que, com poucas
exceções, os intelectuais da USP estavam muito mais próximos das elites
políticas e intelectuais de seu estado do que seus professores franceses,
ou do que sua legião de seguidores brasileiros. Na medida em que o sistema
educacional brasileiro se expandiu, e os cursos de ciências sociais proliferaram,
os cientistas sociais da USP passaram a desempenhar um papel paradigmático,
não só em relação à temática e metodologia de trabalho, mas sobretudo,
quanto ao papel intelectual a que o cientista social estaria destinado.
A diferença, naturalmente, é que não é possível repetir em tão grande
escala a experiência elitizada dos primeiros tempos da Universidade de
São Paulo. Para a maioria de seus seguidores (assim como para alguns do
grupo original, depois do trauma das cassações e exílios dos anos de regime
militar), o papel acadêmico enquanto tal já não faz muito sentido, e as
universidades são percebidas como um campo de batalha político, sem distinção
possível entre os papéis de professor, do escritor e do ativista político..
Outro projeto que surgiu ao mesmo tempo que o da USP, e dentro do mesmo
contexto histórico, foi o da criação da Escola Livre de Sociologia e Política.
Seu fundador foi Roberto Simonsen, uma mistura de empresário bem sucedido,
líder empresarial e historiador econômico. A Escola tinha por objetivo
formar empresários, líderes políticos e estadistas, e não acadêmicos ou
intelectuais. Enquanto a USP se abastecia na França, a Escola de Sociologia
trazia uma série de especialistas norte-americanos que, pela primeira
vez na história das ciências sociais brasileiras, começaram a falar em
métodos quantitativos, ecologia urbana, estudos de comunidade(34) .
Muitos filhos da elite paulista cursaram a Escola, e foram influenciados
por ela. A Escola sediou um número bastante grande de pesquisas sobre
poder local, relações raciais, grupos imigrantes, Sua revista, Sociologia,
foi por muitos anos a mais importante publicação de ciências sociais do
país. Mas, apesar destes resultados, não seria incorreto afirmar que,
como projeto intelectual, a Escola de Sociologia de São Paulo foi um fracasso.
Jamais houve uma segunda geração de intelectuais oriunda dessa escola,
numa indicação de que a sociologia no modelo americano, como uma disciplina
acadêmica bem constituída e uma profissão diferenciada, nunca chegou a
ter um futuro no Brasil. Como disciplina, ela não poderia competir com
o charme intelectual trazido pela tradição francesa; profissionalmente,
nem o Estado brasileiro, nem seu setor privado, estavam preparados para
aceitar e fazer uso da competência técnica e executiva que os sociólogos
norteamericanos começavam a afirmar que possuíam.
Os ideólogos
A cidade serrana de Itatiaia, entre Rio de Janeiro e São Paulo, foi durante
algum tempo, no início da década de 50, o ponto de encontro para intelectuais
das duas cidades. O grupo de Itatiaia incluía economistas, advogados,
cientistas sociais de diversas extrações e percepções sobre os problemas
e necessidades do Brasil. Todos eles estavam de acordo, porém, quanto
ao fato de que tinham um papel importante a desempenhar. Publicaram alguns
números de uma revista, Cadernos de Nosso Tempo(35),
e, alguns anos mais tarde, durante o governo de Juscelino Kubitscheck,
tiveram condições de organizar um instituto governamental, o Instituto
Superior de Estudos Brasileiros, que estava destinado a ter um grande
impacto sobre os círculos intelectuais brasileiros.
Não eram pessoas predominantemente acadêmicas ou universitárias, mas
intelectuais sem ligação institucional sólida. São Paulo, cidade provinciana
apesar de sua importância econômica crescente, tivera condiçoes de criar
um meio universitário bastante significativo; o Rio de Janeiro, em comparação,
era a capital do país, foco da atenção nacional, mas jamais (quem sabe
se por isto mesmo?) pudera desenvolver uma ciência social acadêmica comparável
à de São Paulo. Quase todos os membros do grupo de Itatiaia eram do Rio
de Janeiro, e, para eles, seu papel social enquanto intelectuais era muito
mais significativo de que suas eventuais filiações institucionais ou acadêmicas.
Seus modelos, enquanto papel, não eram os professores franceses, mas intelectuais
como Oliveira Viana que, na década de 30, considerava ser sua tarefa pensar
e fazer propostas para o futuro do país(36).
