A Redescoberta da Cultura

Simon Schwartzman

Conferência realizada no V Congresso Brasileiro de Sociologia, por ocasião da 43 Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Rio de Janeiro, 17 de julho de 1991. Publicado em S. Schwartzman, A Redescoberta da Cultura, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1997.


Sociologia e Cultura

A sociologia sempre desconfiou do uso da cultura como fator de explicação dos fenômenos sociais, e por boas razões. Dizer que cada povo tem sua cultura, e que por isto são diferentes, é deixar de lado precisamente o que queremos entender, que são as diferenças. Dizer que as culturas são únicas e irredutíveis é aceitar como inevitável a desigualdade, e recusar o princípio básico de que a humanidade é uma só. O programa de pesquisa delineado pelos clássicos da sociologia, de Marx a Durkheim, supunha que todos os fenômenos humanos decorrem e são explicáveis a partir da organização social e da interação entre as pessoas, na vida familiar, na divisão do trabalho, e na ocupação e defesa do espaço e do território. Era um programa com uma ontologia naturalista e materialista (é a vida quotidiana, em sociedade, que determina as idéias, valores e representações, e não o contrário) uma ética democrática e progressista (todos os seres humanos são iguais, as diferenças não passam de estágios passageiros ou situações desfavoráveis, a caminho de serem superadas pela marcha inevitável do progresso) e uma epistemologia racionalista (todas as manifestações humanas são inteligíveis a partir de um modelo explicativo comum). Em contraste, as teorias culturalistas, em suas diversas modalidades, tendiam a afirmar o primado do espírito, da ética ou dos valores na explicação dos fenômenos humanos, acentuavam as diferenças irredutíveis entre valores e padrões culturais, e enfatizavam o uso da intuição e da empatia, por definição inexplicáveis, para entender o que ocorre na sociedade.

Na vida real, nem sempre a ontologia, a epistemologia e a ética se mantiveram coerentes. Em muitos casos, o naturalismo tornou difícil entender os fenômenos da política, da ética e do direito, o racionalismo resvalou para o quantitativismo vazio, e as teorias da modernização foram utilizadas para justificar o atropelo de populações inteiras pelo rolo compressor da indústria, do comércio e das burocracias civis e militares dos Estados contemporâneos. No outro extremo, o culturalismo, que em algumas vertentes foi caldo de cultura para nacionalismos exacerbados, e em outras seguiu os passos da expansão dos impérios coloniais, empunhava a bandeira das minorias étnicas ameaçadas e de grupos sociais cuja identidade ia sendo corroída pela massificação sem limites das sociedades modernas. As limitações dos modelos explicativos de tipo racionalista, em contraste com a aparente riqueza e densidade das descrições culturais de cunho fenomenológico ou literário, pareciam confirmar o fracasso do projeto iluminista da sociologia clássica.

Em um nível mais prático, as últimas décadas demonstraram com clareza que a herança dos clássicos se mostrou insuficiente para entender alguns dos mais importantes fenômenos do mundo contemporâneo, na esfera da economia, da política e da vida social. Porque algumas sociedades, como o Japão e a Coréia, são capazes de se reerguer de guerras devastadoras e construir sistemas econômicos dinâmicos e pujantes, enquanto outras, como a Argentina, dilapidam passo a passo a riqueza que um dia conseguiram acumular? Como explicar a destruição progressiva de um Estado secular moderno, como a Índia, e sua gradual reversão às formas mais dramáticas dos conflitos inter-étnicos e religiosos? Como explicar que filhos de alguns grupos imigrantes, nos Estados Unidos, absorvam com rapidez a cultura dominante e subam rapidamente a ladeira social, enquanto outros, como as minorias negras nos subúrbios das grandes cidades, não conseguem fazê-lo na mesma proporção? Como entender as grandes variações de participação política, capacidade de mobilização social, aderência a valores comunitários, entre diferentes grupos e sociedades? Para cada uma destas questões existem duas respostas insatisfatórias, e um terreno pantanoso a ser explorado. As respostas insatisfatórias são as racistas e as estritamente sociológicas; o caminho pantanoso é o da cultura. Em que consiste exatamente, e como entender, a cultura dos argentinos, japoneses, negros americanos, sikhs, favelados brasileiros, empresários italianos, camponeses alemães? Se cada um é um, e cada cultura única, como entender que, poucas décadas atrás, os Argentinos eram ricos, e os Japoneses, pobres? As culturas mudam? Em função de que? Ou não existem regras, cada história é uma história diferente?

