O Plano Real e outros planos

(Publicado em O Estado de São Paulo. 12 de julho de 2024)

Meio de penetra, também participo da festa dos 30 anos do Real,  como responsável que fui, na presidência do IBGE, por cuidar da credibilidade dos  índices de preços da nova moeda. Apesar das turbulência desde então, os resultados principais do Real ainda persistem, como o controle da inflação, o fortalecimento das instituições financeiras e a abertura da economia. Duas explicações principais têm sido oferecidas para seu sucesso: a qualidade técnica dos economistas responsáveis e a liderança política de Fernando Henrique Cardoso, que fez com que o Congresso aprovasse as reformas necessárias para que o projeto ficasse de pé. Contribuiu também o sentimento de urgência criado pela inflação galopante, que facilitou sua aprovação.

De lá para cá, muitos outros planos foram instituídos por lei, como os de educação, cultura, mudança do clima, saneamento básico, segurança alimentar, igualdade racial, juventude, política de mulheres, direitos humanos,  defesa e combate à corrupção e ciência, tecnologia e inovação. Nenhum deles apresentou resultados de magnitude semelhante ao do Plano Real e alguns só ficaram no papel, com destaque para o fracassado Plano Nacional de Educação de 2014,  que agora se pretende reeditar. A pergunta que fica é porque o Plano Real deu tão certo e os demais nem tanto.

Parte da resposta é que o Real, na verdade, nunca foi um plano. A Medida Provisória que criou o Real, de 1994, falava de “programa de estabilização econômica”. Na de junho de 1995, convertida na lei 9.069, a expressão “Plano Real” aparecia na ementa, mas não no texto da lei, que trata da reorganização do sistema monetário, tributação, dívida pública e correção monetária. Não é, apenas, uma questão de palavras. O Real não foi um plano como se entende usualmente, com metas detalhadas a serem cumpridas em determinados prazos, mas um projeto de reforma institucional, alterando as regras de funcionamento de uma série de mecanismos básicos da economia. Era um projeto  de inspiração social-democrata, que buscava organizar o espaço para uma economia aberta, competitiva e mais igualitária, colocando limites ao uso abusivo do poder do Estado e de setores privilegiados na apropriação dos recursos da sociedade,  através do endividamento e emissão de moedas sem limites. Para isto, era necessário equilibrar as contas públicas, fechar ou privatizar empresas estatais ineficientes e corrigir distorções tributárias. Não era um projeto de estado mínimo, já que não se questionava a importância de investimentos públicos em áreas como educação, saúde, proteção social,  segurança pública, infraestrutura e modernização econômica. Mas o principal benefício que se esperava de imediato era a melhoria da renda da população através do fim do imposto inflacionário, como de fato ocorreu.

A estabilidade da economia era condição para as outras políticas públicas, mas não suficiente. Esgotados os benefícios iniciais do Real, as agendas sociais impulsionadas pelo Partido dos Trabalhadores e diferentes movimentos sociais foram ganhando força, resultando no sucesso inicial dos governos do PT, mas também em sua frustração com a crise que culmina em 2015, da qual ainda não saímos.  Parte desta crise se explica, certamente, pelo fim do boom das commodities e a desorganização da economia provocada pela “nova matriz econômica”; mas também pela proliferação de planos que consistiam, sobretudo, em metas físicas que resultavam, quase sempre, em crescimento da burocracia, engessamento dos gastos e corrupção, sem benefícios mensuráveis para a sociedade.

São três, pelo menos, as diferenças entre a maioria destes planos e o Real. A primeira é o contraste entre reformas institucionais, que alteram as regras do jogo e o comportamento de diferentes setores da sociedade, e o planejamento de tipo “soviético”, baseado em metas rígidas. A segunda é a existência de equipes técnicas competentes e amadurecidas, capazes de encaminhar soluções baseadas no estado da arte em suas áreas de atuação; e a terceira é a presença de liderança política capaz de negociar com diferentes setores da sociedade, incluindo o legislativo, as condições para que a equipe técnica possa trabalhar. Muitas dos planos instituídos  desde o Real ficaram pelo caminho porque estavam baseados em diagnósticos equivocados, ou foram propostos e administrados por grupos de interesse ou seus “representantes” em que predominam, geralmente, os setores mais organizados e seus parceiros na burocracia pública (os “anéis burocráticos” descritos por Fernando Henrique Cardoso em um livro de 1975), ou não contavam com o apoio de uma liderança política convencida de sua importância e com legitimidade para defendê-los.

Políticas públicas, tanto quanto as políticas econômicas, precisam, para resultar, de especialistas competentes que não errem em seu diagnóstico e formulação,  assim como apoio, legitimidade e engenhosidade política para serem implementadas. São as mudanças institucionais e de cultura, e não planos com metas ou orçamentos detalhados, que, a longo prazo, podem fazer a diferença. Esta me parece ser a grande lição do Plano Real.

Simon Schwartzman é sociólogo e autor de Falso Mineiro: memórias da política, ciência, educação e sociedade (Intrínseca /  Selo Real, 2021)

O Plano Real e outros planos

(Publicado em O Estado de São Paulo, 12 de julho de 2024)

Meio de penetra, também participo da festa dos 30 anos do Real,  como responsável que fui, na presidência do IBGE, por cuidar da credibilidade dos  índices de preços da nova moeda. Apesar das turbulência desde então, os resultados principais do Real ainda persistem, como o controle da inflação, o fortalecimento das instituições financeiras e a abertura da economia. Duas explicações principais têm sido oferecidas para seu sucesso: a qualidade técnica dos economistas responsáveis e a liderança política de Fernando Henrique Cardoso, que fez com que o Congresso aprovasse as reformas necessárias para que o projeto ficasse de pé. Contribuiu também o sentimento de urgência criado pela inflação galopante, que facilitou sua aprovação.

De lá para cá, muitos outros planos foram instituídos por lei, como os de educação, cultura, mudança do clima, saneamento básico, segurança alimentar, igualdade racial, juventude, política de mulheres, direitos humanos,  defesa e combate à corrupção e ciência, tecnologia e inovação. Nenhum deles apresentou resultados de magnitude semelhante ao do Plano Real e alguns só ficaram no papel, com destaque para o fracassado Plano Nacional de Educação de 2014,  que agora se pretende reeditar. A pergunta que fica é porque o Plano Real deu tão certo e os demais nem tanto.

Parte da resposta é que o Real, na verdade, nunca foi um plano. A Medida Provisória que criou o Real, de 1994, falava de “programa de estabilização econômica”. Na de junho de 1995, convertida na lei 9.069, a expressão “Plano Real” aparecia na ementa, mas não no texto da lei, que trata da reorganização do sistema monetário, tributação, dívida pública e correção monetária. Não é, apenas, uma questão de palavras. O Real não foi um plano como se entende usualmente, com metas detalhadas a serem cumpridas em determinados prazos, mas um projeto de reforma institucional, alterando as regras de funcionamento de uma série de mecanismos básicos da economia. Era um projeto  de inspiração social-democrata, que buscava organizar o espaço para uma economia aberta, competitiva e mais igualitária, colocando limites ao uso abusivo do poder do Estado e de setores privilegiados na apropriação dos recursos da sociedade,  através do endividamento e emissão de moedas sem limites. Para isto, era necessário equilibrar as contas públicas, fechar ou privatizar empresas estatais ineficientes e corrigir distorções tributárias. Não era um projeto de estado mínimo, já que não se questionava a importância de investimentos públicos em áreas como educação, saúde, proteção social,  segurança pública, infraestrutura e modernização econômica. Mas o principal benefício que se esperava de imediato era a melhoria da renda da população através do fim do imposto inflacionário, como de fato ocorreu.

A estabilidade da economia era condição para as outras políticas públicas, mas não suficiente. Esgotados os benefícios iniciais do Real, as agendas sociais impulsionadas pelo Partido dos Trabalhadores e diferentes movimentos sociais foram ganhando força, resultando no sucesso inicial dos governos do PT, mas também em sua frustração com a crise que culmina em 2015, da qual ainda não saímos.  Parte desta crise se explica, certamente, pelo fim do boom das commodities e a desorganização da economia provocada pela “nova matriz econômica”; mas também pela proliferação de planos que consistiam, sobretudo, em metas físicas que resultavam, quase sempre, em crescimento da burocracia, engessamento dos gastos e corrupção, sem benefícios mensuráveis para a sociedade.