O ponto de união do grupo parece ter sido a crença de que os intelectuais
desempenhariam um papel central em qualquer transformação por que passasse
o Brasil no futuro. Todos estavam, certamente, familiarizados com o marxismo,
mas sua percepção do papel das idéias na sociedade era diferente. Os intelectuais
marxistas nunca pretenderam ter uma ideologia própria e diferenciada,
mas sim contribuir para o desenvolvimento da consciência de classe do
operariado, e neste sentido se viam a si mesmos como desempenhando um
papel político secundário e auxiliar. Os intelectuais do ISEB, no entanto,
estavam muito mais próximos de Mannheim do que de Marx. Não falavam tanto
de "classe trabalhadora", e sim de "massa", "povo"
e nação, e a ideologia, a ser elaborada pelos intelectuais, era vista
como ingrediente essencial para dar forma a estas entidades que, por si
mesmas, permaneceriam informes. Neste novo sentido, a ideologia surge
como uma construção intelectual deliberada, uma combinação de interpretação
social, valores e mitos políticos, a ser formulada e difundida por intelectuais.
Se tivessem sucesso, certamente estariam desempenhando um papel central
na condução do país a seus novos destinos.
Que ideologia era esta? Uma das noções-chave era o nacionalismo. Na tradição
socialista, o nacionalismo é geralmente identificado a valores conservadores
e anti-internacionalistas. O grupo do ISEB trabalhou no sentido de retirar
as conotações direitistas do nacionalismo, e de associar o Brasil ao movimento
terceiro-mundista então emergente e, aparentemente, bem sucedido. Uma
ideologia nacionalista seria capaz de forjar uma aliança política que
atravessasse as barreiras de classe e pudesse unificar a nação contra
aqueles que se opunham a seu progresso. Progresso, ou melhor, "desenvolvimento",
era quase idêntico a industrialização, que seria realizada através da
ação de um Estado modernizado e intervencionista(37).
O ISEB não sobreviveu enquanto grupo à polarização política dos anos
60. Alguns de seus membros decidiram tentar a sorte da política eleitoral;
outros foram se posicionando cada vez mais à esquerda, aproximando-se
do modelo tradicional dos intelectuais marxistas; outros ainda retiraram-se
para a atividade privada ou para trabalhar em alguma agência de governo.
Quando o regime militar decidiu fechar o ISEB em 1984, apenas subsistiam
alguns remanescentes do grupo de Itatiaia, e nada de suas ambições de
hegemonia intelectual.
Os Economistas e o
planejamento
O Brasil não desenvolveu uma tradição significativa de estudos econômicos,
mas a noção de que a economia deveria e poderia ser planejada tinha grande
voga, pelo menos desde os anos 30, e foram retomadas com ímpeto após a
II Grande Guerra. A gradual descoberta de Keynes e a influência de Mannheim
ajudavam a legitimar, no ocidente, as idéias de planejamento que pareciam
dar tanto resultado nos planos quinquenais da União Soviética, e começavam
a ser difundidas pelos programas de assistência técnica das Nações Unidas.
No Brasil como em toda a parte, as discussões envolvendo o planejamento
econômico sempre ficaram obscurecidas pela oposição clássica entre intervenção
econômica e laissez-faire, ou, mais especificamente, pela questão de se
o Estado deve ou não intervir diretamente para promover a industrialização.
Essas questões, e algumas de suas implicações mais amplas, apareceram
muito claramente no debate que opôs dois economistas de destaque em meados
da década de 40, Roberto Simonsen e Eugênio Gudin. Neste caso, os atores
são tão importantes quanto as coisas que tinham a dizer(38).
Roberto Simonsen, formado em engenharia, foi um empresário paulista extremamente
bem sucedido, autor da primeira história econômica do Brasil e fundador
da Federação das Indústrias de São Paulo e da Escola de Sociologia e Política
daquele estado. Também participou da fundação do SENAI, o Serviço Nacional
de Aprendizagem Industrial, até hoje a mais importante instituição brasileira
na formação de mão de obra industrial especializada. Em 1944 Simonsen
preparou, para uma agência governamental, um documento em que defendia
a necessidade de planejamento estatal para promover a industrialização
do país. Suas sugestões são um reflexo óbvio de sua experiência empresarial
anterior, na década de 30, quando vira sua fortuna crescer graças ao trabalho
associado com um Estado interventor.
Gudin também era engenheiro, da Politécnica do Rio de Janeiro. Em 1943
publicara o primeiro livro-texto brasileiro de teoria econômica moderna,
Princípios de Economia Monetária. Foi o representante brasileiro
da Conferência de Bretton Woods, que organizou o sistema monetário do
pós-guerra e criou, entre outras agências, o Fundo Monetário Internacional;
foi, além disto, o criador da primeira Escola de Economia do Rio de Janeiro.
Antes de desenvolver sua carreira de economista, trabalhara em companhias
ferroviárias estrangeiras no Brasil, tendo permanecido, durante toda sua
longa vida, um leal defensor do livre comércio e do liberalismo econômico.
