A interpretação de André Lara Resende sobre as causas do mal estar contemporâneo recebeu algumas críticas, entre as quais a do economista Samuel Pessoa, que transcrevo a seguir:
Simon,
Há três pontos do texto de André que discordo.
Primeiro é considerar que o nacional desenvolvimentismo era “um projeto que combina uma rede de proteção social com a industrialização forçada.” Poderia ser isto na legislação mas certamente não foi isto na prática. Ao longo dos anos 30 até o final dos anos 70 os gastos do Estado brasileiro com as rubricas sociais eram muito pequenos. Não é possível afirmar que um Estado que aceitava taxas líquidas de matrículas de 40% a 30% no ensino fundamental tinha alguma rede de proteção social. Simplesmente não consigo enxergar qualquer rede de proteção social minimamente abrangente antes da redemocratização. A construção de um Estado de bem estar social é um legado da constituição cidadã.
Este ponto é importante pois somente com ele nós entenderemos o papel profundo e essencial e importante que teve a redemocratização no desenho de nossa instituições atuais. Parece-me que André não consegue enxergar esta profunda transformação que ocorreu por aqui depois que nós nos tornamos urbanos e que todos os brasileiros, inclusive os analfabetos (este ponto é muito importante), passaram a votar.
Confesso que quando leio André escrever que o Estado nacional desenvolvimentista “combina rede de proteção social” pensando nas cinco décadas de 30 até 70 lembro-me de minha avó triste com a queda da qualidade educação pública e dos hospitais públicos. Ela não tinha a menor ideia que provavelmente menos de 2% da população era atendida…
Minha segunda discordância refere-se ao parágrafo: “Apesar de extrair da sociedade mais de um terço da renda nacional, o Estado perdeu a capacidade de realizar seu projeto. Não o consegue entregar porque, apesar de arrecadar 36% da renda nacional, investe menos de 7% do que arrecada, ou seja, menos de 3% da renda nacional. Para onde vão os outros 93% dos quase 40% da renda que extrai da sociedade? Parte, para a rede de proteção e assistência social, que se expandiu muito além do mercado de trabalho organizado, mas, sobretudo, para sua própria operação. O Estado brasileiro tornou-se um sorvedouro de recursos, cujo principal objetivo é financiar a si mesmo. Os sinais dessa situação estão tão evidentes, que não é preciso conhecer e analisar os números. O Executivo, com 39 ministérios ausentes e inoperantes; o Legislativo, do qual só se tem más notícias e frustrações; o Judiciário pomposo e exasperadoramente lento.”
Tenho duas discordâncias com relação ao diagnóstico acima. A primeira é que não é verdade de que a maior parte da receita do Estado vai “sobretudo para sua própria operação.” Esta afirmação vai ao encontro das ruas quando estas afirmam que o combate à corrupção e a redução dos desperdícios liberaria recursos para melhorar a qualidade da saúde e da educação. Não concordo com esta afirmação pois, parece-me que não temos no Brasil funcionários públicos em excesso e também, apesar dos salários serem maiores do que a média paga pelo setor privado, não explica o problema. Os gastos excessivos de nosso Estado devem-se à enorme quantidade de benefícios que nosso Estado, por meio do Congresso Nacional, outorga a indivíduos e às enormes amarras legais que há para melhorar a gestão dos serviços públicos básicos de justiça, segurança, saúde e educação. Estes dois pontos, benefícios e amarras legais, são bem diferentes de “sobretudo para sua própria operação.”
A segunda discordância ao diagnóstico de André é que o diagnóstico trata o Estado como se ele fosse uma entidade apartada da sociedade. Infelizmente este não é o caso. Não existe uma pequena classe (ou estamento) de onde se originam os ocupantes do Estado e o resto da sociedade é constituída de pessoas que trabalham que nem escravos para manter a vaca bem alimentada para que não falte leite em seu úbere de onde se alimenta os membros do estamento. É possível que esta fosse uma descrição correta de nossa sociedade no período colonial, ou no império ou mesmo na república velha, ou até mesmo em períodos mais recentes. Após algumas décadas de redemocratização, em que avançamos muito na construção de um Estado relativamente impessoal no qual a ocupação de vagas no serviço público ocorre por meio de concursos públicos bastante concorridos e eficientes na seleção dos melhores candidatos, me parece que a descrição de André não se sustenta. O mesmo se aplica ao legislativo: temos uma democracia vibrante e muito competitiva com livre entrada no jogo da política. Não há estamento fechado na política. Parece-me que André não se deu conta (e penso que as massas na rua também não se deram conta) é que provavelmente muitos dos que foram às ruas são filhos ou netos de pessoa que recebem pensão por morte vitalícia, por exemplo e outros que recebem e acumulam benefícios. Vários eram funcionários da saúde cuja demanda é que a carreira da saúde se transforme em uma carreira de Estado como as do judiciário (você pode imaginar a consequência desta medida para o gasto público). Outras devem ser filhos de indivíduos com aposentadoria por invalidez ou usufruindo auxílio doença ou seguro desemprego (vários fraudando o programa, isto é, forçando a demissão para ficar algum tempo na informalidade acumulando salário com o benefício). Outros, alguns poucos, devem ter pais que de alguma forma se beneficiam da bolsa empresários do BNDES e alguns outros, também poucos, devem ter pais ou avós que se beneficiam do programa de reparação dos excessos da ditadura (sabemos que apesar da ditadura brasileira ter matado ou torturado uma fração do que se matou ou torturou na Argentina ou no Chile gastamos com reparação um múltiplo do que eles gastam, somente para termos mais um exemplo de como nós mesmos distribuímos de forma pródiga benefícios e vitaliciedades a indivíduos).
