Da Responsabilidade
Pública dos Governantes: Paradoxos e Perspectivas Simon
Schwartzman
Versão revista do trabalho apresentado ao Seminário
sobre Políticas Públicas realizado pela Escola Brasileira de Administração
Pública da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro, maio de 1975. A responsabilidade
pelos conceitos emitidos é do autor. Publicado em Dados 12, 1976,
pp. 5 a 21.
1. O Problema da Responsabilidade
O problema da responsabilidade pelos atos governamentais é clássico na literatura
política e jurídica, e torna-se ainda mais agudo e premente em países que
enfrentam problemas sérios de desenvolvimento econômico-social, manutenção
de taxas adequadas de emprego, política externa de princípios e objetivos
definidos, etc. Como garantir que os governantes, em seus diversos níveis,
governem no limite de sua capacidade, com o máximo de responsabilidade por
seus atos, e garantindo ao sistema social o máximo de eficiência global?
A solução clássica para este problema consiste, essencialmente, em distinguir
"administração" de "governo": administradores são aqueles que executam as
políticas decididas pelos governantes, enquanto que estes tomam suas decisões
em função do mandato político que recebem. A maneira de garantir a correção
e probidade das ações dos administradores ó dada pela concepção weberiana
de burocracia: separação entre pessoa e função, explicitação dos deveres,
obrigações e limites da autoridade dos funcionários, registro escrito de
todos os atos e decisões correção e probidade dos governar por sua vez,
seria controlada e garantida pelo funcionamento do sistema lítico-partidário,
pela imprensa, e, especificamente, pelo controle poli do parlamento sobre
os atos do setor executivo.
Existem duas dificuldades básicas com esta solução clássica e aparentemente
tão simples, uma no nível governantes, outra no nível dos administradores.
Carl J. Friedrich, em 1940. já chamava a atenção para estas dificuldades,
e é difícil expressá-as melhor do que ele. Friedrich colocava em dúvida
a eficácia dos mecanismos líticos tradicionais para garantir a responsabilidade
dos governantes, mesmo em democracias aparentemente tão exemplares quanto
a Inglaterra e os Estados Unidos:
At best, responsibility in a democracy will remain fragmentary
because of the indistinct voice of the principal whose agents the officials
are supposed to be - the vast heterogeneous masses composing the people.
Even the greatest faith in the common man (and I am prepared to carry
this very far) cannot any longer justify a simple acceptance of the mythology
of the "will of the people(1).
Em outro contexto, ele se refere à "tremenda dificuldade que o público encontra
em entender as implicações mais amplas de questões de política governamental
tais como as relações exteriores, política agrícola e política trabalhista
Em relação ao desemprego, tudo que o público em geral tem certeza é que
ele deveria desaparecer..."(2)
A primeira dificuldade é, então, a de estabelecer um controle político efetivo
sobre a ação governamental. A segunda dificuldade se refere ao fato de que
a separação entre governo e administração não é tão taxativa quanto a visão
clássica parece supor. Ao contrário, assinala Friedrich, ela esquece:
(1) that many policies are not ordained with a stroke of the
legislative of dictatorial pen but evolve slowly over longs periods of
time, and (2) administrative officials participate continuously and significantly
in this process of evolving policy.
Ou, mais conclusivamente:
Public policy, to put it flatly, is a continuous process, the
formation of which is inseparable from its execution. Public policy is
being formed as it is executed, and it is likewise being executed as it
is being formed. Politics and administration play a continuous role in
both formation and execution, though there is probably more politics in
the formation of policy, more administration in the execution of it. In
so far as particular individuals or groups are gaining or losing power
of control in a given area, there is politics; in so far as officials
act or propose action in the name of public interests, there is administration.(3)
Este não é, pois, um problema exclusivo dos países em desenvolvimento, ou
daqueles cujas instituições políticas formadas nos moldes clássicos presidencialistas
ou parlamentares sofreram choques e convulsões. Mas ele se torna particularmente
evidente no Brasil dos anos recentes, em que coexistem uma pluralidade de
atos (leis, decretos-leis, portarias, resoluções, instruções, regulamentos)
emitidos por uma pluralidade de órgãos (conselhos, superintendências, departamentos.
secretarias, ministérios, legislativos, bancos, poder executivo) todos implicando
maior ou menor grau de redistribuição de poder e controle, ou seja, de política
no sentido em que a define Carl Friedrich.(4)
2. Os Paradoxos da Responsabilidade
Um dos problemas fundamentais relativos à responsabilidade é, pois, o da
impossibilidade de se estabelecer uma distinção realmente nítida e operacional
entre "governo" e "administração". Mais ainda, existe a dificuldade de um
controle efetivo mesmo dos atos explicitamente de governo, por parte dos
organismos políticos da sociedade. Esta dificuldade é aparentemente menor
nos regimes de tipo parlamentarista, em que o governo deve responder continuamente
ao parlamento pelos seus atos, do que nos regimes presidencialistas, em
que o "acerto de contas" é periódico e sujeito a um sistema eleitoral dotada
de leis de funcionamento próprias, passível de vários tipos de manipulação,
e cujos temas não têm sempre uma relação muito direta com os problemas de
implementação efetiva de política no nível do governo.
A conseqüência, pois, que preocupa a Carl Friedrich e ao pensamento político
liberal de uma maneira geral, é a do abuso do poder, do uso indiscriminado
e irresponsável por parte de homens de governo do poder de que dispõem,
em causa própria ou de forma distinta do mandato político que receberam.
Existe, no entanto, uma preocupação oposta, não tanto com o abuso de poder,
mas com sua paralisia e ineficácia, que é muitas vezes o resultado da contradição
entre os sistemas de controle e a realidade do processo governamental e
administrativo. O administrador de nível médio, cujo cargo não é definido
de forma explícita e inequívoca como político, está muitas vezes submetido
a um sistema de pressões cruzadas. Por um lado, ele tem um conjunto de normas
bem precisas e detalhadas que definem sua área de atuação, e que podem eventualmente
se voltar contra ele caso ele as transgrida. Por outro lado, ele terá uma
noção clara dos o de suas funções, e uma percepção bem clara de que as normas
que definem suas funções não permitem que ele realize seus objetivos. Ele
tem que optar, assim, entre ater-se às normas e abandonar os objetivos,
ou ater-se aos objetivos e abandonar as normas . . .