Solicitado a comentar as propostas de Simonsen, Gudin fez uma crítica
tripla. Em primeiro lugar, criticava a proposta de um ponto de vista técnico,
chamando a atenção para erros na maneira como haviam determinados dados
haviam sido utilizados e interpretados. Em segundo lugar, apresentava
uma crítica severa contra as idéias protecionistas de Simonsen, argumentando
a partir das teses clássicas do liberalismo econômico. Em terceiro lugar
e mais importante apresentava um esboço do que deveria ser a organização
do governo brasileiro para a melhor gerência da economia do país.
O que fica claro nas propostas e Gudin é que ser liberal e contrário
ao planejamento não significava, para ele, ser contra a intervenção do
Estado em questões econômicas. Para que a economia brasileira se desenvolvesse,
afirmava ele, o país precisava de uma autoridade monetária que controlasse
a inflação, a taxa de câmbio, e que estabelecesse uma política fiscal
adequada. Dever-se-iam projetar mecanismos institucionais capazes de estimular
a formação de capital no país e atrair investimentos estrangeiros. Dever-se-iam
estimular o comércio exterior e promover aumentos de produtividade. Eram
necessárias coletas sistemáticas de informações econômicas para acompanhar
o comportamento da renda nacional e da balança de pagamentos. A longo
prazo, seria necessário criar um Banco Central para coordenar a política
monetária do país.
Neste debate não houve perdedores. Nos anos que se seguiram, o Brasil
continuou sendo um Estado intervencionista e protecionista, ainda que
geralmente sob o manto da retórica liberal. Diversos planos econômicos
foram concebidos, mas um sistema de planejamento abrangente jamais chegou,
de fato, a se efetivar. A intervenção e o protecionismo do Estado sempre
foram setoriais, ad hoc e sujeitos e considerações pragmáticas
de curto prazo. Ao mesmo tempo, Gudin e seu grupo organizavam um centro
para o ensino e a pesquisa econômica na Fundação Getúlio Vargas, e contribuindo
para criar as instituições de controle monetário que julgavam indispensáveis,
que culminaram na criação do Banco Central(39). A economia moderna também chegava ao Brasil
por outro canal, ou seja, a Comissão Econômica para a América Latina das
Nações Unidas e seus cursos periódicos de curta duração para especialistas
em planejamento econômico, oferecidos no Rio de Janeiro e outras cidades.
Os economistas formados na tradição da CEPAL acreditavam, tal como Simonsen,
que os problemas econômicos do Brasil e da América Latina em geral eram
de natureza estrutural, o que exigia não somente o controle dos instrumentos
monetários, como a efetiva intervenção do Estado na promoção do desenvolvimento
econômico(40). O debate ideológico entre
monetaristas e estruturalistas (estes mais identificados com as idéias
de Simonsen sobre industrialização e planejamento) marcaria a vida intelectual
brasileira a partir dos anos 50, contribuindo para que as ciências econômicas,
mais do que a sociologia ou a ciência política, passasse ao primeiro plano
como a ciência social mais importante.
Os economistas de tendência liberal, ou conservadora, foram responsáveis
pela modernização das agências de política monetária e fiscal dos anos
60, e isto contribuiu, paradoxalmente, para criar as bases da mais importante
experiência de "dirigismo" econômico da história brasileira,
durante o governo Geisel. Foi uma combinação que não se ajusta ao que
normalmente se pensa ser a "direita" ou a "esquerda"
em matéria de política econômica, e por isto tem sido até hoje difícil
de interpretar(41).
Com o fim do milagre econômico e o início da Nova República, parecia
ter chegado a hora de afastar-se da preocupação exclusiva com o econômico,
e dar nova prioridade aos problemas sociais nutrição, saúde, educação,
moradia. Quem estaria qualificado para esta tarefa?
As novas profissões sociais.
Seria injusto responsabilizar as limitações inerentes às ciências sociais
aplicadas, ou profissões sociais, pelo fracasso da Nova República em abordar
adequadamente os problemas econômicos e sociais do país. O fracasso do
Plano Cruzado é normalmente atribuído a um excesso de oportunismo político
por parte do governo, mais do que a falhas técnicas do plano. A inexistência
de uma política social eficiente e a longo prazo também pode ser atribuída
à incapacidade do governo federal em sanear sua burocracia ultrapassada,
inchada e paralisada pelo clientelismo, mais do que a uma ausência de
conhecimentos sobre como fazer as coisas corretamente.