Uma teoria sociológica da cultura

É diante de questões como estas que surge a necessidade de buscar entender a cultura como um fenômeno sociológico, ou seja, inteligível a partir de um conjunto claro, explícito e simples de conceitos referidos às condições de vida em sociedade, e com grande poder de explicação. Cultural Theory, de Aaron Wildawsky e colaboradores, é a mais ambiciosa tentativa recente neste sentido, e merece ser vista com algum detalhe(1).

O ponto de partida é extremamente simples. As pessoas, em sociedade, compartem valores e crenças, que são suas "orientações culturais" (cultural biases). Além disto, elas mantêm relações entre si. Uma cultura é um modo de vida (way of life), que integra, de forma viável, orientações culturais e relações sociais. Esta viabilidade depende da coerência entre as orientações culturais e as formas de interação social, o que depende, por sua vez, da estrutura social da qual os indivíduos participam.

A novidade não está nestas definições, mas na forma de entender a estrutura social na qual os modos de vida se apoiam, que seria formada por duas variáveis básicas, a intensidade das relações de solidariedade entre os indivíduos (a força do grupo) o contexto mais ou menos estratificado, as estruturas de diferenciação, autoridade e hierarquia em que os grupos e indivíduos se inserem (a intensidade da grade)(2). Destas duas variáveis resulta uma tipologia simples, emprestada da antropóloga Mary Douglas(3), que serve de ponto de partida para toda a teoria:

Tipos de cultura, ou "modos de vida":
  GRUPO DÉBIL GRUPO FORTE
GRADE FORTE Fatalismo - apatia, fragmentação e alienação hierarquia - divisão do trabalho, preocupação com estabilidade, aceitação de diferenças
GRADE DÉBIL individualismo - pluralismo, competição, pragmatismo. igualitarismo - resistência à inovação e mudança, formação de seitas, descontinuidades revolucionárias.

A tese é que toda a variedade de formas e orientações culturais podem ser interpretadas em termos destes quatro modos de vida, com a adição talvez de um quinto, o do eremita que se retira completamente do convívio social.

A interpretação deste quadro é bastante direta. O igualitarismo é uma forma de vida própria de grupos coesos, em que todos controlam as ações de cada um, e aonde não existem lealdades e pressões externas significativas. Atitudes novas não são permitidas, a não ser por um longo processo de negociação grupal. Conflitos e divergências, quando existem, tendem a ser intoleráveis, são interpretados como traição ao grupo, e levam a expulsões, excomungações e expurgos. O modo de vida igualitário se vê ameaçado tanto por atitudes individualistas quando pela presença de autoridades externas, e por isto reage a elas com determinação e força. O extremo oposto é o fatalismo, quando o grupo é débil, e as estruturas externas de poder e autoridade são poderosas e onipresentes. O indivíduo não é senhor de seu destino, mas sofre, simplesmente, a ação e o poder de um sistema do qual pouco sabe, e a respeito do qual pouco pode fazer (as duas coisas vêm juntas: como não é possível fazer nada, tampouco vale a pena fazer o esforço de compreender). No individualismo, as pessoas não sofrem a pressão dos grupos e das hierarquias, e podem decidir com liberdade como agir. O mundo não está dado, não existem preceitos rígidos, tudo está por construir, e depende do esforço de cada um. As culturas hierárquicas, finalmente amarram os indivíduos a grupos, e estes a sistemas de dominação e autoridade bem definidos. A sociedade é organizada, cada qual tem seu papel, cada um tem seu lugar. Não existe igualdade social, nem no sentido do individualista, que pensa que pode fazer o que quer, nem do igualitário, que não admite que outros possam ser diferentes dele.