Seria um erro, muitas vezes cometido, pensar que este dilema do administrador
é algo fortuito, devido a "normas inadequadas", que deveriam ser conseqüentemente
reajustadas e redefinidas para se ajustar à sua realidade. De fato, o que
acontece é que de que a noção de que é possível prever e estabelecer por
escrito as funções e deveres de um administrador de nível intermediário
é uma reminiscência equivocada do conceito weberiano de burocracia, que
se choca com a noção de um continuo entre administração e governo, enfatizada
acima por Friedrich.
A solução que o administrador dá a seu dilema dependerá, essencialmente,
de uma avaliação dos tipos de sanção a que ele estará sujeito pelos seus
atos. Se ele estiver sujeito a um controle burocrático-formal, vindo de
instâncias superiores ou do judiciário, ele tenderá muitas vezes a se ater
à letra de suas obrigações, assumindo como válida a definição estritamente
legalista e formal de suas atribuições. Com isto, ele assumiria uma responsabilidade
estritamente formal, deixando para seus superiores a responsabilidade
pelos resultados efetivos de suas ações. A responsabilidade substantiva
referida aos fins, ficaria então com aqueles que devem responder politicamente
pela conduta do governo, quer a um chefe de estado, quer a um partido ou
movimento político, ou a alguma combinação destes.
Esta responsabilidade formal se transforma, assim, em irresponsabilidade
substantiva. Se o sistema de divisão do trabalho em "passos" isolados
e estanques é falho, se o produto final da atividade governamental não satisfaz
nem aos próprios governantes, de qualquer forma o administrador obedeceu
às normas, seguiu estritamente os regulamentos, fez o que lhe mandaram,
e por isto é, estritamente, irresponsável pelas conseqüências de seus atos.
Instala-se, assim, um fosso profundo entre a noção burocrático-legal de
responsabilidade e a noção valorativa de eficiência, referida esta não à
forma, mas ao conteúdo e conseqüência das ações.
Esta paralisia da ação se acentua ainda mais quando o funcionamento da máquina
administrativa está sujeito a escrutínio político constante, de tal forma
que os atos administrativos tenham que ser traduzidos nos termos das opções
que caracterizam o debate político-ideológico do momento. Como nem sempre
esta tradução é possível, o problema tem que ser resolvido de alguma maneira,
uma das quais é o retraimento do funcionário aos rituais burocráticos ou
a implantação de normas de segredo em relação às atividades da administração.
Uma outra solução é a adoção literal das normas ideológicas do discurso
político dominante como regras de conduta, ignorando o problema da complexidade
do processo administrativo em benefício de um outro tipo de ritualismo,
não em função de normas burocráticas, mas de postulados e dogmas ideológicos.
A conseqüência, em termos de irresponsabilidade substantiva, é parecida.
Existe ainda um terceiro tipo de problema, que combina de forma sem dúvida
perversa os dois anteriores, o do abuso de poder e o do formalismo burocrático:
se trata, precisamente, do abuso do poder pelo exercício do formalismo
burocrático. Os países anglo-saxões parecem não ter muita familiaridade
com este tipo de problema, que, no entanto, é sobejamente conhecido nos
países latinos. A proliferação de normas e regulamentos faz com que seja
sempre provável encontrar as regras que se adaptem a qualquer tipo de decisão,
desde que existam pessoas suficientemente hábeis no manejo da legislação
e não exista um sistema realmente efetivo de responsabilização política
pelos atos governamentais.
Eis pois, listados brevemente, uma série de problemas ligados aos paradoxos
da responsabilidade: a irresponsabilidade imobilista e ritualística do formalismo
irreal, a irresponsabilidade legal do ativista, a irresponsabilidade substantiva
do administrador sobrepolitizado ou vigiado, a irresponsabilidade e abuso
de poder que se esconde por detrás do emaranhado de sistemas supercomplexos
e muitas vezes contraditórios de leis e regulamentos. Em linguagem corrente,
são problemas de ineficiência, corrupção, carreirismo, abuso de poder. Estes
são problemas aos quais nenhum sistema político administrativo está imune,
mas que nem por isto não merecem ser analisados e controlados. Como fazê-lo?
3. Os problemas e as soluções buscadas
Os problemas advindos dos paradoxos da responsabilidade não são simplesmente
teóricos, mas se referem diretamente às dificuldades políticas pelas quais
o país vem passando e têm um impacto definido sobre suas perspectivas de
solução.
Existem muitas maneiras de abordar estes problemas, algumas de tipo técnico-administrativo,
outras de tipo político, outras referidas ao sistema jurídico normativo.
É importante deixar claro, logo de partida, dois princípios fundamentais.
Primeiro, o problema da responsabilidade e eficiência governamentais não
é meramente técnico, já que, o que é eficiência para uns, pode ser ineficiência
para outros. Existe, pois, um problema de valores, opções, preferências,
que fazem com que a questão da eficiência governamental seja eminentemente
política. Mas isto leva igualmente a um segundo princípio, que limita o
valor da análise estritamente política: não basta identificar as lealdades
e as intenções político-partidárias ou normativas dos governos para termos
uma noção adequada de seu funcionamento efetivo e responsável a partir de
seja qual sistema de valores ou objetivos for. Existem casos suficientes
de fracassos administrativos, boas intenções conduzindo a maus resultados,
falta de intenções produzindo bons efeitos, etc., para que possamos ter
uma idéia clara de que não há uma relação muito nítida entre inputs
políticos e outputs governamentais. Daí o desenvolvimento,
nos últimos anos, dos estudos sobre processos decisórios e outputs governamentais,
como variáveis analiticamente independentes dos componentes mais clássicos
referidos à base e formação política dos governos. Daí, também, a importância
de retomar o estudo da própria estrutura organizacional e normativa dos
sistemas políticos e administrativos, e examiná-la em seu funcionamento
interno, e não mais como simples "black boxes" que a linguagem sistêmica
de inputs-outputs muitas vezes supõe.
Existem várias razões pelas quais demos estar insatisfeitos com a política
de determinado governo: porque ele realiza objetivos diferentes dos que
gostaríamos, ou porque ele fracassa na implementação da política que gostaríamos.