Há razões para crer, porém, que não haveria conhecimentos adequados disponíveis
mesmo se as condições políticas e institucionais para sua utilização estivessem
dadas. Isto se deve ao fato de que as ciências sociais brasileiras se
desenvolveram, naquilo que elas têm de melhor, como uma combinação de
saber acadêmico e crítica social, e não como uma tecnologia social passível
de ser implementada. Não há dúvida que existem conhecimentos aplicados
dispersos no interior da comunidade das ciências sociais; além disto,
estes conhecimentos poderiam ser trazidos do exterior. Mas não existe
consenso, não existem procedimentos e noções compartidas sobre como este
conhecimento deve ser, e qual sua legitimidade e propriedade.
Essa é uma característica das ciências sociais em geral, e não um traço
específico do contexto brasileiro. Num aspecto, porém, as ciências sociais
brasileiras são específicas, sem chegarem a ser uma exceção: é o modo
como, de produto de uma intelligentsia, passaram a se constituir no setor
mais amplo do ensino pós-secundário do país.
Exemplo disto são as ciências econômicas. A maioria dos cursos superiores
de economia atualmente existentes tiveram como origem os antigos cursos
médios de comércio e contabilidade, que funcionavam como alternativa profissionalizante
para pessoas que não tinham condições de cursar as universidades. A criação
dos cursos superiores de economia na década de 30 foi defendida por estes
profissionais de nível médio como uma forma de elevação de status social.
Assim, existe uma brecha social e intelectual muito grande entre a grande
maioria dos inúmeros cursos de economia de nível universitário e os poucos
programas de pós-graduação onde as ciências econômicas são praticadas
como atividade acadêmica e intelectual. No tocante à administração de
empresas e outras ciências sociais aplicadas, a situação é semelhante.
A situação do ensino universitário de ciências sociais torna-se ainda
mais grave pela suposição, inerente ao modelo universitário do país, de
que todos os cursos devem levar a uma qualificação e um diploma de tipo
profissional. Na prática, só o modelo adotado na Escola de Sociologia
de São Paulo (e produzido da PUC do Rio de Janeiro e na Faculdade de Ciências
Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais) visava a uma qualificação
deste tipo, o que era reforçado pela possibilidade que tinham os estudantes
de obter ao mesmo tempo um diploma em administração, na expectativa de
que essa "profissão nova" fosse um dia tão institucionalizada
e regulamentada como a Medicina ou o Direito. Nos cursos de ciências sociais,
que depois das reformas de 1968 absorveram os antigos cursos de Sociologia
e Política, a única perspectiva profissional, raramente exercitada, era
a do magistério secundário.
Na medida em que o sistema de ensino superior brasileiro se expandia,
os cursos de ciências sociais tenderam a se disseminar como uma espécie
de segunda ou terceira opção para estudantes que não conseguiam entrar
nos cursos mais cobiçados, ou para aqueles geralmente mulheres para quem
a profissionalização não era uma preocupação fundamental, ou que podiam
de fato aspirar a uma carreira de magistério. As novas "profissões
sociais" jornalismo, administração, biblioteconomia, comunicações
são, em grande medida, uma tentativa frustrada de corrigir esta situação.
Elas abandonam de vez a pretensão intelectual das ciências sociais mais
estabelecidas, mas não chegam a constituir um conteúdo cognitivo consistente
nem a possuir um perfil profissional definido. Tanto ou mais que as demais
ciências sociais, elas tendem a atrair pessoas que não conseguem ingressar
nas profissões estabelecidas, e para as quais a luta pela conquista e
manutenção de um nicho legalmente definido no mercado de trabalho, pela
via legislativa, assume prioridade sobre quase qualquer outra consideração.
Os cursos de comunicação ocupam um lugar especial dentre as novas profissões,
no sentido de que, de certa maneira, os profissionais da comunicação estão
disputando com os cientistas sociais mais convencionais os seus papéis
intelectuais. Nas eleições de 1986, por exemplo, foi eleito um grande
número de jornalistas e profissionais da televisão, enquanto que os cientistas
sociais que se aventuraram na competição eleitoral, quase sem exceção,
sistematicamente preteridos. Estes resultados sugerem que, em sociedades
onde prevalecem os meios de comunicação de massa, a chave para o reconhecimento
público é a competência no uso da mídia, mais do que a mensagem. O que
os especialistas da mídia estão fazendo hoje no Brasil é uma continuação
do que pessoas ligadas à literatura, à música e ao teatro vêm fazendo
há muito tempo: utilizar sua imagem pública já firmada para disseminar
valores e idéias que, em si mesmas, pouco se relacionam com as qualidades
nas quais esta imagem se baseia. Na medida em que esta tendência permaneça,
ela terá um impacto considerável na redefinição de alguns dos papéis sociais
hoje desempenhados pelos cientistas sociais(42).
O
entrincheiramento dos intelectuais e a modernização brasileira.
