Sérgio Fausto: confusa teoria anti-ocidental

(Artigo de Sérgio Fausto, publicado em O Estado de São Paulo, 2 de março de 2024)

Nos últimos anos, tornou-se moda atribuir ao Ocidente grande parte dos males que acometem o mundo. A moda tem adeptos sobretudo na esquerda, mas também na extrema direita nacionalista sob influência do Kremlin. Num caso e noutro, o ataque ao Ocidente parte de ângulos opostos, mas converge para um alvo comum.

Aqui me interessa o campo da esquerda. Mal ou bem, com muitas contradições, nele se situaram forças que, desde a Revolução Francesa, impulsionaram conquistas civilizatórias da humanidade. Nele está uma nova geração de ativistas, ainda em formação, com energia para levar adiante, atualizando, o legado de gerações anteriores. Por isso, preocupa ver que ela se encanta com uma confusa ideologia antiocidental, que bateu asas a partir de uma vertente respeitável das ciências humanas: o “decolonialismo”, termo incorporado no Brasil diretamente do inglês e do francês, sem o “s” que permitiria descolonizá-lo.

Para os adeptos do “decolonialismo”, o Ocidente não seria a revolução científica, o Iluminismo, as Revoluções Americana e Francesa, a democracia e os direitos humanos, e sim o colonialismo e a escravidão que, sob novas formas, continuariam a ser os fatores principais da opressão no mundo contemporâneo. Nessa visão binária, o salto científico e tecnológico produzido na Europa a partir dos séculos 16 e 17 é visto como mero instrumento para a expansão brutal do colonialismo. Já o Iluminismo, no século seguinte, é reduzido à condição de ideologia justificadora da opressão colonial, do trabalho escravo e do racismo.

Da Revolução Francesa, os “decolonialistas” destacam seletivamente o restabelecimento da escravidão nas colônias francesas, com Napoleão, em lugar da sua abolição em 1794. A Revolução Americana, mãe das guerras de independência e parteira da primeira República no Novo Mundo, é desvalorizada em seu conjunto pela nódoa da escravidão.

O erro dessa visão é supor que um processo histórico tão complexo e longo quanto a modernidade ocidental possa ser compreendido em bloco e submetido a um juízo moral condenatório com base na ideia de que a “parte boa” nada mais é do que uma ilusão a encobrir a “parte má”, esta sim reveladora da essência opressiva da modernidade ocidental. Trata-se de uma ideia avessa à compreensão das contradições que constituem a realidade social, no passado e no presente.

É verdade – e nisso o “decolonialismo” está coberto de razão – que a Europa se serviu da ciência e da tecnologia para conquistar territórios, submeter e frequentemente escravizar populações autóctones da África, América e Ásia e da distorção das ideias iluministas para justificar o empreendimento colonial, primeiro, a expansão imperialista, depois, e teorias absurdas e abjetas de superioridade racial. Não menos verdadeiro, porém, é que os avanços científicos e tecnológicos e os novos valores da liberdade e da igualdade produzidos no Velho Continente permitiram e impulsionaram conquistas civilizacionais que beneficiaram a humanidade em seu conjunto nos séculos seguintes. E continuam a beneficiá-la.

Os mesmos valores professados de modo seletivo e praticados de maneira excludente, ao início, motivaram e orientaram grande parte das lutas emancipatórias que progressivamente expandiram a esfera dos direitos fundamentais e ampliaram a sua aplicação no transcurso posterior da história. O fato de que a generalização dos valores liberais e democráticos ainda hoje seja parcial é mais uma razão para reafirmá-los, sobretudo num momento histórico em que as forças obscurantistas e reacionárias ganham terreno em todas as partes do planeta.

Sim, Thomas Jefferson foi um senhor de escravos. Mas o Preâmbulo da Declaração da Independência dos Estados Unidos, escrito por ele, abriu um horizonte para lutas emancipatórias que se desdobram até hoje, incluídas as dos grupos (negros e mulheres, em especial) cujos direitos eram então negados. A ideia de que os seres humanos, além de iguais e livres, têm o direito à busca da felicidade (pursuit of happiness) ativou uma revolução silenciosa duradoura contra formas explícitas e implícitas de dominação e cerceamento da subjetividade. Essa concepção dos seres humanos é própria do Iluminismo, impensável fora da sua tradição.

Transformando-se em ideologia, o “decolonialismo” substitui a perspectiva crítica pertinente pela fúria moral condenatória incapaz de separar o joio do trigo. Inadvertidamente, rejuvenesce velhas ideologias anti-imperialistas e autoritárias presentes na esquerda, ao entusiasmar uma nova geração de ativistas de muito valor, mas frágil formação.

O resultado é que parte significativa da esquerda silencia diante das atrocidades cometidas pelo Hamas, hesita em condenar a Rússia na sua guerra de agressão à Ucrânia, dá de ombros diante da diferença crucial, para o mundo, entre dois homens igualmente brancos, héteros e idosos que disputarão a presidência dos Estados Unidos, apoia qualquer iniciativa feita em nome do “Sul Global” e, no Brasil, não compreende que o País é, sim, parte do Ocidente, com as suas marcas próprias e singulares.

Polarização e calcificação da política brasileira – críticas e comentários

O texto sobre Polarização e calcificação da política brasileira, com observações a respeito do livro Biografia do Abismo, estimulou vários comentários que contribuem para ampliar o entendimento do tema, alguns dos quais estou compartilhando.  Isto me permite também explicar melhor algumas ideias possam ter ficado pouco claras.

Começo pelo registro da mensagem de Felipe Nunes, um dos autores do livro. Escreve Felipe que “do ponto de vista teórico, o paradigma que você apresenta não diverge do nosso quando evoca o Schattschneider. Aprendi a gostar do trabalho dele com o John Zaller no meu doutorado da UCLA. Na minha avaliação, o nosso livro é basicamente a aplicação dessa ideia para o Brasil de 2018 a 2022. Como as elites (pelas redes sociais), em particular o Bolsonarismo, moldaram a opinião pública brasileira, que agora está calcificada. Acho que a nossa diferença está na calcificação. Você acha que coisas como ‘anulação dos processos da lava-jato e a concessão de recursos e poder crescentes para o Congresso’ podem desfazer a calcificação. Mas pelos dados que a Quaest tem publicado, esses eventos não fazem nem cócegas na polarização da opinião pública. Está tudo calcificado. O raciocínio motivado está ajudando a explicar quase todo tipo de resposta da opinião pública no Brasil. Mas é claro que a calcificação é só uma tese. E como toda boa tese pode e deve ser refutada pela realidade. Vamos ver o que acontece daqui para frente. Queria ser otimista como o senhor sobre os efeitos dos arranjos políticos na opinião pública, mas eu confesso que como bom atleticano, estou pessimista!”.  

Eu não quiz dizer que as acomodações das elites com o fim da Lava Jato e as concessões ao Congresso podem “desfazer” a calcificação,  mas sim que elas ajudam a atenuá-la, e mostram que existem outras coisas na política além da opinião pública. Foi por isto mesmo que achei interessante o artigo comparando as teorias de Downs e Schattschneider.

Nesta linha, o empresário Stefan Bodgan Salej observa que o texto leva a muitas reflexões, uma delas “o papel de grupos empresariais ou econômicos, sejam nacionais ou estrangeiros, no sistema político brasileiro. E aí não só a aliança eleitoral, mas exercício do poder a posteriori, como no exemplo de reforma tributária mais recentemente. Nas grandes empresas brasileiras o cargo mais importante é diretor de relações institucionais, a pessoa que obtém o máximo do estado pelo mínimo de retorno”.

