MARX: A REDUÇÃO
DA POLÍTICA Simon Schwartzman
Manuscrito, 1968
1. Marx reducionista:
um problema epistemológico
2. A crítica do Estado
3. A emancipação humana
4. Conclusão
Notas
Política, para Marx, é uma daquelas coisas que devemos fazer para ficarmos
livres de fazê-las. O Estado, nesta perspectiva, é somente um braço da classe
dominante, e a única ação política realmente legítima é aquela que conduz
à eliminação da política e do Estado. Duas críticas interligadas são normalmente
dirigidas a esta concepção. A primeira é que Marx "reduz" o conceito
de Estado a um simples reflexo do econômico. A segunda é que a ação política
tem uma especificidade que não somente é diferente de outros tipos de atividade,
mas é de fato o que é mais caracteristicamente humano em toda a atividade
do homem. A intenção deste texto é avaliar estas críticas à luz de uma interpretação
específica de Marx - o Marx jovem e filósofo. Esta discussão terá, se bem
conduzida, implicações em relação ao status epistemológico da análise
de Marx do Estado e da política, e terminará com uma breve referência às
relações entre a filosofia de Marx e o existencialismo.
1. Marx
reducionista: um problema epistemológico
Podemos começar com o conceito de "redução". Que significa dizer
que Marx "reduz" o Estado a um "reflexo" de fatores
econômicos?
Do ponto de vista de uma abordagem empírica, uma proposição reducionista
somente pode significar que, se "A" é um "mero reflexo"
de "B", então toda a variabilidade de "A" pode ser predita
pela variabilidade de "B". Esta definição é claramente uma tour
de force, dado que a expressão "reducionismo" não é de uso
corrente no âmbito das ciências sociais empíricas. De qualquer forma a idéia
é que, quando dizemos que "A" pode ser totalmente compreendido
se compreendemos "B" e as relações entre "A" e "B",
e que não há nada que varie em "A" de forma independente do que
ocorre em "B", estamos, de fato, "reduzindo" "A"
a "B".
Dizer que Marx reduz o político ao econômico é dizer que ele não atribui
nenhuma autonomia ao político, e afirma que o Estado pode ser total e completamente
compreendido se soubermos o suficiente a respeito da economia. Não é isto
que ocorre, no entanto, não porque Marx sustente o oposto, mas porque esta
maneira de pensar em termos de correlações é estranha à maneira pela qual
Marx pensava a sociedade. Na realidade, este não é o único caso em que a
questão do reducionismo surge em relação a Marx e ao marxismo. Outros exemplos
são a noção de que as ações e pensamentos humanos são um "reflexo"
da realidade material, que o valor da mercadoria "reflete" a quantidade
de trabalho socialmente necessária para sua produção, e a de que a religião,
a moral e os valores são epifenômenos, ou superestruturas de fenômenos mais
profundos. Deve ser dito, antes de deixarmos a perspectiva empírica, que
não há nada de errado em buscarmos fenômenos que estejam "por trás"
de outros, que sejam seus "antecedentes", ou "variáveis independentes".
Este é, na realidade, o objetivo principal de qualquer trabalho de pesquisa,
encontrar este tipo de relação. O pecado do reducionismo consiste em postular
este tipo de relação por definição, fechando as portas, assim, para a possibilidade
de outras fontes de variança e explicação. Podemos agora passar a um breve
exame dos dois exemplos mais conhecidos de reducionismo em Marx, em um esforço
de esclarecer a natureza do seu projeto analítico.
A teoria da consciência humana como reflexo da realidade é talvez melhor
expressada, dentro do marxismo, pelo Lênin de Materialismo e Empirocriticismo.
A teses é simples, se não simplista. Existe um mundo que "lá fora",
independente de nossa idéia a seu respeito. É um mundo material, e o único
que existe, e é afirmação deste fato que nos faz materialistas. É deste
mundo que o homem extrai suas idéias e conceitos, e a noção de "verdade"
surge no curso da interação entre o homem e o mundo material. Assim, todas
as teses a respeito do homem "construindo" a realidade, a busca
de critérios subjetivos de verdade, e assim por diante, são manifestações
mal disfarçadas da crença religiosa na autonomia do espírito, ou na predominância
do espírito sobre a matéria - ou seja, puro idealismo.
