As Dificuldades
do Anti-Etnocentrismo
Simon Schwartzman
Comentário ao artigo de Howard J. Wiarda, "Por
uma teoria não etnocêntrica do desenvolvimento: as concepções alternativas
do Terceiro Mundo", Dados, vol. 25, 2, 229-252, 1982; publicado
em Dados, vol. 25, 2, 253-254, 1982.
É
difícil, aparentemente, discordar do artigo de Howard Wiarda e de suas
intenções. Ele faz o mea culpa das ciências sociais norte-americanas,
mostra como o "Terceiro Mundo" vê as coisas de forma diferente,
conclama seus colegas a reverem seus preconceitos ocidentalizantes. assim
como suas agências de governo a reverem suas políticas. No entanto, o
artigo deixa no final um sabor estranho, junto com a impressão de que
algo está basicamente errado, e de que ele não consegue, na realidade,
uma atitude realmente anti-etnocêntrica. O objetivo deste comentário é tratar
de localizar onde está, na realidade, o problema.
Uma coisa que está obviamente errada é que Wiarda apresenta como um fenômeno
novo algo que já é bem antigo, tanto nas ciências sociais de língua inglesa
quanto nos países do "Terceiro Mundo". Sem ir muito longe, é possível
lembrar o texto clássico de Alexander Gershenkron (Economic Backwardness
in Historical Perspective, 1962) que, referido principalmente aos
países da Europa Central, mostrava claramente como o caminho de desenvolvimento
da Inglaterra e França era irrepetível. Depois, basta acompanhar as notas
de pé de página do próprio artigo para vermos outras referências importantes:
o artigo de Bendix de 1964, o de Richard Morse do mesmo ano, o livro de
Eisenstadt de 1966. Sem falar, evidentemente, na obra também clássica e
não citada de Barrington Moore de 1966, Social Origins of Dictatorship
and Democracy. As teorias unilineares de desenvolvimento, no estilo
dos trabalhos de Daniel Lerner ou do "manifesto não-comunista" de
W. W. Rostow, já foram abandonadas pelos cientistas sociais norte-americanos
há pelo menos 15 ou 20 anos, e não deixa de ser curioso que isto surja
para o autor como novidade.
É
claro que, nos países do "Terceiro Mundo" a
crítica ao unilinearismo já vem de muito antes. Para ficarmos somente no Brasil:
Gilberto Freyre escreveu Casa Grande & Senzala na década de 30,
e suas teses sobre a
especificidade da cultura luso-tropical têm sido publicadas há muitos anos em
língua inglesa. No outro extremo, Alberto
Guerreiro Ramos já fazia a crítica à sociologia anglo-saxã para o entendimento
dos problemas sociais e políticos do Brasil
desde o final dos anos cinqüenta, com sua Redução
Sociológica.
Mais sério do que isto, no entanto, é a total negação que faz o autor de toda
a produção das ciências sociais latino-americanas dos últimos anos, que têm se
dedicado especificamente a este problema. Toda a sua referência a autores latino-americanos
que tratam do assunto se limita a dois textos: o já obsoleto Dependência
e Subdesenvolvimento na América Latina, de Fernando Henrique Cardoso e Enzo
Falleto, e o livro de Cláudio Véliz, The Centralist Tradition. Ele deixa
de lado, ainda sem sair do Brasil, todo o material referido por Bolivar Lamounier
e Femando Henrique Cardoso em "A Bibliografia de Ciência Política sobre
o Brasil (1949-74)", publicado em Dados n 18; assim como os trabalhos
de repercussão internacional óbvia, como por exemplo os de Guillermo O'Donnell,
ou de circulação mais restrita, mas que não deviam escapar ao especialista -
como o meu próprio. Na realidade, a única referência às ciências sociais contemporâneas
da América Litina é depreciativa e condescendente - a referência aos "salões" do
mundo moderno, onde os intelectuais subdesenvolvidos externalizariam seus complexos
de inferioridade colocando a culpa de seus problemas nos outros.
Na realidade, a questão é ainda mais grave: Wiarda diz que a "próxima
grande fronteira das ciências sociais" seria
levar a sério as instituições dos países não-ocidentais, algo que deveria ser
feito "agora pela primeira vez".
Com isto, bota pelo ladrão não só a sociologia política da
melhor qualidade dos últimos anos, como, de passo, toda a
tradição da pesquisa antropológica, que nunca fez outra coisa; e apresenta como
grande descoberta algo que todo mundo já sabia.
A verdadeira dificuldade da aplicação das teorias do desenvolvimento para os
países não-ocidentais não é, como diz Wiarda, o de "levar a sério" suas
instituições e peculiaridades culturais (isto pode no máximo ser o problema de
alguns setores mais míopes do Departamento de Estado norteamericano), mas o de
como combinar o conhecimento desta diversidade com o fato inegável de que existe
um processo global de modernização e internacionalização da cultura e da economia
que atinge, de forma variada, a todos os países. Bendix expressou este problema
com toda a clareza em seu trabalho de 1964, ao mostrar que os problemas de construção
dos Estados nacionais. da expansão da cidadania, da racionalização e internacionalização
da economia etc., atingiam todo o mundo e, neste sentido, ninguém escapa ao processo
de modernização: o que era e continua sendo problemático são os caminhos que
tomam estes processos, e seus possíveis resultados ou fracassos. Esta visão das
coisas torna inaceitável o relativismo extremado de explicar tudo pelas "peculiaridades
culturais" ou institucionais dos diversos países e sociedades, e exige uma
ciência social de tipo comparativo e histórico muito mais desenvolvida e amadurecida.
Acredito que esta é a verdadeira fronteira, aberta não agora por Wiarda, mas
há pelo menos 20 anos atrás por vários dos autores citados acima (a partir de
uma tradição predominantemente weberiana), e que não podem ser ignorados.
Isto dito, creio que fica clara a dificuldade deste artigo: ao
fazer tubula rasa de tudo o que já se sabe sobre o assunto que discute,
o autor trata de colocar-se no centro de
toda uma discussão que já vai longe - e atitude mais
etnocêntrica, ou egocêntrica, não há.
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