
O Sentido
da Revolução de 32
Simon Schwartzman
Publicado no Jornal do Brasil, Caderno Especial,
p. 1, 6 de novembro de 1982
Cinqüenta anos passados, e o Brasil parece não haver ainda se compenetrado
do sentido de 32. Na história oficial, a Revolução Constitucionalista ficou
como uma tentativa frustrada de fazer voltar a roda do tempo, para os idos
da República Oligárquica, da política dos governadores, das atas falsas
e da política do café com leite. A oligarquia do café, nesta versão, resistia
como podia ao Brasil moderno, organizado, centralizado e industrializado
que tinha sido o grande objetivo da Revolução de 30, e que Vargas trataria
de realizar nos anos vindouros.
A versão paulista, é claro, era totalmente distinta, Para muitos de seus
entusiastas, a Revolução de 32 foi, como seu próprio nome indicava, um movimento
pela constituição, pela democracia, pela liberdade, ameaçada pelas tendências
totalitárias que se prenunciavam. Para os paulistas tratava-se, acima de
tudo, de garantir sua autonomia e independência em relação ao poder central,
não para deter o progresso, mas para, exatamente, impulsioná-lo. Monteiro
Lobato, extremado como sempre, levava aos limites este ponto de vista, em
manifesto escrito para a população paulista em agosto daquele ano. "Criador
de riquezas que é", dizia ele, referindo-se a seu Estado, "não
pode deixar a riqueza que já criou, e que está habilitado a ir criando,
à mercê da pilhagem sistemática, e crescente, que por meio do governo central
todo o resto da federação vem procedendo". Ele investe contra a "perturbação
militarista que assumiu a forma da ditadura-Getúlio", e sugere que
os paulistas se armem pessoalmente, como na Suiça; E proclama seu objetivo:
"Hegemonia ou Separação. Ou São Paulo assume a hegemonia política que
lhe dá a hegemonia de fato que já conquistou pelo seu trabalho no campo
econômico e cultural, ou separa-se". E radicaliza: Aceitemos Hobbes.
Sejamos lobos contra lobos. Lobos gordos contra lobos famintos. Organizemos
nossa defesa. Tenhamos ate nossa Tcheka interna, nos moldes russos...."
(transcrito em Hélio Silva, 1932 - A Guerra Paulista, Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1967).
A cisão entre São Paulo e o governo central não se explica por um simples
confronto entre progressistas e conservadores. O governo mineiro de Olegário
Maciel não estava mais à esquerda que o Partido Republicano Paulista; e
o Partido Democrático, paulista, era certamente mais liberal do que o Clube
3 de Outubro, formado pelos Tenentes, aos quais não faltavam personalidades
fortemente populistas, como Pedro Ernesto. A diferença básica era a das
experiências vividas e das concepções de cada um dos lados sobre o presente
e o futuro do país, tão diferentes que não se comunicavam, e que terminaram
se confrontando pela força das armas, para mais tarde se acomodarem sob
a força das circunstancias. Eram dois Brasís em formação que se a força
chocavam num confronto que, em certo sentido, ainda persiste.
O Brasil de Vargas que se plasmava, na visão de seus mais lúcidos ideólogos,
era o de um Estado forte, centralizado, interventor e racional, que se organizava
e se sobrepunha a uma sociedade primitiva, débil e dominada por oligarquias
parasitarias e incompetentes... E claro que a realidade política era mais
complicada do que isto, e em 1932 o Governo Provisório era ainda um amalgama
pouco claro de oligarquias regionais, velhos militares, tenentes do Clube
3 de Outubro e alguns setores urbanos mais mobilizados e esperançosos, sob
a liderança hesitante de Getúlio Vargas. A Revolução de 32, embora derrotada,
provoca uma contenção dos mais impacientes, e conduz à Constituinte de 1934.
Só mais tarde, em 1937, é que o grande projeto do Estado Novo tem sua chance
de ser testado. Inspirado nos modelos autoritários da Europa, o novo regime
fortalece a maquina administrativa interventora, trata de desenvolver a
industria e modernizar as forças armadas, e se livra dos que, tanto à esquerda
quanto à direita, buscavam criar formas independentes e autônomas de organização
e mobilização social. Haviam, no entanto, limites ao poder tecnocrático,
e a necessidade de uma politica de alianças que acabou se exercendo com
os representantes mais passivos e aquiescentes das velhas oligarquias regionais...
