(Publicado em O Estado de São Paulo, 12 de fevereiro de 2021)
Com a vitória de Biden nas eleições americanas, a grande pergunta para os Estados Unidos, que que interessa também ao Brasil e a muitos outros países, é se o radicalismo de extrema direita de Trump, Bolsonaro e semelhantes é um fenômeno passageiro, que começa a se esvair, ou se, ao contrário, é o novo governo democrata que é passageiro. Foi este o tema de um recente seminário organizado pela Fundação Fernando Henrique Cardoso com a jornalista e escritora Anne Applebaum, autora de O Crepúsculo da Democracia, que deve ser publicado no Brasil proximamente
O que caracteriza o radicalismo de extrema direita, assim como o de extrema esquerda, não são os valores e preferências de seus proponentes – mais ou menos a favor do mercado, de políticas sociais, dos direitos e os costumes que defendem – mas o ataque que fazem às normas e às instituições do estado de direito, que regulam os processos de disputa eleitoral, colocam limites no poder dos governantes e garantem as liberdades individuais. É o respeito a estas normas e instituições, e não o eventual apoio popular, que distingue os regimes democráticos dos autoritários em suas diferentes versões. Hitler e Mussolini, passando por Perón, Hugo Chaves, Tayyip Erdogan e Viktor Orbán, são exemplos de governantes que chegaram ao governo com apoio popular, e abusaram do poder para destruir as instituições que os elegeram. Foi este o caminho buscado por Trump ao negar a validade das eleições que perdeu e jogar seus militantes contra o Congresso, e tem sido este também o caminho buscado por Bolsonaro ao tentar jogar as forças armadas contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso, quando eles anda pareciam independentes, e ameaçar desde já a não reconhecer os resultados de uma futura eleição da qual saia derrotado.
Impressiona, ao ver esta lista de governantes autoritários, a facilidade com que conseguem, uma vez eleitos, destruir as instituições democráticas e permanecer no poder, graças não só ao apoio popular, mas também ao beneplácito de muitos intelectuais e líderes políticos, empresariais e institucionais que não têm problema em jogar seus escrúpulos às favas, em nome de seus interesses práticos mais imediatos. É um cinismo generalizado que percorre de cima a baixo da sociedade, e que afeta não só os valores mais abstratos do estado de direito e da democracia, mas coisas muito mais concretas como a tolerância à corrupção, à discriminação social e à violência. Isto talvez se explique pela noção, dada como óbvia pelos economistas, de que o ser humano vive e atua em função não de princípios, mas de seus interesses egoístas, ou, como diria Thomas Hobbes, um dos fundadores da ciência política, de que, deixado à solta, o homem é o lobo do homem.
Se isto é assim, o fenômeno anormal que precisa ser explicado não é o surgimento e permanência dos regimes autoritários, mas a existência e a persistência de regimes democráticos. Não basta dizer que os regimes democráticos são moralmente superiores aos autoritários, quando, para muitos, esta superioridade é demasiado abstrata e distante de seus interesses do dia a dia. É preciso também ver se, e em que medida, o estado de direito e os regimes democráticos também podem trazer benefícios práticos para a população, que os tornem mais interessantes do que os autoritários.
Com raras exceções, basta comparar as sociedades democráticas com as autoritárias para ver como são muito mais vantajosas. Nelas, as pessoas vivem sem medo de dizer o que pensam e de ser oprimidas e achacadas pelos governantes; com a liberdade de se organizar e empreender e a confiança nas regras de funcionamento dos mercados, a economia floresce, e é distribuída de forma mais igualitária; as instituições são preservadas, as políticas públicas de saúde, educação e meio ambiente são conduzidas pelas pessoas mais competentes, e os conflitos de interesse, ao invés de serem disputados de forma sangrenta e sem limites, se resolvem de forma civilizada segundo “regras do jogo” que todo mundo respeita.
Mas as democracias são imperfeitas, nem sempre conseguem cumprir o que prometem, e padecem da “tragédia dos comuns”, que ocorre sempre que os interesses individuais de curto prazo prevalecem sobre os interesses gerais de longo prazo. Por isto, elas não ocorrem de forma natural, mas precisam ser construídas por elites capazes de pensar a longo prazo, obter apoio para suas ideias e mostrar resultados práticos de curto prazo, que possam fazer a ponte entre os interesses individuais e o interesse coletivo. Se Biden for capaz de, ao mesmo tempo, restabelecer as normas básicas da democracia americana e lidar com os problemas de curto prazo da epidemia e da recessão econômica, há uma boa chance de que o radicalismo se direita americano volte para os rincões de onde nunca deveria ter saído. Da mesma forma, no Brasil, o futuro depende da capacidade da parte sã que ainda resta de nosso sistema político, econômico e institucional de apontar para uma alternativa ética também construtiva ao bolsonarismo.