(Versão ampliada de artigo publicado em O Estado de Sao Paulo, 10 de julho de 2020)
Com as escolas fechadas, o ensino à distância tentando salvar um ano praticamente perdido, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica expirando, o ENEM adiado para 2021 e o governo federal sem rumo, todos se perguntam quando, finalmente, poderemos voltar ao normal. Mas que “normal” é esse, será que tem volta, e queremos voltar a ele?
O fato é que, antes da epidemia, estávamos muito longe do que se poderia chamar de minimamente “normal”. Nos anos da bonança das exportações, que coincidiu com os governos do PT, os gastos com educação aumentaram, o acesso ao ensino médio e superior cresceu, mas, com as boas exceções de sempre, a qualidade do que é ensinado e aprendido continuou muito ruim. Com a crise econômica iniciada em 2015, os recursos públicos para a educação começaram a escassear, e foram dedicados cada vez mais a pagar os salários dos professores das redes públicas, sobrando muito pouco para outras coisas. No ensino superior público, as matrículas aumentaram, mas os investimentos foram interrompidos, e o grande subsídio ao setor privado, na forma de isenções fiscais e um gigantesco sistema de crédito educativo sem garantias, se tornou inviável.
Hoje as crianças têm escolas para onde ir, mas começam a abandonar na adolescência, a grande maioria sem adquirir o mínimo de competências entender o mundo e se colocar no mercado de trabalho. Em 2019, 70% dos jovens de 25 anos de idade havia conseguido completar o ensino médio, com os outros 30% ficando pelo caminho. Comparados com a geração anterior, hoje com 50 anos, são muito mais escolarizados, mas ainda muito longe do desejável, porque 30% ficam pelo caminho e a maioria completa o ensino médio sem dominar bem a leitura e o raciocínio numérico; e o acesso ao ensino superior aumentou muito pouco. Dos que terminam o ensino médio, menos da metade consegue entrar em um curso superior, com os outros ficando sem nenhuma qualificação profissional. Para entrar no ensino superior, é preciso passar pela corrida de obstáculos do ENEM, em que 5 a 6 milhões de pessoas disputam a cada ano menos de 400 mil vagas para as universidades federais. Para os demais resta a alternativa de pagar uma faculdade privada ou conseguir um crédito educativo ou uma bolsa de estudos, cada vez mais escassos. E continua. Nas universidades federais, 30% dos que entram abandonam os estudos entre o primeiro e o terceiro ano; nas grandes redes privadas, 60%. Nem para os que chegam ao final o sucesso está garantido: cerca de metade das pessoas com educação superior no Brasil trabalha em atividades que só requerem competências de nível médio.
É para este “normal” que queremos voltar? Na tentativa de não perder totalmente o ano, muitas escolas e faculdades adotaram a educação à distância. Muita gente foi contra, argumentando que com isso a desigualdade aumentaria, como se a solução fosse nivelar por baixo. Até recentemente, as antigas previsões de que as novas tecnologias iriam revolucionar a educação haviam em grande parte fracassado. Pode ser que, com a experiência forçada de agora, os recursos disponíveis possam ser mais bem utilizados, mas não será nenhuma bala de prata.
A falta de dinheiro afetará muito mais a educação superior do que a básica. O estado do Ceará provou que se pode fazer muito mais com pouco dinheiro no primeiro ciclo da educação inicial, mas ninguém ainda achou um caminho para o segundo ciclo, quando as crianças são largadas à própria sorte, entregues a professores que não conversam entre si e submetidos a um currículo que remonta aos anos 40. Há uma reforma do ensino médio em andamento, mas ele continua sufocado pelo enciclopedismo do ENEM, e pouco ou nada tem sido feito para oferecer alternativas de formação para a grande maioria que não irá além do ensino médio.
O ensino superior privado já vinha se adaptando à perda dos subsídios públicos expandindo a educação à distância, e por isto está sofrendo menos com o isolamento, mas tem tido perdas enormes de receita e dificilmente sobreviverá intacto. Ele atende a uma população mais velha que precisa trabalhar durante o dia, para qual a universidade presencial nunca foi uma realidade, e é possível que suas faculdades acabem tendo o destino das antigas gravadoras e lojas de discos, substituídas por um sistema muito mais aberto e diferenciado de um amplo mercado de ofertas de formação e sistemas de certificação de competências. No setor público, que hoje não é mais do que um nicho de 25% das matrículas, algumas universidades, como a de Campinas, terão condições de enfrentar a perda de recursos diferenciando as modalidades de oferta de cursos, de contratação de professores, e buscando financiamentos adicionais por convênios e financiamento de pesquisas em ciência e tecnologia. Para a maioria das universidades federais e estaduais, porém, a rigidez das regras do serviço público e a inércia poderão levar a um processo de lenta decadência, abrindo espaço para instituições privadas de prestígio e qualidade, como o INPER e a Fundação Getúlio Vargas, e perdendo seus melhores professores e alunos.
Os problemas são enormes, e vão se agravar. Tem muita gente boa buscando alternativas em todos os setores, e é possível que novos caminhos sejam encontrados, se o governo federal e a burocracia não atrapalharem.
Lúcida apreciação do estado atual da Educação. Quem sabe com a implantação paulatina do BNCC e equipamentos nas Escolas, seja luz no fim do túnel. Pelo menos, nosso Setor de Ciências Biológicas, UFPR continua publicando e tem ensino de graduação/pós-graduação de boa qualidade!
Não creio que os problemas “vão se agravar”, mas tenho a sensação de que quando voltarmos – mais dias ou menos dias – teremos mais do mesmo, ou seja, retornaremos às nossas práticas habituais.
Concordo que os ludistas e reacionários são muito fortes “nas faculdades de educação”: tive um exemplo disso numa reunião a poucos dias.
O ‘establishment’ pedagógico-educacional que tem hegemonia no MEC, nas faculdades de educação e nas chamadas ‘lideranças’ do setor são Gramscianamente enciclopédicas, tecnologicamente luditas e culturalmente avessos a [qualquer] mudança.
Se considerarmos que a educação pública de primeiro e segundo graus são geridas e operadas pelos municípios e pelos estados, sem que o governo federal tenha com ela envolvimento direto de ‘mão na massa’, vemos uma das mazelas responsáveis por estarmos onde estamos: o exagerado centralismo de Brasília, a inexistência de uma federação de fato, e a padronização destruidora feita em nome de uma pretensa ‘igualdade de oportunidades’. Acresça-se a isso a impossibilidade de promover os mais competentes e rejeitar os relapsos.
O sistema público de educação tem dado abundantes mostras de ser avesso a mudanças, ser excessivamente ideologizado e dominado por gente avessa a tecnologia. Modificações paulatinas, orgânicas, evolutivas, nunca funcionaram e não funcionarão com essa turma. Tem que haver uma ruptura.