A Filosofia
do Subdesenvolvimento de Álvaro Vieira Pinto
Simon Schwartzman
Texto não publicado, 1959
Nacionalismo e desenvolvimento são as palavras de ordem em todos setores
mais avançados do povo brasileiro, do operariado, dos trabalhadores do
campo, da classe média, da indústria e da agricultura, das forças armadas
e classes estudantis.
Desenvolvimento Econômico é a tarefa que surge como possibilitando vias efetivas
para elevar nosso povo da situação atual de miséria e ignorância, vítima de
epidemias, endemias e fomes, joguete impotente das alterações climáticas, para
uma situação de riqueza, domínio sobre o meio, saúde física e mental. Em síntese,
de transformar o homem brasileiro, de mero instrumento alienado de economias
estrangeiras, sofrendo reflexamente seus embates e oscilações, fisicamente
incapaz de qualquer reação, em sujeito de seus próprios atos, que decide seu
próprio destino, pela força da riqueza e cultura próprias.
O desenvolvimento econômico é buscado através da industrialização progressiva
do país, com a criação de uma indústria de base, com o aumento da produtividade
e pleno emprego das forças produtivas disponíveis, pela integração ao sistema
das áreas de economia não-monetária, com a resolução dos pontos de estrangulamento
e desequilíbrios no dinamismo do processo. Para a realização destes objetivos,
busca a realização de um planejamento racional de investimento de recursos,
estímulo às atividades particulares de cunho desenvolvimentista, política cambial
de proteção a indústria nacional, limitação à remessa de lucros em forma de
divisas por empresas estrangeiras para o exterior, assim como à sua predominância
em atividades de base, a eletricidade, os combustíveis, a mineração. Para a
integração das áreas não monetárias, a reforma agrária fundada no princípio
do aproveitamento ótimo das terras e recursos humanos e materiais existentes,
com sua distribuição racional e amparo efetivo ao lavrador.
O desenvolvimento interessa praticamente a todos os setores da nação brasileira.
Ao industrial, que com ele terá possibilidade de desenvolver suas atividades
sem a concorrência esmagadora dos trusts internacionais, e com auxilio governamental
efetivo a seus empreendimentos. Às classes médias, tradicionalmente instaladas,
em sua grande parte, no aparelho estatal de forma parasitária, que podem ter
ampliado o campo para a. atividades econômicas de pequena empresa, assim como
o surgimento de um excelente mercado de trabalho para pessoal técnico e especializado,
que uma nação em desenvolvimento oferece. Às classes proletárias, que vêem
a possibilidade de ampliar seu mercado de trabalho e seu nível salarial. E
ao campesinato, que com o aumento da produtividade e monetarização dos campos
elevar-se-á da condição sub-humana em que ainda hoje se submerge.
O nacionalismo surge como a ideologia do desenvolvimento, termo catalisador
que reúne em torno de si todos os que, de uma maneira ou de outra, estão interessados
na realização dos objetivos desenvolvimentistas, na luta política e cultural
por uma mentalidade progressista, por medidas progressistas no campo da politica
interna e externa, da política cambial, no plano da educação e de equacionamento
das questões sociais.
Esta simultaneidade de interesses a que nos referimos, base para uma frente única
nacional desenvolvimentista, não permite no entanto ignorar a existência de
contradições internas à nação brasileira. Unidos todos na luta pelo desenvolvimento,
cada qual procurara orientá-lo no sentido que melhor lhe aprouver. Realmente,
se se afere o desenvolvimento pelo crescimento da renda per cápita, este crescimento
importa varias diferenciações, e a distribuição da renda, por exemplo, será tão
importante quanto seu crescimento. Assim, o conceito de sub-desenvolvimento
não será apenas um conceito quantitativo, medido pela comparação de taxas de
renda e produção das nações sub-desenvolvidas com as nações paradigma, mas
implicará também os critérios qualitativos de auto-suficiência, auto-dinamismo
e elevação geral do padrão de vida. Não haverá desenvolvimento, ao menos no
sentido que possa interessar ao povo brasileiro, se, aumentando a renda per
cápita, continuarmos na dependência econômica de um produto único, se nossa
economia produzir apenas para a exportação de dividendos, ou se a acumulação
de capital se efetivar pela manutenção das massas populares em baixos níveis
de vida.