São três, pelo menos, as diferenças entre a maioria destes planos e o Real. A primeira é o contraste entre reformas institucionais, que alteram as regras do jogo e o comportamento de diferentes setores da sociedade, e o planejamento de tipo “soviético”, baseado em metas rígidas. A segunda é a existência de equipes técnicas competentes e amadurecidas, capazes de encaminhar soluções baseadas no estado da arte em suas áreas de atuação; e a terceira é a presença de liderança política capaz de negociar com diferentes setores da sociedade, incluindo o legislativo, as condições para que a equipe técnica possa trabalhar. Muitas dos planos instituídos  desde o Real ficaram pelo caminho porque estavam baseados em diagnósticos equivocados, ou foram propostos e administrados por grupos de interesse ou seus “representantes” em que predominam, geralmente, os setores mais organizados e seus parceiros na burocracia pública (os “anéis burocráticos” descritos por Fernando Henrique Cardoso em um livro de 1975), ou não contavam com o apoio de uma liderança política convencida de sua importância e com legitimidade para defendê-los.

Políticas públicas, tanto quanto as políticas econômicas, precisam, para resultar, de especialistas competentes que não errem em seu diagnóstico e formulação,  assim como apoio, legitimidade e engenhosidade política para serem implementadas. São as mudanças institucionais e de cultura, e não planos com metas ou orçamentos detalhados, que, a longo prazo, podem fazer a diferença. Esta me parece ser a grande lição do Plano Real.

Simon Schwartzman é sociólogo e autor de Falso Mineiro: memórias da política, ciência, educação e sociedade (Intrínseca /  Selo Real, 2021)

Cem novos institutos federais?

(Publicado em O Estado de São Paulo, 14 de junho de 2024)

No final de março, o Ministério da Educação anunciou a criação de cem novos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. Alguns jornais saudaram a iniciativa, dizendo que, finalmente, o governo estava dando atenção à educação técnica e profissional. Fiquei sem entender: como é que o governo federal, que mal consegue manter suas universidades e institutos funcionando, vai criar mais cem? E será que, criando, vai fazer diferença?   

Estes institutos foram criados em 2008, a partir de uma rede de Centros Federais de Educação Técnica de nível médio que existiam em vários Estados. Seus professores e funcionários foram equiparados aos das universidades federais, novos cargos foram criados, e, além de cursos técnicos de nível médio, eles passaram também a poder dar cursos superiores e de pós-graduação.   Hoje, são 39 institutos e dois que continuam como CEFETs. É difícil saber exatamente o que fazem, os dados são escassos e confusos, mas, pelas estatísticas do INEP, eles têm cerca de 230 mil alunos em cursos de graduação e 320 mil na educação média, matriculados em cerca de 600 locais diferentes, a grande maioria em cursos integrados com o ensino profissional. Além disto, têm cerca de 4 mil estudantes em cursos de pós-graduação, quase todos de mestrado. O projeto do MEC não é, na verdade, de criar cem institutos, mas cem novos locais para os cursos de ensino médio, o que poderia significar cerca de 50 mil matrículas adicionais.

Para entrar nestes cursos médios, é preciso passar por um processo seletivo, e as vantagens para os que conseguem são grandes. Eles estudam em tempo integral e os colegas são mais qualificados, criando um ambiente mais estimulante. Os professores também são mais qualificados, ganham mais do que os das redes estaduais, o número de alunos por professor é menor, e as instalações são melhores.  E, quando fazem o ENEM, os formados entram nas cotas de estudantes das redes públicas, ficando nos primeiros lugares. Esses cursos têm sido propostos como o modelo ideal para o ensino técnico médio no Brasil, mas os alunos, por serem selecionados e estudarem em escolas de qualidade,  tratam de ingressar em universidades em vez de se profissionalizarem como técnicos.

Para os cursos superiores, seria de se esperar que os alunos estivessem sobretudo em cursos  aplicados de curta duração(o que no Brasil se chama de “cursos tecnológicos”).  Isto ocorre, mas bem menos do que seria de se esperar: 26% comparado com 30% em cursos de formação de professores (licenciaturas) e 44% em cursos tradicionais de bacharelado. Das áreas de estudo, um terço está em educação, 44% em cursos de engenharia e computação, e os demais dispersos em outras áreas.  Estes institutos sofrem com uma praga conhecida que afeta o ensino profissional em muitas partes, a pressão para se tornarem o mais parecido possível com universidades, à custa das missões originais para as quais teriam sido criados.

O caso dos institutos é semelhante ao das universidades federais.  Começa-se com um modelo idealizado, caro e em pequena escala, e depois não se consegue expandir, seja pelas limitações do modelo, que se desvirtua, seja pela falta de recursos. Os institutos federais são uma gota d’água: cerca de 2 a 3% das matrículas, tanto do ensino médio quanto do ensino superior e tecnológico.  Daria para aumentar? Os Institutos Federais custaram, em 2022, cerca de 18 bilhões de reais, comparado com os 56 bilhões das demais 80 instituições superiores federais. A quase totalidade destes custos vai para pessoal, sobrando quase nada para investimentos e custeio.

 Nos cursos de graduação, partiu-se com a ideia de uma universidade pública, universal, gratuita e fundada na pesquisa. Hoje, quase 80% das matrículas do ensino superior estão no setor privado, e poucas universidades públicas conseguem manter atividades de pesquisa mais significativa. A educação superior tecnológica vem se expandindo, mas sobretudo no setor privado. Na pós-graduação, criou-se um sistema controlado  e subsidiado para formar mestres e doutores, mas a maioria de seus estudantes não têm interesse em fazer carreira  em pesquisa, as matrículas estão caindo, e a pós-graduação lato senso é muito maior, desregulada e não se sabe bem o que faz.

A questão central é qual o papel adequado para o governo federal e dos estados quando os gastos públicos não têm mais como expandir e as demandas e necessidades da sociedade vão muito além do que os governos podem proporcionar. A criação de 10 novos campi universitários no modelo tradicional, anunciada esta semana, assim como a restrições recentes aos cursos de educação à distância, mostra que o governo federal ainda não entendeu o problema. Melhorar o papel regulatório, estimular boas práticas, concentrar os recursos existentes em atividades estratégicas de relevância, qualidade e equidade, e estimular estados e municípios e o setor privado a canalizar melhor suas energias, parece fazer mais sentido do que insistir em, simplesmente, fazer mais do mesmo.

Estadão: Os cortes na FAPESP

(Transcrevo abaixo o editorial do jornal O Estado de São Paulo, “Notas & Informações”, 12 de maio de 2024)

” O governo paulista ensaia medidas para realocar recursos das instituições de pesquisa e ensino superior. No projeto da Lei Orçamentária Anual de 2025, primeiro o governo previu redistribuir uma parcela de recursos da USP, Unicamp e Unesp para outras instituições. Logo depois recuou. Mas o projeto prevê a possibilidade de uma redução de até 30% do orçamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Esforços para racionalizar e otimizar a dotação de recursos são legítimos. Mas não é assim que se faz, com tesouradas abruptas, sem articulação com as partes interessadas nem um planejamento de longo prazo. Tanto mais numa área a um tempo tão estratégica e tão vulnerável quanto a formação e pesquisa universitárias.

Em comparação ao resto do mundo, o sistema paulista está longe de ser ótimo, mas no Brasil ele é, em geral, o melhor. Há décadas USP, Unicamp e Unesp são as universidades brasileiras mais bem posicionadas em rankings internacionais, e o apoio da Fapesp impulsiona o Estado na vanguarda das pesquisas nacionais.

É possível melhorar? Sem dúvida. O sociólogo Simon Schwartzman, um dos pesquisadores sobre educação mais qualificados do País, há anos apresenta diagnósticos e propostas de modernização com base nas melhores práticas internacionais.