O debate político tende vezes a assemelhar estas duas dificuldades, atribuindo
os eventuais fracassos administrativos a opções valorativas subjacentes,
ou "objetivas", referidas a supostos componentes classistas de setores politicamente
dominantes. Ainda que este possa ser sem dúvida o caso, não resta dúvida
também que a simples incapacidade de implementação efetiva de uma política
governamental coerente tem sido muitas vezes responsável por fracassos de
governos contavam com apoio político e institucional considerável. Bastam
os exemplos dos governos argentinos entre os dois períodos de Perón e depois
de sua morte, ou o de Salvador Allende no Chile, para termos uma idéia de
fenômenos semelhantes em regimes políticos ideologicamente bem distintos.
Caberia examinar, sem dúvida, quanto da eficiência dos governos argentinos
peronistas se explicaria pela política dos sindicatos, ou quanto ineficiência
do governo Allende se plica pelas pressões políticas interna externas de
toda ordem a que e'. submetido. De toda forma, havia dúvida nos dois casos
um fenômeno de paralisia e inação da estrutura governamental, que se viu
assim perdendo cada vez mais suas bases políticas e institucionais de sustentação,
o que levava a menor eficiência, etc., até a queda final. Tudo isto nos
leva à necessidade de examinar o problema da responsabilidade e eficiência
governamentais em seus próprios méritos, sem esquecer, mas colocando de
certa forma entre parêntesis, a questão do sentido da política governamental.
4. A solução "ética" e sua análise funcional
A solução mais freqüente, mas também das mais ingênuas, é reduzir tudo a
um problema de honestidade e probidade moral. De acordo com esta perspectiva,
haveria corrupção e abuso de poder quando as pessoas não forem íntegras
e honestas, e vice-versa. O problema seria, então, de assegurar a probidade
pessoal dos homens públicos. Existem três razões principais pelas quais
esta perspectiva é ingênua. Primeiro, porque o que é moralmente correto
para uns pode ser moralmente incorreto para outros. Sem entrar em grandes
discussões filosóficas a respeito da objetividade e permanência ou transitoriedade
de valores, é claro, por exemplo, que uma política que favorece com auxílios
governamentais aos pobres pode ser considerada desonesta e malsã dentro
de uma ideologia capitalista liberal clássica, e apropriada dentro de uma
perspectiva de "welfare-state". Uma atitude de obediência estrita à letra
da lei pode ser baseada em normas éticas, do ponto de vista subjetivo, mas
ter como conseqüência problemas sociais de toda ordem. E assim por diante.
A segunda razão é que não bastam as intenções, é necessário também ter os
meios técnicos e a competência para implementá-las. A honestidade, em si,
não é nenhuma garantia de bons resultados, e vice-versa: pode haver bons
resultados mesmo se determinadas políticas são implementadas com segundas
intenções, mas de forma eficiente. Isto nos leva à terceira razão, que é
a de que o conflito entre interesses individuais e interesses coletivos
nem sempre é antagônico, podendo haver casos, na realidade muito freqüentes,
em que as duas coisas se complementam.
Descartada a solução ética em sua forma mais simplista, nem por isto ela
deixa de ser importante, ainda que de um ponto de vista sociologicamente
mais complexo. É possível pensar, assim, que- o que se denomina "corrupção"
são formas de enriquecimento ilegítimas, ou seja, não aceitas como normais
e adequadas pelo grupo social ao qual a pessoa pertence. Se isto é assim,
os fenômenos de corrupção seriam muito mais comuns em sociedades de grande
mobilidade, em que as pessoas mudam seus grupos de referência e sistemas
de valores, que em sociedades mais estáticas, em que a vinculação mais estreita
das pessoas com seus grupos de origem limitariam as possibilidades de comportamentos
ilegítimos, isto é, não costumeiros. Em outras palavras, a corrupção política
seria tão e simplesmente um fenômeno correlato à ampliação da base de recrutamento
e participação do sistema político-administrativo, enquanto que sua inexistência
seria, em muitos casos, a expressão de um sistema político rígido e oligárquico.
Samuel P. Huntington tem uma idéia bem clara a este respeito, quando diz
que a corrupção, em certo sentido,
is a direct product of the rise of new groups with new resources
and the efforts of these groups to make themselves effective within the
political sphere. Corruption may be the means of assimilating new groups
into the political system by irregular means because the system has been
unable to adapt sufficiently fast to provide legitimate and acceptable
means for this purpose(5)
Um dos exemplos clássicos da análise sociológica da corrupção é de Robert
K. Merton, em sua discussão dos aspectos funcionais das máquinas partidárias
nas cidades norte-americanas. Ele mostra como estas máquinas partidárias
vão contra as normas éticas mais gerais de funcionamento do sistema político
norteamericano, mas apesar disto subsistem, por desempenhar uma série de
funções importantes:
The functional deficiencies for the official structure generate
an alternative (unofficial) structure to fulfill existing needs somewhat
more effectively. Whatever its specific historical origins, the political
machine persists as an apparatus for satisfying otherwise unfulfilled
needs of diverse groups in the population.(6)
E, mais adiante:
Examined for a moment apart from any moral considerations,
the political apparatus operated by the Boss is effectively designed to
perform these functions with a minimum of inefficiency. Holding the strings
of diverse governmental divisions, bureaus and agencies in his competent
hands, the Boss rationalizes the relations between public and private
business. He serves as the business community's embassador in the otherwise
alien (and sometimes unfriendly realm of government. And, in strict business-like
terms, he is well paid for his economic services to his respectable business
clients(7).
O ponto fundamental de Merton é pois que a máquina partidária é funcional,
eficiente, ainda que não obedeça aos padrões éticos mais gerais da comunidade
política norte-americana (mesmo que esteja conforme, por exemplo, com certos
padrões de algumas subculturas étnicas ou de emigrantes).
Um tipo semelhante de organização ad hoc é localizado na América
Latina, de uma maneira geral, por Fernando Henrique Cardoso, não já na base
da pirâmide social, mas no seu ápice:
Em alguns países, as classes dominantes privadas [sic] fundiram-se
com o aparelho de estado, apropriando-se dos cargos, que de públicos mantiveram
apenas o nome, e utilizam a organização estatal como arena política direta.