O cientista político e brasilianista Barry Ames me escreve, em inglês, que tem duas observações sobre o artigo. A primeira é que eu deveria ver seu livro recente, com Andy Baker e Lúcio Rennó,  Persuasive Peers: Social Communication and Voting in Latin America (Princeton Univ. Press). “A pesquisa foi feita antes do crescimento dos meios de comunicação social, mas temos muito a dizer sobre o contexto social e comportamento eleitoral. O livro se baseia sobretudo em meus projetos em Juiz de Fora e Caxias do Sul”.  A segunda é que “tem um livro saindo proximamente pela Companhia das Letras por Marcos André Melo e Carlos Pereira intitulado Por que a democracia brasileira não morreu?  De Dilma ao terceiro mandato de Lula.  Eu escrevi a introdução do livro. A tese principal é que as instituições brasileiras são tão fragmentadas que é muito difícil para que um movimento anti-demorático consiga ganhar força no legislativo. Eles argumentam, e eu concordo, qiue Bolsonaro nunca teve chance de instalar o tipo de regime autoritário como os Levitsky e Ziblatt, entre outros, mencionam. A polarização do eleitorado nos Estados Unidos reforça e é reforçada pelo sistema bipartidário. No Brasil isto não pode acontecer (…). Em certo sentido, seu texto reflete a contrapartida do ‘copo meio vazio’ da tese do ‘copo meio cheio’ de Carlos Pereira. Você diz que o sistema brasileiro impede que o país desenvolva as políticas púbicas que tirariam o país da armadilha de renda média. Carlos argumenta que o sistema brasileiro minimiza as chances de um encaminhamento autoritário”. 

Concordo que seria difícil no Brasil fazer uma transição gradual da democracia parlamentar para o autoritarismo como ocorreu na Hungria de Viktor Orbán, mas um golpe militar simplesmente fecharia o Congresso.

O economista e imortal Edmar Bacha, comentando uma primeira versão do texto, pergunta “se a calmaria se deve à acomodação dos interesses relevantes pelo lulopetismo, significando isto que o bolsonarismo seria uma carta fora do baralho”. “Merecia atenção a diferença do caso americano, onde o trumpismo se alimenta de uma insatisfação com a emigração (como na Europa), com a desindustrialização (provocada pela China e pelas novas tecnologias), e com o identitarismo abraçado pelo Partido Democrata. Quais as “causas”  econômicas correspondentes que alimentam o Bolsonarismo no país? Faltou essa análise, que teria ver possivelmente com a ascensão do agronegócio, além da frustração com o PSDB, cujo lugar agora ocupa o PSD, por enquanto como linha auxiliar do bolsonarismo light”. E conclui dizendo que, “francamente, 60% nem de um lado nem de outro eu queria acreditar, mas me parece um exagero. Será que as eleições municipais deste ano ajudarão a compreender o enigma? Se eu fosse um empirista norte-americano, lhe diria para formular uma hipótese sobre a calcificação que poderia ser falsificada pelas próximas eleições municipais”.

O sociólogo Bernardo Sorj, também comentando uma versão inicial, observa que “o PT  certamente foi um dos construtores da polarização (a herança maldita, as elites, etc.).  A pergunta é porque foi Bolsonaro quem conseguiu mobilizar o  polo  adversário ao PT nas eleições presidenciais, nas quais o binarismo ideológico no Brasil tem  peso.    Acredito que um elemento central foi explicitar uma agenda que conseguiu  aglutinar os evangélicos e católicos conservadores, algo a que o polo tradicional ao PT, o PSDB,   nunca foi sensível. Você está certo de que a eleição de 2018 foi o momento alto da polarização, em particular pelo  efeito Lava-jato. Bolsonaro, apesar de 4 anos na presidência ,não conseguiu manter o nível de polarização”. E finalmente observa que “o problema histórico é sobre o papel do game changer (Mussolini, Hitler casos extremos). Quanto estava escrito na estrutura social e quanto depende da iniciativa dos operadores políticos? O razoável é pensar que se trata de uma mistura de ambos em cada situação histórica.  E o papel do efeito demonstração.  O efeito Trump e da nova extrema direita nos Estados Unidos e suas técnicas de atuação, ao igual que o fascismo, se espalharam pelo mundo”.

O cientista político Sérgio Fausto comenta que  “o ‘acordão’ por cima pode perfeitamente coexistir, até o início do novo ciclo d eleições gerais, com a polarização na sociedade. Ou seja, a tese da calmaria não conflita necessariamente com a da ossificação (em tempo: quando falo em eleições gerais, me refiro às presidenciais, para o Congresso e os governos estaduais). Penso que a tese da ossificação (um termo excessivo por indicar uma rigidez que o quadro não parece ter) é compatível com o modelo do ‘semi-sovereign people’. Os dois campos estão assentados em organizações bem estruturadas e capilares: família militar, inclusive polícia, e igrejas evangélicas, de um lado; PT, sindicatos, movimentos e ONGs de esquerda, de outro. Acho que a polarização depende muito dos personagens do drama. A ausência de Bolsonaro do cenário eleitoral, mas não político, abre uma brecha; enquanto o Lula aí estiver, porém, a brecha não se abrirá muito. Você tem toda razão que o que conta é o cálculo eleitoral e não uma ‘intervenção esclarecida das elites’ (a inclinação autoritária do argumento não passa despercebida). Em termos práticos, penso que devemos insistir na tese de que o quadro é mais maleável do que pintam os autores. E ir plantando. Colher mesmo, acho que só depois de 2026.”

O cientista político Edson de Oliveira Nunes escreve, no Facebook, que “quem sabe vale lembrar também o trabalho de Jonathan Haidt, The Righteous Mind: Why Good People Are Divided by Politics and Religion (Vintage, 2020) que argumenta que a cosmovisão à nova destra é mais ‘completa’ que aquela à sinistra em termos de apelo popular”. Fica a recomendação.

Finalmente, o cientista político Paulo Elpídio Menezes Neto também se vale do Facebook para questionar se de fato o 8 de janeiro de 2023 pode ser descrito como tentativa de golpe de estado. Segundo ele, “associar as manifestações de 8 de janeiro a uma ‘tentativa de golpe de estado’ constitui uma redução desviante, muito parecida com outros episódios da história recente. Vide Weimar”. “Não se pode falar em golpe de estado”, argumenta, “por conta de algumas vidraças e de um relógio de antiquários. Ademais, a infiltração por grupos black blocs nunca foi suficientemente esclarecida. Nem as armas do ‘levante’ encontradas entre os 1400 derrotistas recolhidos à Papuda…”

Eu acredito que houve realmente uma tentativa de golpe de estado, da qual a invasão do Planalto seria somente o estopim para que as forças armadas assumissem o poder e suspendessem o resultado das eleições invocando seu suposto  “poder moderador”.  Não faltam outros elementos para corroborar isto, como as tentativas anteriores de desmoralizar as urnas eletrônicas, o abandono intencional da segurança do Planalto pelo governo do Distrito Federal e setores do Exército, assim como a minuta do golpe encontrada na residência de Anderson Torres, as reiteradas referências de Bolsonaro a “minhas forças armadas” e os encontros pouco explicados com figuras estranhas como Daniel Silveira, Marcos do Val e Walter Delgatti.  Mas, como tantas outras ações do grupo de Bolsonaro, foi tudo feito incompetentemente, como um exército Brancaleone que nunca conseguiu se organizar. Nenhum dos mentores desta tentativa estava entre os 1400 que acreditaram neles e acabaram sendo levados para a Papuda, e nenhum destes mentores foi indiciado pela justiça até agora.

Polarização e calcificação da política

Em artigo recente, escrito um ano após a tentativa de golpe de estado de janeiro de 2023, afirmei que a polarização ideológica, que teria dominado a política brasileira até as eleições de 2022, parecia ter arrefecido.Vários leitores discordaram, se referindo à Biografia do Abismo – como a polarização divide famílias, desafia empresas e compromete o futuro do Brasil, livro recente de Felipe Nunes e Thomas Traumann (Harper Collins, 2023).  O livro faz uso abundante de dados de pesquisas de opinião realizadas pela empresa Quaest, dirigida por Nunes, e busca interpretar o que está ocorrendo no Basil no contexto mais amplo de fortalecimento da direita e de polarização política em outros países, sobretudo nos Estados Unidos. A tese principal do livro é que a política brasileira se calcificou em polos antagônicos, cuja radicalização transbordou para outros campos de atividade como a educação, a economia e as relações sociais. A principal explicação para o que está ocorrendo seria o “novo ecossistema de comunicação política”, centrado nas redes sociais, e alimentado por duas figuras carismática opostas, Lula e Bolsonaro. Neste sistema, as pessoas tenderiam a se fechar em bolhas que se autoalimentam, sujeitas à avalanche de informações falsas e mecanismos que tendem a reforçar ideias pré-concebidas.  A democracia está se rompendo, e só um reconhecimento do problema e uma ação deliberada das elites, restabelecendo as regras e os limites da convivência, poderia, quem sabe, deter este processo.