Poderia continuar, na linha do texto de Marcos e Zeina, citando os indivíduos que se beneficiam de empréstimos direcionadas com taxas menores do que as de mercado, que são custeados pelos empréstimos mais caros sobre outros ou por poupança forçada (FGTS) sobre outros, pessoas que tiveram uma boa educação no sistema S custeada por impostos sobre a folha de salários de outros ou de pessoas que trabalham no sistema S, etc. Ou seja nós criamos uma infinidades de meias entradas. Minha discordância com André é que é a própria sociedade, e não um estamento apartado da sociedade, que se beneficia das meias entradas. Este erro penso eu é cometido também pelas ruas quando creem que combatendo a corrupção e as ineficiências do Estado sobrará dinheiro para que tenhamos serviços de saúde e educação muito melhores.
O problema é que muita meia entrada introduz ineficiência no sistema e o crescimento se reduz. É isto que Marcos, Zeina e eu chamamos de rent-seeking. Infelizmente não há um grupo pequeno de pessoas, um estamento, que é o beneficiário das transferências e se eu, de alguma forma, conseguir eliminar este grupo (ou os benefícios a este grupo) tudo estaria resolvido. Trata-se de um complexo problema de ação coletiva a lá Mancur Olson. Cada um enxerga o benefício advindo pela sua meia entrada como de primeira ordem. O custo sobre si mesmo e os demais de sua meia entrada é de segunda ordem. Todos querem manter a sua meia entrada e eliminar as dos demais. Um acordo possível, se nós conseguirmos ter instituições de negociação abrangentes, é eliminar as meias entradas de todos. No novo equilíbrio o crescimento se acelera e todos ganhamos. Trata-se de um complexo problema de ação coletiva que, de fato, nossa democracia está resolvendo muito lentamente. Meu otimismo, e neste ponto discordo de Marcos, é que eu avalio que está resolvendo. Acho a regulamentação do fundo de pensão de funcionário público um enorme passo nesta direção. O processo é muito lento e exasperante mas é muito melhor do que tudo que conheço nos quinhentos anos de história dos tristes trópicos.
Esta tendência a criar meia entrada para indivíduos, que desde Faoro sabemos que é constitutiva de nosso Estado, se potencializou com a democratização da sociedade. A democratização pressionou o legislativo a criar meia entrada para todos. De certa forma podemos dizer que a redemocratização tornou a atividade de rent-seeking competitiva e sabemos que rent-seeking competitivo é pior do que monopólio nesta atividade. Evidentemente a democracia também criou fóruns abrangentes de negociação. Se estes funcionarem bem podem contribuir para que a sociedade resolva (ou minore) o problema de ação coletiva associado à meia entrada e acabe reduzindo rent-seeking. Um resultado na direção positiva da redemocratização em reduzir rent-seeking é a intolerância com a inflação. Ou seja, o rent-seeking competitivo pode existir desde que encontre formas mais claras e transparentes (do que a inflação) de financiamento. E quando há formas claras e transparentes de financiamento fica mais fácil resolver o problema da ação coletiva. Este é o motivo que avalio que a agenda mais importante com relação à reforma tributária é elevar a transparência. É a forma de ajudar a sociedade a resolver o problema de ação coletiva.
Penso que na rua podemos localizar duas forças contrárias que provavelmente ocorrem simultaneamente. Por um lado as ruas podem estar dizendo ‘eu quero a minha meia entrada.’ Seria o caso extremo do processo de democratização da meia entrada. Por outro lado, se o sistema político entender bem as dificuldades do desenvolvimento econômico no Brasil hoje as ruas podem ser um embrião de um mecanismo abrangente olsoniano de negociação social de redução das meias entradas para todos com vistas a potencializar o bem estar de todos.