Em artigo no Estadão, Schwartzman demonstra como o sistema atual é falho tanto do ponto de vista da cobertura e equidade quanto, na outra ponta, na manutenção e garantia de excelência. O ensino estadual público é o mais qualificado, mas só atende 11% dos alunos da graduação. As políticas de ações afirmativas introduzem um fragmento diminuto de alunos vulneráveis nesse sistema de elite. O resto é obrigado a pagar por uma formação de qualidade duvidosa em universidades privadas. Assim, a ideia de investir em outras instituições acessíveis e eficientes não é impertinente. Ao mesmo tempo, o modelo do funcionalismo público vigente nas universidades públicas perpetua uma burocracia rígida que dificulta alocação mais ágil de recursos e mecanismos meritocráticos de incentivo, necessários à formação e pesquisa de alto nível.

Schwartzman sugere três aspectos cruciais para se atingir um sistema a um tempo mais equitativo e excelente: um plano diretor prevendo parcerias com outros níveis de governo e o setor privado; um mecanismo de elaboração de orçamentos plurianuais que dê previsibilidade de recursos básicos, mas também preveja alocações condicionadas a metas de desempenho; e o fortalecimento da autonomia universitária, sobretudo na flexibilidade do uso de recursos e modelos de contratação e remuneração de professores.

São medidas que podem otimizar os recursos públicos aplicados no sistema universitário, gerar novas fontes de receita e eventualmente abrir espaço para realocar recursos em áreas mais vulneráveis, como o Ensino Básico. Mas o caminho para elevar esse sistema de bom para ótimo exige planejamento e reformas. Realocações e cortes abruptos podem até economizar dinheiro no curto prazo, mas têm tudo para causar graves prejuízos no longo prazo.”

Vinculação de recursos e autonomia universitária em São Paulo

(Publicado em O Estado de São Paulo, 10 de maio de 2024)

Desde 1989 que o Estado de São Paulo vincula 9.57% de sua arrecadação do ICMs para suas três universidades, em uma proporção fixa de 5,02% para a USP, 2,34% para a Unesp e 2,19% para a Unicamp. Este ano, o governo do Estado tentou incluir outras instituições estaduais nesta conta, mas voltou atrás depois dos protestos dos reitores. Esta vinculação tem sido defendida como garantia da autonomia financeira contra a instabilidade e as interferências de políticos que afetam, por contraste, as universidades federais.

Muitos dados têm sido apresentados como prova de que a autonomia tem funcionado, como o aumento da produção científica, as posições da USP e Unicamp nos rankings internacionais e a qualidade profissional dos formados pelas principais faculdades. Mas é difícil saber se estes bons resultados se devem à vinculação financeira ou a outros fatores como a disponibilidade de recursos e a maneira pela qual professores e alunos são selecionados, entre os mais qualificados do Estado mais rico do país. E ao lado dos bons resultados, existem outros,  preocupantes, que sugerem que o sistema público paulista não pode continuar acomodado.

O dado mais evidente, que mereceria maior atenção, é a cobertura extremamente reduzida do setor público estadual. No Brasil como um todo, em 2022, 78% da matrícula no ensino superior estava em instituições privadas. No Estado de São Paulo, esta proporção sobe para 84.3%. O setor estadual público só atende a 11% dos alunos de graduação, sendo 120 mil nas três universidades, para uma matrícula total de 2.5 milhões no Estado. O setor federal, menos de 3%. Isto é o resultado de uma política deliberada, de manter um sistema público pequeno e elitista, deixando o setor privado lidar com o resto? Não parece, dada a preocupação dos últimos anos com as políticas de ação afirmativa. Não seria mais justo, socialmente, investir mais dinheiro público em instituições de mais fácil acesso e mais eficientes e baratas, como as do sistema Paula Souza, a Universidade Virtual e em parcerias, proporcionando formação mais prática, gratuita e de boa qualidade para mais gente? E como combinar isto com a manutenção de qualidade da pesquisa e da formação de alto nível dos cursos mais tradicionais?

Se o sistema atual falha do ponto de vista da cobertura e equidade, ele também tem problemas na outra ponta, de manutenção e garantia da excelência. O processo de concursos públicos para escolha de professores é formal, burocrático e dificulta que as universidades recrutem professores com perfis adequados para suas necessidades. A rigidez e padronização das carreiras e salários faz com que muitas áreas não consigam mais competir com o setor privado e instituições internacionais pelo talento que seria indispensável  para dar continuidade às pesquisas de ponta e a formação de alto nível de que o país necessita.

Nestas questões, tenho ouvido o argumento de que o ótimo é inimigo do bom, e que é melhor manter a rigidez orçamentária conquistada 35 anos atrás do que abrir o vespeiro de sua revisão anual.  Mas seria lamentável se conformar com a ideia de que instituições com tantas qualidades não deveriam buscar novos caminhos. A reforma tributária, com o fim do ICMS, de qualquer maneira vai forçar uma revisão, e é melhor, para as universidades, sair à frente com novas propostas do que ser atropeladas.

Um novo modelo para o sistema estadual deveria contemplar pelo menos três aspectos.  O primeiro é elaborar um plano diretor que  tome em conta os objetivos  de médio e longo prazo que o setor público deve ter e as parcerias que precisa estabelecer com outros níveis de governo e o setor privado para aumentar a cobertura, a qualidade e as vocações das diferentes instituições na formação profissional, formação para o magistério, pesquisa e cultura. Deve ser um documento conciso, construído em diálogo com diferentes setores, que estabeleça um consenso básico sobre o que o Estado deve fazer. Há anos que o conhecido sistema da California, com seus community colleges, universidades estaduais de ensino e a pós-graduação e pesquisa concentrados na Universidade da Califórnia,  tem sido citado como um modelo que o Estado poderia adotar, e ainda pode servir de inspiração. O segundo é criar um mecanismo regular de elaboração de orçamentos plurianuais  com participantes e processos definidos que possa garantir estabilidade de recursos e espaço para aperfeiçoamentos e mudanças de rumos com metas  e indicadores de resultados conforme o plano diretor, e não, somente, das antigas vinculações. E terceiro, fortalecer ainda mais a autonomia universitária, sobretudo no que se refere à flexibilidade no uso de recursos, processos administrativos e  políticas de recrutamento, contratação e remuneração de professores, que não podem continuar a ser rígidos e idênticos para todas as instituições e áreas de atuação. 

Com isto, o sistema público paulista poderia de fato se tornar mais funcional e equitativo, e suas universidades poderiam finalmente entrar para o século 21, como todos desejamos.

A inflação de diplomas – 2

Meu artigo recente sobre o crescente descompasso entre a educação superior e o mercado de trabalho no Brasil provocou alguns comentários sobre aspectos importantes do problema que eu não teria como tratar nos limites de espaço de um artigo de jornal. Antônio Augusto Prates, meu colega sociólogo da UFMG, escreve que é o prestígio do diploma, mais do que a busca de qualificação profissional, que tem motivado tanto a procura por educação superior quanto as políticas públicas para o setor. Segundo ele,  “as pessoas estão dispostas a pagar pelas deficiências de formação profissional em troca do acesso à graus superiores na escala de prestígio social. Nesse caso é o mercado de bens simbólicos que afeta sobremaneira as decisões políticas sobre a expansão do ensino superior”.  Eduardo Oliveira Beltrame, cientista catarinense que hoje trabalha no Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), menciona a referência que faço aos aspectos mais gerais da educação, como formação cultural, valores e capacidade de aprender, e  diz que,  ‘dada a aceleração das transformações pelas quais a sociedade e mundo passam nos últimos 150 anos, mas sobretudo nas últimas décadas (principalmente mudanças culturais, tecnológicas, ambientais, e os modos de vida decorrentes da nossa avassaladora urbanização), eu penso que estes outros aspectos da educação que transcendem a questão do mercado de trabalho são na verdade os mais importantes”.  E o sociólogo José Pastore, especialista em mercado de trabalho, em comentário enviado ao jornal O Estado de São Paulo,  chama a atenção para o fato de que, no Brasil, a grande maioria das ocupações não requer muita educação. “São ocupações simples, rudimentares, de baixos salários e muita rotatividade: balconistas, ajudantes, garçons, domésticas…”  A educação poderia ajudar mais se os empregos fossem de melhor qualidade, diz ele, mas “isso não mudará de repente porque é reflexo de nossa histórica estrutura de produção”.

