Como era de se esperar, nem todo mundo concordou com a nota que circulei recentemente a propósito da greve das universidades federais. Creio que vale a pena explicar melhor alguns dos pontos que podem ter ficado pouco claros, ou que causaram mais controvérsia.
O primeiro ponto é que eu estaria defendendo a existência de um sistema de educação superior estratificado, com instituições separadas para ricos e pobres, quando o atual sistema seria muito mais democrático e igualitário: toda a remuneração de professores e funcionários é definida de forma isonômica pelo governo federal, todas as instituições federais têm as mesmas responsabilidades de ensino, pesquisa e extensão, e, cada vez mais, todos os estudantes passam por um mesmo sistema unificado de seleção através do ENEM.
O que venho argumentando (e não é de hoje) é que o atual sistema, ao proclamar a igualdade formal de todas as instituições, professores e alunos, na verdade cria e mantém fortes desigualdades, e que um sistema que reconhecesse as diferenças seria muito menos discriminatório e permitira um uso muito mais adequado dos recursos públicos. As desigualdades que existem hoje ocorrem dentro das instituições, aonde convivem cursos altamente seletivos com exigências acadêmicas altas e acesso dependente de exames de seleção difíceis, e cursos de fácil acesso e exigências acadêmicas mínimas; e entre instituições, cursos e departamentos que têm forte cultura profissional e acadêmica e desenvolvem programas de ensino e de pesquisa de qualidade e outras que mal o fazem, embora recebendo recursos e salários semelhantes.
Existem também grandes diferenças entre os professores que, apesar de contratos de trabalho e titulação formalmente idênticas, têm produção técnica e científica de qualidade e quantidade muito distintas, e se desempenham de maneiras muito diferentes na sala de aula.
A estas diferenças entre instituições, cursos, departamentos e professores se soma a grande desigualdade que existe entre os alunos. Nos últimos anos, na medida em que o sistema de educação superior se ampliou e chegou a regiões mais afastadas, ele passou a receber alunos que não tiveram educação básica e média com um mínimo de qualidade, e não têm como acompanhar os cursos mais exigentes. Ele passou também a incorporar cada vez mais estudantes mais velhos que precisam trabalhar e não podem se dedicar aos estudos como atividade principal. Tratar a todos os estudantes como se fossem iguais leva, na prática, ou a reprovar e acabar expulsando dos cursos a maioria dos alunos que não conseguem acompanhar os programas, ou baixar as exigências, nivelando por baixo. Tratar a todos os cursos e programas como se fossem iguais leva, na prática, a um faz-de-conta em que muitos professores e programas de ensino recebem recursos para pesquisas e dedicação exclusiva que não exercem, enquanto que outros não conseguem os recursos e o apoio financeiro de que necessitam. A solução para isto não é dar mais dinheiro a todos na esperança de que um dia se igualem, porque isto só perpetua as diferenças. A solução é, do ponto de vista dos alunos, criar alternativas educacionais que tomem em conta as diferenças reais existentes entre os estudantes (com alternativas de cursos de formação tecnológica, geral e profissional, por exemplo), e criar formatos institucionais que tomem em conta a efetiva capacidade de trabalho e vocação de diferentes instituições (muitas podem se concentrar no ensino, outras em pesquisa e pós-graduação, etc.) .
O risco que existe quando se diferenciam formalmente estudantes e instituições é que isto poderia perpetuar e congelar as diferenças e as oportunidades. De fato este risco existe, e precisa ser enfrentado criando flexibilidade para que as pessoas possam ir de um sistema a outro, e as instituições possam se transformar na medida em que consigam desenvolver novas competências e vocações. Nada disto é simples, mas existem muitas experiências internacionais e uma grande literatura que trata das questões de diferenciação e da doença do viés acadêmico que tende a afetar as instituições de ensino sobretudo a partir do ensino médio e que, no caso do Brasil, já infectou o pouco que temos de ensino técnico profissional (escrevi um artigo específico sobre isto que está disponível aqui).
O outro mito que precisa ser enfrentado é o do que a educação estatal é sempre boa, e a educação privada, sobretudo de fins lucrativos, é sempre ruim. Basta olhar as estatísticas para ver que foi o setor privado que permitiu que o ensino superior brasileiro se expandisse nos últimos anos, dando inclusive mais acesso a estudantes mais pobres, oriundos de escolas públicas e não brancos. A experiência latino-americana, da qual infelizmente estamos nos aproximando (daí a referencia de Daniel Levy a meu “triste texto”) é que as instituições públicas, quando se inflam por políticas populistas e se paralisam internamente pelo corporativismo, acabam funcionando tão mal que expulsam os melhores alunos, e os que podem pagar, para instituições privadas de qualidade (um exemplo famoso é a Universidade Técnica de Monterrey, no México, e existem muitos outros).