É curioso como Lênin, a partir de um desenvolvimento particular do pensamento
marxista, chega a um realismo que é, como qualquer iniciante em filosofia
sabe, baseado em uma ontologia metafísica. Neste tipo de marxismo, o ataque
filosófico ao idealismo se transforma em um pálido reflexo (a expressão
é bem apropriada aqui) do debate clássico entre idealismo e realismo, cheio
de sobretons ideológicos, e vazio de background filosófico. Hegel,
neste contexto, surge como o grande adversário do marxismo, e isto explica
a grande dificuldade que esta corrente marxista encontra em entender a grande
proximidade e a grande dívida intelectual de Marx em relação a Hegel. A
questão mais interessante, neste contexto, é a respeito do que ocorreu de
Marx a Lênin para afastá-los tanto um do outro. Houve, neste meio tempo,
uma transformação gradual do sentido de termos como "explicação",
"ciência" e "dialética" do contexto da filosofia alemã
para o do cientificismo, possivelmente francês, do século XIX. Engels é
normalmente considerado o principal responsável por esta passagem, ainda
que Lênin, entre outros, tenha tido sua parcela de responsabilidade.
A principal conseqüência da teoria leninista do reflexo foi que ela tornou
ilegítima toda tentativa de estudar a mente humana como um domínio específico
da realidade. É certo que esta abordagem abriu espaço para Pavlov, mas cabe
perguntar se isto compensou a incapacidade de ler Freud. O que restou de
Marx nesta concepção foi a idéia que a vida intelectual não pode ser entendida
nela mesma, fora da realidade do homem como ser social e trabalhador. O
que é profundamente alheio a Marx, no entanto, é, primeiro, o suposto metafísico
de um mundo "externo" ao homem, e, segundo, o modelo explicativo
causal implícito nesta maneira de ver as coisas. Realidade, para Marx, era
sempre e necessariamente realidade humana, mesmo se muitas vezes
desumanizada por alienações históricas. Ser humano significa emergir no
contato entre homem e natureza, esta "natureza" sendo, por definição,
a fronteira mais externa da natureza humana; e esta interação caracteriza
tanto a humanidade do real quanto a realidade do homem. O outro conceito
anti-marxista é mais difícil de ver, talvez os problemas que envolve são
objeto de preocupação mais contemporânea. Podemos dizer, de qualquer forma,
que "explicar", para Marx, significava mostrar a realidade humana
que necessariamente existe como fundamento de qualquer realidade que se
apresenta, à primeira vista, como autônoma. Trata-se, pois, de um empreendimento
essencialmente filosófico, que só secundariamente (como discutido mais abaixo)
conduz a explicações empíricas de tipo causal. A incapacidade de distinguir
estes dois aspectos ou conceitos de "explicação" é uma das causas
da dificuldade das tentativas de desenvolver uma "ciência marxista"
onde a análise filosófica é colocada no lugar da abordagem empírica, enquanto
que a filosofia é substituída pela crítica ideológica.
Tomemos o problema da explicação em outro contexto, o da teoria do valor.
Para Marx, o valor da mercadoria é função do trabalho socialmente necessário
para sua produção. Mais corretamente, o valor da mercadoria é o
trabalho que ela incorpora. A análise do valor, apresentada no início de
O Capital, começa com a observação do estranho fato de que mercadorias
são trocadas como se elas tivessem algo comensurável, mesmo quando completamente
dissimilares em aspecto e uso. Este elemento comum é o fato de que todas
elas são frutos do trabalho humano. Por isto, a quantidade de trabalho incorporado
à mercadoria é considerado como a explicação de seu valor de troca no mercado.
As dificuldades em usar esta teoria para a previsão ou determinação de preços
efetivos nos mercados são suficientemente conhecidas. O conceito de "trabalho
simples", do qual o trabalho especializado seria um agregado, não tem
definição operacional utilizável. Preços variam, no curto prazo, conforme
as variações da oferta e da procura, e a longo prazo dependem fortemente
de quanto os mercados se aproximam ou não das características da competição
perfeita. O conceito de "valor", como algo distinto do de "preço",
não tem contrapartida empírica. Este fato foi reconhecido nas reformas recentes
da economia da União Soviética que buscam reintroduzir preços de mercado
para a avaliação do desempenho de empresas em um sistema de economia descentralizada.
Isto significa que o conceito marxista de valor-trabalho está equivocado?
Sem dúvida, mas só no sentido restrito de que ele não permite prever a realidade
com precisão. A tentativa de prever preços a partir do trabalho traz em
princípio as mesmas dificuldades da de tratar de entender idéias e pensamentos
como "reflexos" da realidade. O postulado filosófico de uma conexão
não leva, necessariamente, à possibilidade efetiva de determinação empírica.
É bastante claro que, para Marx, a redução do preço ao trabalho é, em sua
origem, uma análise que tem muito pouco a ver com a previsão de preços ao
nível fenomênico. Ela se parece muito mais, na realidade, a uma "redução"
no sentido que a fenomenologia daria mais tarde a este termo, ou seja, um
processo de passagem do fenomênico ao núcleo mais essencial da realidade.