Minimizaram, portanto, as organizações partidárias independentes do estado
e limitaram, quanto possível, a mobilização política das classes subalternas.
As cliques burocrático-privatistas, articuladas mais frouxamente do que
os partidos, em torno de anéis de interesse político-econômico, desempenham
um papel crescente e decisivo no jogo do Poder.(8)
Estes sistemas informais e had-hoc de articulação de interesses
privados com usuários pouco ortodoxos de posições governamentais parece
ter sido, também no Brasil, altamente eficiente. No caso norte-americano,
grande parte das conotações morais negativas relacionadas com as máquinas
partidárias ao nível local deixaram de existir a partir da constatação de
que esta era uma forma eficaz de promover o bem estar de grupos sociais
marginalizados. No caso brasileiro, na medida em que exista identidade de
propósitos entre o fortalecimento de grupos econômicos privados e o desenvolvimento
da economia nacional, o que de um ponto de vista poderia ser considerado
"corrupção" ou "abuso de poder" passa, desde um outro ponto de vista, a
ser entendido como eficiência, pragmatismo, racionalidade, etc. Em ambos
os casos, os problemas surgem quando os recursos disponíveis para a distribuição
de benefícios econômicos ou políticos através de maquinas político-partidárias
ou "anéis burocráticos" privatizados começam a escassear, e a necessidade
de uma política global de alocação de recursos passa a ser premente. É aí
que a política distribucionista, em suas diversas formas, entra em crise,
e com ela, muitas vezes, o próprio regime político.
Em outras palavras, não há nada de novo, conceitual ou historicamente, na
noção de "máquinas partidárias", cabos eleitorais, cliques burocrático-econômicas
ou "anéis burocráticos". São as análises funcionais, feitas por Merton ,
Cardoso e Huntington, entre outras, que evidenciam como, em um extremo,
ela pode trazer consigo uma idéia de ampliação do espectro de participação
política, enquanto, no outro, sua redução. É a partir daí que o problema
deixa de ser estritamente moral e "ético", e assume uma dimensão especificamente
política, referida à distribuição social de recursos.
Voltaremos a esta dimensão política depois de examinarmos, ainda que rapidamente,
a chamada abordagem "econômica" aos problemas de eficiência e racionalidade
governamentais.
5. O modelo econômico
Existe uma idéia bastante generalizada de que os mecanismos competitivos
de mercado são eficientes em produzir uma combinação ótima entre interesses
individuais e interesses coletivos. As origens desta ideia remontam a famosa
"mão invisível" que, segundo os economistas clássicos, proporcionaria a
harmonia global da soma de interesse individuais. De fato, as exigências
de um mercado competitivo parecem realmente forçar as instituições a funcionarem
no máximo de sua eficiência, sob pena de sucumbirem à qualidade e eficiência
maior dos competidores. Daí as tentativas de utilizar este modelo na área
da política, como forma de garantir os benefícios da lógica de mercado também
no setor público administrativo.
Uma forma de fazer isto consiste em pensar no sistema político-partidário
como um "mercado" em que os votos funcionam como moedas através dás quais
os eleitores "compram" os partidos políticos de sua preferência. Os partidos,
por sua vez, seriam "firmas" disputando as preferências dos compradores,
e tratando de produzir aquilo que mais venda, ou seja, aquilo que a sociedade
prefere. As elaborações a partir desta ideia inicial podem tornar-se bastante
complexas, já que o tema se presta ao desenvolvimento de modelos hipotético-dedutivos
de tipo econômico. Existem, de qualquer forma, dois tipos de supostos que
esta analise implica: primeiro, que os compradores tenham liberdade de exercer
suas preferências, ou seja, que o mercado seja essencialmente homogêneo;
e, segundo, que exista uma relação clara entre governo e partido, que a
administração seja efetivamente, como supõe o modelo weberiano discutido
anteriormente, um órgão de implementação de políticas partidárias e, conseqüentemente,
de decisões políticas feitas eleitoralmente(9).
Como estes dois supostos não correspondem à realidade empírica, nem dos
países desenvolvidos nem, muito menos, de países como o Brasil, a análise
econômica tende muitas vezes a transformar-se em uma elaboração de modelos
normativos, referidos a como a realidade "deveria" ser. O interesse deste
tipo de trabalho passa a residir, então, em dois pontos básicos. Primeiro,
o da consistência interna dos modelos elaborados, como um exercício lógico-formal;
depois, o de interesse e validade do modelo de mercado como ideal de democracia
e desenvolvimento político a ser buscado(10). Sua relevância para o entendimento de processos
reais contemporâneos, no entanto, é reduzida.(11)
Nem por isto, no entanto, o modelo empresarial privado, aparentemente típico
dos sistemas de mercado, deixa de ter relevância na realidade político-administrativa
brasileira. Na realidade, a criação de órgãos governamentais estruturados
segundo moldes privados tem sido uma constante cada vez maior da administração
governamental brasileira, como tentativa de aumentar seu nível de racionalidade
e eficiência.
As justificações para este tipo de organização privada de órgãos governamentais
são várias. Em primeiro lugar, ela permite grande flexibilidade em relação
a formas organizacionais, níveis de remuneração, critérios e processos de
recrutamento e promoção de pessoal, etc. Em segundo lugar, elas permitem
operar uma descentralização efetiva do processo decisório, que se transfere
de nível ministerial ou governamental mais alto para o nível da própria
unidade. Esta descentralização da capacidade de decisão se traduz, principalmente,
pela capacidade de decidir sobre alocação de recursos, segundo critérios
próprios. O controle deixa de ser administrativo e passa a ser essencialmente
político, pela indicação dos responsáveis pela organização governamental
de direito privado por parte do próprio governo.
Ao mesmo tempo, e principalmente em organizações governamentais que operam
serviços potencialmente lucrativos, mecanismos econômicos semelhantes aos
de mercado começam a operar. A eficiência das empresas governamentais, medidas
em princípio por critérios políticos, tende a ser avaliada em termos econômicos
- seu deficit orçamentário, lucros, dividendos, montante de investimento
realizado, etc. Uma das razões pelas quais isto passa se deve, simplesmente,
ao fato de que indicadores econômicos deste tipo são disponíveis, e permitem
um parâmetro para a análise comparativa de performance. Além disto,
no entanto, existe o fato de que os setores da burocracia governamental
vinculados a estas organizações, como qualquer "tecnoestrutura", estão interessados
em seu crescimento, fortalecimento a autonomia financeira, e assim reforçam
a importância destes critérios como parâmetros de avaliação.
