(publicado em O Estado de São Paulo, 10 de janeiro de 2020)
A nova versão do Programa Universidades e Institutos Empreendedores e Inovadores – Future-se, publicada no início de janeiro pela Casa Civil como projeto de lei e colocado em consulta pública, é um grande avanço em relação à versão anterior, de julho, divulgada pelo Ministério da Educação. Essencialmente, o projeto prevê a criação de um fundo patrimonial para apoiar atividades de inovação, empreendedorismo e internacionalização das universidades e institutos federais, permite que as universidades criem e administrem os próprios fundos, e introduz vários mecanismos modernos para a execução de projetos, pela criação ou associação das universidades com fundações de apoio e organizações sociais, contratos de gestão por resultados entre as universidades e a União e a criação de um comitê gestor do programa formado por representantes das universidades e dos Ministérios da Educação, Ciência e Tecnologia e Economia. Nesta versão, fica claro que a autonomia das universidades fica preservada, e que os recursos do programa são adicionais, e não substituem os recursos orçamentários regulares.
O ano de 2019 foi especialmente ruim para a educação brasileira, com o Ministério da Educação se perdendo em disputas ideológicas que só servem para desviar a atenção, deixando de lado questões centrais como a implementação da reforma do ensino médio e da educação profissional, a reformulação do ENEM, a renovação do FUNDEB, a revisão do sistema de avaliação da educação superior, a política de formação de professores, o combate ao analfabetismo funcional, e tantas outras. Em contraste, o projeto do Future-se mostra que uma equipe tecnicamente competente, ouvindo e dialogando com diferentes setores de dentro e fora da comunidade universitária, tem condições de avançar, da mesma forma que outras equipes vêm avançando nas áreas da economia e da infraestrutura.
Isto não significa que o projeto Future-se seja perfeito, e o processo de discussão pública que agora se renova serve não somente para que ele se aperfeiçoe, mas também para que ele seja melhor entendido e ganhe legitimidade nas diversas áreas – universitária, científica e tecnológica, empresarial e governamental – em que deve atuar. Existem questões que precisam aprofundadas, como o relacionamento do programa com a CAPES, e um certo fetiche que me parece ingênuo com a internacionalização, que não deveria ser um fim em si mesmo, mas o resultado natural de uma ciência e tecnologia de padrão efetivamente internacional. Outras questões hão de surgir da leitura atenta da proposta.
Sem tirar o mérito do projeto, é importante lembrar sempre que a pesquisa, a inovação e o empreendedorismo são somente uma parte pequena do sistema federal da educação superior, que, por sua fez, é também uma parte pequena da educação superior brasileira. Os dados recentes sobre publicações científicas elaborados pela Universidade de Leiden mostram que 42% da produção científica brasileira de qualidade internacional provém das três universidades paulistas, e metade da produção das federais vêm de apenas cinco universidades – URFJ, UFRGS, UFMG, UNIFESP, UFSC – sendo que só 23 das centenas de instituições de ensino superior no país aparecem nos dados. E, pelo censo da Educação Superior de 2018, dos 8.4 milhões de estudantes de nível superior no país, só 1.3 milhões, menos de 16%, estavam em matriculados em instituições federais.
Em outras palavras, a maior parte das universidades brasileiras, públicas ou privadas, não fazem ou fazem muito pouco de inovação, empreendedorismo e internacionalização, mas fazem outra coisa muito importante, que é formar milhões de pessoas para as diferentes profissões. Alguns conceitos introduzidos pelo Future-se, como os contratos de gestão, autonomia gerencial e avaliação por resultados, deveriam ser aplicados às universidades como um todo, para a avaliação e acompanhamento do ensino, e, mais amplamente, para alinhar os orçamentos anuais com os resultados obtidos, e não com os custos históricos.
Por outro lado, se for possível efetivamente criar um fundo patrimonial significativo para o apoio à inovação e ao empreendedorismo – e ainda não está claro se existirão recursos para isto – não há por que excluir do programa as universidades estaduais e particulares. A responsabilidade do Ministério da Educação para com a educação superior brasileira não se limita às instituições federais, e é importante não confundir a administração da rede própria com as políticas de interesse geral para o país.
Não é por acaso que seja justamente na ponta de cima do sistema que as coisas aparentemente comecem a andar. Esta tem sido a prática brasileira desde sempre – cuidar das instituições de elite, e não conseguir lidar com as questões que afetam e interessam à grande maioria da população. Temos a melhor pós-graduação e pesquisa universitária da América Latina, mas uma graduação muito desigual, e um dos piores sistemas escolares. É uma ilusão achar que um pequeno conjunto de instituições inovadoras possa, com o tempo, melhorar o resto, que funciona com outras lógicas. A ideia de que todo o ensino superior brasileiro convergiria para o modelo da universidade de pesquisa, que vem da reforma de 1968, ainda não foi abandonada de vez, embora todos saibam que é um mito. Sem políticas específicas para os cursos de graduação, o mais provável é que as universidades vocacionadas para a pesquisa e a pós-graduação se distanciem cada vez mais do resto, ou, simplesmente, acabem refluindo para a vala comum. É preciso aproveitar a experiência do Future-se para lidar também, com competência técnica, ideias inovadoras e diálogo, com os outros grandes problemas que a educação brasileira até agora não tem conseguido enfrentar.
Caro Simon,
Li, com interesse, seu artigo no EStadão sobre o “Future-se” e tendo a concordar com você que o atual desenho avança, se comparado ao anterior submetido à consulta. Também penso que um olhar mais cuidadoso para a graduação é necessário e a versão atual ao “fetichizar” a internalização (como bem aponta) e superdimensionar a pesquisa tem potencial para fragilizar, mesmo, o ensino. Mas, para além desses dois pontos que você acertadamente levanta, parece-me que os eixos propostos não avançaram no que tange à aderência entre eles e áreas como humanidades, por exemplo. Não me parece razoável que tal elipse seja objeto de esclarecimento apenas no contrato de gestão, se for o caso. E, por fim, soa-me preocupante vincular bolsas de Capes à adesão ao Future-se! Nesses casos, ainda não sou capaz de ver qualquer “future-se” na proposta.