É possível discutir bastante a respeito da abrangência descritiva destes "modos de vida", e de sua pretensão em substituir com êxito a infinidade de manifestações culturais que a antropologia e a literatura nos mostram a cada dia. Não há dúvida, porém, que abrangem variações importantes, e vão mais longe, certamente, do que as dicotomias clássicas da sociologia entre "tradicional ou moderno", "solidariedade mecânica e solidariedade orgânica", capitalismo ou socialismo, e formulações semelhantes. Esta tipologia se torna ainda mais interessante por duas razões principais. A primeira é que os "modos de vida" não são apresentados no vazio, mas ligados de forma causal e funcional a estruturas sociais, ainda que definidas de forma bem simples. Isto significa que nem todos os modos de vida são compatíveis com todas as estruturas sociais. A segunda é que todas as sociedades apresentam indivíduos que se vinculam de formas distintas a grupos e grades, desenvolvem perspectivas próprias e valores sobre como a sociedade deveria ser organizada, e combatem os modos de vida dos demais. Estas duas razões resultam em uma terceira proposição que contraria frontalmente muito do que se diz sobre o caráter único, irredutível e insubstituível das culturas: é a idéia de que os modos de vida são, em última análise, estratégias de organização e ação social, e como tais sujeitas a serem adotadas ou deixadas de lado conforme a situação das pessoas que as adotam.

O significado real de uma teoria como esta só pode ser aferido na prática, pelo interesse que podem gerar suas aplicações. Muitos autores têm tratado de aplicar estas idéias a um número surpreendentemente diverso de situações nos anos recentes, com resultados bastante sugestivos. Será que ela nos ajudaria a entender os problemas relativos à implantação de uma cultura letrada e de uma cultura universitária em um país como o Brasil?

A cultura letrada

"Culturas letradas" ocorrem em sociedades em que as pessoas são capazes de se expressar por escrito e entender o que lêem. Elas vêem associadas, normalmente, à habilidade de registrar e operar informações numéricas. Historicamente, culturas letradas se desenvolveram entre as elites de impérios patrimoniais-burocráticos, que se utilizavam de registros escritos para a administração de seus domínios e a manutenção e transmissão de seus símbolos de poder e tradição (como na China ou no Egito antigos, ou no Império Romano); ou por "povos do livro", que se utilizavam de textos sagrados como instrumentos de coesão social e grupal (como no judaísmo antigo, na tradição muçulmana e no protestantismo cristão). No mundo contemporâneo, a generalização da cultura letrada é o produto mais importante que se pode esperar de um sistema de educação básica minimamente competente. Porque o Brasil não consegue implantar um sistema educacional que elimine de uma vez por todas o analfabetismo? Será somente a falta de escolas, o baixo salário das professoras? Será que existe alguma incompatibilidade insuperável entre a cultura de classe média, que as professoras transmitiriam, e os valores e modalidades da cultura popular, que as crianças trariam de casa?

Aprender a ler e escrever depende do empenho da família das pessoas e da estrutura de recursos, incentivos e obrigações educacionais que lhes são oferecidos e requeridos. Estes dois componentes - o que vem da comunidade, e o que vem "de cima", do governo - correspondem de alguma maneira aos dois papéis clássicos da cultura letrada, o de solidariedade e coesão social e o patrimonial-burocrático. As possibilidades, em termos da teoria da cultura que estamos utilizando, são as seguintes:

Orientações diante da cultura letrada
  GRUPO DÉBIL GRUPO FORTE
GRADE FORTE Fatalismo - a educação é algo externo, imposto de fora para dentro, cujo sentido não se entende e não vale a pena aprender. hierarquia - a educação é fator de coesão social e reprodução das estruturas de poder e de prestígio. A ênfase é posta na transmissão de tradições culturais e conteúdos simbólicos.
GRADE DÉBIL individualismo - a educação é um instrumento de mobilidade social e auto-realização. Os conteúdos são pragmáticos, e há pouco interesse pela formação geral e pela cultura. igualitarismo - a educação, letrada ou não, é um instrumento de coesão do grupo. Os conteúdos são homogêneos, e os processos de aprendizagem, dogmáticos e ritualísticos.