Tudo se passa, então, como se os setores governa mentais organizados segundo
o formato de empresas de merca do operassem efetivamente de acordo com estes
mecanismos. Falta, no entanto, um ingrediente fundamental das economias
de mercado, que é, na realidade, o próprio mercado, ou seja, a competitividade.
Via de regra, as organizações estatais organizadas nos moldes privados financeiras,
de comunicações, transportes terrestres e marítimos, combustíveis, etc.
tendem a ser monopolistas em seu setor, ou pelo menos exercer um poder de
controle em sua área que as tornam imunes, de fato, aos mecanismos de competição,
pelo menos em nível nacional.
Qual a conseqüência disto? O fato é que, pelo menos teoricamente, a principal
justificativa para a criação de órgãos e empresas públicas nos moldes privados
são, exatamente, os efeitos benéficos dos mecanismos de mercado. Vale a
pena citar, com alguma extensão, a descrição de como este mecanismo opera,
na comparação entre o estado e o setor privado:
Consider for a moment the difference between an institution
like a business enterprise which exists primarily in a market environment,
and an institution like a sate, an army or an established national church
which does not. The prime difference between them is that the former must
depend for its survival on the voluntary cooperation of the individual
who are related to it, whether as workers, capitalists, suppliers, or
costumers, whereas the latter depends for its survival on its power to
coerce individuals into cooperating with it (...). In a well operated
free market there is always an "elsewhere", this is the concept of pure
competition as the economist understands it, and this is how competition
limits the power of the organizer or the entrepreneur. In a very real
sense, therefore, the business man is responsible to those persons who
are affected by his actions, in the sense that he is in their power as
much as they are in his.(12).
Neste texto seminal, ainda que pouco conhecido, Boulding prossegue mostrando
como a criação de monopólios e oligopólios restringem estas qualidades da
economia de mercado, e chama a atenção, a seguir, para o funcionamento de
mecanismos semelhantes ao mercado no interior do sistema político governamental,
através, principalmente, dos mecanismos eleitorais.
É importante reter aqui a noção de que Boulding está interessado não somente
na eficiência dos sistemas organizacionais, mas também na responsabilidade
que estas organizações têm em relação às pessoas que com elas se relacionam.
Não há dúvida que a ineficiência tende a ser irresponsável, principalmente
em épocas de escassez e necessidade; mas a recíproca não é, de nenhuma forma,
necessariamente verdadeira: pode haver eficiência e irresponsabilidade.
As virtudes do homo economicus são miúdas, na visão de Boulding,
como miúdos tendem a ser também os seus pecados. É aqui que o religioso
se junta ao economista, e vale a pena repeti-lo em suas próprias palavras:
Economic man dwells in Limbo - he is not good enough for Heaven
or bad enough for Hell. His virtues are minor virtues: he is punctual,
courteous, honest, truthful, painstaking, thrifty, hardworking. His vices
are minor vices - niggardliness, parsimoniousness, chicanery. Even the
covetousness of which he is often accused is a playful and innocent thing
compared with the dreadful covetousness of the proud. On the whole he
escapes the deadly sins, for his very vulgarity saves him from pride (how
much better, for instance, is the commercial vulgarity of Coca-Cola than
the heroic diabolism of Hitler) . But he misses also the Great Virtue,
and in that he is less than Man, for God has made man for himself, and
he has an ineradicable hunger for the Divine, the heroic, the sanctified
and the uneconomic(13).
Não é necessário compartir a filosofia religiosa de Kenneth Boulding para
estar de acordo com sua visão sobre a insuficiência das motivações individualistas
de mercado como base para o comportamento eficiente e responsável do dirigente.
Esta insuficiência se dá, na realidade, em dois sentidos. Em um extremo,
resta hoje pouca dúvida sobre o mito do mercado competitivo como organização
social espontânea e natural - ao contrário, sabemos como foi fruto de um
trabalho persistente e sistemático de implantação de uma ordem político-social
propícia a seu funcionamento(14)
Por outro lado, assim como a ordem econômica, política e social de mercado
não se estabeleceu por si, o mercado é também in suficiente para introduzir
racionalidade e responsabilidade no manejo de bens públicos ou de interesse
social.
A ausência de competitividade, combinada com uma valorização das formas
organizacionais e administrativas da empresa privada, pode levar a dois
tipos de conseqüência. Primeiro, em caso de monopólios bem estabelecidos
e relativamente marginais a pressões sociais maiores, haveria uma queda
progressiva da eficiência, obedecendo a uma regra geral do menor esforço,
ou à lei geral da entropia. Em outras condições, poderia haver uma tendência
progressiva ao fortalecimento e crescimento da instituição, como forma de
preservação de sua autonomia e, conseqüentemente, das posições ocupadas
por seus membros dentro das organizações. Isto pode ser feito de varias
formas, como, por exemplo, uma ênfase exclusiva em atividades economicamente
rentáveis, em detrimento de outras possivelmente mais importantes socialmente;
ou através da obtenção de facilidades de credito, financiamento, preços,
áreas de exclusividade, etc., que garantam a obtenção cada vez maior de
recursos e a aparência de bons resultados econômicos.(15)
As relações entre o sistema de mercado e o setor público foram recentemente
abordadas por Albert Hirschman, de uma forma que diverge das tentativas
clássicas de replicar, na esfera política, os mecanismos de competitividade
que conduziriam a racionalidade do mercado(16).
Para ele, existem mecanismos na esfera política que podem, também, conduzir
ao bom funcionamento dos órgãos de governo, mas estes são mecanismos radicalmente
distintos dos de tipo econômico. Enquanto que a racionalidade econômica
se funda ria dá capacidade de opção por parte dos compradores, trabalhadores,
usuários, etc., em relação a um bem ou "produto" dado, a racionalidade política
sê fundaria na capacidade da externalização de opiniões é vontades em situações
essencialmente monopolísticas. Os mecanismos de controle político não seriam,
assim, uma mera agregação de vontades individuais manifestadas por opções
entre objetivos distintos, mas uma ação combinada e concertada de vontades
que se expressariam de forma coletiva, cimentadas por lealdades sociais,
étnicas e culturais que vão mais além do simples exercício de uma logica
individualista de preferências.