Como na fenomenologia, as características essenciais dos fenômenos surgem
quando eles são vistos como relacionados de forma imediata com o ser humano
- em Marx, como um produto imediato da atividade humana. O instrumento intelectual
proposto para esta redução é a dialética, como uma maneira de buscar o que
é oposto ao fenômeno, o que o nega, e o que traz o fenômeno e sua negação
juntos novamente. A negação da mercadoria como bem de consumo é seu valor
de troca, e o que junta estes dois aspectos da mercadoria é seu conteúdo
social, o trabalho humano. O método dialético, pelo que ele possa valer
(e não haveria como aprofundar esta questão aqui) é basicamente uma forma
de ir à essência das coisas, um método de conhecimento filosófico, não tendo
sido jamais concebido como um instrumento para explicações no nível do fenômeno.
Ou não? Afinal, Marx arriscou previsões sobre o fim do capitalismo, a revolução
na Alemanha, a vitória do proletariado... Parece claro que, para ele, conhecimento
filosófico e empírico eram uma e a mesma coisa, quando o objeto do conhecimento
era o homem. Ele chegou a fazer, nos Manuscritos Filosóficos de
1844, uma distinção entre as ciências "naturais" e as "humanas",
mas considerava esta divisão como mais uma manifestação do estranhamento
entre o homem e o seu mundo de objetos, pela desumanização da atividade
prática.
Marx introduziu esta mesma distinção nas ciências sociais, ao caracterizar
a economia política clássica como sendo a "metafísica do capitalismo",
e como tal alienada - mas de qualquer forma científica. Sua própria ciência
social, enquanto isto, consistia, essencialmente, em uma crítica da economia
política (este é, naturalmente, o sub-título de O Capital, uma
crítica que só era possível porque a sociedade alienada havia encontrado
sua negação, a praxis da classe operária, que incluía a Internacional
Comunista, os sindicatos e a atividade política e intelectual do próprio
Marx, entre outras coisas. A mistificação da ciência do homem perde seu
aspecto mistificado no momento da revolução, mas ela só pode ser uma crítica.
Esta crítica seria ao mesmo tempo um conhecimento essencial (ou seja, filosófico)
e um modo de previsão, como parte de um movimento revolucionário que realiza
a crítica prática da sociedade.
Com isto chegamos ao cerne do problema. O momento da revolução, para Marx,
era como o Dia do Juízo Final, quando todas as máscaras são retiradas, e
a verdade aparece à plena luz. Esta revelação geral da verdade tem pelo
menos dois componentes. O primeiro é que, uma vez que a pré-história da
alienação chega ao fim, mistificações não são mais possíveis. O segundo
é que, neste momento da verdade, as coisas se tornam muito mais simples,
reduzidas a sua verdadeira natureza: no momento que antecede a revolução,
quando falta somente um passo a dar, a última negação. A simplificação da
realidade é vista como um processo histórico, empírico, inseparável do problema
intelectual da descoberta da face verdadeira das coisas. Daí o conceito
de praxis, como ação-conhecimento levando a este desvendamento-desalienação
da realidade. Exemplos abundam. Tomemos a estrutura de classes da sociedade,
e perguntemos quantas classes existem. A resposta de Marx é a de que existem
muitas (camponeses, proprietários de terras, capitalistas, aristocratas,
operários, etc., como se vê em 18 Brumário), mas este quadro é
simplificado à medida em que o capitalismo se desenvolve, e a revolução
se aproxima: então existem somente burgueses e proletários em confronto.
Ou tomemos as relações entre a classe operária e o movimento comunista.
Marx sabia muito bem que se tratava de coisas diferentes, o que não o impediu
de dizer, no Manifesto Comunista, que o Partido não é outra coisa
senão a classe operária em sua atividade revolucionária. A análise do Estado,
que veremos mais adiante, também contém a idéia de que o Estado burguês
e democrático é a simplificação e clarificação dos sistemas políticos anteriores,
somente a um passo de seu desmascaramento destruição final.
Como, no entanto, o momento revolucionário não ocorreu, e não parece estar
por ocorrer no futuro previsível, a unificação dos tipos de conhecimento,
e do conhecimento com a ação, só se manteve como ideologia dos partidos
e sistemas políticos marxistas. O conseqüente caos intelectual no Marxismo,
por isto, ainda perdura. Engels, mais próximo do cientificismo do século
XIX do que de Hegel, tratou de tomar a identificação das duas formas de
conhecimento como significando que o modo filosófico ficava excluído - e
o resultado é que sua tentativa de levar a dialética para a natureza resultou,
não em uma humanização das ciências naturais, mas numa bastardização da
dialética. As ciências naturais se mostraram suficientemente fortes para
resistir a este assalto, mas ele repercutiu, com efeitos desastrosos, no
campo das ciências sociais. Lukács, mais próximo de Hegel do que de Zhdanov,
resolveu o problema pela introdução de uma distinção absoluta entre as ciências
humanas e as ciências naturais, a primeira tendo a dialética como o instrumento
principal de análise, e o estudo da natureza pertencendo a um âmbito conceitual
distinto. Uma análise da obra de Lukács e seus seguidores (entre os quais
Lucien Goldmann) mostraria certamente melhores resultados do que tudo o
que foi produzido em termos de ciências sociais dentro do marxismo oficial
de inspiração engelsiana.