A principal evidência que tenho para a hipótese que a polarização política está se arrefecendo é a grande conciliação que tem ocorrido entre as elites políticas de esquerda e direita, pela anulação dos processos da lava-jato e a concessão de recursos e poder crescentes para o Congresso. Os principais atores da direita política brasileira não são mais Jair Bolsonaro e seus filhos, mas Arthur Lira, Tarcísio Freitas e Valdemar da Costa Neto, para os quais as questões ideológicas têm muito menos relevância do que as questões de poder. Esta conciliação está sendo feita a um alto custo e com consequências imprevisíveis, mas isto é um outro tema.

O livro de Nunes e Traumann é excelente ao mostrar como a polarização política se deu e ao descrever em detalhe a lógica das eleições de 2022, mas me parece que deixa a desejar na interpretação do que está ocorrendo. O problema, me parece, tem a ver com a teoria implícita que ele adota a respeito de como os processos político-eleitorais ocorrem. Para entender isto, uma pequena incursão à literatura existente precisa ser feita.

A teoria mais tradicional sobre comportamento eleitoral, de origem marxista, é que os eleitores votam conforme seus interesses de classe – operário vota em operário, burguês vota em burguês. A política seria uma disputa de classes,  e, como os pobres e operários são a maioria, eles sempre ganhariam as eleições, não fosse o problema da “falsa consciência”, em que eles são iludidos e não percebem quais são seus verdadeiros interesses e quem verdadeiramente os representa.   Esta teoria refletia, ainda que de maneira muito imperfeita, as divisões eleitorais da Europa ocidental até meados do século XX, mas nunca conseguiu dar conta de fenômenos como o nacionalismo, os partidos de base religiosa e, na América Latina, o populismo em suas diversas manifestações, interpretados como uma espécie de aberração em relação ao comportamento “esperado” dos diferentes setores.

As ciências sociais norte-americanas abriram uma outra perspectiva ao procurar entender diretamente o comportamento do eleitor, e, a partir daí, o funcionamento do sistema eleitoral e do regime democrático, fazendo uso de pesquisas de opinião e dados eleitorais.  Estas pesquisas se iniciam com os trabalhos pioneiros da “escola de Columbia”, de Robert K. Merton, Paul Lazarsfeld e Elihu Katz, na década de 40, sobre comunicação de massas (Katz and Lazarsfeld 1964; Lazarsfeld, Berelson and Gaudet 1968) e mais adiante com as pesquisas eleitorais da “escola de Michigan”, com os trabalhos de Angus Campbell,  Phillip Converse, Donald Stokes e outros (Campbell et al. 1960). Dois artigos tiveram grande influência nesta literatura, o do economista Antony Downs, de 1957, que propunha um modelo simples de decisão dos votos dos eleitores e de comportamento dos partidos (Downs 1957), e outro de Phillip Converse, de 1964, sobre como os eleitores entendem e pensam as questões da política (Converse 1964; Friedman and Friedman 2018).

O que estas pesquisas mostram é que, em geral, os eleitores tomam suas decisões a partir de fragmentos muitas vezes desconexos de informações, que não se estruturam de forma coerente como uma ideologia ou um entendimento mais profundo do sistema político. A pergunta, então, é como o sistema democrático, que se pretende representativo, consegue funcionar sobre uma base tão precária. A resposta é que os eleitores se informam com pessoas ou fontes em que confiam, e votam com os candidatos que melhor refletem seus interesses. Os textos pioneiros de Merton, Lazarsfeld e Katz falavam no “two steps flow of communication”, em que líderes de opinião explicavam e legitimavam as informações que chegavam pelos meios de comunicação à massa, e Converse, na mesma linha, identifica uma pequena percentagem de eleitores que organizam as informações políticas em uma “ideologia”, ou quadro de referência coerente, e pessoas próximas seguem. No modelo de Downs, as preferências dos eleitores tendem a se distribuir conforme uma curva normal, em um contínuo da esquerda à direita, o que faz com que os partidos procurem se posicionar o mais próximo possível da média de opiniões, para receber o maior número possível de votos. Isto explicaria o sistema bipartidário americano e a alternância de poder, dada a oscilação dos resultados obtidos pelos diferentes governos no atendimento às  preferências dos eleitores. Uma outra explicação para a estabilidade do sistema americano, até aquela época, era a forte tendência de os eleitores votarem  conforme sua identificação histórica com determinado partido, o que servia de amortecedor para grandes oscilações.

O que estas teorias não explicam é como este aparente equilíbrio foi sendo rompido nos Estados Unidos pela polarização crescente, que culminou na eleição de Donald Trump, um processo que também vem ocorrendo, em maior ou menor grau, em outros países.  A resposta, segundo um artigo mais recente de dois cientistas políticos, Hacker e Pierson, estaria em uma outra maneira de entender o processo político eleitoral, não mais através do comportamento dos eleitores, mas através das ações deliberadas dos grupos de interesse que disputam o poder no sistema eleitoral e, para isso, procuram organizar o eleitorado e o próprio sistema eleitoral a seu favor.  O autor de referência, no caso, deixaria de ser Antony Downs, e passaria ser E. E. Schattschneider, cujos trabalhos iniciais datam da década de 1930, e cujo texto mais conhecido, The Semi-Sovereign People, é de 1960 (Hacker and Pierson 2014; Schattschneider 1960). Na perspectiva de Schattschneider, a disputa política não se dá simplesmente pela competição pelos votos de uma massa indiferenciada de eleitores, mas pela ação de grupos que procuram moldar as opiniões e orientações de seus eleitores conforme seus interesses. No regime democrático, o eleitor continua sendo soberano, mas é uma soberania limitada e condicionada pelo trabalho de determinados grupos para conquistar o poder e exercê-los conforme seus interesses. É esta ação que pode explicar o que o modelo de Downs não consegue, a transformação da curva normal de preferências em uma distribuição bimodal, ou seja, em polarização.

Uma maneira pela qual os grupos de interesse atuam para influenciar o comportamento dos eleitores é pela criação de organizações e associações políticas destinadas a garantir determinados resultados. Um exemplo dado pelos autores é o de uma pesquisa sobre a criação de sindicatos de professores nos Estados Unidos nas décadas de 50 e 60. A pesquisa mostrou que estes sindicatos não surgiram de forma natural e automática pela agregação dos interesses comuns dos professores, mas foram o resultado do trabalho sistemático do Partido Democrata em determinados estados para organizá-los. Estes processos cruciais de organização e mobilização do eleitorado, e os resultados que produzem, se tornam invisíveis quando o processo político é analisado exclusivamente a partir das opiniões e atitudes dos eleitores.

Aplicando esta perspectiva ao Brasil, é possível observar que o getulismo e o lacerdismo, o golpe de 1964, a campanha pelas Diretas Já, as eleições de Jânio Quadros, Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso e os protestos de 2013 mostram que a mobilização e radicalização política, à direita e à esquerda, não são coisas novas no Brasil, mas foram mobilizações efêmeras, que não criaram raízes. A novidade importante neste cenário foi o surgimento do Partido dos Trabalhadores no início dos anos 80.  O PT começou como o braço político de um setor específico do sindicalismo industrial, com uma retórica que buscava renovar o antigo discurso político da esquerda. Aos poucos, na medida em que foi conquistando posições de poder, passou a incorporar também sindicatos do setor de serviços, organizações do campo, setores da burocracia, setores da Igreja Católica, políticos tradicionais  e aliados do setor empresarial.  A primeira vitória de Lula contra José Serra em 2002 se deveu sobretudo ao desgaste do PSDB depois do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, mas, a partir daí, com o programa do bolsa família, o aumento dos gastos públicos e a distribuição de benefícios e vantagens a parceiros, o PT foi incorporando cada vez mais setores a seu projeto de poder, criando um arco de alianças que foi capaz de sobreviver à crise de 2015 e renascer.