À
s diferentes orientações qualitativas que pode assumir o desenvolvimento econômico
correspondem diferentes concepções de nacionalismo, explícitas ou no mais das
vezes mantidas implicitamente. Nacionalismo, como termo global, abrange as
diversas concepções, com as correntes respectivas, numa frente única que há de
conter necessariamente divergências, discussões, e oposições sem que entretanto
tais divergências levem à cisão do movimento nacionalista. O que não significa,
entretanto, que as divergências devam ser ocultas sob uma aparência de unanimidade,
o que resultaria na orientação de todo o pensamento nacionalista conforme os
grupos que fortuitamente ocupam os centros políticos de decisão e influência.
Seria isto eliminar o critério razão no encaminhamento da política
nacionalista, substituído por elementos puramente emocionais, que passariam
inevitavelmente a camuflar interesses particulares em detrimento do todo. O
nacionalismo exige a discussão como condição indispensável para seu bom encaminhamento.
Ao conferências pronunciadas pelo professor Álvaro Vieira Pinto em agosto de
1959 na Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade de Minas Gerais colocaram
com clareza a necessidade e mesmo a urgência de uma nítida definição e caracterização
dos postulados da ideologia que se pretende elaborar para o desenvolvimento
nacional, e que encontra no Instituo Superior de Estudos Brasileiros seus principais
teóricos.
Sob o título de "O Pensamento do Ponto de Vista do Pensador do País Sub-desenvolvido",
procurou o professor Vieira Pinto colocar as condições de possibilidade de
um pensamento filosófico autenticamente brasileiro, que fosse o fundamento,
no plano das idéias, do esforço brasileiro de auto-determinação e desenvolvimento.
A integridade intelectual do Prof. Vieira Pinto não o impediu de formular idéias
a nosso ver grandemente discutíveis, com conseqüências que, pelo que dito professor
representa no pensamento nacional, transcendem de muito sua pessoa e suas melhores
intenções. Não há filosofia inocente, e é grande a responsabilidade
de quem pretende dar as diretrizes do pensamento de um povo. Quando lançamos
o debate, é para alertar dos perigos dos falsos pressupostos, para buscar nas
trocas de opiniões os verdadeiros fundamentos para nosso pensar filosófico.
O pensamento filosófico tem sido sempre, segundo o prof, Vieira Pinto, uma
concepção de mundo, condicionada pela situação histórica concreta do pensador.
Na realidade não existira um pensamento que tivesse validade em si, e que pudesse
ser separado de suas raízes históricas.
Normalmente, a filosofia tem sido um produto daqueles que se encontram situados
no topo do processo civilizatório nos centres dominantes. Colocando-se no cume,
o pensamento filosófico pretende valer universal e intemporalmente, continua
o professor, e tende a negar a possibilidade de um pensamento válido que não
seja o seu. Estando em posição privilegiada, o pensador de centro dominante
tenderia a valorizar como absolutos seus enunciados, a não reconhecer na realidade
o caráter do processo, a não reconhecer aos graus menores do processo o direito
a ponto do vista autônomo, a considerar privilegiada a sua situação histórica,
o que faria com que somente o seu ponto de vista fosse o envolvente da totalidade.
Mas, prossegue professor, citando Hegel, a partir de cada unicidade é possível
um ponto de vista universal. A atribuição do direito exclusivo ao pensamento
válido aos centros dominantes é fruto de um complexo de dominação de caracterização
relativamente fácil. A filosofia, como visão-do-mundo do cada ser-no-mundo
que possua consciência desta visão, tornar-se-á possível quando neste centro
se configurarem condições desta conscientização de sua situação. É o surgimento
da industrialização brasileira que configurará as condições desta conscientização,
ao mesmo tempo que fixará como contradição principal a contradição desenvolvimento
- sub-desenvolvimento, centro dominante - centro dominado, e acentuará assim
nossa unicidade dentro de universal, a unicidade "nação proletária". A nação
proletária, subdesenvolvida, como unicidade, tem em si a visão da universalidade,
e pelas características históricas de sua constituição, é capaz de consciência
desta consciência de universal, ou suja, de filosofia.