Beltrame também pergunta por referências que tratam do tema da educação em sentido mais amplo, que vai além do mercado de trabalho. É importante, aqui, distinguir a educação básica, cujo objetivo é formação geral, da educação superior, em que o tema do mercado de trabalho é mais central, embora não seja o único. Participei alguns anos atrás de um grupo de trabalho de um projeto denominado “International Panel for Social Progress” que preparou um documento que apontava para quatro grandes funções da educação, a formação geral e humanística, a formação para a cidadania, a preparação para o mercado de trabalho e a busca de equidade. Existe uma tradução do texto para o português, e é uma tentativa de dar um panorama bem abrangente do tema, nos diferentes níveis e contextos (Spiel and Schwartzman 2018a; Spiel and Schwartzman 2018b). Sobre a educação superior e sua relação com o mercado de trabalho, recomendaria a visão comparativa proporcionada por Ulrich Teichler, o decano das pesquisas sobre educação superior, em artigo de 2018, entre outros ((Teichler 2018).

O texto de Teichler é importante pela visão comparativa que trás. É muito diferente falar de educação superior em países em que metade ou mais dos jovens chegam a este nível e em outros em que só uns poucos têm este privilégio; e é muito diferente falar em sistemas em que a educação superior está orientada para a formação geral, como nos “colleges”  ingleses, e outros em que ela está estruturada para proporcionar diplomas profissionais, como na tradição francesa que o Brasil herdou. Em todos eles existe sempre a dimensão  simbólica e de prestígio de que fala Prates, mas existe também a expectativa de que o “status” proporcionado pela educação superior traga outros benefícios, como empregos rentáveis e reconhecimento social.

O modelo de Bologna, adotado hoje pela maioria dos países da Europa Ocidental, consiste em levar a educação geral até os três primeiros anos da educação superior, e só a partir daí abrir o leque para a especialização profissional, através de mestrados e cursos mais avançados. O sistema de “colleges”, de educação geral, que o modelo de Bologna adota, tem como origem a experiência extremamente elitista das universidades inglesas e americanas de grande prestígio, como Oxford, Cambridge, Havard e Yale, adotado também pelos chamados “liberal arts colleges” como Amherst, Swarthmore e Wellesley nos Estados Unidos, e outros na Inglaterra como London, Birmingham etc.  São cursos para poucos, muito seletivos, e seus alunos têm acesso praticamente garantido a carreiras de alto prestígio e reconhecimento.  Mas não é nada claro que este modelo possa ser universalizado,  como pretende o processo de Bologna. Na Europa, ao lado das carreiras universitárias tradicionais, os países possuem também amplos sistemas de formação profissional, ou vocacional, que já começa no nível médio, e do qual participa a metade ou mais dos jovens. Nos Estados Unidos, boa parte dos jovens vai para os community colleges de dois anos, e não completam os quatro anos de formação geral. Os dados mais recentes, para a população americana entre 25 e 34 anos, mostram que 91% completam o ensino médio, mas só 38% completam o college de 4 anos, que é considerado como um título pré-universitário (“undergraduate”)[1]. Existam algumas tentativas de desenvolver cursos superiores de formação geral no Brasil, os chamados “bacharelados interdisciplinares”, mas são experiências limitadas e que ainda precisam ser melhor avaliadas.

Finalmente, o comentário de Pastore aponta para o fato, mencionado brevemente em meu artigo, de que a educação, sozinha, é incapaz de criar um mercado de trabalho de alta qualidade e produtividade, como supunha a teoria do “capital humano” desenvolvida pelos economistas da educação. Em muitos países, pessoas altamente qualificadas por universidades locais acabam imigrando para países em que o mercado de trabalho é mais atrativo, da mesma maneira que o capital gerado localmente acaba sendo investido no exterior.  A educação é importante, mas não é capaz de, sozinha, compensar pelas políticas econômicas, financeiras e institucionais inadequadas.

Tudo isto leva a questões importantes de como e quanto o país deve investir nos diferentes tipos e níveis educacionais.  Deveria ser claro que prioridade deveria ser o investimento na educação básica de qualidade, mas a pressão por investimentos em educação média e superior é sempre grande, e recentemente o governo anunciou a intenção de criar mais cem institutos federais de tecnologia, que, ao contrário do que se imagina, não formam pessoas com preparação adequada para o mercado de trabalho, e sim licenciados e bacharéis destinados em grande parte ao subemprego, como ocorre com grande parte dos formados no ensino superior tradicional.

Referências

Spiel, Christiane, and Simon Schwartzman. 2018a. “A contribuição da educação para o progresso social.” Ciência & Trópico 42(1):22-88.

—. 2018b. “The contribution of education to social progress.” Pp. 751-76 in Rethinking Society for the 21st Century, edited by International Panel for Social Progress: Cambridge University Press.

Teichler, Ulrich. 2018. “Higher education and graduate employment: Changing conditions and challenges.” International Centre for Higher Education Research: Kassel, Germany:7-33.


[1] https://data.census.gov/table/ACSST1Y2021.S1501?t=Educational+Attainment&g=010XX00US,$0400000&y=2021

Inflação de Diplomas

(Publicado em O Estado de São Paulo, 12 de abril de 2024)

Se há uma quase unanimidade no Brasil é que o país precisa de mais educação, e isto tem justificado um investimento cada vez maior no setor. Entre 2012 e 2023, a proporção de pessoas entre 18  e 40 anos com ensino médio completo ou mais passou de  53% para 71%, e com educação superior, de 11 para 19%. A estimativa é que, em 2018, o dado mais recente que consegui, o país tenha gasto 6.6% do PIB com os alunos da rede pública, dos quais 1.4% no ensino superior. E isto sem contar os gastos com aposentadorias e pensões de professores, bolsas de estudo, além do crédito educativo e Prouni, que beneficiam o ensino privado. É muito ou pouco? Afinal, ainda temos muita gente que não completou o ensino médio, e a educação superior deveria ser para todos. Vamos investir mais? Que tal gastar 10% do PIB, como aprovado, mas nunca cumprido, pelo Plano Nacional de Educação de 2014? Tirando de onde?

Antes de fazer isto, seria interessante refletir sobre um trabalho recente de pesquisadores do IPEA sobre a relação entre a educação e o mercado de trabalho no Brasil[1]. O que eles fizeram foi, com base na Classificação Brasileira de Ocupações, verificar qual o nível educacional requerido para cada uma delas – fundamental, média, superior – e depois, com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE, verificar a proporção de pessoas que estão trabalhando em atividades abaixo, equivalente ou superior à sua formação, entre 2012 e 2022.

Os resultados são impressionantes. Nestes dez anos, a proporção de pessoas sobre-educadas, ou seja, com mais educação do que o requerido pelas ocupações que desempenham, passou de 26% para 37% do total, enquanto a de sub-educados, ou seja, pessoas trabalhando em atividades que requerem mais educação do que as que têm, caiu de 32 para 20%. É um caso claro de inflação educacional, em que se emitem cada vez mais títulos que o mercado de trabalho não tem como absorver. A maior parte dos sobre-ocupados são de nível médio, cerca 50%, mas a proporção entre os de nível superior também é alta,  pouco mais de 30%. Os dados mostram ainda que a grande maioria das ocupações existentes não requer muita educação.  Este quadro praticamente não se alterou nos últimos dez anos, exceto na indústria de transformação de alta tecnologia, em que há uma polarização, com mais trabalhadores de formação superior e de educação fundamental, e menos de educação média. Mas é um setor pequeno, com menos de 5% dos empregos.