Estamos nos aproximando perigosamente, aqui, de um dos temas centrais da
filosofia política, que é o dos fundamentos da ação coletiva, "política",
em contraposição à ação individual, "econômica"(17).
Sem aprofundarmo-nos no tema, vale a pena assinalar algumas das teses principais.
Existe uma contraposição entre dois extremos, um denominado orgânico", outro
que poderíamos denominar de individualista. De acordo com o primeiro, representado
tipicamente por Hegel, existe uma vontade geral, um espirito nacional, uma
dimensão supra-individual qualquer que se expressa através do Estado, quando
este é legítimo, é serve de fundamento à ação substantiva dos homens de
governo. No outro extremo, o que existe é uma multiplicidade de atores individuais
e independentes, que se combinam entre si para formar o que seria a "vontade
geral", esta sendo então o simples resultado da agregação de opções individuais.
Ao colocar a Hegel "sobre seus pés", Marx criticava a noção de uma vontade
coletiva "abstrata", mas a substituía pela vontade coletiva "concreta" da
classe ascendente. Assim, Marx compartia a visão orgânica do sistema político,
muito mais um filósofo alemão que um economista inglês.(18)
A importância da contribuição de Hirschman pode ser melhor aferida agora:
o que ele sugere não é uma forma, mais ou menos engenhosa de levar a economia
para a política, mas sim um elo conceitual que permite relacionar e diferenciar
mecanismos políticos de mecanismos econômicos. O fato é que, historicamente,
a perspectiva "organicista" foi levada a tais níveis de perversão (o "diabolismo"de
Hitler a que se referia Boulding, os nacionalismos de vários tipos, os estados
totalitários do presente e do passado) que o pensamento político liberal
passou a se concentrar cada vez mais na busca de modelos e mecanismos individualistas
de fundamentação da política, deixando de lado o que pode haver de importante
como descrição e mesmo como prescrição no outro lado da moeda.(19)
6. Conclusão: Controles Sociais e Institucionais
Não resta dúvida que os problema da responsabilidade substantiva dos dirigentes
estariam resolvidos tanto se a chamada "política de mercado" funcionasse
efetivamente, como se, no outro extremo, a vontade coletiva" fosse clara
e explicitamente manifesta. Como nada disto passa, na realidade quotidiana
em que vivemos, pareceria que teríamos que nos contentar com uma mistura:
com a existência de mecanismos competitivos que impeçam o congelamento de
posições e privilégios, por um lado; e a existência de solidariedades grupais,
étnicas, regionais e subculturais que permitam aos indivíduos a existência
de uma base social de identificação e pertencimento.
Vale a pena voltar aqui ão trabalho de Carl Friedrich referido no início.
Pelas razões já vistas, ele é cético quanto à capacidade de controlar o
comportamento dos homens públicos pelos mecanismos políticos rotineiros,
e propõe duas soluções alternativas: um controle de tipo profissional, é
outro dê tipo consensual. De acordo com o primeiro, os homens públicos que
pertençam a corporações profissionais tenderiam a se comportar de acordo
com os critérios de seriedade, honestidade, eficiência profissional, etc.,
de seu grupo de iguais. Como este é também seu grupo de referencia, não
se trataria de um simples controle coercitivo e externo, e sim de padrões
e normas valorativas que seriam parte integrante da própria personalidade
e identidade social do homem público. A segunda solução, que se acrescentaria
à primeira, seria a de garantir um fluxo constante de informação e contatos
entre o homem público e o seu público, de tal forma que houvesse uma garantia
de que seu comportamento não poderia se afastar demasiadamente do "sentido
comum". Os contatos da administração pública com o público, no moderno estado-serviço,
a presença da imprensa acompanhando de perto os atos governamentais, seriam
algumas formas de manter esta identidade de estilos e normas de comportamento.
Tomadas com exclusividade, estas formas de controle só poderiam funcionar
em sociedades em que problemas de desigualdade social profundos já estejam
resolvidos, e mesmo assim tenderiam facilmente à cristalização de grupos
de interesse acobertados sob a capa de "identidade profissional" ou da busca
do "bem comum" . Herman Finer tem uma réplica vigorosa às idéias de Friedrich,
na qual assume de forma radical a postura político-liberal. Um dos aspectos
que assinala é, exatamente, o conservadorismo dos grupos profissionais,
que combatem o surgimento de novas idéias e novas práticas em seu meio.
Suponhamos, diz, que o administrador é um pioneiro em seu campo, enquanto
que seu grupo profissional é conservador. Quando é ele responsável ou irresponsável?
Quando segue as normas pré-estabelecidas, ou quando abre novos caminhos,
liderando a busca de novas alternativas?(20)
Ainda que a teoria política, talvez influenciada em demasia pelo pensamento
liberal clássico, tenha contribuído pouco neste sentido, é necessário pensar
o problema da implantação de normas de responsabilidade pública como um
processo que englobe estes dois aspectos. Ele deve incluir necessariamente
o livre jogo de forças políticas, que possa garantir a manifestação de preferências
e opções de grupos sociais. Ele deve incluir o escrutínio dos atos públicos
pelos órgãos de opinião social, a imprensa e o parlamento; mas deve incluir,
também, a incorporação progressiva de grupos sociais institucionalizados
que sejam capazes de exercer um controle direto, constante e informal sobre
o comportamento diário dos homens de governo.
Mas isto não conduziria, em última análise, a um excesso de controles, e
em conseqüência a uma paralisia do processo decisório, a volta ao ritualismo
da responsabilidade formal, etc? Na medida em que existir legitimidade política,
garantida pelos mecanismos políticos de base representativa, deveria haver
em princípio pressão para a ação, e condições para levá-la a frente.
É importante notar, neste contexto, uma transformação importante pela qual
passaram todos os sistemas políticos de base representativa, mas que nem
por isto foi sistematicamente incorporada ás ideologias que os explicam
e justificam. Trata-se da diminuição gradual da identificação entre partidos
políticos e classes sociais, entendidas estas como grupos definidos em termos
da divisão social do trabalho.