Outras contradições certamente existem, mas são particulares ao processo histórico,
e não o caso geral. Contradições de classes, contradições de região, contradições
lavoura-indústria. etc. Há sempre em qualquer sociedade um conjunto de contradições,
e uma delas, a principal, determina a polaridade, sendo as demais, em relação
a esta, no momento, dados de segunda ordem. A ideologia, o pensamento filosófico,
representa o pensamento de um dos polos da contradição principal, e se, em
nosso caso, é a nação em sua totalidade um desses polos, é a partir dela que
se estruturará esta ideologia.
A filosofia nacional será então a filosofia do desenvolvimento. A visão do
mundo que devemos elaborar, elevando ao plano da consciência nossa perspectiva
do universal, é a visão da nação subdesenvolvida, dominada, em processo de
desenvolvimento, libertação: Esta conscientização se realiza no próprio processo
de desenvolvimento, sendo dele produtora e beneficiária. A filosofia do desenvolvimento,
como filosofia de centro dominado, será dialética, e não, perene, concreta,
e não abstrata, revolucionária, e não conservadora, prática, e não teórica,
humanista, o não formalista, popular, o não de elite.
Na elaboração da filosofia do desenvolvimento, nada nos impede de valermo-nos
de contribuições de pensamento já elaborados de centros dominantes. Buscando
embora elementos e formulações gerais nestas fontes, nosso pensamento será original,
por corresponder a nossa situação específica, e igualmente universal. No existencialismo
se irão buscar valiosos elementos para esta filosofia, pois apenas ele coloca
suficientemente a caracterização do homem como ser no mundo, tendo o mundo
como seu constitutivo ontológico. Mas o existencialismo, pelas condições históricas
cm que se formou, é abstrato, subjetivo, individual e pessimista. Ora nosso
futuro, pelo contrario, nos surge como promissor, pois estamos em expansão
e desenvolvimento, e nosso. pensamento mera assim concreto, social, objetivo
e otimista.
Nossa situação existencial limite é o sub-desenvolvimento, situação englobante,
envolvente, da qual só transformando-a poder-se-á fugir. Nossa situação limite
nos leva, não a um conceito de ser-para-a-morte ou ser-para-o-fracasso, mas
para um ser para a vida, para o desenvolvimento, conseguido pela intervenção
direta na situação circundante concreta.
O pensamento do Professor Vieira Pinto, cuja síntese vimos de expor, embora
momentaneamente progressista e correspondendo a nossa problemática de sub-desenvolvimento,
contém elementos capazes de orientar e nacionalismo brasileiro para rumos direitistas,
próximo ao nacionalismo de tipo fascista. Um nacionalismo que, pelas monstruosidades
que praticou em nome da Nação, pelas marcas tão profundas feitas em centenas
de milhões de pessoas, pelas dezenas do milhões por cuja morte é responsável,
faz ainda hoje muitas inteligências formadas na democracia sentirem repugnância
de se considerarem nacionalistas, mesmo de um nacionalismo popular e anti-imperialista.
Falta à filosofia do professor Álvaro Vieira Pinto uma base humanista, cuja
ausência se liga ao irracionalismo e ao amoralismo. Consciente ou inconscientemente,
elabora um pensamento de burguesia em luta por melhor situação na área internacional
do capitalismo. Assim, é uma burguesia progressista, mas sem intenção de ultrapassar
dado limite, disposta a ignorar o que não lhe convém e fazer parar e processo
do desenvolvimento quando este não mais lhe convier, isto é, quando o desenvolvimento
exigir, para sua continuação, limitações e mesmo supressão de seus privilégios.
O pensamento filosófico, concordamos com o professor Álvaro Vieira Pinto, é um
pensamento situado, correspondendo à situação existencial do pensador. Na realidade
social, cada "NÓS" constitui uma unicidade, um centro de intuição e conhecimento
de sua experiência, e destarte, do universo que se lhe apresenta conforme sua
perspectiva própria. A cada contradição na sociedade humana corresponde uma
sociabilidade de oposição, e um Nós para cada um dos polos da oposição. Mas
será sempre uma oposição parcial, pela preexistência ontológica de um Nós que
preside a esta oposição, como condição mesma de sua possibilidade. O pensamento
filosófico não escapa a este fato, colocando-se também a partir de um Nós,
e no interior de uma contradição. E é condição para seu surgimento que o Nós,
cuja perspectiva represente, seja de molde a conduzir à estruturação de um
grupo capaz de tomada de consciência de sua visão-de-mundo. Parece ser certo,
inclusive, que isto já se dá no Brasil, com a estruturação do Nós "Nação Brasileira",
ao menos no grupo parcial da intelectualidade.