Se este quadro é correto, ele significa que três dos quatro "modos de vida" sugeridos pela teoria da cultura são congruentes com o desenvolvimento de culturas letradas, ainda que com conteúdos diferentes. Ele faz supor que muitas das dificuldades com a universalização da educação básica no Brasil estejam relacionadas à cultura fatalista que impera nas relações entre grande parte da população e as estruturas políticas e institucionais de prestígio e de poder econômico e político, cujos desígnios e ações são vistos como coisas inalcançáveis e inatingíveis "coisa de branco". O problema não é simplesmente, como pensavam alguns teóricos da "educação como reprodução", que o conteúdo da educação reproduza os valores dos grupos dominantes, e por isto não alcancem as populações menos favorecidas. Isto ocorre, com muito mais força, nas culturas hierárquicas, que nem por isto deixam de educar suas populações. A combinação fatídica entre grade forte e grupo débil se dá, além disto, no próprio contexto do sistema educacional, no ponto de encontro entre a escola e os estudantes e suas famílias. O fatalismo resultante não atinge somente as populações que deveriam receber a educação, mas os próprios professores que trabalham na periferia de gigantescas burocracias que editam periodicamente normas, programas, projetos e reformas, que acabam sendo traduzidas e reinterpretadas segundo a rotina quotidiana de sempre.

A teoria da cultura sugere dois caminhos possíveis para alterar esta situação, que são a redução da hierarquia e o aumento da solidariedade de grupo. Ela mostra também que existe um caminho muito trilhado e pouco promissor, que é o reforço das estruturas hierárquicas e de autoridade. Vale a pena examinar com algum detalhe estas alternativas.

O aumento da coesão grupal é a inspiração básica de todas as propostas de desenvolvimento educacional a partir da comunidade. Tanto a experiência histórica quanto as pesquisas educacionais contemporâneas confirmam que o envolvimento das famílias e das comunidades mais imediatas com a atividade educacional é fator decisivo para o bom desempenho das escolas e a educação bem sucedida. A questão fundamental é como convencer as pessoas que a educação é uma coisa delas, de seu interesse, e não uma simples imposição externa. As possibilidades vão da leitura da Bíblia em grupos religiosos ao método Paulo Freire, passando pela tradição européia de círculos operários de leitura e estudos da literatura socialista. As limitações desta alternativa, quando buscada com exclusividade, é o caráter dogmático e sectário que a educação de base comunitária pode adquirir, e que parece ser incompatível com a implantação de sistemas de educação básica realmente universais.

O segundo caminho, de reduzir a hierarquia, tem sido objeto de atenção crescente nos últimos anos, e consiste na idéia de desmantelar as complexas estruturas centralizadas de administração escolar que foram montadas nas últimas décadas, devolvendo às escolas, e às comunidades, a iniciativa e a responsabilidade pelas atividades educativas. O problema é que a grade de estratificação social não ocorre somente no interior do sistema educacional, mas na sociedade como um todo. Pouco adianta devolver a uma comunidade impregnada pelo fatalismo o controle e a responsabilidade pela educação de suas crianças. As propostas de descentralização supõem a existência de impulsos individualistas e pragmáticos escondidos em cada canto, prontos para vir à tona no momento em que o peso do Estado e da burocracia deixarem de se fazer sentir. Se outras condições não se alterarem ao mesmo tempo, no entanto, o que pode ocorrer na prática é que a hierarquia seja substituída pelo igualitarismo, no melhor dos casos, ou pela simples anomia, gerada pela permanência e reforço de outras hierarquias.