Isto explica, em boa parte, porque os grandes projetos nacionais se diluíam
em sua implementação quotidiana. Isto explica, também, o conservadorismo
do grande partido Varguista do após guerra, o PSD. Ao final da guerra, com
a retórica autoritária em recesso e os ideais da democracia liberal em ascensão,
surge um componente até então contido e reprimido do varguismo, o apelo
direto "ao povo , principalmente das grandes cidades. Era o populismo
que surgia. Uma das conseqüências significativas de 32, no entanto, foi
que os grandes partidos varguistas, o PSD e o PTB, jamais conseguiram expressão
em São Paulo, e o populismo paulista, criado à sombra do Estado Novo por
Ademar de Barros, jamais se acomodou ao sistema político-partidário do pós-guerra.
Como teria sido se São Paulo tivesse vencido? Houve quem comparasse aquele
período com a Guerra da Secessão nos Estados Unidos, com a diferença que,
enquanto lá a vitoria foi do norte moderno e capitalista contra o sul tradicional
e escravocrata, aqui teria ocorrido exatamente o inverso. São Paulo representava
em boa parte, como bem o percebia Monteiro Lobato, a linha de frente do
desenvolvimento capitalista no Brasil... No pior dos cenários, a vitória
paulista poderia ter significado a vitoria dos "lobos gordos"
contra os "lobos famintos", e uma concentração maior ainda dc)
que a de hoje da riqueza nacional na região paulistana. Existem, no entanto,
vários cenários mais favoráveis.
O crescimento do capitalismo paulista vinha associado a uma população cada
vez mais educada, a um proletariado cada vez maior e mais organizado, e
a um grande fluxo de imigração europeia, que trazia de seus países novas
mentalidades. Um sistema político centrado em São Paulo, em que predominassem
estes elementos, poderia quem sabe ter resultado em algo mais ao estilo
das democracias ocidentais da Europa, com mais pluralismo, menos autoritarismo,
e mais competência na gestão da coisa pública. Estes eram, sem dúvida, os
ideais do Partido Democrático, que propunha um regime federativo muito mais
definido para o país, com estrito controle do Presidente (eleito por via
indireta) pelo Congresso. Poderíamos ter tido partidos políticos de cunho
mais claramente capitalista e burguês, que defendessem de forma pública
e clara os interesses de sua classe; e partidos operários e socialistas
apoiados em um sindicalismo forte e independente, é não na maquina sindical
controlada pelo Mínistério do Trabalho; poderíamos ter tido uma universidade
mais dinâmica, baseada na inspiração original da USP, e um sistema educacional
mais abrangente e de melhor qualidade, no lugar da camisa de força imposta
a todos pelo Ministério da Educação...
Mas, teria sido possível este cenário? Provavelmente não. Primeiro, porque
haviam muito mais "lobos famintos" do que "lobos gordos"
e atrás dos famintos um exército de ovelhas apostando nos despojos. Segundo,
porque o São Paulo que se sublevava não era somente o do Brasil moderno,
mas também o do velho PRP e das plantations da café, preocupados acima de
tudo em recuperar suas posições de mando e o fluxo de sua renda, tão abalado
pela crise mundial de 1929. A derrota paulista de 1932 contribuiu para cristalizar
uma tendência que já vinha desde antes, que era a de um pacto de dependência
dos grupos econômicos mais fortes, ligados principalmente à agricultura
de exportação, em relação ao Estado nacional. Era um pacto que foi sendo
gradualmente estendido a outros setores da sociedade à industria, aos sindicato
a, às organizações profissionais, aos partidos e movimentos políticos pelo
qual uma fatia mais ou menos significativa dos benefícios do desenvolvimento
e da ordem social lhes são assegurados, em troca do abandono definitivo
de projetos políticos próprios. O resultado e uma sociedade politicamente
débil e irresponsável, ao lado de um Estado hipertrofiado, sem limites a
sua ação, mas, paradoxalmente, cada vez mais incapaz de governar
Lembrar 32 significa, acima de tudo, tomar consciência de que as coisas
devem e, quem sabe, podem vir a ser diferentes.
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