Os autores não especulam muito sobre as razões deste quadro, exceto para dizer que ele deve ter sido afetado pelas crises no mercado de trabalho que vêm ocorrendo no Brasil desde 2015. Mas uma lição que podemos tirar é que não basta dar mais educação para que as pessoas se tornem mais produtivas.  Outra possível conclusão seria que se trata de um problema dos conteúdos da educação. Para obter um emprego compatível, não basta ter um diploma de nível médio ou superior, é necessário que este diploma esteja associado às competências que o mercado de trabalho requer. Mas, mesmo que esta associação exista, o mercado de trabalho tem uma lógica que depende de muitos fatores, dentre os quais a disponibilidade de recursos humanos qualificados é somente um – uma condição necessária, mas não suficiente.

A conclusão mais geral é que não faz sentido continuar aumentando os investimentos em educação de forma indiscriminada, isto só produz inflação de diplomas.  Além da grande frustração dos que não conseguem trabalhos condizentes com sua formação, existem os milhões que gastam tempo e dinheiro aprendendo coisas que nunca usam e  logo esquecem, os que abandonam seus cursos antes de terminar, e os que desistem e  saem cedo do mercado de trabalho, sobretudo mulheres.

 Claro que a educação tem outros objetivos além de preparar as pessoas para o trabalho –  formar pessoas mais cultas, mais solidárias, melhores cidadãos, com capacidade de aprender e lidar com uma sociedade em constante transformação. Mas, se as pessoas que se formam, sobretudo em nível superior, não conseguem trabalho compatível com seu nível de formação, e isso vem aumentando, algo está errado.  

Existe uma prioridade clara, que requer investimentos, que é a educação fundamental de qualidade, até os 15 anos de idade. É neste nível também que a questão das desigualdades deve ser enfrentada – não há política de ação afirmativa nem incentivo financeiro que consiga compensar as desigualdades de formação inicial. A partir daí, é necessário abrir espaço para caminhos alternativos, inovações e flexibilidade. A reforma do ensino médio, felizmente salva pelo Congresso em suas ideias centrais, pode contribuir para isto, se bem conduzida. E, no ensino superior e pós-graduação, é importante ser seletivo no uso de recursos públicos,  deixando de subsidiar sem maiores critérios as ilusões do diploma salvador, como se ele pudesse compensar pelas disfunções econômicas e institucionais que mantêm o país no atraso, e os jovens sem poder fazer uso de seu potencial.

___________


[1]Carvalho, Sandro Sacchet, e Maurício Cortez Reis. “Evolução da sobre-educação no mercado de trabalho no Brasil entre 2012 e 2022: primeiros resultados.” Boletim Mercado de Trabalho: Conjuntura e Análise. (IPEA), 2023.

Ênnio Candotti e o Progresso da Ciência

Publicado em O Estado de São Paulo, 8 de março de 2024)

Tempos atrás, se você fosse brilhante e quisesse salvar o mundo, o caminho era se tornar físico.  Assim era e foi o que fez Ênnio Candotti, que nos deixou em dezembro passado. Nascido na Itália, Ênnio chegou no Brasil ainda criança e estudou física na Universidade de São Paulo e depois na Itália, procurando seguir os passos da geração de Marcelo Damy, Mario Schenberg, José Leite Lopes, Sérgio Mascarenhas, Oscar Salla e outros que, na década de 40, trouxeram para o Brasil os conhecimentos e as esperanças que as descobertas dos segredos dos átomos e do universo anunciavam. Ênnio, nos anos mais recentes, foi o fundador e presidente do Museu da Amazônia, depois de ter sido, por quatro vezes, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e criador da revista Ciência Hoje.

Eles eram não  só cientistas, mas intelectuais públicos. Por um lado, ajudavam a desvendar os segredos na natureza, trabalhando nos limites do que o raciocínio matemático, as observações experimentais e a livre troca de ideias entre os pares permitiam. Por outro, acreditavam que, se os mesmos métodos fossem aplicados para produzir riqueza e organizar a sociedade, o futuro estava garantido. Além pesquisar, se valiam das cátedras para difundir suas ideias entre os alunos, escreviam nos jornais e se mobilizavam para que os governos dessem aos cientistas os recursos e a autonomia que precisavam para trabalhar. Em 1948, sessenta cientistas paulistas, em grande parte professores da USP, criaram a SBPC nos moldes da American Association for the Advancement of Science, estabelecida cem anos antes para  “promover a cooperação entre cientistas, defender a liberdade científica, incentivar a responsabilidade científica e apoiar a educação e a divulgação científica para o bem da humanidade”.

Qual era exatamente este papel intelectual não era muito claro. Para muitos, o importante era fortalecer a cultura da ciência, apoiando os cientistas, garantindo a autonomia da pesquisa e fazendo com que o público entendesse e respeitasse o trabalho que faziam. Se todos reconhecessem a importância da ciência, a racionalidade passaria a preponderar sobre a ignorância, novas descobertas trariam benefícios para todos, e este seria o caminho do progresso. Para outros, era necessário ir além, e direcionar a pesquisa para atender às prioridades da economia e sociedade. Para outros ainda, era necessário empreender uma luta política pelo predomínio da razão sobre o obscurantismo, que era também uma luta dos oprimidos contra os opressores.

A SBPC influenciou a criação da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo, em 1962, e durante o governo militar suas reuniões anuais, com milhares de participantes, tinham grande repercussão,  como espaço livre de expressão de ideias que desafiavam o regime. A SBPC era conduzida por cientistas de renome, como Maurício Rocha e Silva, José Goldemberg, Oscar Salla e Mauro Salzano, que davam respaldo a suas atividades. Com a democratização, os cientistas da nova geração começaram a priorizar suas associações especializadas, e a SBPC passou a se dedicar cada vez mais à divulgação científica e temas de política universitária e acadêmica. Ênnio Candotti assumiu a vice-presidência 1985, quando já tinha, na prática, deixado a vida de pesquisador para, a partir daí, se dedicar ao papel de  intelectual público, divulgador e defensor da ciência.

O relativo esvaziamento da SBPC, que também afetou a Academia Brasileira de Ciências no Rio de Janeiro, se explica em parte pelas incertezas que, sobretudo após a segunda guerra, passam a afetar o mundo da ciência. A física trazia a promessa da energia barata e inesgotável, mas seu primeiro grande produto foi a bomba atômica.  As ciências biológicas e agrícolas mostraram como reduzir as epidemias e a fome, mas, em muitas partes do mundo, as pessoas continuam morrendo por desnutrição e falta de tratamento. Os investimentos da pesquisa se concentram cada vez mais em aplicações civis e militares, produzindo conhecimentos que se mantêm em segredo, enquanto a pesquisa aberta, das universidades, tem perdido relevância. E a própria carreira de pesquisador, antes uma vocação de poucos idealistas, se transformou em uma profissão como as outras, pressionada pela lógica de “publicar ou morrer” e afetada pela incertezas  da política.

A pandemia da Covid levou os paradoxos da ciência moderna a seu extremo. Por um lado, a revolução que foi a produção de vacinas usando os conhecimentos mais avançados de engenharia genética; por outro, a grande onda de desconfiança e reação a seu uso, destruindo o consenso quase universal sobre a importância das imunizações. Aqui, como em relação à Amazônia, Ênnio Candotti tinha razão: a ciência é cada vez mais necessária e importante, não há como voltar atrás. Mas hoje sabemos que não basta mais proclamar suas virtudes e falar mal da ignorância, é necessário lidar com coragem com as contradições e paradoxos que ela traz. É isto que, no século 21, as sociedades científicas precisam aprender a fazer.

Sérgio Fausto: confusa teoria anti-ocidental

(Artigo de Sérgio Fausto, publicado em O Estado de São Paulo, 2 de março de 2024)

Nos últimos anos, tornou-se moda atribuir ao Ocidente grande parte dos males que acometem o mundo. A moda tem adeptos sobretudo na esquerda, mas também na extrema direita nacionalista sob influência do Kremlin. Num caso e noutro, o ataque ao Ocidente parte de ângulos opostos, mas converge para um alvo comum.