Diferentemente das sociedades onde os conhecimentos e as profissões modernos
surgiram impulsionados por grupos sociais em ascensão, em sociedades como
a brasileira eles tenderam a apresentar-se perto do topo da pirâmide social.
A conseqüência disto é o desenvolvimento de contra-elites modernizantes
que enfrentam a oposição não apenas dos detentores do poder estabelecido
como de outros grupos sociais comprometidos com a ordem social tradicional
e seus valores. As vezes o mero prestígio das novas formas de conhecimento,
ou aquilo que elas têm efetivamente condições de realizar, é suficiente
para colocar seus portadores nas posições de poder e autoridade a que
julgam ter direito. Quando isto não ocorre, os novos conhecimentos podem
transformar-se em simples ideologia, e ser usados como arma política.
A etapa seguinte é a institucionalização. Criam-se escolas, estabelecem-se
profissões, muitas vezes com privilégios legais reconhecidos. Isto atrái
mais pessoas para estas profissões, o que termina por dificultar a manutenção
dos privilégios profissionais para todos.
A etapa final pode ser denominada de "entrincheiramento", e
pode ter inúmeras causas: o aumento exagerado de profissionais de determinada
área, a incapacidade de definir o nicho próprio no mercado de trabalho
pela concorrência com outras profissões, a proletarização de profissões
liberais pela perda da autonomia profissional, e assim por diante. O resultado
destes fatores, isolados ou em combinação, é que os grupos profissionais
se sentem ameaçados, e assumem uma atitude de combate defensivo. A mobilização
política assume grande importância, e com ela a ideologia; mas agora a
política funciona principalmente como forma de auto-defesa coletiva, e
não mais como visões alternativas de mundo ou propostas de mudança que
são oferecidas ao resto da sociedade. Pode ser difícil à primeira vista,
distinguir entre estas duas formas de mobilização. Mas os reformadores
sociais são em geral grupos pequenos, como por exemplo os educadores dos
anos 30, ou os intelectuais do ISEB; e sua pregação doutrinária é sempre
feita para fora, na busca de convencer a sociedade como um todo do valor
de suas idéias e contribuições. O entrincheiramento ideológico, por outro
lado, engloba coletividades muito maiores, e a mobilização é feita em
grande parte para dentro, em um esforço de fechar fileiras e proteger
o grupo contra um ambiente externo hostil e ameaçador. Enquanto que as
associações profissionais clássicas tendem a ser geridas pelos que possuem
liderança profissional e intelectual em suas respectivas áreas de conhecimento,
as comunidades entrincheiradas tendem a ser lideradas por pessoas com
muito mais investimento em atividades gremiais e corporativas do que propriamente
profissionais, o que tem como resultado a alienação progressiva, e muitas
vezes o rompimento, das lideranças mais profissionalizadas.
Este tipo de divisão pode ser visto hoje, claramente, na oposição que
freqüentemente ocorre nas universidades brasileiras entre os programas
de graduação e de pós-graduação, ou entre o "baixo clero" universitário,
congregado nas associações docentes de tipo predominantemente sindical,
e o "alto clero", identificado principalmente com as respectivas
associações científicas e profissionais.
Esta sociologia dos novos conhecimentos, aqui esboçada para a experiência
brasileira, não é indiferente à problemática epistemológica mencionada
a princípio, ou seja, à questão da maior ou menor validade dos conhecimentos
transmitidos e desenvolvidos pelos diversos grupos sociais nas condições
analisadas até aqui. O que vimos com clareza é que o conhecimento nunca
existe isolado, por si mesmo, e desligado de atores envolvidos em determinados
projetos de cunho político, social ou ideológico. Seria um grave equívoco
concluir a partir deste fato, como querem algumas correntes da sociologia
do conhecimento, que a questão epistemológica é irrelevante, e que toda
a problemática do conhecimento não passaria de uma questão disfarçada
da luta pelo poder. Não foi indiferente, para o Brasil, o fato de os médicos
do início do século saberem efetivamente como controlar as doenças contagiosas,
assim como não foi indiferente o fato de que nunca existiu, na realidade,
conhecimentos adequados de como planejar e gerir uma cidade. A experiência
recente mostra que não basta saber economia para controlar um processo
inflacionário, mas mostra também que não é possível implementar uma política
econômica com resultados sem um entendimento correto dos fenômenos monetários.
Que fatores favorecem o desenvolvimento efetivo dos conteúdos cognitivos?
Podemos supor que, à medida em que os novos conhecimentos se institucionalizam
enquanto profissões, seu conteúdo técnico aumenta; a prevalecer sua institucionalização
acadêmica, destaca-se seu conteúdo de erudição e complexidade intelectual;
quando a posse do saber moderno funciona principalmente como ideologia,
o complexo cede lugar para o simples, o conhecimento especializado e tentativo
cede lugar para as generalizações abrangentes, o trabalho propriamente
técnico ou intelectual tende a se desvalorizar, e com isto o conteúdo
cognitivo sofre.