Em síntese: o fracasso da revolução exige que distingamos entre o Marx analista
empírico, estudando uma realidade histórica determinada e fazendo previsões,
e o Marx filósofo, autor de uma crítica filosófica às alienações da sociedade
capitalista. É uma distinção malgré lui, mas indispensável se queremos
avaliar ou, pelo menos, entender a Marx(1)
Podemos passar agora para a crítica do Estado.
2. A crítica do Estado
A crítica do Estado em Marx é, em grande parte, uma crítica à filosofia
do Estado de Hegel, que é vista como justificação do Estado capitalista.
O corpo principal desta crítica pode ser encontrado na Crítica à Filosofia
do Estado de Hegel(2), que é um comentário à Filosofia
do Direito. Podemos tentar indicar os pontos principais da crítica.
O ponto essencial da filosofia hegeliana do Estado, na interpretação de
Jean Hyppolite(3), é a separação entre o
Estado e a Sociedade Civil. Na Cidade Clássica, o indivíduo é visto como
idêntico à vontade geral, e esta distinção não existia. No Império Romano,
no entanto, ocorre a divisão entre a sociedade, como estado da necessidade,
e o Estado, como a unidade da vida política. Mas no Estado moderno, para
Hegel, esta alienação chegaria ao fim. Não que as duas esferas da vida política
e da vida privada retornem a um estado de indiferenciação; mas elas passam
a constituir dois momentos da mesma realidade. A Sociedade Civil é percebida
como o fenômeno do Estado, e o Estado como a Idéia da Sociedade Burguesa.
Esta idéia se manifesta como a Constituição e o Soberano, e a mediação entre
estas particularizações da Idéia e a Sociedade Burguesa é feita através
de instituições tais como a opinião pública, a representação de grupos civis
ante o Estado, a burocracia, e assim por diante. Assim, para Hegel, o problema
da conciliação entre o público e o privado, e entre a liberdade individual
e a unidade da vontade geral, já estaria resolvido. Para Marx, no entanto,
é este o problema que deve ser resolvido pela ação revolucionária.
O primeiro ponto da crítica de Marx é a relação de dependência entre a sociedade
civil e o Estado. Para ele, é o Estado que é o fenômeno, e a sociedade civil
a realidade essencial, porque é nela que o homem trabalha e vive sua vida
concreta. Com isto a concepção hegeliana é posta sob seus pés, e a análise
pode prosseguir buscando as conexões entre a sociedade civil e o Estado
- a conclusão principal sendo, ao final, que o Estado nada mais é do que
um instrumento de dominação da burguesia.
Antes de chegar a esta conclusão, no entanto, Marx desenvolve a crítica
às mediações que Hegel considerava como unindo o Estado à sociedade civil.
A primeira destas mediações é a burocracia. Para Hegel, a burocracia era
a alma do Estado, e a atividade privada dos funcionários públicos
consistia no desempenho de uma função universal. Para Marx, no entanto,
os burocratas terminavam por fazer desta função universal seu negócio privado.
Para Hegel, o suposto básico da burocracia era a autonomia e a organização
da sociedade civil em corporações. A escolha dos funcionários e autoridades
públicos era vista como uma escolha mista, iniciada pelos cidadãos livres
e aprovada pelo Soberano. O fato é, dizia Marx, que este tipo de penetração
da sociedade civil no interior do Estado só leva à criação de mais um tipo
de corporação: as corporações são o materialismo da burocracia,
e a burocracia é o espiritualismo das corporações; mas a corporação
é a burocracia da sociedade civil, e a burocracia é a corporação do Estado".
A identificação entre o interesse desta corporação do Estado e a burguesia
só vai aparecer em Marx mais tarde.
A crítica de Marx à burocracia vai muito além da denúncia da defesa hegeliana
do Estado alemão, ou de seu papel como instrumento de dominação de classe.