Mas o pensamento filosófico, pela sua vocação, tende à universalidade, a ser
a visão-do-mundo de toda a humanidade. Neste sentido, significa abranger tudo,
compreender tudo, explicar tudo, dar de tudo a fundamentação última. Ao contrário
do que pretenderam os filósofos do intuicionismo e da "autenticidade", o característico
fundamental do ser humano é, não a experiência intima e subjetivista, mas exatamente
a capacidade de simbolização de seu conhecimento, simbolização que transforma
a experiência de um em experiência de todos, proporcionando um desenvolvimento
progressivo da cultura e da civilização, apanágios da espécie humana. O homem é,
basicamente, um ser racional, capaz de estender sua vivência à vivência dos
demais homens, e assim colocar em questão sua própria situação. Querer assumir
a situação concreta em seu aspecto mais momentâneo, em sua contradição mais
imediata, como dado e ponto de partida para o filosofar é irracionalismo puro.
A contradição principal de um processo, para efeito de ação política, não é a
mesma contradição principal para o efeito do uma filosofia, como pretende o
professor Álvaro Vieira Pinto. Pois se assim fosse, por exemplo, deixaria Mao-Tsé-Tung
(o autor da teoria da "contradição principal" ) de ser filosoficamente marxista,
no instante em que se unia ao Kuomitang na luta contra o inimigo japonês, o
polo oposto da contradição principal de então. . .
A unicidade que dá ao professor Álvaro Vieira Pinto um ponto de vista universal,
e é ponto de partida de seu pensamento, é a "realidade" nação proletária,
polo de uma contradição que se verifica como sendo historicamente a principal,
configuradora da presente fase histórica. Mas para a filosofia, antes que uma
contradição principal, é mister buscar-se uma contradição limite, que permita
colocar em perspectiva todas as demais contradições existentes. Será a contradição
mais abrangente, descoberta graças à capacidade de raciocinar, de assimilar
todas as contradições com seus ensinamentos, mesmo os distantes no espaço e
no tempo. A colocação desta contradição será feita pelos que a sofrem, e sua
resolução será imperiosidade existencial e necessidade ética. Assim, para os
que cheguem a compreendê-la, haverá uma possibilidade de opção por ela, dentro
dos limites da liberdade que sua condição permita.
A contradição limite, base para o pensamento filosófico, é a contradição que
ressalta ao se refletir sobre o homem em sua existência concreta, em que luta
para a sobrevivência, em que é escravo de situações que independem dele, em
que morre esmagado por guerras e cataclismas que escapam a seu controle. O
homem luta contra estes determinismos, contra estas forças que o alienam. A
alienação do homem encontra sua negação dialética na luta pela desalienação,
se realiza pelo controle progressivo das forças da natureza e dos determinismos
sociais. A síntese desta contradição é a liberdade, é o homem total que subjuga
as forças da natureza e da sociedade, assumindo assim a plenitude de sua natureza
humana.
Assim, o pensamento filosófico trabalha com uma ética concreta, que se efetiva
no processo concreto do humano. O homem total é sem dúvida um ideal, mas um
ideal que surge dá própria concreção histórica, cuja existência virtual entrevemos
através da luta quotidiana do homem alienado. Sua realização pressupõe e desaparecimento
das alienações sociais e culturais, das oposições entre real e ideal, concreto
e abstrato, teoria e prática, individual e social. O prisma da desalienação
será o prisma do Homem, o prisma dos esforços da liberdade humana para vencer
os determinismos, o prisma das virtualidades de crescimento humano que querem
se realizar historicamente é se encontram amarradas e sufocadas pelas alienações. É o
prisma do homem que quer ser mais homem, que quer crescer, libertar-se os vínculos
da sub-humanidade. "Não é senão na comunidade que cada indivíduo tem meios
de desenvolver em todas as direções suas aptidões, não é senão na comunidade
que a liberdade pessoal é possível". O prisma do homem é prisma da Comunidade
Humana, em que sejam superadas as injustiças sociais, as dominações totalitárias,
as servidões econômicas, a fome, a miséria e o analfabetismo.