Além da questão quase que quantitativa do montante, ou desenvolvimento,
dos conteúdos cognitivos, existem as questões ainda mais complexas a respeito
das diferenças de conteúdo e de orientação, que são também, presumivelmente,
influenciadas pelas condições sociais em que a atividade intelectual e
profissional se dá. Ainda que isto seja, de fato, assim, é possível sustentar
a tese de que esta problemática, a dos conteúdos em oposição, é relativamente
secundária no caso do Brasil, onde a questão principal ainda consiste
em entender em que medida os conhecimentos novos, que recebemos continuamente
de toda parte, e que são cada vez mais indispensáveis se quizermos participar
de maneira menos marginal do mundo em que vivemos, conseguem ou não fincar
raízes, e em que condições.
Notas
1. Economia e Sociedade, de Max Weber, pode
ser entendida como uma tentativa ambiciosa de considerar o desenvolvimento
das civilizações dentro desta perspectiva.
2. Para as relações históricas entre novos conhecimentos
e setores sociais em ascensão, ver J. Ben-David, The Scientist's Role
in Society. Englewood, New Jersey: Prentice Hall, 1971 (há tradução
brasileira).
3. Em contraste, o evolucionismo de origem inglesa
era darwiniano, com um forte elemento de individualismo e competição (sou
grato a Lúcia Lippi por chamar minha atenção para o contraste entre Comte
e Spencer a este respeito).
4. O modernismo tem sido amplamente discutido no Brasil,
mas quase que exclusivamente como fenômeno artístico e literário, uma
literatura que não será tratada aqui.
5. Ver Emília Viotti da Costa, The Brazilian Empire
- Myths and Realities, Chicago, University of Chicago Press, 1984,
especialmente o capítulo 2.
6. Para uma história das instituições educacionais
e científicas brasileiras, ver S. Schwartzman, Formação da Comunidade
Científica no Brasil . São Paulo, Cia. Editora Nacional, e Rio de
Janeiro, FINEP, 1979; e Universidades e Instituições Científicas no
Rio de Janeiro (editor), Brasília, CNPq 1982.
7. ver por exemplo Frank Safford, The Ideal of
the Practical -- Colombia's Struggle to Form a Technical Elite ,
Austin, University of Texas Press, 1976.
8. Carta de Lei de 4 de dezembro de 1810, citada por
T. Franken,"Cronologia da Ciência Brasileira", in S. Schwartzman,
Formação da Comunidade Científica no Brasil, 1979, p. 352.
9. José Murilo de Carvalho, A Escola de Minas
de Ouro Preto - O Peso da Glória. São Paulo, Cia. Editora Nacional,
and Rio de Janeiro, FINEP, 1978.
10. Ver a respeito Vanda M. Costa, A Escola Superior
de Guerra: Um Estudo de Currículos e Programas. Rio de Janeiro, IUPERJ,
tese de mestrado, 1978. Enquanto interpretação fechada, abrangente e formal
do sistema social, esta doutrina apresenta grande similaridade com as
visões funcionalistas mais extremas da sociologia parsoniana, uma aproximação
que pode ser mais do que simples coincidência, e que mereceria uma pesquisa
mais profunda, que examinasse inclusive os materiais de ensino dos cursos
que oficiais superiores brasileiros seguiram nos Estados Unidos no período
de pós-guerra. Claramente não parsoniana, no entanto, foi a colocação
da organização militar como guardiã insubstituível dos "objetivos
nacionais permanentes", que seriam apreensíveis pelo exercício da
racionalidade técnica, e por isto fora do alcance dos leigos.
11. A modernização forçada do Rio de Janeiro inspirou-se
diretamente na renovação de Paris por Haussman, e, sob muitos aspectos,
teve implicações semelhantes. Para uma discussão ampla sobre modernização
urbana e seu significado, ver M. Berman, All That is Solid Melts Into
Air - The Experience of Modernity. New York, Simon and Schuster 1982.
Para Rio, Jeffrey Needell, "Rio de Janeiro at the Turn of the Century
- Modernization and the Parisian Ideal", Journal of Interamerican
Studies, 25, 1, Fevereiro 1983; e "Making the
Carioca Belle Epoque Concrete", Journal of Urban History,
10, 4, agosto, 1984. Para Brasília, cf. James Holston, The
Modernist City: Architecture, Politics and Society in Brasília. Universidade
de Yale, tese de doutoramento, 1986.