De fato, a análise histórica feita por Stein Rokkan, entre outros, da evolução
dos sistemas políticos europeus, mostra que as clivages baseadas
em divisões de classe são relativamente recentes, firmando-se em meados
do século dezenove e atingindo seu apogeu nas primeiras décadas do século
XX.(21) Antes deste período, predominavam as clivagens
de tipo nacional, ou regional, contrapondo o Estado à Igreja, o campo à
cidade, o centro à periferia, a cultura dominante à cultura dominada. É
claro que estas oposições correspondiam também a apropriações diferentes
de bens e recursos; mas é a partir do século XIX, com a implantação de urna
economia de mercado em escala continental na Europa, que a política passa
a assumir um tom explicitamente classista, em termos de partidos operários
(comunistas, socialistas, social democratas) vs. partidos burgueses (liberais,
conservadores, católicos, monarquistas, etc.).
Ainda que esta identificação classista ainda mantenha muito de sua força,
principalmente em países em que houve uma integração entre a estrutura sindical
e os partidos políticos operários, ela tende a perder importância a partir
da primeira guerra mundial. Existem muitas explicações para este fato, é
uma delas é que, na medida em que os problemas imediatos de sobrevivência
e segurança econômica vão sendo resolvidos, a importância que tem para o
indivíduo seu papel social de produtor vai perdendo lugar para outros papéis,
referidos à sua cultura, à sua identificação grupal, e, especialmente, à
sua pessoa como consumidor de bens produzidos pela sociedade. É neste contexto
que podemos entender a emergência, nos países mais desenvolvidos, de uma
preocupação cada vez maior com o consumidor como sujeito de demandas, necessidades
e ações política e administrativas. É talvez neste sentido que possa ser
vista a instituição escandinava do Ombudsmen, defensor do público
que pode, em nome da sociedade, investigar e definir a responsabilidade
da administração e do governo em benefício, não de uma classe determinada,
mas da comunidade como um todo. Ainda que constituam fenômenos localizados,
a figura do Ombudsmen, assim como a organização da sociedade do
lado do consumo, e não somente da produção, apontam para possíveis formas
de redefinição dos mecanisnos de responsabilização política dos dirigentes,
que o sistema político representativo tradicional exclui.
Mas não seriam estes fenômenos próprios das sociedades pós-industriais,
com pouca relação com a situação de países como o Brasil, em que as condições
mínimas de saúde, alimentação e estabilidade do trabalho não estão resolvidas
para grande parte da população? Na realidade, o fato de que o Brasil venha
se desenvolvendo através da utilização de tecnologia avançada e poupadora
dê capital parece tornar cada dia mais distante o momento em que toda a
população esteja devidamente integrada ao sistema produtivo e tenha nesta
integração a fonte básica de sua identificação social e política. Talvez
fosse mais razoável tratar de supor que o país pudesse, por assim dizer,
saltar da etapa da revolução industrial para a da sociedade pós-industrial,
em que as bases de vinculação e identificação das pessoas entre si passassem
por muitas outras dimensões além das referidas à divisão social do trabalho
no sentido mais estrito da palavra. Isto suporia, evidentemente, novas formas
de organização social, e, concomitantemente, novos mecanismos de controle
da responsabilidade dos homens públicos.
Existem sem dúvida muitas outras coisas a serem feitas antes que um sistema
político-administrativo com alto grau de responsabilidade possa ser generalizado.
Uma das mais importantes se relaciona com a reforma do sistema judiciário.
Esta reforma não pode consistir simplesmente em reescrever ou codificar
as leis, e nem mesmo em desburocratizar e agilizar a justiça. Mais do que
isto, ela tem que se basear na criação de um sistema judiciário que tenha
realmente condições de atuar em função dos fundamentos substantivos da legislação,
e não de sua forma legal. A maneira de fazer isto não é simples, e aqui
não seria o lugar para tratar de sugeri-lo. Mas o que é indispensável é
que o sistema judiciário possa ser utilizado para cortar através do cipoal
de normas e legislações em função de valores e princípios mais amplos, e
a chave para isto está, sem dúvida, em restituir-lhe a força institucional
e política que em algum momento chegou a ter em nosso meio.
Um outro tipo de reforma tem a ver com os problemas da programação e contabilização
da atividade econômica na área de governo. É necessário substituir os controles
contábeis formais por formas de tipo orçamento-programa, que permitam confrontar
os resultados obtidos com os objetivos explicitamente formulados pelos órgãos
de pelo governo. O papel de instituições como o Tribunal de Contas deve
ser reavaliado, sendo talvez necessário dar-lhe uma função mais ligada ao
controle dos objetivos substantivos das atividades dos órgãos públicos.
Estes dois exemplos são suficientes para dar uma idéia da dimensão do problema.
Não faz sentido dizer que o governo "A" é responsável e o governo "B" irresponsável,
de uma maneira geral. o estabelecimento da responsabilidade governamental
e administrativa é possível e realizável, como um processo complexo que
implica, necessariamente, aspectos técnicos e políticos, aumento de participação
e institucionalização - e, por isto mesmo, marchas e contra-marchas. Isto
é suficiente para vermos que não podemos, como quer o moralista ingênuo,
tratar o problema da responsabilidade de forma isolada e em si. Mas também
não nos permite descartá-lo para "depois", quando outros problemas "mais
importantes" já estiverem resolvidos. Na realidade, como se trata do comportamento
das pessoas que manejam os recursos da sociedade, é um tema político central
de aqui e agora, assim como do passado e do futuro.
Notas
1. Carl J. Friedrich, .'Public Policy and the Nature
of Administrative Responsibility", em Alan A. Altshuler, The Politics
of the Federal Bureaucracy ((New York e Toronto, Dodd, Mead & Co.,
1968). p. 425. Publicado inicialmente em C. J. Friedrich E. Mason, eds,
Public Policy (Cambridge: Harvard University Press. 1940). A expressão
"public policy" não tem ainda uma tradução estável para o português, que
tampouco contempla a distinção tão útil, no inglês, entre "policy" e "politics".