Em contraste com o PT, nenhum outro partido político brasileiro, até recentemente, depois da dissolução da aliança entre o velho PSD e o Partido Trabalhista de Getúlio Vargas na eleição de Jânio Quadros, tentou ou conseguiu organizar uma parceria estável e organizada com determinados setores da sociedade. O PSDB, que a princípio poderia ter se transformado em um forte partido de massas graças ao histórico de oposição à política tradicional do antigo PMDB de Orestes Quércia e o sucesso do Plano Real, nunca deixou de ser um partido de quadros, na terminologia proposta por Maurice Duverger, e acabou por se deteriorar após a derrota de Aécio Neves para Dilma Rousseff em 2014.

A novidade do Bolsonarismo foi criar sua própria clientela organizada, aproveitando-se dos espaços deixados de fora do Partido dos Trabalhadores após a crise de 2015 e pelo fracasso do PSDB e outras correntes de centro e à esquerda de construir uma alternativa . Estes espaços foram muitos, e incluem as populações das periferias das grandes cidades, que buscavam proteção nos novos cultos religiosos e na convivência sofrida com o crime organizado; os setores da classe média baixa que não se beneficiaram da expansão da máquina administrativa e não tiveram acesso à educação pública e ao sistema de saúde público subsidiado; empresários que sofriam com os altos e baixos e a ineficiência da economia; e as polícias militares e partes das forças armadas que não recebiam os mesmos benefícios e a mesma atenção que outras partes do serviço público. Some-se a isto setores da sociedade que se sentem ameaçados pelas políticas e mobilizações identitárias que colocam em questão padrões tradicionais de comportamento, relacionamento e dominação que já vinham se desfazendo naturalmente e que, por isto mesmo, são ansiosamente defendidos.  Tal como nos Estados Unidos, estas parcerias foram estabelecidas inicialmente através do uso inovador das novas redes de comunicação social, De forma simétrica ao discurso do PT em nome do “povo” contra a “herança maldita” e as “elites”, elas foram reforçadas pela ressureição do antigo discurso integralista de Deus, Pátria e Família e contra a corrupção. Com Bolsonaro no governo, esta rede passou a ser alimentada diretamente com subsídios, distribuição de cargos e outras formas de organização e institucionalização, incluindo o estímulo ao armamento da população civil.

Estas redes de interesse e a ação sistemática de determinadas correntes políticas para estabelecer alianças e mobilizar apoios não são facilmente capturadas por pesquisas de opinião que medem as atitudes e orientações dos eleitores por amostras e grupos focais, e, por isto, não aparecem com destaque no livro de Nunes e Traumann. Mas, sem esta análise não conseguimos saber qual a profundidade e a resiliência da calcificação ideológica que eles postulam. Existem autores que estimam que o “núcleo duro” do PT, ou seja, eleitores vinculados a suas redes de organização, mobilização e favorecimento de interesses, seria da ordem de 15 a 20% do eleitorado, e as redes criadas pelo bolsonarismo teriam um tamanho semelhante. Além das pessoas que participam diretamente de suas redes, a força das diferentes correntes depende também, naturalmente, da quantidade de pessoas atraídas ou convencidas  por sua retórica, que é mais incerta. As eleições de 2022,  como o livro mostra, foram decididas em grande parte pelo voto contra, e não a favor de um ou outro lado. Isso significa que cerca de 60% do eleitorado estaria, em princípio, disponível para apoiar outras correntes políticas que conseguissem organizar e representar seus interesses de forma mais efetiva.

Um tema central nesta questão é o lugar e o que se pode esperar da democracia. Os estudos de opinião pública, comportamento eleitoral e sistemas partidários em todo o mundo mostram a fragilidade da ideia de que os governos democráticos são a  simples expressão direta da “vontade do povo”. Isto não justifica, no entanto, a tese dos movimentos políticos de extrema esquerda e direita de que os regimes políticos não importam, porque não passam de instrumentos de dominação de determinados grupos sobre outros. Um conceito mais apropriado de democracia é que ela é uma forma de governo legitimada por um processo político aberto, que garante que o poder de determinados setores não se perpetue e exerce funções importantes de administrar conflitos e garantir o pluralismo e os direitos civis, políticos e sociais dos cidadãos, e sobretudo das minorias. A grande fragilidade dos regimes democráticos é que os setores mais interessados em sua manutenção são, em geral, os menos motivados e capacitados para se organizar e mobilizar a sociedade para defendê-la, em contraste com seus opositores nos extremos.  Ao final de seu livro, Nunes e Traumann falam sobre os problemas da democracia e dizem, com razão, que a única maneira de defendê-la é com mais democracia e o fortalecimento das instituições e da cidadania. É isto, e não a mera exortação às elites políticas para que se comportem e coloquem limites aos ataques mútuos, que pode reestabelecer um mínimo de convivência na política brasileira e fortalecer a democracia.

Em meu texto anterior, eu dizia que havia indícios de que polarização do início de 2023 parecia que havia se arrefecido, não que havia desaparecido. Para saber o quanto,  vamos ver em que medida os resultados das próximas eleições municipais dependerão de alinhamentos ideológicos ou de circunstâncias locais, e sobretudo como serão as eleições de 2026.

Referências

Campbell, Angus, Phillip Converse, Warren E. Miller, and Donald E Stokes. 1960. The American Voter. New York: Willey.

Converse, Philip E. 1964. “The nature of belief systems in mass publics.” Critical review 18(1-3):1-74.

Downs, Anthony. 1957. “An economic theory of political action in a democracy.” Journal of Political Economy 65(2):135-50.

Friedman, Jeffrey, and Shterna Friedman. 2018. The nature of belief systems reconsidered: Routledge.

Hacker, Jacob S, and Paul Pierson. 2014. “After the “master theory”: Downs, Schattschneider, and the rebirth of policy-focused analysis.” Perspectives on Politics 12(3):643-62.

Katz, Elihu, and Paul Felix Lazarsfeld. 1964. Personal influence the part played by people in the flow of mass communications. New York, N.Y: Free Press of Glencoe.

Lazarsfeld, Paul Felix, Bernard Berelson, and Hazel Gaudet. 1968. The people’s choice how the voter makes up his mind in a presidential campaign. New York: Columbia University Press.

Schattschneider, E. E. 1960. The Semi-Sovereign People – a realist view of democracy in America. New York: Holt. Rinehart and Winston.

A grande calmaria

(Publicado em O Estado de São Paulo, 12 de janeiro de 2024)

O Brasil está uma maravilha, neste início de ano, com inflação e desemprego em queda, a bolsa subindo, PIB crescendo a quase 3% ao ano, e o Congresso aprovando a reforma tributária, saudada por quase todos como revolucionária. E 2023 culminou com churrasco de confraternização na Granja do Torto com a presença do presidente do Banco Central, que o Presidente Lula pouco antes acusava de sabotar a economia. Apesar das comemorações desta semana, é difícil lembrar que, um ano atrás, o país parecia rachado em dois extremos que se odiavam, tentativa de golpe de estado, as contas públicas em frangalhos, e o Congresso mais conservador já eleito na história, ameaçando tratar o executivo a pão e água.

Dois fatores parecem explicar esta reviravolta. Primeiro, a entrada inesperada de grande volume de recursos, graças ao fortalecimento do mercado internacional de commodities, melhoria da economia americana e perspectiva de arrecadação extraordinária de impostos de petróleo e gás. Segundo, a grande conciliação das elites políticas, com a desmontagem da Lava Jato promovida pelo judiciário e a entrega de grande parte do orçamento público para o congresso comandado pelo Centrão, iniciados no governo Bolsonaro e continuados no primeiro ano do governo Lula.