12. A Universidade do Rio de Janeiro, sob o nome
de Universidade do Brasil, deveria ser o modelo que seguiriam todas as
instituições de ensino superior do país. Quase toda a energia, porém,
era destinada ao planejamento físico de suas edificações, a serem construídas
próximo à Quinta da Boa Vista. As maquetes do projeto Piacentini chegaram
a ser expostas no Rio de Janeiro, mas a guerra impediu que a obra fosse
executada. Ver S. Schwartzman, Helena Bomeny e Vanda Costa, Tempos
de Capanema. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, e São Paulo, Editora
da Universidade de São Paulo 1984, 93-105.
13. Carta a Gustavo Capanema, outubro de 1945. CPDOC/FGV,
Arquivo Gustavo Capanema, GC/Costa, L., doc. 1, série b. Transcrito em
Tempos de Capanema, pp. 355-359.
14. A atuação deste tipo de empresário, e seu confronto
com as vertentes mais nacionalistas e estatizantes da tecnocracia brasileira,
podem ser captados de forma embrionária nos dilemas que acompanharam a
criação do Instituto Nacional de Tecnologia no Rio de Janeiro. Veja a
respeito S. Schwartzman e Maria Helena Magalhães Castro, "Nacionalismo,
Iniciativa Privada e o Papel da Pesquisa Tecnológica no Desenvolvimento
Industrial: Os Primórdios de um Debate", Dados - Revista de Ciências
Sociais (Rio de Janeiro, IUPERJ) 27, 1, 89-111. 1984.
15. Veja a respeito Amoroso Costa, As idéias
Fundamentais da Matemática, São Paulo, Cia. Editora Nacional and
Ed. Grijalbo, 1971.
16. S. Schwartzman, "The Quest for University
Research: Policies and Research Organization in Latin America", in
Björn Wittrock and Aant Elzinga, The University Research System -
The Public Policies of the Home of Scientists. Stockholm, Amqvist
& Wiksell International, 1985, pp. 101-116.
17. O que se segue, assim como o próprio título desta
seção, se baseia em Roberto Machado, Angela Loureiro, Rogério Luz e Kátia
Muricy, Danação da Norma - Medicina Social e Constituição da Psiquiatria
no Brasil. Rio de Janeiro, Graal 1978.
18. Tomás Antunes Abreu, A Medicina Contribui
para o Melhoramento da Moral e Manutenção dos Bons Costumes. Tese
apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, 1839.
19. Danação da Norma, pp.
197-198.
20. José Murilo de Carvalho, Os Bestializados.
Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 1987.
21. Nina Rodrigues foi um escritor prolífico, deixando
vasta obra e muitos discípulos, dos quais o mais conhecido, provavelmente,
é Artur Ramos (Ramos, 1943-1947). A essência das preocupações de Nina
Rodrigues transparece no título de um livro em francês que nunca chegou
a concluir, "La Degenérescence Psychique et Mentale chez les Peuples
Métis des Pays Chauds". Fora do Brasil, ficou muito conhecido seu
livro The Africans in Brazil, publicado em 1945 a partir
da edição brasileira de 1932 (Nina Rodrigues, Os Africanos no
Brasil, São Paulo, Cia. Editora Nacional).
22. Nancy Stepan, Eugenics, Genetics and Public
Health: A Brazilian Connection, 1900-1930 , trabalho apresentado
à sessão sobre "New Directions in the History of Science in Latin
America", American Historical Association / History of Science Society
Meetings, dezembro, 1984.
23. Nancy Stepan observa que no Brasil a eugenia
tendia a ter um forte componente lamarckiano, abrindo espaço para teorias
"otimistas" de aprimoramento racial.
24. Sobre a evolução do ensino jurídico no Brasil,
ver Alberto Venâncio Filho, Das Arcadas ao Bacharelismo. São
Paulo, Editora Perspectiva e Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia,
1977; para uma crítica contundente ao ensino jurídico atual, ver José
Eduardo Faria, A Reforma do Ensino Jurídico. Porto Alegre, Sérgio
Antônio Fabrís Editor, 1987.
25. Sou grato a José Eduardo Faria por esta observação.
26. Nos anos do fascismo, Campos fez uma tentativa
ambiciosa de dar uma fundamentação mais atualizada à sua maneira de entender
a ordem política e a prática constitucional na qual militava. Suas fontes,
no entanto, eram os teóricos do fascismo europeu, uma literatura que se
tornou inutilizável no período do pós-guerra. Restou, como antes, a prática.
Veja Francisco Campos, O Estado Nacional - sua Estrutura, seu Conteúdo
Ideológico. Rio de Janeiro, José Olímpio, 1940, e Tempos de Capanema,
pp. 61-65.
