(Publicado em O Estado de São Paulo, 12 de agosto de 2022)
Eunice Durham morreu de repente, quando se preparava, animada, para sua festa de 90 anos. Em um depoimento em 2009, ela reflete sobre sua carreira de antropóloga, que teve início com pesquisas, muitas vezes em parceria com Ruth Cardoso, sobre o difícil processo de mobilidade e participação social dos imigrantes, do campo ou do exterior, que se dirigiam para os centros industriais e urbanos que se formavam no Brasil[1]. Ela mesma fez parte deste processo, vinda de uma pequena cidade, estudando, pesquisando e se tornando uma das primeiras mulheres a ter uma carreira destacada na aristocrática e masculina Universidade de São Paulo.
Era uma transformação cultural, mas também política, de disputa por espaços e direitos. Para os imigrantes europeus e japoneses, o caminho da mobilidade passava pela solidariedade familiar, valorização do trabalho e investimento na educação dos filhos. Para os imigrantes do campo, muitas vezes descendentes de populações escravizadas, “o importante era a liberdade, pois trabalho manual estava associado a trabalho forçado”, diz Eunice.
O golpe militar de 1964 a encontra pesquisando para sua tese de doutorado e iniciando sua carreira de professora. Começavam as perseguições políticas na Faculdade de Filosofia, estudantes e professores se mobilizavam contra o regime militar, e muitos cientistas sociais passaram a usar os conceitos marxistas de luta de classe para entender o que estava ocorrendo, e tomar partido a favor dos mais pobres e necessitados. Eunice compartilhava a preocupação com a questão social e a oposição ao autoritarismo do regime militar, mas não acreditava que o marxismo era a resposta para tudo. “Revolução e luta de classes não eram conceitos explicativos para os problemas com que trabalhávamos. Nossos ‘objetos de pesquisa’ – imigrantes, migrantes, boias-frias, favelados – não eram revolucionários e também não faziam parte nem da burguesia nem do proletariado”.
Naqueles anos, novas gerações começavam a entrar nas poucas universidades que existiam. Muitos buscavam, simplesmente, ocupar os mesmos lugares de poder e prestígio de seus pais, mas outros imaginavam que, com os conhecimentos trazidos pela pesquisa e pela liberdade de estudos, e a chegada de estudantes vindos das novas classes em ascensão, as universidades, e eles mesmos, seriam as fontes de onde surgiria um Brasil mais moderno, igualitário e próspero. A mobilização por uma universidade renovada e a oposição ao regime militar se confundiam.
O modelo elitista adotado pela Reforma Universitária de 1968 estimulou a pesquisa e a pós-graduação nas universidades já estabelecidas, mas criou também muitas instituições que de pesquisa e da formação de alto nível pouco mais tinham que a casca e os altos custos. Incapazes de absorver a demanda crescente por educação superior, acabaram abrindo espaço para a expansão desordenada do setor privado. Com a democratização, o governo anuncia uma grande reforma do ensino superior, que não sai do papel, pela resistência dos interesses criados.
Eunice Durham participa intensamente da mobilização em busca de novos caminhos, como uma das fundadoras da associação de docentes da USP, mas vai se dando conta que a militância não bastava, era preciso entender melhor e mais a fundo as questões do ensino superior, das quais a Universidade de São Paulo era somente uma pequena parte. Em 1987 ela me convidou para ajudar a organizar o Núcleo de Pesquisas sobre Educação Superior da USP, o primeiro centro de pesquisas sobre o tema do país. Por vários anos trabalhamos juntos buscando entender como o que ocorria no Brasil se comparava ao resto do mundo, e como os diferentes países procuravam lidar com os temas da massificação do ensino, equidade, pesquisa universitária, qualidade acadêmica, financiamento, e do papel do público e do privado.
Logo depois, levada por José Goldemberg, ela foi para Brasília, com a missão de fazer renascer a CAPES, extinta por Fernando Collor, e trabalhando depois como Secretária Nacional de Educação Superior. Menos conhecida, mas talvez mais importante, foi sua parceria com Darcy Ribeiro na preparação do substitutivo da Lei de Diretrizes de Bases, que acabou sendo aprovado em 1996 no lugar do projeto que vinha sendo costurado ao longo de vários anos pelos diversos movimentos políticos do setor educacional, que ela e Darcy entendiam que atendiam mais a seus interesses corporativos do que a educação do país.
Ficam de Eunice as marcas de sua independência intelectual e compromisso social. Ela termina seu depoimento lamentando que “as velhas virtudes socialistas da solidariedade e do sacrifício pelo bem comum parecem estar em baixa. O mesmo acontece com as ainda mais antigas virtudes liberais, como a do limite da liberdade de cada um que é dado pela liberdade do outro, da tolerância para com as diferenças de opinião que fazem parte do jogo democrático, da proibição republicana da apropriação e do uso individuais dos bens públicos. Pessoas da minha idade tendem a ser conservadoras e apreciar estas virtudes antigas”.
[1] Lilian de Lucca Torres, “Entrevista: Eunice Ribeiro Durham”. Ponto Urbe. Revista do núcleo de antropologia urbana da USP, 2009.