Os processos do Petrolão e da Lava-Jato foram importantes não somente por escancarar a corrupção que prevalecia nos altos níveis de governo, mas principalmente por acender a esperança de que estava se fortalecendo no Brasil um novo judiciário, forte e independente, capaz de criar padrões mais estritos de moralidade e uso dos recursos públicos. Independentemente dos erros formais e abuso de poder que possam ter havido, o fato é que a prevalência das doutrinas “garantistas” e o fim das condenações em segunda instância acabou por liberar a todos e consagrar a ideia de que, no Brasil, ninguém que tenha suficiente dinheiro e bom relacionamento jamais será punido. Apesar das juras, vamos ver se será diferente com os mentores da tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, nenhum indiciado pela justiça um ano depois.  É este judiciário desvertebrado que agora é chamado a enfrentar a violência e o domínio do crime organizado sobre a população  dos grandes centros urbanos e regiões de fronteira, com relações pouco claras com as oligarquias locais.

No regime democrático, o Congresso tem a responsabilidade de aprovar o montante e o direcionamento dos gastos públicos, e o Executivo, sua aplicação. Mas o que vem acontecendo no Brasil, com os fundos partidários, eleitorais e emendas parlamentares, sobretudo a partir do orçamento secreto instituído no governo Bolsonaro, é que o Congresso  tem se apossado de fatias cada vez maiores dos recursos públicos para que os parlamentares distribuam conforme seus interesses pessoais. A isto se soma a apropriação privada dos recursos públicos pela proliferação dos “jabutis”, textos introduzidos em leis em benefício de grupos de interesse especiais. São estes jabutis que deformaram a lei de privatização da Eletrobrás e infestaram a emenda constitucional da reforma tributária, criando uma infinidade de privilégios. Uma característica deste Congresso insaciável é o poder crescente do presidente da Câmara de Deputados, um quase segundo-ministro que negocia apoio ao executivo em troca da distribuição de verbas, favores e privilégios.

Uma das principais consequências desta grande conciliação é que a polarização ideológica, que teria dominado a política brasileira até as eleições de 2022, parece ter arrefecido.  A esperança de muitos que apoiaram a eleição de Lula foi que ele abrisse espaço para uma grande coalizão que pudesse levar à frente políticas sociais mais inteligentes e as reformas políticas e institucionais que começaram a ser implementadas para lidar com crise de 2015 e suas causas. Mas ele preferiu tentar ressuscitar o Lula II, negar que o desastre de Dilma tivesse existido, voltar às velhas práticas e pagar o preço da governabilidade exigido pela “banda podre” da política. Foi por isto, me parece, que ele quase perdeu a eleição, com pouco apoio da população mais educada e dos estados mais desenvolvidos, quando poderia ter ganho por ampla maioria. E é por isto que suas prioridades, em temas como políticas de renda, defesa de direitos sociais e de minorias, meio ambiente, saúde pública, educação, habitação etc., ficam sobretudo no nível da retórica e na dependência das flutuações da economia internacional sobre as quais não tem controle. Isso vale também para sua política externa, com a grande distância entre o ativismo das viagens e declarações sonoras e a identificação clara dos interesses do país. A grande exceção é Fernando Haddad, que precisa matar um leão por dia, à esquerda e à direita, para  tentar manter a economia nos trilhos.

Olhando a crise profunda em que se meteu a Argentina, temos que dar graças a Deus, que é brasileiro, pela calmaria em que entramos em 2024. Com sorte, pode ser que o navio não afunde, embora seja certo que dificilmente enfunará as velas.

Ascensão e queda dos Chicago Boys

(publicado em O Estado de São Paulo, 8 de dezembro de 2023)

Entre 1980 e 2019, a economia chilena foi a que mais cresceu na América Latina, enquanto a proporção de pessoas vivendo em situação de pobreza baixou de 53 para 6%. Esta história de sucesso se explica pelas políticas que Sebastian Edwards, em livro recente, chama de “neoliberais”, entendidas não somente como a aposta nos benefícios da economia de livre mercado, mas também pela convicção de que as regras competitivas devem valer para outras áreas como as da educação, saúde, habitação e previdência social (The Chile Project: the story of the Chicago Boys and the downfall of neoliberalism, Princeton, 2023). Estas políticas foram introduzidas nos anos da ditadura militar de Augusto Pinochet,  entre 1973 e 1990, e continuadas nos 20 anos seguintes em que o Chile foi governado democraticamente pela “concertación” de socialistas e democratas cristãos.  Além de manter a economia de mercado, estes governos passaram também a investir nas áreas de saúde pública e educação, e foi a partir daí que a economia mais cresceu,  a pobreza mais se reduziu, e a qualidade da educação melhorou.

E no entanto, a partir de 2016 a política chilena se polarizou cada vez mais, com os governos de esquerda e direita de Michelle Bachelet e Sebastian Piñera se alternando.  Em 2019 o país foi sacudido por violentas manifestações populares que resultaram em um novo e jovem presidente,  Gabriel Boric, oriundo dos movimentos de protesto.  Com ele foi eleita uma assembléia constituinte que elaborou  uma nova constituição que prometia pôr fim ao neoliberalismo e implantar uma nova sociedade baseada na garantia dos direitos sociais,  economia social de mercado e estado plurinacional, com o reconhecimento da autonomia das populações indígenas.  O texto, no entanto, foi rechaçado pela maioria da população em um plebiscito, e agora uma outra constituição, muito mais conservadora, está sendo preparada,  com a chance de ser também desaprovada em um plebiscito no próximo dia 17 de dezembro.

A preocupação de Edwards, com este livro, foi entender por que uma história inicial de sucesso redundou no aparente consenso de que havia sido um fracasso, e o que se pode esperar para o futuro não somente para o Chile, mas para todos os países da região que, nos últimos tempos, têm alternado entre governos de direita e esquerda, liberais (ou neoliberais) e estatistas, sem que mostrem resultados consistentes. As políticas pró-mercado dos Chicago Boys tiveram o pecado original de terem sido implantadas à sombra de uma ditadura sangrenta, mas a manutenção de muitas destas políticas pelos governos democráticos nos anos posteriores indicava que devia ser possível separar uma coisa da outra.

Parte do problema foi que, ao lado dos indicadores de sucesso, estas políticas tiveram pelo menos dois resultados negativos: a desigualdade, que continuou alta,  e o sistema previdenciário de capitalização, em que as aposentadorias dependem dos rendimentos de investimentos privados de cada um ao longo da vida.  Edwards mostra que os que apoiavam estas políticas não acreditavam que a desigualdade seria um problema, desde que a pobreza diminuísse, e não consideravam os profundos efeitos negativos de uma sociedade econômica e socialmente dividida. E o fracasso do sistema previdenciário, em que as pessoas chegavam à aposentadoria sem o mínimo de condições para se manter, colocou a classe média, que aparentemente se beneficiava do crescimento da economia,  em situação de grande insegurança.

São problemas que poderiam, em princípio, ser administrados com políticas mais adequadas de saúde, educação e proteção social, que os diversos governos democráticos buscaram implantar.  Mas Edwards crê que o problema era mais profundo, e tinha a ver com as grandes desigualdades sociais e com a arrogância dos políticos e economistas que não atentaram para os problemas e tensões que vinham se acumulando. Ele não acredita, como eu também não, que economias fortemente estatizadas e apoiadas em movimentos sociais, como tentado por Salvador Allende no passado  e por outros governos de esquerda mais recentemente, consigam produzir melhores resultados. Mas não é fácil chegar a um equilíbrio adequado entre incentivos de mercado e políticas sociais, e os economistas não têm instrumentos para entender e lidar com as desigualdades que ele chama de “horizontais”, de natureza social e cultural, que vão muito além das diferenças de renda e dividem tão profundamente a sociedade  chilena e de outros países da região. Em última análise, diz ele,  os defensores da economia de mercado se acomodaram com seu sucesso e perderam a batalha das ideias, incapazes que foram defender seus resultados e lidar com os temas emergentes da perda de  identidade,  insegurança e ressentimento que muitas vezes são a outra cara do desenvolvimento capitalista. Edwards não cita, mas seu livro faz lembrar um livro clássico, A Grande Transformação, de Karl Polanyi, de 1944, que fala sobre a fratura entre sociedade e economia trazida pelo capitalismo selvagem, à qual ele atribui as guerras grandes que destroçaram a Europa.  Vale a pena reler

