Book Review
Benedicto
Valladares, Tempos Idos e Vividos - Memórias (Rio de Janeiro,
Ed. Civilização Brasileira, 1966).
Simon Schwartzman
publicado em Dados, vol. 6, 1969, p. 151-153
A elegância literária, quase machadiana, destas memórias de Benedicto Valladares
as vezes oculta a importância política do depoimento do homem que chegou
a simbolizar o mito do "político mineiro". Esta importância existe, entretanto,
pelo menos a dois níveis. O primeiro, mais manifesto, se refere aos acontecimentos
históricos cuja "inside story" é revelada pela primeira vez, e à luz que
Benedicto Valladares projeta nas ações e estilos de muitos dos representantes
mais distinguidos de nossa classe política. O outro nível mais latente,
que nos interessa aqui, é o que se refere ao sistema político no qual o
autor surgiu e se projetou. Quais são os mecanismos que levam à vitória
e sobrevivência de uns, e derrota de outros? Quais são os valores e princípios
que norteiam a vida pública dos que ganham? Se pensamos que, na esteira
do sucesso de Valladares, vieram nomes tais como Juscelino Kubitschek, Israel
Pinheiro, José Maria Alkimin, e tantos outros, a relevância destas perguntas
se torna evidente.
O primeiro que chama a atenção nestas memórias é a linguagem direta e factual,
sem justificações ou racionalizações de tipo filosófico ou moralista. Existem
dois tipo. de fatos narrados no livro, um primeiro relativo às manobras
políticas, e o segundo referido ao exercício do poder, como líder político
e governador. Basta, a Benedicto Valladares, mostrar alguns exemplos de
brandura e magnanimidade com os inimigos derrotados, e apresentar uma lista
de realizações de sua administração, para sentir-se justificado nas manobras
e negócios políticos que o elevam e mantêm por muitos anos no controle da
política mineira, e conseqüentemente como uma das figuras centrais na política
brasileira.
A tônica principal da estratégia política de Valadares é a fidelidade quase
que absoluta a Vargas. Em oposição a Antônio Carlos, que tratava de usar
sua força no estado para chegar à presidência, assim como a Gustavo Capanema
e Virgílio de Melo Franco, que ousavam pretender a um poder político autônomo,
Valladares se apresenta, desde o primeiro momento, como executor fiel da
vontade de Vargas, e é assim que surge como interventor em Minas Gerais.
A sua carta de apresentação ao Presidente são os serviços prestados no combate
à revolução paulista de 1932, e Valladares em nenhum momento externa suas
motivações para o desempenho que teve, como chefe de polícia às ordens do
Coronel Barcelos, depois General. É bastante dizer que estes serviços lhe
valem uma carta de recomendação do General, com a qual os favores de Vargas
são conquistados.
É interessante notar também como Valladares busca a Vargas depois da morte
de Olegário Maciel: "a morte foi um choque tremendo, pois, além de o estimar
muito, ficara desarvorado, sem chefe ou guia tão necessário aos moços na
vida pública. Arthur Bernardes estava do outro lado, Antônio Carlos tinha
seus preferidos. Os novos se engulfavam na competição política." Valladares
se transfere então para o Rio e, "tão logo me instalara, telegrafei ao presidente
Getúlio Vargas solicitando uma audiência, imediatamente concedida". Valladares
é "plantado" na política mineira por Vargas, com a oposição tanto dos políticos
da velha guarda quanto dos liberais como Mílton Campos, Pedro Aleixo e Afonso
Pena Jr, sem falar, evidentemente, em jovens estrelas nascentes como Gustavo
Capanema e Virgílio de Melo Franco.
Uma vez instalado no governo, entretanto, Valladares ensaia por primeira
vez um vôo autônomo, nas manobras de bastidores que antecedem ao golpe de
1937. A manobra se dá em duas frentes. Primeiro, repetindo 1932, ele se
põe de frente contra as pretensões de São Paulo à liderança política nacional,
representada agora por Armando Salles. Com isto se coloca ao lado de Vargas,
a quem, entretanto, não segue totalmente. Resiste em colocar a polícia mineira
à disposição do governo federal para uma intervenção em São Paulo; articula,
em nome de Vargas mas sem sua boa vontade, a candidatura José Américo contra
a de Armando Salles; para depois, baseado no anti-varguismo de José Américo,
tentar novamente uma candidatura única, que seria, certamente, a sua. Mas
os paulistas se recusam, e Valladares desiste de atuar autonomamente e se
coloca à disposição do carro já em marcha do golpe de 1937.
A próxima tentativa de ação autônoma é 1945, para a sucessão de Vargas,
e as manobras aqui são a cópia quase exata das de 1937. Pressentindo a fraquesa
de Vargas após a queda do eixo, Valladares se passa ao seu ministro da Guerra,
General Dutra, cuja candidatura articula como candidato varguista "malgré
lui". A oposição de Vargas a seu ministro não basta para trazer Valladares
ao seu lado, nem mesmo quando o presidente sugere o nome do próprio político
mineiro como candidato: "agora, quando estão postas candidaturas de dois
militares, é que o senhor se lembra disto?"
Varguista contra Vargas por imposição do realismo político, a dissociação
entre as fontes de poder é quase intolerável para o político mineiro, que
pede a Getúlio que apoio a Dutra, e a Dutra que desista (em favor de quem?)
pela falta de apoio de Getúlio. Declarado o impasse, com a queda de Vargas
e a consolidação de Dutra como candidato, entra em cena um novo fator que,
até então. não havia tido maior relevância: "meus amigos de Minas". Por
seus amigos de Minas, Valladares cogita até mesmo de apoiar a Eduardo Gomes,
mas seu faro não o engana, e permanece com Dutra. Trabalha duramente e,
"apesar da derrubada de todos os secretários, delegados de polícia e Prefeitos
municipais" em Minas Gerais, consegue, à frente do PSD, dar vitória ao General,
e com isto tem sua sobrevivência política assegurada, ainda que menos em
evidência do que até então.
Este parece ser, em resumo, o segredo do "político mineiro" que sobrevive
à República Velha: Não o representante de oligarquias rurais, não a expressão
de interesses econômicos dissimulados, mas o agente aberto do Chefe do Estado,
em manobras palacianas quando possível, em um contexto em que o peso especifico
do governo central na vida política do país passa a ser dominante. Quer
na luta por subjugar os anseios de autonomia dos políticos mineiros, quer
na ajuda ao combate às aspirações de autonomia e liderança dos paulistas,
Benedicto Valladares executa à perfeição seu papel, sem chegar jamais a
jogar sem cobertura, mas sem perder, também, seu lugar à sombra do poder.
Em 1945, com Vergas deposto, Valladares já contava com seus "amigos de Minas"
para sobreviver à breve orfandade política, que trata de obviar trabalhando
duro pera Dutra.
Com o relativo enfraquecimento do poder central após 1945, os "amigos de
Minas" não são um fator desprezível, mormente quando um esquema político
que isola São Paulo ainda deveria vigorar por mais quinze anos, agora contando
com Minas Gerais como base de sustentação. Seria magnífico se um dia tivéssemos,
da pena elegante e bem humorada de Benedicto Valladares, a história do que
passou neste período.
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