"Políticas públicas", "política governamental", "decisões governamentais",
etc, são expressões possíveis que tratamos de utilizar segundo o contexto,
referindo-se sempre, no entanto, à noção do processo governamental de tomada
de decisão a respeito de questões de interesse público.
2. Friedrich, p. 422.
3. Friedrich, p. 418.
4. Existem inúmeros exemplos deste contínuo na realidade
político-administrativa brasileira. Um dos mais notórios é na área da educação,
que é regida por um conjunto de normas que vão desde preceitos constitucionais
referidos aos direitos até os pareceres normativos do Conselho Federal de
Educação, passando pelas praxes administrativas do Ministério.
5. Samuel p. Huntington, Political Order in Changing
Societies (New Haven: Yale University Press, 1968), p. 60.
6. Robert K. Merton, "Manifest and Latent Functions",
em Social Theory and Social Structure (Glencoe: The Free Press,
1957, edição revista, p. 127).
7. Merton, pp. 129-30.
8. Fernando Henrique Cardoso, "As Tradições do Desenvolvimento
Associado", Estudos CEBRAP n. 8, 1974, p. 56.
9. Veja a este respeito James M. Buchanan e Gordon Tullock,
The Calculus of Consent, (Ann Arbor, the University of Michigan,
1962), e o trabalho clássico de Antony Downs, An Economic Theory of
Democracy (New York: Harper and Bros, 1957.
10. Este ideal, expresso por Buchanan e Tullock, é também
proposto por Fábio Wanderley Reis, com uma importante qualificação: a expansão
do "mercado político" não poderia ser feita de qualquer forma, mas dentro
de um marco de solidariedade de base territorial, que proporcionasse uma
base comunitária para o funcionamento do mercado. Ou, em suas palavras,
através da"crescente expansão e fortalecimento da solidariedade de base
territorial como condição para a eliminação de barreiras ao livre jogo de
interesses, derivadas de outros focos de solidariedade e antagonismo". Não
há dúvida que não há mercado sem uma solidariedade territorial pre~via (a
paz da Santa Aliança, segundo Polanyi, cumpria exatamente esta função) ,
mas isto não parece resolver os problemas da motivação individual em beneficio
de bens públicos, com que Mancur Olson questiona a lógica dos "mercados
políticos". Cf. Fábio Wanderley Reis, "Solidariedade, Interesses e Desenvolvimento
Politico: Um marco teórico e o Caso Brasileiro", em Jorge Balan, ed.,
Centro e Periferia no Desenvolvimento Brasileiro (São Paulo, Difusão
Europeia do Livro, 1974), p. 202. Veja também Mancur Olson Jr., The
Logic of Collective Action (New York, Schocken Books, 1968).
11. Talvez o melhor exemplo de avaliação empírica do
modelo de mercado de Hotelling-Down seja o trabalho de Donald E. Stokes,
"Spatial Models of Party Competition", American Political Science Review
57, Junho de 1963.
12. Kenneth E. Boulding, "The Principle of Personal
Responsibility", em Beyond Economics (Ann Arbor, University of
Michigan, Ann Arbor Paperback, 1970), p. 215. (Apresentado inicialmente
a reunião da Catholic Economic Association em Dezembro, 1953)
13. Boulding, p. 218.
14. "The road to the free market was opened and kept
open by an enormous increase in continuous, centrally organized and controlled
interventionism. To make Adam Smith's 'simple and natural liberty' compatible
with the needs of a human society was a most complicated affair" (Karl Polanyi,
The Great Transformation (Beacon Paperback, 1957), p. 140. (Primeira
edição, 1944). Se a tese impacta, a evidencia histórica apresentada por
Polanyi não é menos convincente.
15. John Kenneth Galbraith, em O Novo Estado Industrial,
proporciona uma visão dos mecanismos que levam ao contínuo crescimento e
fortalecimento das grandes organizações, menos como uma função de lucros
crescentes do que como um aumento da poder de sua "tecnoestrutura" termo
que ele próprio sugere. Para uma análise desta tendência em uma grande organização
estatal brasileira. veja Getúlio Carvalho, "Petrobrás: duas décadas e um
dilema," Revista de Administração Pública, vol. 9, março, 1975,
pp 14-39.
16. Albert O. Hirschman, Exit, Voice and Loyalty:
Responses yo Decline in Firms, Organizations and States, Cambridge,
Harvard University Press, 1970.
17. "Econômico". aqui, no sentido de ação individualizada
visando à maximização de um bem escasso. seja ele qual for. É neste sentido
que Buchanan e Tullock propõem uma análise "econômica". da política. Se
o "político" se refere à ação coletiva, global, então seria possível falar
também de uma economia "política", referida aos aspectos sociais e institucionais
da atividade econômica. Além disto, existam também a economia econômica
e a política, naturalmente...
18. Mais inglês do que alemão, Fábio Wanderley Reis
considera as classes, os grupos étnicos, as próprias nações como formas
particulares de lealdades a serem eventualmente abolidas na criação de um
sistema de consenso valorativo abrangente que sirva de base a um mercado
politico generalizado (veja a nota 10 acima). Na realidade, o recrudescimento
dos conflitos de tipo étnico e nacional que o mundo vem presenciando na
última década não parece apontar para um processo histórico de desaparecimento
destes elementos de identificação básica de pessoas e grupos,. mas para
um cenário futuro em que estas formas de identificação tendem a se reforçar
e se firmar, em termos de "direitos de minorias", identidades nacionais
e culturais etc...
19. Como exemplo de economia não-econômica, vale a pena
citar a Polanyi: "The outstanding discovery of recent historical and anthropological
research is that man's economy, as a rule, is submerged in his social relationships.
He does not act so as to safeguard his individual interest in the possession
of material goods; he acts so as to safeguard his social standing, his social
claims, his social assets. He values material goods only in so far as they
serve this end. Neither the process of production nor that of distribution
Is linked to specific economic interests attached to the possession of goods;
but every single step in that process is geared to a number of social interests
which eventually ensure that the required step be taken" (The Great
Transformation, p. 48).
20. Herman Finer, "Administrative Responsibility in
Democratic Government," em Alan A. Altshuler, The Politics of the Federal
Bureaucracy, p. 429.
21. Veja por exemplo S. M. Lipset e Stein Rokkan, Party
Systems and Voter Alignments, New York, Free Press, 1967, introdução.
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