O futuro das forças armadas

(Publicado em O Estado de São Paulo, 10 de fevereiro de 2023)

A tentativa frustrada de Jair Bolsonaro de jogar as “suas” forças armadas na aventura de um golpe não deu certo, detida que foi pela atuação firme do judiciário e pelo profissionalismo dos principais comandantes, mas serviu para recolocar na agenda a questão do papel dos militares na sociedade brasileira.  O governo Lula procurou reagir aplacando os militares, oferecendo apoio a seus projetos de modernização e reunindo os comandantes com empresários, acenando com o ressurgimento da fracassada indústria nacional de armamentos, tentada pelo regime militar na década de 70. Quem sabe que, assim, eles deixariam a política de lado, e ficariam tranquilos em suas casernas?…

É preciso ir mais a fundo, e nas últimas semanas muitas ideias e propostas têm circulado sobre como repensar o papel das forças armadas, em substituição à antiga doutrina de segurança nacional que imperou durante a guerra fria, e que se tornou obsoleta com o fim do regime militar em 1985 e a dissolução da União Soviética em 1991. 

Esta doutrina sempre teve duas caras. Uma, o princípio reiterado de que a “função precípua” das forças armadas seria a defesa do país contra eventuais inimigos externos em uma guerra convencional, que, fora a Guerra do Paraguai e contingente da FEB na Segunda Guerra, nunca se materializou. A outra, a atuação em questões internas, como a construção das redes de telégrafos dos tempos de Rondon, a presença na região Amazônica e nas áreas de fronteira e a doutrina de segurança nacional, justificando os governos militares após 1964. Também fez parte desta doutrina vários projetos militares de desenvolvimento tecnológico, incluindo o programa nuclear do Almirante Álvaro Aberto, nos anos 50, o projeto de submarino nuclear da Marinha, o Centro Tecnológico da Aeronáutica em São José dos Campos e as empresas de indústria bélica – Engesa, Avibras e Embraer. Destes, o único claramente bem-sucedido foi a Embraer, que se transformou em uma multinacional privada de natureza predominantemente civil. As forças armadas brasileiras consomem anualmente cerca de 1.6% do PIB, 115 bilhões de reais, 80% dos quais para pagamento de pessoal, um contingente de cerca de 350 mil pessoas na ativa, e existem propostas para aumentar estes gastos ainda mais. Quanto desta antiga doutrina ainda é válida, e quanto precisaria ser modificada, dado o novo cenário da política internacional, as revoluções havidas na tecnologia militar e civil, e a consolidação da democracia brasileira? 

A doutrina oficial está consubstanciada em três documentos encaminhados pelo Ministério da Defesa ao Congresso Nacional em 2020, a Política Nacional de Defesa, a Estratégia Nacional de Defesa e o Livro Branco de Defesa Nacional. Documentos como estes deveriam ser periodicamente revistos e aprovados pelo Congresso, mas na prática eles não têm sido discutidos, e nem chegam à opinião pública. Lendo estes documentos, nota-se a ênfase em três prioridades estratégicas de cunho tecnológico, a nuclear, a espacial e a cibernética. Felizmente, o Brasil renunciou há décadas à pretensão de desenvolver armas nucleares, e o projeto do submarino nuclear, que se arrasta há mais de 30 anos, corre o risco de resultar em equipamentos que já nascem tão obsoletos quanto nossos porta-aviões.  O programa especial sofreu um golpe terrível com tragédia de Alcântara de 2003, quando 21 especialistas morreram em uma explosão do que seria o lançamento do primeiro foguete espacial brasileiro, e desde então as tecnologias espaciais evoluíram enormemente, ficando cada vez mais longe de nosso alcance. A área de segurança cibernética é cada vez mais crucial para garantir o funcionamento da sociedade brasileira em todos os aspectos, e exigiria, para ser bem-sucedida, uma concentração de investimentos e recursos humanos que estamos longe de fazer.

Parece claro, olhando este conjunto, que uma política atualizada de segurança nacional deveria se concentrar em alguns temas e áreas críticas de natureza local, como a proteção das fronteiras, da costa e da região amazônica, do meio ambiente e dos recursos nacionais. É preciso evoluir para um contingente muito menor, tecnicamente qualificado e apoiado por equipamento tático, com capacidade de deslocamento e intervenção rápida, e não em equipamentos mais pesados e típicos de guerras convencionais passadas. O serviço militar obrigatório, que já não funciona, precisa ser substituído por um contingente mais profissional e mais aberto a especialistas de formação civil. Para a defesa estratégica contra eventuais inimigos externos, não temos como agir sozinhos, e precisamos participar de alianças e instituições que contribuam para a defesa dos regimes democráticos, da estabilidade política e da cooperação internacional, nas esferas econômicas, ambientais e de manutenção da paz. Para o desenvolvimento de nossa tecnologia, precisamos de uma economia aberta e fortes parcerias entre instituições militares e civis, públicas e privadas.

A questão da intervenção dos militares na política é o passado. O futuro é a contribuição que as forças armadas, renovadas, podem e precisam dar ao país.

A onda bolsonarista

Como tanta gente, acompanhei surpreso, na noite de 2 de outubro, os números da onda bolsonarista, inesperada não só para os institutos de pesquisa quanto para a grande maioria dos analistas da política brasileira.

O que explica estes resultados, a força ideológica do bolsonarismo, expressão de um conservadorismo persistente que existiria na sociedade brasileira, ou a incapacidade do PT e do ex-presidente Lula de reduzir a rejeição provocada pelos escândalos de corrupção e pela crise econômica que resultou de seus governos? 

O bolsonarismo se alimenta de duas fontes, a agenda ideológica e pseudo moralista de Deus, Pátria e Família, e a descrença generalizada nas instituições políticas do país, além do uso abusivo dos recursos públicos da presidência. Para ver a força da agenda ideológica, um caminho é examinar seu apoio nos meios religiosos.  A pesquisa Latinbarometro, realizada anualmente com uma amostra de cerca de mil pessoas no Brasil, mostrava que, em 2020, a avaliação média do governo de Bolsonaro era 4,5 em uma escala de 0 a 10, ou seja, negativa. Ela subia para 5,1 entre pessoas que se diziam religiosas praticantes, cerca de um terço da amostra, e para 6 ou 7 em alguns grupos específicos, como pentecostais e evangélicos, que são, no entanto, uma minoria. A aprovação subia entre pessoas que se consideram mais ricas, mas não entre as pessoas mais educadas. Se a agenda moralista está associada à religiosidade, pode-se concluir que ela tem um peso, mas relativamente menor.  

Mais importante do que a agenda ideológica é a descrença na democracia e nas instituições. Em 2020, 46% dos brasileiros acreditavam que a democracia é o melhor governo, 13% diziam que um governo autoritário pode ser melhor em certas circunstâncias, e 40% diziam que, para elas, tanto fazia um governo democrático ou não. Em comparação, em 2010 o apoio à democracia era de 61%, e a indiferença era de 17%. Esta deterioração na crença da democracia é maior entre os bolsonaristas, 20% dos quais acreditavam que um governo autoritário poderia ser melhor. Mas a indiferença em relação ao regime democrático era grande entre todos, sobretudo entre os mais pobres, em que chegava próximo a 50%. Isto significa que o argumento de que é preciso defender a democracia contra o bolsonarismo não é suficiente para reduzir seu apoio em grande parte da população. É esta descrença generalizada na democracia e nas instituições, me parece, que explica tantos votos dados a candidatos ao legislativo cujo único mérito foi fazer coro à retórica autoritária do presidente.

A deterioração da crença na democracia se deve, sem dúvida, à crise que levou ao fim dos governos do PT e abriu espaço para a agenda antidemocrática e reacionária de Bolsonaro. O apoio atual de Lula se deve, em parte, à memória de sua imagem e dos benefícios que distribuiu nos primeiros anos de seus governos, sobretudo entre a população mais pobre dos estados do Nordeste, mas ele não conseguiu convencer a muitos mais de que agora seria diferente, e que a agenda democrática tem agora, para ele, a importância que não tinha antes.