Aqui me interessa o campo da esquerda. Mal ou bem, com muitas contradições, nele se situaram forças que, desde a Revolução Francesa, impulsionaram conquistas civilizatórias da humanidade. Nele está uma nova geração de ativistas, ainda em formação, com energia para levar adiante, atualizando, o legado de gerações anteriores. Por isso, preocupa ver que ela se encanta com uma confusa ideologia antiocidental, que bateu asas a partir de uma vertente respeitável das ciências humanas: o “decolonialismo”, termo incorporado no Brasil diretamente do inglês e do francês, sem o “s” que permitiria descolonizá-lo.

Para os adeptos do “decolonialismo”, o Ocidente não seria a revolução científica, o Iluminismo, as Revoluções Americana e Francesa, a democracia e os direitos humanos, e sim o colonialismo e a escravidão que, sob novas formas, continuariam a ser os fatores principais da opressão no mundo contemporâneo. Nessa visão binária, o salto científico e tecnológico produzido na Europa a partir dos séculos 16 e 17 é visto como mero instrumento para a expansão brutal do colonialismo. Já o Iluminismo, no século seguinte, é reduzido à condição de ideologia justificadora da opressão colonial, do trabalho escravo e do racismo.

Da Revolução Francesa, os “decolonialistas” destacam seletivamente o restabelecimento da escravidão nas colônias francesas, com Napoleão, em lugar da sua abolição em 1794. A Revolução Americana, mãe das guerras de independência e parteira da primeira República no Novo Mundo, é desvalorizada em seu conjunto pela nódoa da escravidão.

O erro dessa visão é supor que um processo histórico tão complexo e longo quanto a modernidade ocidental possa ser compreendido em bloco e submetido a um juízo moral condenatório com base na ideia de que a “parte boa” nada mais é do que uma ilusão a encobrir a “parte má”, esta sim reveladora da essência opressiva da modernidade ocidental. Trata-se de uma ideia avessa à compreensão das contradições que constituem a realidade social, no passado e no presente.

É verdade – e nisso o “decolonialismo” está coberto de razão – que a Europa se serviu da ciência e da tecnologia para conquistar territórios, submeter e frequentemente escravizar populações autóctones da África, América e Ásia e da distorção das ideias iluministas para justificar o empreendimento colonial, primeiro, a expansão imperialista, depois, e teorias absurdas e abjetas de superioridade racial. Não menos verdadeiro, porém, é que os avanços científicos e tecnológicos e os novos valores da liberdade e da igualdade produzidos no Velho Continente permitiram e impulsionaram conquistas civilizacionais que beneficiaram a humanidade em seu conjunto nos séculos seguintes. E continuam a beneficiá-la.

Os mesmos valores professados de modo seletivo e praticados de maneira excludente, ao início, motivaram e orientaram grande parte das lutas emancipatórias que progressivamente expandiram a esfera dos direitos fundamentais e ampliaram a sua aplicação no transcurso posterior da história. O fato de que a generalização dos valores liberais e democráticos ainda hoje seja parcial é mais uma razão para reafirmá-los, sobretudo num momento histórico em que as forças obscurantistas e reacionárias ganham terreno em todas as partes do planeta.

Sim, Thomas Jefferson foi um senhor de escravos. Mas o Preâmbulo da Declaração da Independência dos Estados Unidos, escrito por ele, abriu um horizonte para lutas emancipatórias que se desdobram até hoje, incluídas as dos grupos (negros e mulheres, em especial) cujos direitos eram então negados. A ideia de que os seres humanos, além de iguais e livres, têm o direito à busca da felicidade (pursuit of happiness) ativou uma revolução silenciosa duradoura contra formas explícitas e implícitas de dominação e cerceamento da subjetividade. Essa concepção dos seres humanos é própria do Iluminismo, impensável fora da sua tradição.

Transformando-se em ideologia, o “decolonialismo” substitui a perspectiva crítica pertinente pela fúria moral condenatória incapaz de separar o joio do trigo. Inadvertidamente, rejuvenesce velhas ideologias anti-imperialistas e autoritárias presentes na esquerda, ao entusiasmar uma nova geração de ativistas de muito valor, mas frágil formação.

O resultado é que parte significativa da esquerda silencia diante das atrocidades cometidas pelo Hamas, hesita em condenar a Rússia na sua guerra de agressão à Ucrânia, dá de ombros diante da diferença crucial, para o mundo, entre dois homens igualmente brancos, héteros e idosos que disputarão a presidência dos Estados Unidos, apoia qualquer iniciativa feita em nome do “Sul Global” e, no Brasil, não compreende que o País é, sim, parte do Ocidente, com as suas marcas próprias e singulares.

A educação superior brasileira à luz da teoria

Apresentação ao Forum da Educação Superior da Academia Brasileira de Ciências e Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, 27 de fevereiro de 2024

Queria agradecer à Academia Brasileira de Ciências e à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência pela oportunidade de abrir este fórum sobre a educação superior Brasileira, com o tema sugerido de “um resgate histórico sobre o ensino superior no Brasil”. Conhecer a história é essencial para compreender o sistema de educação superior que temos hoje, não somente para recuperar valores e experiências passadas que possam servir de ensinamentos, mas sobretudo para entender as concepções e instituições com as quais convivemos muitas vezes sem nos darmos conta de onde vieram, e que poderiam ser diferentes, como de fato são em muitas outras partes do mundo. Com o pouco tempo que me é dado, me pareceu oportuno interpretar esta história à luz de alguns conceitos centrais do campo de estudos sobre educação superior, que aqui estou chamando de “teoria” à falta de melhor termo.

As universidades, como sabemos, datam da Idade Média, mas uma de suas características centrais, no mundo moderno, é o processo de transformação das antigas instituições de elite em amplos sistemas de educação de massas, analisado nos textos clássicos do sociólogo norte-americano Martin S. Trow (Trow 1972; Trow 1973). Trow foi um veterano da Segunda Guerra Mundial, e completou seus estudos superiores graças aos benefícios proporcionados pela legislação que ficou conhecida como “G.I. Bill”, que abriu oportunidades de estudo superior para milhões de ex-soldados americanos como ele. A massificação da educação superior nos Estados Unidos, na verdade, vem do século 19, com a legislação conhecida como a “Morris Act”, de 1862, que levou à criação dos “Land Grant Colleges”, uma grande rede de escolas superiores que se desenvolveram ao lado de instituições tradicionais como Harvard e Princeton, criadas à imagem das universidades inglesas, e outras como a Johns Hopkins, que procurou emular as universidades de pesquisa alemãs.

A experiência americana é importante para nós porque a última reforma do ensino superior brasileiro data de 1968, quando se decide trazer para o país o modelo norte-americano das universidades de pesquisa, em substituição ao antigo modelo de faculdades profissionais criadas pelos portugueses. As antigas faculdades brasileiras tinham por função formar e certificar pessoas para o exercício das profissões de nível superior, como o direito, a medicina e a engenharia, e os professores eram bacharéis que formavam seus alunos à sua imagem e semelhança. No novo formato, os professores universitários deveriam ser doutores pesquisadores, trabalhando em tempo integral, para os quais o ensino e a pesquisa seriam indissolúveis, e que formariam profissionais de alto nível e pesquisadores como eles. Apesar de ter sido criada pelo governo militar, a reforma de 1968 foi em geral bem recebida nos meios acadêmicos brasileiros, porque ela compartilhava muitas das concepções que haviam inspirado a criação da Universidade de São Paulo em 1934 e da Universidade de Brasília em 1962.

Em seus escritos, Martin Trow mostra como os sistemas de educação superior se transformam quando deixam de ser instituições de elite e passam a ser de massa, que atendem a mais de 15% dos jovens, e finalmente universais, quanto atendem à metade ou mais. Nos sistemas de elite, o acesso é limitado a poucos, a principal função é a formação do caráter e a preparação para posições de elite, e existe consenso sobre o papel das universidades na manutenção da hierarquia de conhecimentos e da alta cultura na sociedade. Nos sistemas de massa, o acesso se amplia, a educação superior passa a ser vista como um direito de quem consegue passar pelos processos seletivos, a formação técnica e profissional adquire mais importância, e o predomínio intelectual das antigas elites passa a ser disputado pela pressão dos grupos de interesse das diversas corporações profissionais No sistema universal, a educação superior passa a ser vista como um direito de todos, o peso da meritocracia é disputado, e os critérios de acesso e padrões de qualidade passam a depender das características dos diferentes grupos sociais e das demandas do mercado de trabalho.

