(Publicado na Folha de São Paulo, 8/06/2014)
Manifestações públicas constituem um dos aspectos essenciais da vida democrática. Um regime político que é incapaz de tolerar a livre manifestação da população – inclusive a que contraria os ocupantes do poder – não pode ser considerado democrático.
Historicamente, os regimes democráticos se consolidam quando a luta política deixa de ser o arriscado jogo do tudo-ou-nada e se institucionaliza como parte do cotidiano da sociedade. Esse é o requisito básico que abre espaço para a participação de todos os setores da população na vida política.
A pacificação do espaço da política é um elemento central das mudanças históricas que fizeram emergir, pela primeira vez na história humana, uma sociedade na qual todos os setores se percebem como atores políticos autônomos, e por isso, sujeitos ativos das decisões coletivas.
O reconhecimento que a participação política, para ser legítima, deve se dar dentro de regras é um pré-requisito central do jogo político democrático. Sem regras, a política torna-se um jogo arriscado demais para permitir a participação ampla.
Num ambiente marcado por pressões e ameaças de toda ordem, a política fica limitada à luta entre facções e forças organizadas. A permanência desse ambiente abre espaço para a constituição de regimes que, por sua incapacidade de tolerar o conflito, perdem um elo vital com a democracia, e aos poucos se convertem no seu oposto.
Portanto, é preciso ter clareza sobre as consequências de nossas palavras: quando exaltamos a participação sem limites, que torna a população refém de suas exigências e degringola em violência, estamos de fato propondo um modelo de participação onde, nas palavras do escritor George Martin, a política se converte “num jogo (de tronos) onde você ganha ou morre. Não há meio termo”.
Não é possível conciliar esse modelo de participação com um entendimento democrático do processo político, aquele em que TODOS os cidadãos, e não apenas os setores organizados, estão intitulados a participar da vida política.
Enganam-se aqueles que exaltam a violência como uma forma esteticamente superior e inovadora de fazer política. A violência na política é tão velha quanto a própria existência da humanidade. E ela nunca foi portadora da liberdade.
A violência como forma de participação se traduz na completa desconsideração pelo outro, na imposição unilateral do interesse de alguns sobre os direitos da grande maioria, e termina na desumanização do adversário: este perde sua condição humana para se converter numa encarnação do mal, “da opressão”, da “exploração”, etc. E assim chegamos a um passo de defender sua eliminação física, pura e simples.
É sintomático que a violência nas manifestações seja inversamente proporcional à sua representatividade. As grandes manifestações, aquelas que mobilizam milhões, são as mais pacíficas. Um movimento capaz de trazer uma parte significativa da população para as ruas, o faz porque, entre outras coisas, consegue assegurar que essa participação não ameaça a segurança de todos, nem de cada um.
Exatamente por esse motivo – justamente para assegurar que TODOS possam se manifestar – o direito à manifestação pública deve ser balizado por regras que tornam pública a intenção dos que querem manifestar e, simultaneamente, garantem o respeito ao direito dos demais: o direito de ir e vir, o acesso aos serviços públicos essenciais, etc. Essa é uma prática comum em todas as democracias do mundo. Por que não seria aceitável na democracia que queremos construir no Brasil?
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Elizabeth Balbachevsky, 56, é Professora Associada do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo, vice-diretora do Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas da USP e colaboradora no Fórum Pensamento Estratégico (PENSES) da Reitoria da UNICAMP.
“[…] a natureza não age em função de um fim, pois o ente eterno e infinito que chamamos de Deus ou natureza age pela mesma necessidade pela qual existe.[…]. “[…] assim, como não tem qualquer fim em função do qual existir, tampouco tem qualquer princípio ou fim em função do qual agir.” (SPINOZA. Ética. Autêntica Editora, 2010. p. 265)
Daí a minha preocupação com a formação do par alarme-alarmismo, segregativo-segregacionismo.