A outra questão é a da diferença entre universidades privadas com e sem fins lucrativos. A ideia de que a educação, como atividade cultural e de conteúdo ético, não pode estar associada a lucro é tão obsoleta quanto a ideia de que os médicos, que cuidam da vida e da saúde das pessoas, não deveriam cobrar pelos seus serviços. O Brasil, diferentemente de outros países como Chile e Colômbia, já não mantém mais o mito de que todas as instituições particulares são filantrópicas, quando de fato a grande maioria delas não o são, e o governo Lula, com o Prouni, reconheceu que o setor privado empresarial tinha uma contribuição social a dar. Existem certamente problemas potenciais em empresas de ensino (ou de saúde, ou de qualquer serviço público) que colocam o lucro no fim do mês como sua prioridade absoluta, negligenciando os interesses do público a que atendem, assim como a participação de seus profissionais na condução de seus trabalhos. Estes problemas podem ser reduzidos em parte pela regulamentação e supervisão governamental, e em parte pela própria lógica da competição no mercado. Mas existem problemas igualmente sérios em instituições estatais que paralisam as aulas em greves intermináveis, não têm mecanismos efetivos para afastar professores que lecionam mal e não se atualizam nem se esforçam para atender de forma adequada os alunos diferenciados que recebem.
Um último ponto é o da autonomia universitária, da qual se fala tanto, quase sempre sem sabermos exatamente de que estamos falando. Existem dois princípios importantes aqui, que precisam ser combinados de forma adequada. O primeiro é que instituições de ensino e pesquisa não podem funcionar bem sem o envolvimento e participação de seus professores, em primeiro lugar, e também de alunos e funcionários. O segundo é que estas instituições, sobretudo as públicas ou que recebem subsídios governamentais, não existem para atender aos interesses de seus membros, mas da sociedade como um todo, e por isto precisam responder a uma supervisão e acompanhamento externos. Uma maneira de resolver esta questão, adotada pela maioria dos países ocidentais desenvolvidos, é fazer com que as universidades respondam a um conselho superior externo, com autoridade para eleger o reitor, que trabalha por sua vez com a participação de conselhos e órgãos acadêmicos internos, mas sem se subordinar a eles.
No Brasil, a ideia de que os reitores sejam nomeados pelo governo federal ou estadual a partir de uma lista indicada pelas universidades é uma tentativa de combinar os dois princípios, fazendo com que o reitor seja ao mesmo tempo um representante da instituição e da sociedade mais ampla, cujos interesses o governo deve representar. A responsabilidade do Ministério da Educação e dos governos estaduais, no caso do Brasil, não deveria se limitar a atender às demandas de recursos e salários das universidades e seus funcionários, mas também de exercer um papel ativo de supervisão e acompanhamento, associando recursos a resultados. Nesta perspectiva, a autonomia universitária deve ser entendida sobretudo como a capacidade da instituição de assumir a responsabilidade pelo seu trabalho, respondendo de maneira efetiva às demandas e expectativas da sociedade, não de maneira abstrata, mas conforme resultados e metas estabelecidos pelos seus órgãos de supervisão e acompanhamento externo.
Quando estes dois princípios não são combinados de forma efetiva, as instituições podem sofrer, seja com intervenções externas que destroem sua moral e sua vitalidade, seja pelo isolamento e incapacidade de responder às necessidades da sociedade, que faz com que elas percam a confiança e, ao final, o apoio da político e financeiro, entrando em decadência.
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/1116885-editoriais-universidade-justa.shtml
Universidade gratuita” é um ótimo slogan para manifestações. Mas, no mundo real, implica um paradoxo. Prédios, professores, funcionários, laboratórios –alguém precisa pagar por eles.
Só expandir o sistema oficial, sem criar formas sustentáveis de financiá-lo, torna recorrentes as crises –como a que ora paralisa as universidades federais.
Simon,
O que você acha da utilização de vouchers no ensino superior?
Recentemente, eu li o livro Free to Choose do Milton Friedman e achei bem interessante o capítulo referente a educação. Nesse capítulo, o Friedman propõe tanto a utilização de vouchers no ensino básico como também no ensino superior.
A utilização dos vouchers aumentaria a competição sadia entre as universidades, inclusive, entre as universidades públicas.
Você conhece algum país que tenha adotado os vouchers no ensino superior?
Obrigado.
Estou de acordo que pode ser util,embora não dispense outras formas de financiamento. Os créditos educativos, quando dados aos estudantes, e não às instituições, desempenham este papel (mas só para as instituições privadas,já que as públicas no Brasil ainda são gratuitas)
http://cbn.globoradio.globo.com/colunas/missao-aluno/MISSAO-ALUNO.htm
Universidades federais brasileiras precisam se reinventar para manter qualidade
Nos países desenvolvidos, o ensino de nível superior mistura recursos públicos e privados. Entre os pontos rejeitados pelos professores grevistas, está a avaliação de performance.