A análise de Trow é mais complexa do que isto, e uma das críticas que tem recebido é que ela está baseada sobretudo na experiência inglesa e norte-americana.  Mas a concepção central, de que os sistemas vão se ampliando e se tornando mais complexos e contraditórios, continua válida. É importante notar que, quando o sistema de educação superior se amplia, as antigas universidades não são abolidas, mas se modernizam e passam a coexistir com novas instituições criadas com outros objetivos e por diferentes agentes. Em maior ou menor grau, todas as sociedades modernas em que a educação superior se desenvolveu têm universidades de pesquisa, faculdades para a formação de profissionais liberais, instituições de formação de professores para a educação básica, institutos dedicados à formação de técnicos especializados, colégios de formação geral, e outras dedicadas à educação continuada.  São instituições publicas ou privadas, de orientação leiga ou religiosa, e administradas por governos nacionais, locais, comunidades de diferentes naturezas e  grupos privados.

Quando, em 1968, o Brasil tenta copiar o modelo americano, nosso sistema de educação superior ainda era de elite, com menos de 200 mil estudantes, enquanto o sistema americano já era massificado. Isto, aparentemente, passou desapercebido tanto pelos intelectuais que, no Conselho Federal de Educação, lideraram a reforma de 1968 – Newton Sucupira, Anísio Teixeira, Maurício Rocha e Silva, Valnir Chagas – quanto pelos  consultores americanos trazidos pelo famoso acordo Mec-Usaid, que não atentaram para a grande base do sistema norte-americano formada pelos community colleges e e as faculdades profissionais.

 Mesmo em condições ideais, seria muito difícil transformar as antigas faculdades em universidades de pesquisa. Houve um esforço importante neste sentido,  não só na mudança de legislação, abolindo as cátedras, criando departamentos e institutos, etc., como também com a criação dos programas de pós-graduação e contratação de professores em regime de tempo integral, além dos investimentos em pesquisa que vinham da área de ciência e tecnologia e eram destinados em grande parte aos novos departamentos universitários. Mas, com a expansão da demanda, estas iniciativas foram rapidamente atropeladas por professores temporários que buscavam estabilidade nas universidades públicas, estudantes “excedentes” que passavam nas provas seletivas, mas não conseguiam vagas e uma procura por certificações universitárias que era  muito maior do que as universidades públicas poderiam atender.  O resultado foi que o modelo da universidade da pesquisa ficou inscrito na legislação, que até hoje persiste, com a mantra da “indissolubilidade do ensino, pesquisa e extensão’ escrita na lei, ao mesmo tempo em que, para a sociedade como um todo, ainda predomina a ideia de que as universidades são, sobretudo, coleções de faculdades  destinadas à formação profissional.

No vácuo, o sistema privado expandiu, frustrando as tentativas do governo federal de ajustá-lo às regras da reforma. Hoje, mais de 75% da matrícula do ensino superior brasileiro é privada, e a grande maioria das instituições públicas têm  o formato e os custos das universidades de pesquisa, mas na prática funcionam como as antigas faculdades tradicionais. Com 20% da população entre 18 e 24 matriculada no ensino superior, o Brasil tem hoje um sistema de educação superior de massas, com a diversidade típica para este nível, mas sem uma legislação que reconheça e lide de forma clara com a diversidade e pluralidade institucional (Schwartzman, Silva and Coelho 2021). No papel, é um sistema igualitário, em que todos os títulos são equivalentes, todos os professores são doutores e pesquisadores, e todas as instituições podem dar os títulos que queiram, desde que cumpram os critérios de qualidade, e a universidade é para todos. Na prática, é um sistema profundamente desigual, que ainda exclui 80% dos jovens, em que metade dos alunos nunca terminam seus cursos, e que absorvem um volume crescente de recursos públicos e privados. Comparado com outros países de nível socioeconômico semelhante, o Brasil é o país com uma das menores taxas de matrícula no ensino superior, que tem a maior proporção de estudantes no setor privado,  e em que o custo per capita dos estudantes do setor público é o mais alto. O Brasil tem também um amplo sistema de cursos de pós-graduação altamente subsidiado e regulado com a justificativa de que é o celeiro dos doutores e pesquisadores, quando, em grande parte, se transformou em um nível adicional de formação profissional, compensando as debilidades dos cursos iniciais para uma elite da elite.

O segundo conceito que eu gostaria de trazer é o de capital humano, desenvolvido sobretudo por economistas como Theodore Schultz  e Gary Becker,  (Becker 1962; Becker 1973; Schultz 1961; Schultz 1970) em contraste com as teorias credencialistas de autores como Randall Collins e Pierre Bourdieu (Bourdieu and Passeron 1966; Bourdieu and Passeron 1970; Collins 1979) .   Segundo os primeiros, existe uma forte relação entre educação e desenvolvimento econômico – os países ricos têm populações mais educadas, as pessoas mais educadas ganham mais, e isto justifica que pessoas e governos invistam recursos em educação.  Segundo os outros, o que a educação faz é, sobretudo, reproduzir as desigualdades sociais já existentes, com os filhos dos ricos e mais educados herdando os privilégios dos pais, e as instituições de ensino se dedicando sobretudo a distribuir credenciais que garantem acesso a posições de prestígio, renda  e poder. Para os primeiros, a expansão da educação superior leva a mais igualdade social, criando oportunidades. Para os segundos, seu principal resultado é aumentar a competição por credenciais,  a um custo crescente para todos.

A reforma do ensino superior de 1968 veio acompanhada, sobretudo na década de 70, com transformações no sistema de ciência e tecnologia do país e a criação do sistema de pós-graduação, como parte de um projeto nacionalista de desenvolvimento que ficou conhecido como o “milagre brasileiro”. Foi um projeto de curta duração, que entrou em crise juntamente com o regime militar, e desde então a economia tem passado por altos e baixos, ao mesmo tempo em que a sociedade se urbanizava e o sistema educacional se expandia. Neste processo, a demanda por recursos públicos para a educação se ampliou, justificada sobretudo pelas teorias de capital humano. A pós-graduação, concebida como mecanismo de formação de professores doutores para o sistema universitário e pesquisadores de alto nível, se transformou, em parte, em um sistema altamente subsidiado de qualificação profissional e distribuição de credenciais para um segmento de estudantes mais privilegiados do setor público (Schwartzman 2022). O número de pessoas com diplomas superiores aumentou, títulos universitários estão associados a rendas bem mais altas, mas, no agregado, a produtividade da economia não aumentou, e a desigualdade não diminuiu. Ainda que os dados sejam precários, existe a percepção que grande parte dos cursos superiores agregam pouco a seus alunos em termos de competências. Tudo isto faz com que se questione as políticas de subsídio indiscriminado à expansão do ensino superior, que até o final do século XX se limitava ao setor público, mas passou a beneficiar o setor privado através do crédito educativo subsidiado e do Prouni.

Sem entrar no cipoal de dados e teorias em apoio a cada um dos lados, é possível observar que os dois processos coexistem em diferentes graus. Difícil saber se a galinha ou o ovo vem primeiro, mas, quando a população se urbaniza, a economia cresce, o consumo e os serviços se ampliam, a necessidade de pessoas qualificadas aumenta, e a educação se torna um canal importante de mobilidade e ascensão social.  Se há estagnação, é difícil pensar que a educação, sozinha, possa mudar as coisas, e a distribuição de credenciais tende a predominar sobre a criação de competências e recursos humanos. As teorias de recursos humanos e as do credencialismo, ou da reprodução, têm sido usadas dos debates públicos sobre o financiamento da educação superior, mas podem também servir para desenvolver políticas públicas mais elaboradas que permitam distinguir os investimentos que contribuem mais efetivamente para o desenvolvimento de recursos humanos e equidade e outros que simplesmente alimentam ilusões e subsidiam a reprodução da desigualdade social.