Buscamos um pensamento nosso, próprio de nossa situação no mundo. Mas um pensamento
que tenda para o universal, que realize, como limite, um ideal universal de
homem. De tal maneira que nosso pensamento seja válido e compreendido, em seus
postulados fundamentais, tanto para nos quanto para o negro que se rebela contra
o colonizador, para o francês que se nega a ir para a Argélia e financiar a
política de extermínio, para o operário húngaro (e não os elementos reacionários
da revolução) que lutaram quando, com palavreado revolucionário, tentam mantê-lo,
pelo terror, afastado da escolha de seus destino, e para o proletário americano,
soviético, rumeno ou argentino.
O Nós que fundamenta a unicidade que dá base à filosofia da desalienação é o
Nós Oprimidos, Nós Explorados. É na sociedade capitalista que este Nós encontra
sua possibilidade de estruturação em grupos concretos que vêm diante de si
a possibilidade de se alçarem desta condição para a de livres e senhores do
que produzem. Desta forma, elevam-se do plano da consciência ingênua para o
da consciência crítica de sua situação, e constroem uma teoria que tem em si
elementos para a verdadeira compreensão de sua situação, em seus aspectos concretos,
e as possibilidades de resolvê-la. É quando surgem os partidos operários, os
sindicatos e suas lutas, o marxismo, o anarquismo, s socialismo em seus diversos
matizes, o trabalhismo, o personalimo e o coletivismo pluralista.
Graças à elaboração teórica dos que sofrem mais diretamente a exploração, o
operariado dos grandes centros industrializados e seus representantes teóricos,
que assumem existencialmente sua situação, a humanidade chega a compreender
os mecanismos objetivos da exploração, cujo aspecto principal é a exploração
classista. A contradição limite é a contradição entre o homem alienado e sua
negação dialética, o homem que luta contra esta alienação. E a unicidade que
elabora a filosofia da desalienação é o proletariado.
A contradição limite se configura em luta de classes, não como aspecto episódico,
contingente, mas aspecto próprio e definidor da sociedade de exploração tipo
capitalista. É esta a contradição que deve presidir ao pensamento filosófico,
e todas as demais contradições serão encaradas a partir dela. É a partir dela
que determinamos a ordem de prioridade para a resolução das contradições quer
se nos antepõem como obstáculos na consecução de nosso objetivo último.
Os anos de após-guerra introduzem um elemento novo na órbita internacional,
a presença de povos sub-desenvolvidos com a consciência de sua condição e o
desejo de resolvê-la. Povos que foram jogados violentamente dentro da estrutura
capitalista, que sentem continuamente o contraste entre suas possibilidades
materiais e a dos grandes centros, e ao mesmo tempo se vêm explorados, atados
em suas pretensões de progresso, e com uma população que cresce em proporção
geométrica. Ingressamos na era de Bandoeng, onde o grito maior é o grito do
colonizado, da nação subjugada, do faminto que vê diante de si a comida que
lhe negam.
Mas isto não supera o aspecto básico da contradição de classes. O caminho de
desenvolvimento em suas formas espontâneas é o caminho capitalista, a via é a
da exploração, e mesmo que a estrutura social seja mal definida, que as classes
sociais estejam apenas em embrião, é válido raciocinarmos com as categorias
burguês e proletário, pois temos presente nossa inserção na estrutura capitalista,
com seus determinismos específicos e sua clivagem própria - a divergência básica
de duas classes.
A situação do pensador do país sub-desenvolvido, se ele procura o polo mais
radical para seu pensar, será uma posição privilegiada. Pois terá a perspectiva
mais abrangente, anterior mesmo a de um proletariado industrial já formado
e estruturado, e poderá inclusive colocar em questão todas as formulações que
buscam a resolução das questões sociais, encontrando para si a mais eficaz,
por mais explicativa, mais democrática, menos árdua, mais humana e mais ética.
Mas para isso é necessário que assuma a perspectiva das classes proletárias
existentes ou em formação, das classes camponesas que ensaiam a luta por seus
direitos, levar em consideração as contradições de estrutura reais e virtuais
no interior da nação sub-desenvolvida.