Vale a pena citar por extenso:
A burocracia tem em seu poder o ser do Estado, o ser espiritual
da sociedade: ele é sua propriedade privada. O espírito geral
da burocracia é o mistério, conservado pela hierarquia, e protegido
dos de fora pelo fato de ela se constituir como corporação fechada. Tornar
o espírito do Estado conhecido por todos, e pela opinião pública, é algo
percebido pela burocracia como traição ao seu mistério. O princípio da
ciência burocrática é, pois, a autoridade; e seu sentimento
é a idolatria desta autoridade. Mas, dentro da própria burocracia,
este espiritualismo se transforma em materialismo sórdido, o
materialismo da obediência passiva, da fé na autoridade, dos princípios,
idéias e tradições fixos. Para o burocrata como indivíduo, os objetivos
do Estado se transformam em seus objetivos privados: a conquista de
posições cada vez mais altas, a luta pela promoção.(4)
Marx é, como sempre, sucinto quando se trata de propor soluções: "a
supressão da burocracia somente é possível quando o interesse geral se transforme
realmente (e não, como em Hegel, somente no pensamento, uma
abstração)o interesse privado, o que só será possível quando os interesses
privados se transformem no interesse geral
A crítica de Marx ao legislativo é demasiado dependente das particularidades
da época para uma análise mais detalhada aqui. O ponto principal a assinalar,
de qualquer forma, é que, para Marx, o Estado alemão era ainda atrasado
como estado burguês plenamente desenvolvido, que se caracterizaria pela
eliminação total dos resquícios das instituições medievais do passado. No
Estado burguês, "cada esfera privada tem um caráter político ou é uma
esfera política, e a política é também uma característica das esferas privadas".
Se a Alemanha tivesse completado seu desenvolvimento, ela teria adquirido
a forma de uma democracia, que, para Marx, era "a solução para o enigma
de todas as constituições". E isto porque, na democracia, o Soberano
são as próprias pessoas, e a alienação que separa o âmbito público do privado
chega a seu extremo, a um passo somente de sua eliminação final. Aqui novamente,
a proximidade da revolução simplifica as coisas. As complicadas estruturas
do Estado nobiliárquico desaparecem, sua função como instrumento de dominação
de classes torna-se mais visível e intensa, e assim por diante. Neste ponto
o Estado já é o elemento que conduzirá o homem ao mundo desalienado, só
que a um passo aquém de sua realização plena: "o estado político perfeito
é, por sua natureza, a "vida genérica" (Gattungsleben)
do homem enquanto oposta à sua vida material"(5).
O próximo passo é acabar com esta abstração, e lograr a integração das duas
esferas.
É claro que, com esta percepção do Estado, Marx só poderia desprezar as
formas de vida política que ele implica. A vida política, outra das mediações
hegelianas, é vista como uma substituição à revolta popular, e, assim, mais
uma forma de mistificação: "a esfera política é a única esfera política
do Estado, a única esfera onde o conteúdo e a forma adquirem um caráter
geral e universal; mas isto é feito de tal forma que, na medida em que esta
esfera se opõe às demais, seu conteúdo fica formal e particular. A vida
política no sentido moderno é a escolástica da vida popular"(6). A única maneira de evitar este escolasticismo
é recusando o formalismo da vida política, e trazendo a política de volta
para sua verdadeira origem e destino final, a esfera da sociedade civil.
Para isto é necessário atuar politicamente, por certo, mas de acordo com
as regras formais do jogo político democrático, ou pelo menos não acreditando
nelas. O que nos traz ao terceiro e último ponto desta discussão, a relevância
filosófica da política.
3. A emancipação humana
"A emancipação humana só será completa quando o homem real e individual
tenha absorvido para dentro de si o cidadão abstrato; quando como um homem
individual, em sua vida quotidiana, em seu trabalho, e em suas relações,
se transforme em um ser genérico; e quando tenha reconhecido organizado
suas forças próprias como força social, deixando assim de separar
este poder social de si mesmo na forma de um poder político"(7).
O conceito de "Gattungswesen", traduzido como "être générique"
pelos franceses e como "species-being" pelos de língua inglesa,
parece crucial para entender o pensamento de Marx sobre o fim da alienação.
Vimos como o fim da alienação na esfera da política requer a negação da
política, que é a abstração do ser genérico. O mesmo tipo de negação é também
requerido na esfera do trabalho, da atividade quotidiana do homem.
É possível somente especular sobre o sentido do termo "Gattungswesen",
Marx nunca especifica. Para Feuerbarch, de quem ela surge, esta palavra
parece sugerir a capacidade que têm os homens de ter consciência de seu
pertencimento a uma espécie de seres vivos. Este sentimento de pertencer
a um todo mais amplo parece similar ao que Férdinand Tönnies chamaria depois
"comunidade" (Gemeinschaft,
em oposição a Geselschaft), e Émile Durkheim "solidarité méchanique",
solidariedade baseada nas identidades, em contraposição à "solidarité
organique", baseada nas diferenças e nas complementaridades.