Minha terceira discordância com André está em associar os movimentos das ruas às necessidades de moderar a demanda por crescimento econômico em função das limitações de recursos naturais do planeta. Confesso que tenho muita dificuldade em entender em que ponto as duas agendas se encontram. Acho que o Brasil ainda é um país em que a renda não é muito elevada e as aspirações de todos são por ganhos de renda. O que ocorreu foi que o contrato social da redemocratização bateu em um de seus limites – a incapacidade dele gerar bens de consumo coletivo – e a população apontou o problema aos políticos. Era previsível que este ponto iria chegar em algum momento. Pensava que a agenda da incapacidade do contrato social gerar bens de consumo coletivo ficaria para 2018 mas parece que o tema terá que ser tratado no ano próximo.
Bem, estes eram meus comentários ao texto de André,
Olá a tod@s,
Infelizmente, gosto mais das análises de Vladimir Safatle. Elas remetem mais a um mal-estar juvenil com relação à cultura: como temas como casamento gay, o estatuto do nascituro. Sem falar em temas como a legalização do aborto, entre outros. Temas que ampliariam a liberdade e reformulariam o quotidiano (tanto quanto o fim das catracas). Safatle tenta reunir o mal-estar causador das manifestações e a cultura. Embora Lara Resende tenha aproximado às manifestações de junho ao maio de 1968 francês, ficou, como o comentário de F. W. Reis demonstra, preso à economia e à crise de representação política.
Talvez fosse o caso de buscar em jovens aspirações à realizações democráticas já constituídas em outros países. Poderíamos simplesmente analisar o mal-estar pela perspectiva do Estado? Não são as manifestações juvenis uma forma de tentar impulsionar manifestações mais progressistas na própria sociedade; que como disse Pessoa, é o próprio Estado?
http://www.schwartzman.org.br/sitesimon/?p=4545&lang=en-us
Essa é a discussão que eu queria!
Independente de Partidos Políticos, concordo:
“_O Estado deixou de ser percebido como um aliado, representativo e prestador de serviço. Passou a ser visto como um insaciável expropriador, cujo único objetivo é criar vantagens para os que dele fazem parte, enquanto impõe dificuldades e cria obrigações para o resto da população.”
http://www.schwartzman.org.br/sitesimon/?p=4540&lang=pt-br
O artig é interessante mas sobretudo oportuno porque o A.Lara Resende deve ser contestado. Há, contudo, um único ponto no artigo do LARA que não foi sequer tocado pelo articulista: A crise de representativa a qual , aliás, não se restringe ao Brasil. Trata-se de um fato quase universal na atualidade. Creio que aí ele tem razão: apesar da Constituição cidadã, apesar da extensão do voto e seu exercício em níveis surpreendentes no Brasil, apesar do regime concorrencial no mercado dos Partidos Políticos – entra quem quer, inclusive quem não devia – ,os eleitores não estão sintonizados com as instituições políticas no pais. Prova-o o descrédito das mesmas. Daí a urgência de uma Reforma Política, tal como , aliás, a Pres. Dilme pressente. Acho, apenas, que precisamos algo mais profundo do meros pontos. PRECISAMOS ROMPER COM UMA CULTURA POLÍTICA HERDADA DO ESCRAVISMO COLONIAL . Tarefa difícil. Mas tem que ser empreendida até pelos fatores que o autor registra.
Para finalizar: As reflexões sobre o Gasto do Governo não são precisas nem devidas enfocadas nem em Lara Resende nem no articulista. O maior problema está no custo da dívida pública. Ver, a propósito:www.auditoriacidada.org.br –
Acho o ponto principal de Samuel, sobre a “meia entrada”, irretocável. Po outro lado, não me parece que a Constituição de 1988 tenha mudando tanto as coisas assim, já havia um processo histórico de ampliação de benefícios e acesso a serviços que se fortaleceu a partir do plano real e, mais tarde, com as políticas de distribuição de renda possibilitadas pelo crescimento das exportações e estabilidade econômica nos anos 2000 (mas continuou sendo medíocre e de má qualidade). E sou menos otimista do que ele quanto à capacidade de nossa democracia de ir resolvendo seus problemas de um jeito ou de outro
Excelente texto. Tenho visto o um movimento de moralizacao (pequeno) em paralelo aos protestos. Usar carteira falsificada de meia entrada estah finalmente virando coisa feia. Mas eh claro que eh pouco.
Uma aula para entender o Brasil contemporâneo por André Lara Resende.