Para o professor Vieira Pinto, entretanto, a contradição principal para a ação
política é a contradição base para o pensamento filosófico, e política e filosofia
são a mesma coisa. Partindo disso, o bloco, a unicidade, a totalidade que fundamenta
a sua visão-do-mundo é & nação subdesenvolvida tomada como um todo. As
contradições internas, por mais remotas no tempo, não suspensas, não são negadas,
mas não contam. A filosofia é instrumento que muda ao sabor do jogo das polarizações
processuais, e torna-se assim impossível um prognóstico histórico do processo.
A visão universal da totalidade não tem tempo, é sempre presente, e o processo
torna-se impossível de conhecer. As polarizações não têm raízes, ou se as têm
estas raízes não se prolongam. Existem os fatos englobantes, as situações particulares
a cada situação histórica, mas uma história sem dimensões, sem perspectiva,
e portanto, sem devenir. A filosofia será o pensamento que deve fazer tudo
para acompanhar passo a passo o processo, conscientizando sempre o que vê no
presente, e deixando ao futuro, que um dia será presente, o julgamento do nosso
agir. Nosso pensamento, e a nossa luta, terão sido corretos e justos se forem
eficazes, já que só as coisas eficazes duram e permanecem. O amoralismo, assim,
tem justificativa, no obscurecimento de que só o humano serve de critério à eficácia,
e na eliminação total das potencialidades de liberdade e de opção racional
do homem. Como se o nazismo não tivesse sido eficaz na eliminação de 20 milhões
do pessoas em 6 anos, como se Hiroshima não tivesse sido eficazmente arrasada
em alguns segundos. A fixação na contradição principal é um convite à negação
do histórico como processo passível de conhecimento enquanto tal. Uma contradição
que é principal numa crise, nem por isso é total, nem definitiva nem fundamental.
Sua importância é tática, sua base é instável, e portanto não pode constituir-se
em base para uma filosofia. A filosofia de um processo estará apoiada no limite
racionalmente perceptível deste processo, e não no momento presente. E o processo
maior é o processo do Humano, em toda a amplitude que nossa inteligência e
técnica nos permite perceber.
Na prática, o professor Álvaro Vieira Pinto assume a perspectiva da burguesia
nacional com todas as deformações e prejuízos decorrentes, e isto voluntariamente
ou não, o que não nos cabe dizer. O caráter progressista de seu pensamento é tão
progressista quanto esta burguesia, que se interessa pelo desenvolvimento econômico
porque este lhe enriquece, e apenas por isso. O desencontro entre a nossa burguesia
e a burguesia internacional existe realmente no momento, mas tudo indica tratar-se
apenas de uma divergência passageira, processual. Pois integramos uma totalidade,
a totalidade do capitalismo mundial, e é para afirmar-se dentro desta totalidade
que nossa burguesia se contrapõe à burguesia estrangeira. num salto dialético
que lhe permitirá participar pais efetivamente do sistema.
A unicidade em que se apóia o professor Álvaro Vieira Pinto é uma unicidade
precária, ambígua, pois assenta na contradição estrutural do projetos, de interesses.
Não se pode arvorá-la em unidade fundamentadora de uma visão filosófica universal.
Senão, ficaríamos na superfície da história, o que não convém nem à filosofia
nem ao homem. A coincidência do interesses das diversas classes e grupos da
nação brasileira, sob a perspectiva abrangente do proletariado, é uma fase
tática, ultra-precária, mas para a burguesia deve ser permanente. Assentar
sobre ela o pensamento sé pode significar recusar-se a colocar em questão sua
fugacidade: Significa marchar não só ao lado da burguesia, mm dentro dela e
do seus desígnios. É apenas ocasionalmente que a filosofia será, dentro desta
postulação, dialética, revolucionária e de massas. Deixará de sê-lo quando,
em nome da Nação, quiser sufocar as lutas populares; e já traz dentro do si
as portas abertas a esta virada reacionária.