Em Tönnies, tanto quanto em Durkheim, sociedades comunitárias se caracterizam
por uma similaridade básica e uma identidade de valores e atitudes entre
todos os seus membros. Não somente todos compartem os mesmos valores e atitudes,
mas este fato é conhecido e vivido por todos; a sociedade é transparente,
e existe um sentimento generalizado de pertencer ao mesmo todo. O oposto
é a sociedade onde as interações se baseiam na especificidade dos papéis,
ausência de afetividade, universalismo, auto-orientação e ausência de características
sociais adquiridas, para utilizarmo-nos das variáveis padrão de Talcott
Parsons. Comunidades são geralmente descritas, nesta tradição sociológica,
como localizadas em um passado real ou hipotético, caracterizadas pela indiferenciação
de papéis, em contraste com as sociedades modernas, postas no outro extremo
temporal, e caracterizadas pela divisão do trabalho.
Podemos concluir que Marx antecipou a Tönnies em sua nostalgia pela comunidade
antiga, pequena e simples? A resposta parece ser afirmativa. Marx compartia
com Hegel (antes do que com Tönnies) a noção de uma união primitiva entre
conceito e realidade, sociedade civil e Estado, homem e homem. Esta identidade
da Idéia consigo mesma era, no entanto, vazia; e é a mediação entre o ser
e o não ser que traz à vida movimento e conteúdo à realidade. A reconciliação
da Idéia com seu eu alienado é, de uma certa forma, uma volta ao começo,
carregada pela vivência do processo. Marx dificilmente subscreveria a esta
formulação; e no entanto, há pouca dúvida de que ela servia de pano de fundo
para seus escritos.
Descendo das alturas da Idéia hegeliana, podemos sugerir que as sociedades
modernas trazem, de fato, alguns dos elementos da "solidariedade baseada
nas diferenças" de que falava Durkheim. A preocupação de Marx com as
desigualdades reais subjacentes à igualdade formal da democracia burguesa
era um obstáculo, podemos pensar, à sua percepção adequada processo de massificação
que a sociedade moderna estava criando. As análise de De Tocqueville sobre
a democracia americana, escritas na mesma época, são uma premonição dos
problemas que a volta à comunidade em sociedades massificadas poderiam trazer.
Podemos aprofundar um pouco esta análise se pensarmos no papel que a divisão
do trabalho pode jogar neste contexto. Para Durkheim, a divisão do trabalho
é a base da solidariedade orgânica, baseada nas diferenças; para Marx, a
alienação do trabalho era a base de todas as demais formas de alienação.
Que relação existe entre trabalho alienado e trabalho dividido? Não é uma
relação clara, porque Marx se recusa a discutir a natureza do trabalho de
forma abstrata, fora da sociedade contemporânea, onde o trabalho é ao mesmo
tempo alienado e dividido. Ele mostra a existência de três tipos de alienação
no trabalho. Primeiro, há a alienação do produto do trabalho, que
não pertence ao trabalhador, cuja própria força do trabalho é uma mercadoria
posta à venda; segundo, há a alienação da atividade produtiva,
porque esta atividade é vivida como sofrimento, e não como prazer e alegria;
terceiro, e como conseqüência das anteriores, o trabalho alienado aliena
o homem de si mesmo, de sua espécie humana. A vida produtiva, que é
a atividade vital por excelência, se transforma em um simples meio para
a vida privada, e as relações de homem para homem tornam-se mediadas por
interesses privados. A conseqüência é a solidão, o isolamento e a nostalgia
da comunidade perdida, onde homem teria sido, um dia, um ser comunitário
(Gemeinwesen).
O que Marx não busca esclarecer é em que medida a alienação do trabalho
é o resultado de um tipo determinado de organização social, e em que medida
ela decorre da própria natureza da atividade física do trabalho. É possível
dizer, por exemplo, que o trabalho será alienado sempre que houver divisão
do trabalho, seja qual for a forma em que a sociedade ou a economia estiverem
organizados. Quando pensamos no trabalho desalienado pensamos no homem produzindo
para si mesmo e para os seus, tendo o entendimento e o controle completo
de sua atividade, e feliz com sua atividade criativa. Esta concepção é compatível
com o trabalho relativamente simples que podemos encontrar em comunidades
baseadas na "solidariedade de identidades", mas é claramente incompatível
sociedades altamente tecnificadas.
Marx não ajuda a resolver esta questão. Para ele, os problemas sociais e
técnicos são a mesma coisa, e a supressão da propriedade privada deveria
trazer também a eliminação do trabalho rotinizado, sem sentido e compartimentalizado.