Como professor há 20 anos de universidade federal, tendo a concordar com vários pontos do seu texto, mas o que significa exatamente “demandas da sociedade”? Por exemplo, o que fazer com cursos com excelência acadêmica, mas pouco demandados? Que tipo de proposta garantiria, ao mesmo tempo, o respeito às diferenças institucionais e o direito de mobilidade, caso se decida assumir outro perfil? É possível falar em “instituição” no geral? Levando o seu raciocínio às últimas consequências, a desigualdade não se dá apenas entre instituições, mas no interior de uma mesma instituição. Seria possível opções diferenciadas dentro de uma mesma instituição? Por fim, você visualiza algum ator político que possa ser o portador dessa proposta? Nos últimos 20 anos, presenciei duas coisas: de um lado, um governo absolutamente incompetente, politicamente falando, para dialogar com as universidades públicas (PSDB), de outro, um governo que falava exatamente o que a maioria de nós queria ouvir, ou seja, aumento de recursos sem propostas efetivas de mudança (governo Lula). Daí a pergunta.
O principal ator, me parece, deve ser a própria comunidade universitaria, que precisa sair dos extremos de amor/ódio em relação aos governos, e mostrar que é capaz de se gerir com competência e responsabilidade, e a partir daí negociar seu espaço. O dilema entre controle externo e autonomia absoluta permite soluções intermediárias – respondendo às demandas externas de governo, setores empresariais e da sociedade por pesquisas, cursos e assistência técnica, e ao mesmo tempo preservando as atividades que possam ser consideradas importantes mesmo que não demandadas e pouco entendidas, como o estudo do grego e do latim e as linhas de pesquisa mais abstratas e de interesse estritamente teórico ou intelectual. As diversas formas mistas de governo que mencionei, como a combinação de conselhos externos e participação interna da comunidade profissional, procuram justamente criar este equilíbrio, que tem dado certo em muitas partes. O principal capital da comunidade universitária, me parece, é seu prestígio, reputação e reconhecimento ante diversos setores da sociedade, não só dentro do país, mas inclusive internacionalmente. É este capital que é a principal vítima, me parece, das greves e manifestações descontroladas de estudantes que temos presenciado.
Parece que vários passos já estão sendo dados na direção desse ideal, de diferenciação produtiva no ensino superior. Por exemplo, as bolsas de Produtividade em Pesquisa do CNPq são uma forma de implementar a diferenciação entre professores. A captação de recursos externos, através de convênios e patrocínios de empresas, já é uma diferença marcante entre departamentos. Quanto ao diferenciamento entre alunos, os cursos noturnos naturalmente criam uma separação em termos de disponibilidade para dedicação exclusiva pelo aluno; já em termos de capacidade intelectual, a diferenciação exige um incentivo maior, como p.ex. as bolsas de alimentação e moradia oferecidas pelo ITA aos seus alunos.
Me pergunto que outros passos deveriam ser tomados para acelerar esse processo. P.ex., oferecer benefícios adicionais condicionados a produtividade, cuja métrica seria adequada ao perfil de cada instituição (i.e., não simplesmente publicação científica). Dado que há grande resistência a mudanças impostas externamente, será que funcionaria simplesmente oferecer recompensas pela produtividade — será que isso seria suficiente para que os atores (instituições, cursos, departamentos, professores e alunos) se esforçassem em se diferenciar?
De fato, os sistemas de ciência e tecnologia e pós-graduação sempre deram incentivos diferenciados, e daí sua qualidade, embora ainda assim bastante desigual. Quanto aos alunos que chegam à universidade com formação precária, não basta dar incentivos ou fazer cursos de “reciclagem” (o exemplo do ITA não é bom porque seus alunos são selecionadíssimos), que dificilmente podem corrigir em um semestre deficits cognitivos acumulados em décadas. Estes estudantes precisam de cursos diferentes, de natureza mais prática, que consigam desenvolver competencias que sejam valiosas para a vida e para o mercado de trabalho, evitando o formato acadêmico dos cursos convencionais. É isto que ainda nao aprendemos a fazer, e que não é fácil, e implica inclusive repensar as titulações que são oferecidas.
Simom disse tudo!Infelizmente, precisaremos chegar ao fundo do poço…
Muito bom o texto!
Só um adendo. Em SP,em alguns cursos(administração,Economia)as públicas não são a primeira opção ou a prioridade dos candidatos devido a qualidade semelhante dos cursos.A Universidade pública vai “perder” seu quadro discente e docente qualificado para as Universidades Privadas pelos motivos bem explanados no seu excelente texto