Ignorando a possibilidade de opção por uma dada unicidade, opção baseada num
critério ético referido à Comunidade Humana, e um critério epistemológico referido à maior
compreensão do processo, sua posição é, como vimos, irracionalista. Eis porque
os elementos progressistas com que caracteriza seu pensamento aí estejam como
que ao acaso, sem ligar-se de maneira necessária ao sistema. Porque o caso
inverso, um pensamento conservador, abstrato, de elite, seria igualmente válido,
caso correspondesse a outra situação existencial, já que não existem situações
reacionárias ou progressistas senão em relação à nossa, ponto de partida sobre
qual não se questiona. E se à nossa situação, caso fosse reacionária, correspondesse
um pensamento reacionariamente eficaz, seria também um pensamento ético, se
fosse necessário justificá-lo neste plano.
O pensamento de professor do ISEB encontra seus fundamentes no existencialismo,
pois se ele coloca o mundo como constitutivo ontológico do homem. Mas o existencialismo
foi prejudicado pelos seus seus elementos individualistas e subjetivos, o que é necessário
alterar. É preciso ver o mundo não como um correlato da consciência (que assim
ele deixaria de ter uma existência independente), mas como existindo objetivamente,
com sua historicidade própria. A situação existencial em que nos encontramos
tem contornos sociais concretos, e não metafísicos.
A nosso ter, esse processo de "enchimento" que realiza o professor. Vieira
Pinto do mundo existencialista vem transformá-lo no mundo marxista, um mundo
humano no qual o homem busca dialeticamente sua realização total. Porque não
se parte então da análise marxista, acrescentando-lhe as contribuições da filosofia
da existência, ao invés do contrário? Porque a análise marxista parte da crítica à sociedade
capitalista, da análise e postulação da luta de classes, tem um conteúdo ético
e um fundamento racional. Interessa enquanto auxilia na luta anti-imperialista,
no desenvolvimento das forças produtivas nacionais, mas deixa de interessar
na sua radicalidade. E uma posição burguesa, alienante e exploradora, será também
alienada, deformante e amoral. É necessário ainda deixar caminho a outras deformações,
e é mais cômodo fazê-lo fora do marxismo.
A primeira deformação se verifica quando o professor Álvaro Vieira Pinto procura
realizar a fenomenologia da dominação. O método fenomenológico se caracteriza
precisamente pela cristalização que introduz na realidade, pela redução das
circunstâncias históricas, das origens processuais e das tendências do fenômeno.
O fenômeno é tomado enquanto dado à consciência, e aí descrito em sua imediateidade.
Desta maneira, ficará caracterizada a oposição centro dominante - centro dominado,
e deixar-se-á de lado o fato de que esta oposição é apenas um "momento" de
um processo, e é este processo que é fundamental analisar, em seus determinismos
específicos. O professor leva, assim um tempo imenso na descrição quase diríamos
anedótica das formas de dominação, com seus mitos e preconceitos, sem por um
instante referir-se ao seu dinamismo.
A segunda deformação consiste em eludir as oposições históricas de conservadorismo
e progressismo, e seus pensamentos respectivos, procurar privilegiar a dualidade
metrópole - periferia, pensamento metropolitano -. pensamento periférico. Implica
isto uma determinada concepção da história e da evolução humana que transforma
as oposições estruturais em oposições geográficas, o que nos parece não só pobre,
como perigoso. Para nós, esta concepção significará esquecermos nossa proximidade
ideológica com as classes populares dos países industrializados, e nosso afastamento,
ou melhor, nossa proximidade apenas circunstancial com as camadas alienantes
do nosso país. Se nos opomos a dado pensamento metropolitano, não o fazemos
pelo fato dele existir nos Estados Unidos, Alemanha ou União Soviética, mas
por ser um pensamento reacionário. Novamente, esta deformação conduz a eludir
o caráter fático e contingente da unidade das classes em nosso país, e assim
a justificação de uma teoria "nacional" isto é, burguesa, de desenvolvimento.
Finalmente, outra deformação é a hipostasiação da categoria Nação, atribuindo-lhe
um constitutivo ontológico próprio e não raro transcendente. A Nação torna-se
um mito dotado de qualidades próprias, exigindo sacrifícios em seu holocausto
e impondo-se ao povo. Na realidade, o professor Álvaro Vieira Pinto não chega
até este ponto, mas outros já esboçam isto, o esta é a terminal lógica da linha
de pensamento pela qual parece ter enveredado. A história européia nos mostra
com suficiente clareza o conteúdo fascistizante desta hipostasiação, e a literatura
socialista e democrática é suficientemente vasta a este respeito para que precisemos
nos deter em sua análise. Mas é sintomático que isto esteja se verificando,
pois indica claramente que não são infundados nossos receios de que o nacionalismo
esteja sendo levado, consciente ou inconscientemente, para rumos que poderão
custar caro ao nosso país e à humanidade. A erição da Nação em mito, ou mesmo
do desenvolvimento, transforma meio em fim. Queremos desenvolvimento para alguma
coisa, somos nacionalistas para alguma coisa, e esta coisa é o povo
brasileiro, seres humanos e parte da Comunidade Humana.