Poderíamos entender este ideal como a esperança por uma revolução que trouxesse
de volta a unidade do trabalho humano, uma revolução tecnológica que fosse,
ao mesmo tempo, uma revolução social. Isto não é, no entanto, muito provável,
se pensamos nas projeções que Marx poderia ter feito a respeito do desenvolvimento
da tecnologia desde sua perspectiva do século XIX. O mais razoável é entendê-lo
como parte da crença na determinação profundamente social de tudo aquilo
que o homem sente, pensa e gosta. Assim, passar os dias e anos rodando a
mesma manivela ou costurando a mesma parte da mesma roupa poderiam tornar-se,
um dia, uma atividade feliz e plena de significado, se estivermos conscientes
de trabalhar, não para um mercado impessoal, mas para a comunidade de nossa
espécie.
Isto talvez fosse possível de conseguir se os trabalhadores participassem
de sua sociedade no nível das decisões, tanto da produção econômica quanto
da sociedade como um todo. Tem sido este o sentido de alguns experimentos
mais conhecidos de auto-gestão, na Iugoslávia, e de eliminação das diferenças
entre o trabalho intelectual e o trabalho manual, nos kibbutzim
de Israel. A dificuldade com estes experimentos é que nenhum deles traz
de efetivamente de volta a comunidade, no nível do trabalho quotidiano.
As tecnologias modernas parecem requerer uma administração técnica, e existência
de poucos dirigindo o trabalho de muitos, e mesmo as experiências mais bem
sucedidas de auto-gestão parecem sugerir que os setores mais ativos da classe
trabalhadora são incorporados, ou cooptados pela administração das empresas,
deixando a maioria sem uma liderança própria. A eliminação das diferenças
entre trabalho intelectual e manual, quando usada como forma de trazer de
volta a comunidade, pode ter como conseqüência impossibilitar o uso de técnicas
produtivas mais sofisticadas e mais eficientes. A Revolução Cultural chinesa
tratou de levar a cabo esta eliminação, pelo fim da hierarquia no exército,
assim como pela obrigação do trabalho manual para os intelectuais, e o desenvolvimento
do trabalho intelectual pelas massas. O alto preço desta experiência é conhecido:
a vivência quotidiana em um clima de emergência, a revolução perpétua, e
o abandono, na prática, dos ideais de racionalização. O novo tipo de comunidade,
na sociedade de massas contemporânea, é a comunidade da mobilização social,
obtida pela combinação da ideologia partidária com a mitologia soreliana
- e Marx, certamente, não teria maior dificuldade em apontar sua natureza
alienada.
A dificuldade básica foi mostrada por Hannah Arendt: o trabalho é, para
Marx, ao mesmo tempo uma coisa boa e uma coisa má, sua atividade vital mais
significativa e sua escravização. Para Marx, mostra ela, o homem é essencialmente
um animal laborans, o labor, ou labuta, sendo entendido
como a atividade de auto-manutenção, a atividade do corpo. "Em todos
os estágios de seu trabalho", diz ela, Marx "define o homem como
um animal laborans e depois o conduz a uma sociedade na qual seu
poder maior e mais humano não será mais necessário. Ficamos com a frustrante
alternativa entre a escravidão produtiva e a liberdade improdutiva"(8). A solução de Arendt é considerar que o homem
não é basicamente um animal que trabalha, mas um animal político, que cria
história com seus atos.
Não caberia aqui entrar nas distinções que Hannah Arendt propõe entre labuta
(labor), trabalho (work) e ação, e em como estes conceitos
se relacionam com as idéias de Marx. É possível dizer, no entanto, que Marx
tinha um conceito muito mais dinâmico da natureza humana do que o de Hannah
Arendt. Não havia, para ele, distinção possível entre o produto das mãos
(trabalho), o produto do corpo (labuta) e o produto da mente humana (ação).
O homem não é, para Marx, como a aranha que tinha uma imagem mental de sua
eterna teia; ele é, ao contrário, uma espécie de animal que é capaz de crescimento
ilimitado através de sua interação com a natureza: "dizer que o homem
vive da natureza significa que a natureza é o seu corpo
com o qual ele precisa sem manter em contato permanente para não morrer.
Dizer que a vida mental e física do homem, e a natureza, são interdependentes,
significa simplesmente dizer que a natureza é interdependente dela mesma,
porque o homem é parte da natureza(9). Antes
disto, ele diz que "a universalidade do homem aparece na prática na
universalidade que faz do todo da natureza seu corpo inorgânico". Se
isto é assim, a história da humanidade é a história da conquista, pelo homem,
de seu próprio corpo, e conceitos tais como "labuta", como atividade
suja de manutenção da sobrevivência quotidiana, e "ação", como
atos heróicos mas sem conteúdo material, seriam simples derivações das alienações
presentes, fadadas a desaparecer.