O terceiro caminho, de reforço e aperfeiçoamento das máquinas administrativas centralizadas, fez parte de todos os projetos contemporâneos de universalização da educação, exatamente como uma forma de romper o sectarismo comunitário de alguns setores, e abrir uma alternativa ao fatalismo dos demais. Este tem sido, também, o caminho preferido pelos políticos e governantes, que permite distribuir empregos, contratar projetos vistosos a arquitetos famosos, e fazer bons negócios com empreiteiras. O que a teoria da cultura nos ensina em relação à educação básica é que, nas sociedades modernas, ela depende de uma combinação adequada de envolvimento comunitário, espaço para a iniciativa e a motivação pragmática e individualista, e da presença do Estado e da hierarquia no estabelecimento de padrões, distribuição de estímulos e correção de distorções. Não existe fórmula mágica para transformar uma recomendação genérica como esta em política concreta; mas ela ajuda a pensar nos caminhos que devem ser buscados ou evitados.

Culturas universitárias

As universidades modernas são um produto característico da Europa Ocidental, e se difundiram pelo mundo através de reproduções e adaptações de alguns modelos básicos, derivados da Itália, França, Inglaterra e Alemanha. Nesta difusão pelo espaço e tempo, idéias e formatos foram sendo traduzidos e reinterpretados em diferentes contextos sociais e culturais. O esquema de Mary Douglas permite a seguinte tipologia:

Culturas universitárias
  GRUPO DÉBIL GRUPO FORTE
GRADE FORTE Fatalismo - universidade confessional hierarquia - universidade napoleônica
GRADE DÉBIL individualismo - tradição inglesa e americana igualitarismo - universidade corporativa

Desde suas origens, as universidades européias combinavam elementos de forte individualismo, organização corporativa e vínculos estreitos com a hierarquia eclesiástica. Tão importante quanto a coexistência destes três elementos são as tensões que sempre existiram entre eles. Mais do que simples instrumento de transmissão dos ensinamentos da Igreja, as universidades antigas se desenvolveram como um espaço para o desenvolvimento do pensamento racional e da filosofia, através da recuperação da tradição clássica. As universidades do renascimento formavam uma comunidade internacional, marcada pela presença de indivíduos que circulavam entre as principais capitais, falavam uma língua comum, o latim, defendiam com ardor seus pontos de vista, e conquistavam um espaço próprio em relação à sociedade circundante e ao poder eclesiástico - daí sua organização em corporações. Quando faltava o elemento dinâmico do individualismo, as universidades se transformavam em meras burocracias eclesiásticas, ou simples corporações oligárquicas de ofício, e se esvaziaram. A Reforma protestante, e mais tarde a revolução industrial e burguesa, reforçaram a presença do componente individualista nas universidades européias, e levaram a diferentes arranjos e acomodações no relacionamento entre as instituições universitárias e as autoridades políticas e religiosas.

A universidade napoleônica surge no início do século XIX no contexto de um estado forte e centralizado, construído a partir da intensa mobilização intelectual e social dos anos revolucionários, cuja marca central é o surgimento do cidadão como sujeito individualizado da política, da economia e da própria razão. A universidade alemã, constituída na mesma época, tem um forte elemento hierárquico, mas se desenvolve a partir de uma tradição protestante muito centrada na valorização da realização individual, e em uma sociedade politicamente fragmentada, que antecede à unificação. De todas, é a universidade inglesa que mantém os valores individualistas de forma mais acentuada, dentro do contexto mais amplo que caracteriza a democracia política naquele país. É possível que, dos três modelos, o francês tenha sido o mais copiado pelas jovens nações em formação, na América Latina como em outras partes do mundo. O que faltou quase sempre, nestes transplantes, foi o conteúdo racionalista, individualista e de cidadania que foi tão central da revolução francesa, e que serviu de contrapeso e limites à restauração napoleônica.