O desenvolvimento não é unilinear, admite formas diversas e rumos diversos.
Pode se realizar pelo incentivo à atividade privada, ou pela acentuação da
participação estatal. Pode buscar seus recursos através de vários tipos de
compromissos internacionais. Pode se realizar mais ou menos prontamente, e
acelerar-se por uma concentração brutal de capitais, graças à manutenção do
proletariado em regime de fome. Pode assumir caráter democrático ou autocrático,
permitir ou não a participação das forças populares em seu encaminhamento.
Cabe então uma opção por um tipo de desenvolvimento, que será a opção por um
dos grupos que o realizam.
Falar-se em termos de nação brasileira, para a fundamentação de um pensamento, é ignorar
estas virtualidades, e optar irracionalmente por alguma delas. Ou melhor: uma delas,
a que empolga atualmente o poder e tem a pretensão de única.
A evolução dos partidos políticos nos últimos 15 anos demonstram claramente
o crescimento dos partidos operários, que passam cada vez mais a elementos
decisivos dos embates partidários. Nestes partidos, particularmente no maior
deles, o Partido Trabalhista, o elemento de origem operária assume cada vez
maior destaque, não só eleitoralmente, mas inclusive fornecendo quadros dirigentes,
impondo sua presença contra os elementos tradicionalmente demagógicos que se
valem da fraseologia popular e da política assistencialista. Igualmente o movimento
sindical se fortalece, federações nacionais se instalam, pactos inter-sindicais
assumem importância cada vez maior.
Esta realidade é gritante demais para que possa ser ignorada, cem toda a plenitude
do sua significação. Elaborar agora um pensamento "nacional" será fazer voltar
atrás o que já existe, sufocar uma luta que já se trava. Será chamar o proletariado
brasileiro à colaboração cem a burguesia, fazendo-o dependente - a ele e a
seus lideres - de uma filosofia que esqueça suas reivindicações específicas,
e que não o permita colocar em questão o tipo de estrutura social em que vive,
a estrutura capitalista. As camadas populares brasileiras, o proletariado urbano
e rural já iniciam suas lutas, e contam com os intelectuais para as armas ideológicas.
Os intelectuais não podem traí-los, sob pena do risco de, de uma hora para
outra, verem a arma da critica metamorfoseada em crítica pelas armas.
Reconhecemos a importância do desenvolvimento econômico para o proletariado
que o realiza historicamente. Enquanto não for erradicado o sub-desenvolvimento,
não poderá haver condições para uma sociedade humana mais humana. Reconhecemos
que o sub-desenvolvimento é a forma mais concreta de alienação que vivemos
neste momento histórico. Isto não nos pode fechar, entretanto, às contradições
internas no seio da sociedade brasileira, assim como não nos deixa distante
das alienações que existem em todo o mundo, na sociedade norte-americana, russa
ou boliviana, na Ásia, África e Europa, sem a resolução das quais não resolveremos,
de forma definitiva, as nossas alienações.
Não temos pronto o nosso pensamento filosófico, e não podemos adotar nenhum,
existencialismo, marxismo, ou as filosofias da pessoa humana. Mas de cada um
deles, e de muitos outros, tiraremos e que nos podem fornecer, pois são pensamentos
de homens situados semelhantemente a nós, num dos polos da contradição limite
de nosso tempo, a contradição entre o homem-coisa, o homem alienado, e o homem
total.
Temos, entretanto, um ponto de partida, que é ético, concreto e existencial,
que se fundamenta na realidade de um ser humano, uma comunidade humana da plenitude
de sua existência concreta. Isto implica que não abdicaremos da arma da razão,
e nos valeremos da liberdade que temos para ampliá-la cada vez mais.
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