É improvável que a sociedade com a qual Marx nos acena seja uma sociedade
do lazer e da inatividade. Ela parece ser, mais bem, uma sociedade onde
não existe necessidade no sentido de um governo das coisas -- mas já vimos
que este governo das coisas é, para Marx, um problema de organização social,
um resultado da exploração do homem pelo homem. O fato de que existem determinações
técnicas para a alienação do trabalho parece ser uma debilidade do pensamento
de Marx; Hannah Arendt talvez possa ser criticada por propor uma concepção
demasiadamente compartimentalizada das atividades humanas.
Mas a crítica de Arendt vai mais longe. Não basta sermos felizes com nossa
própria atividade; a atividade humana, para ser humana, deve transcender
o nível do intercurso entre o homem e seu corpo, o homem e a natureza, e
ascender ao nível das relações entre homem e homem, baseadas da fala e nas
ações (deeds), através dos quais a personalidade de cada um se
manifesta. Mesmo se considerarmos, como devemos, que uma sociedade desalienada
implicaria necessariamente em altos níveis de interação humana, isto ainda
não seria suficiente. Hannah Arendt comparte, com a tradição existencialista,
o interesse pelo heróico, o trágico e o irrepetível, que estão no polo oposto
do mundo futuro de Marx. Jean Hyppolite mostra como esta divergência já
existia na oposição entre Marx e Hegel. Para Hegel, a existência de oposições
e tensões na vida humana nunca deixa de existir, é um movimento dialético
sem fim; enquanto que, para Marx, haverá um dia o fim da história tal como
a conhecemos. Para Hegel, a unidade entre o excepcional e a vida quotidiana,
entre o Estado e a Sociedade Civil, como uma idéia unificada, ocorre somente
em momentos de tensão, de guerra, tragédia e revolução. A crítica de Marx
é cáustica: "o idealismo somente encontra sua realidade em situações
de guerra e tragédia, de tal maneira que sua essência é, na realidade, o
estado de guerra e a tragédia do Estado tal como ele existe, enquanto que
seu estado de paz é exatamente a guerra e a tragédia do organismo".
Mas, pelo menos desta vez, gostaríamos que ver um Marx menos mordaz no uso
de seus paradoxos, e mais atento ao sentido profundo dos pensamentos de
Hegel. Como afirma Hyppolite, a vida e a morte estão na raiz da história
para Hegel, enquanto que, para Marx, as raízes são o trabalho e a exploração
do homem pelo homem. Estas não são, somente, diferentes concepções, mas
têm uma conseqüência mais profunda: Marx é incapaz de dizer qualquer coisa
a respeito de como será a vida quando esta exploração, contra qual dedicou
sua própria vida, vier um dia a desaparecer.
4. Conclusão
O fim da alienação. A luta política terminou, a luta social foi ganha, homens
e mulheres não precisam trabalhar muito, e estão totalmente imersos na natureza,
em seus corpos, em outros seres humanos, em si mesmos. O sentimento de chatice
é inescapável, e nem mesmo a introdução do amor e da arte, neste cenário,
evitaria a imagem de belos anjos tocando harpa. Será que este cenário é
preferível ao das pessoas tentando ser heróis pela sensação de sê-lo, buscando
a grandeza mesmo a preço da destruição e da desgraça?
Em última análise, trata-se de uma questão sem sentido. Qualquer situação
de estabilidade e plenitude traz também a sensação de vazio, da mesma forma
que situações de excitação, tensão e heroísmo provocam a busca da calma,
tranqüilidade e bem estar. Marx nunca tratou de chegar a uma definição geral
e abstrata do objetivo final da vida humana. Ele simplesmente criticava
as alienações específicas de um tipo dado de organização social, e esta
crítica continuará válida mesmo se o fim desta alienação trouxer a necessidade
de uma crítica na direção oposta. Não há, felizmente, esperança de que a
alienação venha a acabar um dia, e com ela a humanidade que conhecemos e
que, apesar de tudo, gostamos.
Berkeley, maio de 1968.
Notas
1. Esta distinção não é a mesma do que a que se faz comumente
entre o jovem Marx e Marx adulto, mas é suficientemente próxima para se
confundida com ela.
2. Estamos tomando como referência a edição francesa,
K. Marx, Oeuvres Philosophiques, tradução J. Molitor, ed. Costes,
Paris, vols. 1,2,3 e 4. As citações abaixo são do volume IV, pp. 103-104.
3. Jean Hyppolite, Études sur Marx et Hegel,
Paris, Marcel Rivière, 1965.
4. Traduzido livremente da versão francesa, p. 104.
5. Da Questão Judia.
6. O. P., vol. IV, p. 71.
7. A Questão Judia, baseado no texto inglês
de T. B. Bottomore (Karl Marx' Early Writings, McGraw Hill, 1963,
p. 31.
8. Hannah Arendt, The Human Condition, Chicago,
The University of Chicago Press, p. 91.
9. Manuscritos Filosóficos, ed. Bottomore, p.
127.
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