Isto nos permite introduzir um terceiro conceito, que é  do academic drift,  ou viés acadêmico, que não está associado a nenhum autor específico, mas que está muito presente sobretudo na discussão europeia sobre ensino técnico e profissional (Harwood 2010; Kyvik 2007; Neave 1979). O termo descreve a tendência de instituições de ensino de orientação prática e aplicada em adotar as características próprias de instituições voltadas à ao conhecimento científico e de pesquisa. É um movimento contrário ao da diferenciação institucional descrita por Martin Trow. Na Europa, o exemplo mais conhecido é o da transformação das antigas escolas politécnicas em universidades, como no Reino Unido. Na raiz desta tendência está a hierarquia de prestígio e reconhecimento que ocorre nos sistemas de ensino, descrito pelas teorias credencialistas, que faz com que as instituições universitárias tenham mais recursos e os diplomas universitários sejam também mais valorizados no mercado de trabalho. No Brasil, as antigas Faculdades de Filosofia foram inicialmente concebidas como instituições de formação de professores para o ensino médio, tal como pretendido por um dos fundadores da Universidade de São Paulo, Fernando de Azevedo. Mas terminaram sendo em parte capturadas pelos professores que almejavam o status mais prestigioso de cientistas, o que explica o lugar secundário que as licenciaturas para a formação de professores ocupam hoje nas universidades públicas. O exemplo recente mais notório é o do sistema de Institutos Federais, que se originaram de escolas técnicas de nível médio e hoje desenvolvem cursos de bacharelado, licenciaturas e pós-graduação com pouca ênfase na formação tecnológica. Um outro exemplo de academic drift é a transformação de profissões técnicas de nível médio ou pós-secundário, como por exemplo a enfermagem ou o serviço social, em profissões de nível superior, com seus próprios cursos de pós-graduação, sociedades científicas e revistas especializadas. Faz parte da mesma lógica a resistência  à diversificação do ensino médio e expansão da educação técnica (Schwartzman 2011a). Em sociedades mais complexas, esta suposta hierarquia entre a cultura universitária e a formação prática é menos acentuada, e a produção de conhecimentos e formação profissional se dá de forma mais descentralizada (Gibbons et al. 1994). No caso do Brasil, no entanto, como o sistema educacional cresceu mais rapidamente do que a economia, existe uma forte pressão para cima que acaba colocando a todos na média, e dificulta a valorização da especialização institucional e divisão do trabalho. O sistema de avaliação da educação superior brasileira, o SINAES, criado em 2004, ao colocar todos os cursos e instituições em um “ranking” único, contribui para fortalecer esta tendência (Schwartzman 2011b).

O último conceito que gostaria de trazer é o do “triângulo de Clark”, proposto pelo sociólogo norte-americano Burton C. Clark (Clark 1979; Clark 1983), que tem a ver com a maneira pela qual os sistemas de educação superior são coordenados.  Segundo ele, existem três polos que atuam em graus diferentes em todos os sistemas, o Estado, o mercado e a comunidade acadêmica (que ele chama também de “oligarquia”). A universidade clássica alemã talvez seja o melhor exemplo da parceria entre estado e oligarquia, com pouco espaço para o mercado. A França talvez seja o melhor exemplo de preponderância do Estado, enquanto nos Estados Unidos há forte preponderância do mercado. É fácil ver que cada um destes polos traz maneiras próprias de gerir as instituições de ensino, mais formais e burocráticas quando pelo Estado, com mais peso para as comunidades acadêmicas e profissionais quando pelas oligarquias, e mais empresariais quando pelo mercado.  No caso do Brasil, existe uma constante competição e acomodação entre os três polos, com o setor privado fortemente orientado pelo mercado, o setor público fortemente controlado pela burocracia governamental, as instituições mais intensivas em pesquisa com presença mais marcante das oligarquias acadêmicas, e as demais instituições públicas com forte presença das corporações profissionais.

Cada país é único, mas a educação superior em praticamente todos os países atuais se organizou conforme os modelos clássicos da Europa Ocidental e Estados Unidos, descritos na obra clássica de Joseph Bem-David  (Ben-David 1977), e cresceu e se diferenciou conforme a sequência descrita por Trow. O entendimento da história da educação brasileira, e sua situação atual, têm muito a ganhar de uma perspectiva teórica que contempla o processo de diferenciação descrito por Martin Trow, as tensões entre os papéis de formação de capital humano e credencialismo, as pressões trazidas pelo viés acadêmico que afeta as instituições de ensino e as profissões, e a competição entre formas e culturas diferentes de coordenação institucional descritas no triângulo de Clark.  São temas amplos, que afetam o ensino superior de formas diferentes em cada lugar, e que ajudam a pensar sobre o destino que queremos dar à educação superior no país.

Referências

Becker, G. 1962. “Investment in Human Capital: A Theoretical Analysis.” The Journal of Political Economy 70(5):9-49.

Becker, Gary Stanley. 1973. Human capital -A Theoretical and Empirical Analysis, with Special Reference to Education. Chicago and London: The University of Chicago Press.

Ben-David, Joseph. 1977. Centers of learning : Britain, France, Germany, United States : an essay. New York: McGraw-Hill.

Bourdieu, Pierre, and Jean Claude Passeron. 1966. Les Héritiers, les étudiants et la culture. Paris,: éditions de Minuit.

—. 1970. La reproduction; éléments pour une théorie du système d’enseignement. [Paris]: éditions de Minuit.

Clark, Burton R. 1979. “The many pathways of academic coordination.” Higher Education 8(3):251-67.

—. 1983. The higher education system academic organization in cross-national perspective. Berkeley: University of California Press.

Collins, Randall. 1979. The credential society. New York: Academic Press.

Gibbons, Michael, Martin Trow, Peter Scott, Simon Schwartzman, Helga Nowotny, and Camille Limoges. 1994. The new production of knowledge – the dynamics of science and research in contemporary societies. London, Thousand Oaks, California: Sage Publications.

Harwood, Jonathan. 2010. “Understanding academic drift: On the institutional dynamics of higher technical and professional education.” Minerva 48(4):413-27.

Kyvik, Svein. 2007. “Academic drift: a reinterpretation.” Pp. 333-38 in Towards a cartography of higher education policy change: A Festschrift in Honour of Guy Neave, edited by J. Enders and F. van Vught. Enschede: Center for Higher Education Policy Studies.

Neave, Guy. 1979. “Academic drift: Some views from Europe.” Studies in Higher Education 4(2):143-59.

Schultz, Theodore W. 1961. “Investment in human capital.” The American Economic Review 51(1):1-17.

Schultz, Theodore William. 1970. Investment in human capital; the role of education and of research. New York,: Free Press.

Schwartzman, Simon. 2011a. “O Viés Acadêmico na Educação Brasileira.” Pp. 254-69 in Brasil: A Nova Agenda Social, edited by Edmar L. Bacha and Simon Schwartzman. Rio de Janeiro: LTC.

—. 2011b. “Para além do SINAES.” in VI reunião da Associação Brasileira de Avaliação Educacional, Mesa Redonda sobre “Para além do SINAES: quais as novas possibilidades de avaliação da educação superior?”. Fortaleza.

—. 2022. “Pesquisa e Pós-Graduação no Brasil: duas faces da mesma moeda?Estudos Avançados 36(14):227-54

Schwartzman, Simon, Roberto Lobo Silva, and Rooney R.A. Coelho. 2021. “Por uma tipologia do ensino superior brasileiro: teste de conceito.” Estudos Avançados 35:153-86.

Trow, Martin. 1972. “The expansion and transformation of higher education.” International Review of Education:61-84.

—. 1973. Problems in the transition from elite to mass higher education. Berkeley, CA: Carnegie Commission on Higher Education.

WP Twitter Auto Publish Powered By : XYZScripts.com
Wordpress Social Share Plugin powered by Ultimatelysocial