Será que, de fato, ele mudou, ou tem condições de mudar? No início da campanha, o apoio de Geraldo Alckmin e uma primeira entrevista reconhecendo a corrupção passada e tentando se distanciar das políticas econômicas desastrosas do governo Dilma parecia indicar uma mudança. Mas o que se viu, sobretudo no último debate, foi o velho Lula, sozinho, tentando fugir das acusações de corrupção e repetindo os números do que havia conseguido nos primeiros anos de vacas gordas de seu governo.  Terminada a apuração, Lula se dirigiu a um palanque na Avenida Paulista com a velha guarda de sempre, inclusive a companheira Dilma, para comemorar a vitória apertada, como se a votação tivesse sido a prova de que nada haviam feito de errado antes. Mas também reconheceu que precisa agora dizer com clareza o que pretende fazer e com quem pretende trabalhar, para manter sua vantagem eleitoral e, sobretudo, não levar o país a uma nova crise, devolvendo o Brasil ao bolsonarismo em 2026.  

Alguns dias antes do primeiro turno, eu havia circulado uma nota defendendo o voto útil a favor de Lula.  Dizia que a grande novidade desta eleição era a candidatura de Simone Tebet, que não nutria nenhum entusiasmo pela candidatura de Lula, mas que levava a sério as repetidas ameaças golpistas do presidente. Era importante decidir logo no primeiro turno, para garantir a democracia; e que depois teríamos que lidar com o que fosse preciso, de forma civilizada.   Acho que consegui convencer a alguns. Outros objetaram que as ameaças golpistas não eram críveis e que seria melhor para o país ter um segundo turno, em que Lula fosse levado a dizer a que veio e negociar um acordo amplo para conseguir vencer, do que dar-lhe a carta branca de uma vitória no primeiro. O voto útil veio, mas a favor de Bolsonaro.Agora é a hora de Lula acabar de entender que o passado não tem volta, e ajudar a abrir caminho para um país com esperanças renovadas.

Meu voto útil

Simone Tebet é, sem dúvida, a grande novidade e a melhor candidata nesta eleição presidencial. Firme, inteligente, com um sólido currículo político apesar de muito jovem, desenvolveu um excelente plano de governo buscando contribuições nos diferentes setores da sociedade, tem se saído muito bem nos debates, e inspira confiança. Ela faz parte de uma nova geração de mulheres e homens que estão tentando tirar o sistema político brasileiro, e o próprio governo federal, do lamaçal em que se meteu, e que merecem e precisam de todo o apoio para se fortalecer politicamente. 

Ciro Gomes também é convincente nas críticas que faz ao antigo e atual presidente, e tem algumas propostas interessantes, sobretudo na área da educação, baseadas da bem-sucedida experiência do Ceará. Por outro lado, creio que o “Projeto Nacional de Desenvolvimento” que propõe não resiste a uma análise econômica mais aprofundada.

Infelizmente, nenhuma das duas candidaturas se tornou viável. Ciro Gomes sempre jogou sozinho, movido muitas vezes pelo ressentimento, e nunca teve chance de crescer politicamente. Simone Tebet foi o melhor que se conseguiu na busca de uma candidatura de terceira via que pudesse dar ao país uma alternativa à polarização entre o PT e Bolsonaro, mas entrou na competição tarde demais e com pouco apoio, vítima do jogo infindável de interesses locais do MDB e PSDB. 

Tenho muita dificuldade em entender como pessoas minimamente informadas podem ainda apoiar Jair Bolsonaro. Para quem não sabia dos anos que passou convivendo com o baixo clero da Câmara de Deputados e se enriquecendo nas relações com o submundo da política e das milícias cariocas, sua plataforma conservadora, de combate à corrupção, liberalismo econômico e conservadorismo social, poderia ter sido convincente, sobretudo depois do desastre dos últimos governos do PT.  Mas seus quatro anos de mandato deviam ter sido suficientes para mostrar que não se tratava na verdade de um político conservador, mas de um homem disposto a tudo para manter seu poder e de seus familiares, destruindo instituições, desmontando o orçamento público, estimulando a violência e querendo se impor como ditador.

Resta Lula. Tenho também dificuldade em entender como pessoas informadas possam se entusiasmar com sua candidatura. É verdade que, no primeiro mandato, seu governo manteve uma política econômica equilibrada e deu início a importantes programas sociais. Mas depois perdeu o rumo, e nem ele nem o PT reconheceram os erros que jogaram o país na pior crise econômica da história. Havia a corrupção, com a qual Lula e seus companheiros foram no mínimo coniventes, e sobretudo erros colossais de política econômica e social, que fizeram com que o país desperdiçasse a grande oportunidade que foi a reorganização da economia trazida pelo plano real e os recursos do “commodities boom”, a alta dos preços internacionais dos produtos de exportação brasileiros.

Em tempos normais, meu voto no primeiro turno seria para Simone Tebet, mesmo sem chances de ganhar, ajudando a fortalecer sua presença na política nacional. Mas não estamos em tempos normais, com as ameaças de golpe e ataques diários de Bolsonaro ao sistema eleitoral.

Não há nenhuma certeza de que em um futuro governo liderado por Lula prevalecerá o bom senso, abrindo espaço para as reformas econômicas, institucionais e fiscais que o país necessita para romper o círculo vicioso da estagnação econômica e pobreza, e para as políticas sociais e ambientais de qualidade que se tornam cada dia mais urgentes. A seu favor está o esforço para sair do círculo fechado do PT e construir uma grande aliança de apoios, e o histórico de respeito à independência da polícia federal e do judiciário de seus governos. 

 Haverá acertos e erros, mas, sobretudo, um regime democrático em que os governos podem ser criticados e substituídos quando necessário.  É preciso decidir a eleição logo no primeiro turno, para garantir a democracia. Depois teremos que lidar com o que for preciso, de forma civilizada.

O Golpe da Independência

(Publicado em O Estado de São Paulo, 9 de setembro de 2022)

Cem anos atrás, o Brasil comemorava um século da independência com uma grande exposição internacional no Rio de Janeiro, em que se celebrava a entrada do país na modernidade do rádio e da eletricidade.  Havia nela o Pavilhão da Estatística dedicado à “ciência da certeza”, que apresentava os resultados do censo brasileiro de 1920, o primeiro em quase cinquenta anos[1]. Fake news, nunca mais! 1922 foi também o ano da Semana de Arte Moderna, em que pintores e escritores se propunham a mostrar o Brasil como ele era e falava de verdade, do Macunaíma de Mário de Andrade aos operários de Tarsila do Amaral, livres das amarras da pintura clássica e do português castiço das velhas elites, educadas em Coimbra.

O tema era o Brasil do futuro, e ninguém olhava muito para o dia em que, cem anos antes, a Família Real dera um golpe de estado contra a revolução liberal portuguesa, que limitava seus poderes, e colocara a coroa brasileira na cabeça do herdeiro, Pedro I, “antes que um outro aventureiro o faça”, como diz a lenda. Mas a República Velha não se movia, e o povo, que havia assistido bestializado ao fim do Império, continuava sem entender o que República e mundo moderno lhes traziam.

Cinquenta anos depois, o Sete de Setembro foi comemorado olhando para trás, com o traslado do corpo de D. Pedro para o Brasil. Eram os anos de chumbo, a repressão do governo militar brasileiro chegava a seu auge e Portugal vivia sob a ditadura do Estado Novo salazarista. Nada melhor do que o cadáver do jovem e impetuoso imperador para celebrar esta comunhão, trazido com todas as honras para repousar no Museu do Ipiranga. Faltava, no entanto, o coração, guardado no formol, que volta agora finalmente para o Brasil, neste bicentenário que quase ninguém comemora e em que os fantasmas do autoritarismo e da violência política voltam a assombrar.