O final do século XX traz um ingrediente novo aos sistemas universitários em todo o mundo, que é sua transformação em sistemas de educação de massa. As universidades antigas, que abrigavam setores do clero, representantes das profissões liberais e da comunidade científica, e um grupo seleto de filhos das elites, passam agora a incorporar novos grupos sociais, o funcionário administrativo e o professor universitário profissional. Elas são, além disto, o ponto de passagem obrigatória de um fenômeno recente do mundo contemporâneo, que é a cultura da juventude. Não é que antes não existissem funcionários, professores e alunos. Mas as universidades modernas, principalmente as públicas, desenvolvem burocracias administrativas em uma escala que antes não existia; seus professores passam a se constituir como uma nova profissão, distinta das profissões liberais e das comunidades científicas das respectivas disciplinas e áreas de conhecimento; e o fenômeno da juventude assume hoje características que não existiam antes, pelo seu prolongamento até a faixa dos 20-30 anos, pelas dificuldades de incorporação dos jovens no mercado de trabalho, e pelos conteúdos expressivos e formas de participação social que lhes são próprios. A conseqüência principal destes desenvolvimentos é a quebra da grade de hierarquia acadêmica que existia no passado, e que se desenvolvera em aliança com o individualismo competitivo. Primeiro entre os estudantes, mais tarde entre professores e funcionários, surgem novas formas de solidariedade igualitária que disputam os recursos financeiros e de poder no interior dos sistemas universitários, deslocando as formas culturais antigas, e com elas muito dos conteúdos intelectuais, pedagógicos e éticos que as acompanhavam.

Esta análise sugere que o modelo da universidade européia tradicional, em suas diversas vertentes, encontra fortes barreiras culturais para se generalizar para o conjunto dos sistemas universitários contemporâneos. Isto vale tanto para o Brasil quanto para os países europeus, e se revela no verdadeiro diálogo de surdos que se estabelece com tanta frequência entre os diferentes setores nos sistemas de educação superior. Novas formas de institucionalização acadêmica são buscadas, seja na tentativa de dar às universidades uma feição mais empresarial, em um extremo, ou mais democrática e igualitária, no outro, mas não parecem ser capazes de produzir e transmitir conhecimentos com a mesma competência com que o fazia a universidade do passado, nas suas melhores vertentes. A solução adotada pela maioria dos países tem sido a de diferenciar seus sistemas de educação superior, preservando e reforçando suas instituições mais tradicionais, e buscando formas alternativas de lidar com os fenômenos da massificação.

Conclusões

A "teoria cultural" proposta por Wildawsky e seus colaboradores apresenta desde início duas ou três dificuldades significativas. Ela é intencionalmente abstrata e ahistórica, e por isto é difícil ligá-la com culturas concretas e históricas, tal como estamos acostumados a pensar nelas. Sua tipologia é bastante simples, e não permite distinguir, por exemplo, as conseqüências culturais de diferentes posições em um sistema de estratificação social. E, se ela ajuda a entender as conseqüências e implicações culturais das estruturas sociais, ela contribui pouco para explicar de onde estas estruturas de grupo e grade se originam e como se transformam.

Com tudo isto, os dois ensaios de aplicação acima mostram que ela é bastante frutífera, na medida em que ajudam a colocar questões e gerar idéias que não costumam fazer parte das discussões rotineiras sobre os temas da educação básica e do sistema universitário, e permitem ver velhos e persistentes problemas sob uma nova luz. Isto é feito de maneira clara e inteligível, sem a necessidade de recorrer à linguagem retorcida e obscura que costuma caracterizar muitas das novas correntes culturalistas e qualitativistas das ciências sociais e humanas de hoje. É cedo para prever que lugar a "teoria da cultura" deverá ocupar nas ciências sociais da próxima década. Mas, em sua simplicidade inicial, ela já serviu para mostrar que a sociologia pode redescobrir a cultura como fenômeno social inteligível, sem abandonar a inspiração original de seus fundadores.

Notas

1. Michael Thompson, Richard Ellis e Aaron Wildawsky, Cultural Theory, Westview Press, 1990.

2. O termo "grade" não é geralmente utilizado em português neste sentido, mas é bastante similar à expressão inglesa "grid", que permite que os autores falem de uma tipologia "group/grid", ou "grupo/grade".

3. Mary Douglas, "Cultural Bias", em Douglas, In the Active Voice (London: Routledge & Kegan Paul, 1982).