27. Esta seqüência, diga-se de passagem, ocorre ao
mesmo tempo em muitos outros países, sugerindo uma causalidade comum.
28. Ver David M.Trubeck, Law, Planning and the
Development of the Brazilian Capital - A Study of Law in Economic Change,
New York, New York University 1971; Joaquim Falcão, Advogados, Ensino
Jurídico e Mercado de Trabalho. Recife, Ed. Massangana 1984; e José
Eduardo Faria, A Reforma do Ensino Jurídico. Porto Alegre, Sérgio
Antônio Fabris Editor, 1987.
29. Oliveira Viana, O Idealismo na Constituição.
Cia Editora Nacional, Col. Brasiliana, vol. 141 (2a. edição), 1949.
30. O Idealismo na Constituição,
p. 111.
31. Ele se opôs, por exemplo, ao Estatuto da Família
proposto pela Igreja, e chegou a propor que o governo encarregasse os
proprietários rurais que assumissem diretamente a responsabilidade pela
previdência social no campo. Cf. Tempos de Capanema, pp 111-122.
32. Gilberto Freire, no entanto, havia estudado ciências
sociais na Universidade de Columbia, e esta formação distinta talvez explique
em parte seu isolamento no ambiente intelectual brasileiro.
33. Cf. Maria C. Mariani, "Educação e Ciências
Sociais: O Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos e Pesquisas Educacionais",
in S. Schwartzman, ed., Universidades e Instituições Científicas no
Rio de Janeiro, 1982.
34. Dois nomes se destacam entre os norte-americanos
que vieram para a Escola de Sociologia, deixando uma influência significativa:
Emílio Willems e Donald Pierson, que deixou entre outras coisas um levantamento
ainda válido da literatura sociológica brasileira até então. Pierson foi
também autor de um dos mais difundidos livros-texto sobre metodologia
de pesquisa no Brasil. Cf. Emílio Willems, Cunha, Tradição e Transição
em uma Cultura Rural no Brasil. São Paulo, Secretaria de Agricultura,
1947; Donald Pierson, Survey of the Literature on Brazil of Sociological
Significance Published up to 1940. Cambridge, Mass.: Harvard University
Press, 1945; e Teoria e Pesquisa em Sociologia. São Paulo, Ed.
Melhoramentos, 1977. Para uma discussão geral, cf. Lúcia Lippi de Oliveira,
Donald Pierson e a Sociologia no Brasil, trabalho apresentado
ao X Encontro Nacional da ANPOCS, Campos de Jordão, outubro, 1986.
35. Uma seleção de artigos dos Cadernos de Nosso
Tempo encontra-se republicada em S. Schwartzman (editor), O Pensamento
Nacionalista e os "Cadernos de Nosso Tempo. Brasília, Editora
da Universidade de Brasília, 1981. Sobre o ISEB, ver Caio N. Toledo, ISEB,
Fábrica de Ideologia. São Paulo, ática, 1978.
36. Não é por acaso que Alberto Guerreiro Ramos,
uma das figuras mais conhecidas do grupo, tenha sido o principal responsável
pela redescoberta" dos intelectuais do pré-guerra na década de 50.
Cf. Guerreiro Ramos, Introdução Crítica à Sociologia Brasileira, Ed.
Andes, 1957.
37. A influência de Mannheim, através de sua obra
póstuma sobre planificação democrática, também foi importante neste contexto.
Cf. K. Mannheim, Liberdade, Poder e Planificação Democrática.
Rio de Janeiro, Mestre Jou, 1972 (primeira edição inglesa, 1951).
38. Cf. Roberto Simonsen e Eugênio Gudin, A Controvérsia
do Planejamento na Economia Brasileira (editado e com uma introdução
de Carlos von Dellinger), Rio de Janeiro, Ipea/Inpes, 1977.
39. Veja a este respeito Edson de Oliveira Nunes,
Clientelism and Bureaucratic Insulation: Uneven State Building and
the Taming of Modernity in Contemporary Brazil. Universidade da California,
Berkeley, Departamento de Ciência Política, tese de doutoramento, 1984.
40. Cf. Celso Furtado, A Fantasia Organizada.
Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1985.
41. Ver, para uma análise lúcida destas questões,
Antônio de Barros Castro, A Economia Brasileira em Marcha Forçada.
Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1985.
42. Sobre literatos como intelectuais, ver Sérgio
Miceli, Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil
(1929-1945). São Paulo, Difel 1979; e N. Sevcenco, A Literatura
Como Missão. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1986. Para uma discussão
recente das ciências sociais brasileiras como discurso político, ver Robert
A. Packenham, "The Changing Political Discourse in Brazil, 1964-1985",
em Waine Selcher, ed., Political Liberalization in Brazil, Boulder:
Westview, 135-173, 1986.