O que se comemora as festas nacionais dos diversos países? Nos Estados Unidos, o 4 de julho marca o dia, em 1776, em que representantes das 13 colônias, reunidos em um congresso, declararam sua separação da Grã-Bretanha; na França, o 14 de julho celebra a queda da Bastilha, em 1787, que marca o fim do absolutismo monárquico; no Chile, o 18 de setembro comemora a organização do primeiro governo autônomo do país; na Noruega, o 17 de maio celebra a primeira constituição, de 1814. São todas de uma mesma época, de surgimento dos estados nacionais, com seus três componentes centrais: um Estado moderno, ou seja, um governo organizado, com capacidade de angariar e utilizar bem recursos técnicos, financeiros e militares; cidadãos compartilhando a mesma história, e dotados de direitos civis, políticos e sociais; e um território definido em que esta população vive, com fronteiras mantidas e defendidas pelo Estado e seus cidadãos, de forma soberana.

Dos três, o Brasil independente herdou um imenso e quase desconhecido território; um estado patrimonial organizado para cobrar impostos e explorar as riquezas dos territórios que dominava; e uma população formada sobretudo por negros escravizados, indígenas, brancos e mestiços empobrecidos e analfabetos, vivendo no campo e na periferia das cidades. Desde a Colônia que setores da população se revoltavam contra os governantes, reivindicando autonomia, mas foram sufocados um a um. No Segundo Reinado, estavam todos dominados, com o Imperador e uma pequena elite brincando de democracia constitucional. 

Havia pessoas, mas não cidadãos, por muito mais tempo do que deveria e poderia. Se estima que, quando os portugueses chegaram, cerca de 5 milhões de nativos viviam no território brasileiro. Trezentos anos depois, estes povos haviam sido exterminados ou se refugiado no interior desconhecido. No primeiro censo brasileiro, de 1872, dos dez milhões de recenseados, menos de 5% foram classificados como indígenas, e desapareceram dos censos seguintes, até serem relembrados recentemente. Nos países em que os habitantes se tornaram cidadãos, a educação pública deve um papel central. Nos Estados Unidos, na época da independência, 60% da população já sabia ler; em meados do século 19, eram quase 100%. Na Noruega, a educação pública já era obrigatória desde meados do século 18. No Chile e Argentina, políticos intelectuais como Domingo Faustino Sarmiento e Andrés Bello estimularam a criação das primeiras redes de escolas públicas e de universidades modernas em meados do século 19. No Brasil, o tema da educação pública só começa a ser discutido na década de 1920, a primeira universidade é de 1934, e em 1960 metade da população era ainda analfabeta.

Se o lado positivo dos novos estados nacionais foi a formação da cidadania e o desenvolvimento de um setor público representativo e capaz de apoiar e proteger seus cidadãos, o lado negativo foi o nacionalismo e o militarismo, jogando uns povos contra outros e enaltecendo o culto das armas e da violência. É bonito quando um povo celebra sua identidade e sua história dançando nas ruas e se confraternizando, como no Chile e na Noruega; mas triste quando o faz desfilando tanques e cultivando cadáveres.


[1] Sobre as comemorações da independência e a história das estatísticas públicas no Brasil, veja a publicação recente do IBGE, As estatísticas nas comemorações da independência do Brasil (2022), editado por Nelson de Castro Senra.

O Último dos Tucanos

(Publicado em O Estado de São Paulo, 8 de julho de 2022)

José Serra entra para a história como o único Senador que votou contra o estupro da Constituição e do teto orçamentário perpetrado pelo Congresso. É o último da geração de políticos tucanos que lutaram contra a ditadura militar, saíram do antigo MDB para criar o PSDB quando o partido foi dominado pela política corrupta de Orestes Quércia, conseguiram deter a inflação e reorganizar a economia do país, dando início às políticas sociais, e entregaram o governo de forma civilizada em 2002, quando Lula ganhou as eleições. 

Espero que a “Pec Kamikaze” não seja suficiente para manter no poder o bando fascista de Bolsonaro, mas Lula não ajuda.  Como os antigos reis Bourbons, ele nada esquece e nada aprende. Seu comentário sobre a PEC foi que, no seu governo, os orçamentos seriam aprovados com a “participação da sociedade”, como se quatro mandatos presidenciais não bastassem para saber que não é a assim que orçamentos federais são aprovados e administrados. Sobre os preços dos combustíveis, defendeu a reestatização da Petrobrás, que seus governos levaram quase à falência. Antes havia falado contra os políticos “sem alma” que só se preocupam com o teto de gastos e o equilíbrio orçamentário, e não com as necessidades do povo sofredor. Como se só ao “mercado” interessasse ter uma economia vigorosa e estável, capaz de criar empregos e pagar bons salários, e que os recursos públicos sejam destinados a investimentos e políticas sociais de qualidade, e não aos bolsos dos políticos e das corporações com mais capacidade de pressão.   Sobre os escândalos de corrupção no Ministério da Educação, o único que fez foi balbuciar algo sobre o direito de defesa dos acusados, como que temendo o fim do “garantismo” judiciário que faz que, no Brasil, todos os crimes de políticos sejam perdoados. E, machão, não se comoveu com os crimes de assédio sexual que derrubaram o presidente da Caixa Econômica, dizendo que não era policial nem procurador.

Rejeitados pela maioria da população, os dois candidatos entram em um processo eleitoral que será turbulento, e cujo ganhador herdará um país exausto e em frangalhos. Como explicar que não tivesse surgido um terceiro nome? Temos Simone Tebet tentando ocupar este espaço, mas que começa enfraquecida pelo próprio processo em que sua candidatura se formou, por uma negociação interminável dos interesses locais dos velhos partidos. E temos Ciro Gomes, sozinho, golpeando à esquerda e à direita, incapaz de sair de sua bolha. Mesmo que uma destas candidaturas consiga crescer – o que não é impossível, porque os eleitores decidem seus votos na última hora, como vimos recentemente na Colômbia – o futuro presidente dificilmente terá condições de pôr fim à crise fiscal e à usurpação dos recursos públicos pelos congressistas do centrão, que puxam o país para o fundo.

Por três vezes tentamos deixar os políticos de lado elegendo um presidente “contra tudo que está aí”, e os três casos – Jânio, Collor e Bolsonaro – resultaram em desastre.   Os exemplos recentes de líderes populistas na região, como Lopes Obrador no México e Petro Castillo no Peru, sem falar de Hugo Chávez e Maduro na Venezuela, mostram que o problema é mais geral. Em seminário recente na Fundação Fernando Henrique Cardoso, o professor Steve Levitsky lembrou dos três pilares das democracias modernas, apesar de suas imperfeições – partidos políticos estruturados, uma imprensa prestigiada e capaz de formar a opinião pública, e grupos de interesse fortes e diversos comprometidos com a estabilidade política. Hoje estes pilares estão minados pelos “três Ps” mencionados em artigo recente de Moisés Naím – o populismo, a polarização, acentuada pelas políticas identitárias, e a pós-verdade das redes sociais.

Quatro anos atrás, com o derretimento do PT, a crise econômica se aprofundando e as manifestações de protesto crescendo, surgiram várias tentativas de organizar movimentos que buscavam substituir os políticos tradicionais por uma nova geração de líderes, mais bem formados e comprometidos com os temas da desigualdade social, aperfeiçoamento do Estado, moralidade pública e desenvolvimento econômico e social. Mas foram tentativas pequenas e dispersas, que não conseguiram fazer muita diferença. Tomara que, no futuro, possa haver uma convergência virtuosa de novos líderes e uma nova geração de políticos, retomando as bandeiras dos velhos tucanos e trazendo para o país novas perspectivas. 

Falavam tempos atrás que o Brasil crescia de noite, quando os políticos dormiam. Lembro de o velho Antônio Carlos Magalhães dizendo que, durante a noite e nos fins de semana, nos conchavos políticos no Palácio de Ondina, desfazia as boas medidas que que tomava durante o dia como governador da Bahia. Em alguns momentos, de fato, os ventos da economia internacional, como os ciclos favoráveis das commodities, ajudaram a economia a andar apesar de tudo, e não faltam exemplos de políticos virtuosos e iniciativas locais e regionais bem-sucedidas que mostram que nem tudo está perdido. Mas não será fácil.

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